Introdução
No Brasil, o número de Programas de Pós-Graduação stricto sensu cresceu 48% na última década, conforme aponta uma matéria baseada em dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (PÓS-GRADUAÇÃO..., 2022). Esse crescimento impulsionou a expansão do número de pesquisas e gerou diversas questões em torno dela. O crescimento da Pós-Graduação na área das Ciências Humanas consolida a pesquisa e dá-lhe visibilidade e, também, provoca tensões relacionadas à especificidade das pesquisas de natureza humana e as formas de sua validação ética junto à comunidade científica.
Pesquisadores da área das Ciências Humanas (AMARAL FILHO, 2017; CARVALHO, 2018; MAINARDES, 2016, 2017) levantam questões relativas à regulação ética da pesquisa brasileira, criadas à luz das Ciências Médicas. O Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Saúde (MS/CNS), instâncias responsáveis pela regulação ética da pesquisa no Brasil, ao longo dos anos, vêm apresentando normativas em resposta a movimentos da comunidade científica em nome de uma regulação que atenda às diversas áreas do conhecimento: Resolução CNS Nº 196, de 10 de outubro de 1996 (BRASIL, 1996); Resolução CNS Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013); Resolução CNS Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016); e Resolução CNS Nº 674, de 6 de maio de 2022 (BRASIL, 2022). Essa ampliação permanece valorizando as pesquisas clínicas e não atendendo à reivindicação de pesquisadores da área das Ciências Humanas e Sociais e da Educação de terem um instrumento de regulação ética de pesquisa próprio, independente de instâncias médicas (AMORIM et al., 2019; CAMPOS, 2020; GUERRIERO, 2023).
A questão da integridade da pesquisa e do pesquisador também movimenta a comunidade científica no sentido do desenvolvimento de padrões de boas práticas na pesquisa que sejam incorporados pelos pesquisadores. Na área das Ciências Humanas, pesquisadores utilizam como documentos norteadores: o Código das Boas Práticas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp (2014); o Relatório da Comissão de Integridade de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (2011); além de documentos de referência internacional, traduzidos para o português em função da relevância: Diretrizes Éticas para a Pesquisa em Educação da Associação Britânica de Pesquisa em Educação - BERA (2018) - sigla do original British Educational Research Association, traduzido em 2022; e o Código de Ética da Associação Americana de Pesquisa Educacional - AERA (2017) - sigla do original American Educational Research Association.
Tendo como referência esses documentos nacionais e internacionais acerca da pesquisa na área das Ciências Humanas e Sociais, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) tem produzido discussões importantes acerca da prática da pesquisa na área Educacional e da regulação ética e da integridade da pesquisa e do pesquisador (MAINARDES, 2017). Caminhando nessa perspectiva de educar para a pesquisa, a ANPEd divulgou o produto desse debate em duas publicações na forma de e-book: Ética e pesquisa em Educação: subsídios - Volume 1 (ANPED, 2019) e Ética e pesquisa em Educação: subsídios - Volume 2 (ANPED, 2021). Há, ainda, um terceiro e-book em produção - Ética e pesquisa em Educação: subsídios - Volume 3 - a ser publicado em 2023.
Também cumprindo esse papel de educar para a ética e a integridade na pesquisa, a ANPEd disponibiliza, em sua página virtual1, uma lista de referências composta por mais de 200 indicações, entre livros, textos, documentos e vídeos. Esses materiais estão ordenados nas categorias temáticas: normativas e regulação ética nacionais e internacionais; aplicação da ética em pesquisa em diversos contextos educacionais; fundamentos da ética na pesquisa; plágio em publicações; ética na formação do pesquisador; ética na docência; e procedimentos éticos na pesquisa.
Essa compilação revela a produção de pesquisadores brasileiros, desde a primeira década dos anos 2000, em torno da prática, da integridade e dos argumentos de validação ética da pesquisa educacional junto à comunidade científica. A análise dessas referências permite-nos afirmar que cerca de 70% delas detêm-se em duas temáticas: normativas e regulação ética em pesquisa e cuidados éticos na pesquisa educacional realizada em diversos contextos educacionais. Essas temáticas ainda geram muitas inquietações entre os pesquisadores, tanto pelas especificidades das pesquisas em Educação, quanto pelo intento de que essas discussões possam fortalecer a luta pela autonomia de regulação própria de pesquisas na área das Ciências Humanas.
A temática de interesse deste artigo, ética e integridade na pesquisa na formação do professor-pesquisador, é tema central de cerca de apenas 4% das referências em ética na pesquisa apresentadas na página virtual da ANPEd. Os estudos de Bessa (2014), Carvalho e Gonçalves Neto (2015), De La Fare (2019), De La Fare e Savi Neto (2021), Mainardes e Stremel (2019), Nunes (2016, 2017, 2021), Pinto et al. (2021), Severino (2015) e Severino et al. (2011) compõem esse percentual. Esse número reduzido de publicações dedicadas especificamente à ética e à integridade na formação do professor-pesquisador expõe a necessidade de ampliação do debate teórico em torno desse tema e demanda que também sejam investigadas estratégias pedagógicas que envolvam essa questão de forma efetiva nos mais diversos cenários formativos.
Nessas referências, também constam diversas publicações que não se dedicam a explorar especificamente a temática da formação para ética e integridade na pesquisa, mas que mencionam a responsabilidade de educar para a pesquisa e consideram os diversos contextos formativos como patrocinadores da conduta ética e da integridade do pesquisador. Nesse sentido, destacamos os seguintes trabalhos: Angelucci et al. (2019), De La Fare, Machado e Carvalho (2014), Mainardes (2017), Mainardes e Carvalho (2019), Nunes (2019), Oliveira M. (2021) e Soares (2021).
Este artigo objetiva, portanto, produzir reflexões acerca dos espaços formativos como lócus de desenvolvimento do professor-pesquisador para a conduta ética e responsável na pesquisa, identificando e mapeando as temáticas que podem ser trabalhadas com os diferentes atores no contexto da Graduação e da Pós-Graduação. Ressaltamos os espaços de formação na Pós-Graduação para o trabalho com a integridade na pesquisa.
O artigo foi desenvolvido em quatro sessões. Inicialmente, discorremos acerca da ética e da integridade na pesquisa, salientando as etapas da pesquisa e as fragilidades éticas a que estão sujeitos os envolvidos na pesquisa. Na sequência, discutimos a cultura da integridade na pesquisa nas Instituições de Ensino Superior (IES) nas formações iniciais. Em seguida, tratamos da formação para a integridade na pesquisa na Pós-Graduação. Por fim, apresentamos reflexões acerca dos espaços de formação na Pós-Graduação para o trabalho com a integridade na pesquisa.
Metodologia
Este é um estudo qualitativo, exploratório e de revisão. O trabalho de pesquisa bibliográfica foi construído a partir de artigos buscados no banco de periódicos da Capes e na SciELO publicados entre os anos de 2012 e 2022, com o uso dos seguintes descritores: “integridade e pesquisa”, “ética e pesquisa”, “educação e formação”. Foi realizada uma pesquisa em alguns documentos internacionais e artigos disponíveis na literatura sobre integridade na pesquisa. Entre os documentos, podemos citar: o Código de Nuremberg de 1947 (BRASIL, 1995); a Declaração de Helsinque (ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL, 1964), adotada como os princípios éticos para as pesquisas médicas com seres humanos pela Associação Médica Mundial - WMA2 (2000); a Declaração de Bioética e a Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco (2005); e a Lei Geral de Dados Pessoais - necessidade de consentimento do titular para coleta e tratamento de dados pessoais - Lei No 13.709, de 14 de agosto de 2018 (BRASIL, 2018). Esses documentos mostram alguns dos elementos teóricos e a aplicabilidade da integridade na pesquisa no contexto da formação e da prática da pesquisa nos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGEs) e atentam para situações que podem gerar más práticas de pesquisa em Educação. Destacadamente, foram utilizados materiais indicados na seção “Ética na Pesquisa” da página virtual da ANPEd.
Ética e integridade na pesquisa
O desenvolvimento da ciência depende da atividade do pesquisador. Esse processo produtivo ocorre em um campo científico, atravessado por grandes disputas em torno do saber e de interesses de toda ordem. A pesquisa, se ética, é o grande produto da ciência. Uma pesquisa para ser considerada ética deve ser alinhada aos interesses sociais, e o pesquisador, para ser conceituado como ético, deve realizá-la atendendo às exigências técnicas, aos valores e à ética. Ao realizar uma pesquisa de forma ética, o pesquisador assume um compromisso com a comunidade científica e com toda a sociedade (CARVALHO, 2021; MAIORINO; CECÍLIO, 2021).
As pesquisas éticas estão atentas aos direitos humanos, à liberdade, à autonomia dos participantes da pesquisa e do pesquisador e à diversidade (OLIVEIRA, I., 2021). A comunidade científica comunga desses princípios éticos e considera as pesquisas que ofendem a qualquer um deles como não éticas. O pesquisador que produzir um estudo sem respeitar os princípios éticos responderá por isso. Em algumas situações, são aplicadas penalidades associadas à reparação do dano causado; e, em outros contextos, atestada por instância reguladora a gravidade da infração ética, a esfera judicial é acionada (PEIXOTO, 2021).
Um trabalho de pesquisa deve ser ético em todas as suas etapas: planejamento, execução, difusão dos resultados e na devolução dos dados aos participantes do estudo. O comportamento do pesquisador qualifica um estudo como ético ou não ético, sendo possível considerar que o pesquisador necessita construir uma identidade ética para desenvolver pesquisas éticas (RUSSO, 2014; SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020).
A integridade da pesquisa é feita das virtudes e dos valores do pesquisador, e a comunidade científica comunga da conduta íntegra do pesquisador (PEIXOTO, 2021). Quando o pesquisador não age com responsabilidade em uma pesquisa, ele põe em risco o seu lugar de pesquisador e compromete os participantes do estudo, os que se beneficiaram com os resultados, os que promoveram a pesquisa e os pares que, em algum momento, assumiram alguma responsabilidade por ela. O pesquisador deve garantir que age com integridade em todos os seus estudos (BESSA, 2014; DE LA FARE; MACHADO; CARVALHO, 2014).
São consideradas como ausência de integridade em pesquisa: plágio e autoplágio (plagiar a si mesmo), a desonestidade no tratamento e na divulgação dos dados (BESSA, 2014; DE LA FARE; MACHADO; CARVALHO, 2014; MERCADO, 2019). O plágio é uma das infrações éticas mais referidas nas publicações que tratam da ética e da integridade na pesquisa (THIRY-CHERQUES, 2016; SILVA, 2018). O pesquisador incide no plágio quando se utiliza de qualquer produto ou criação de outra pessoa, sem o cuidado de referenciar o autor do trabalho/da criação. Podem ser plagiados de forma total ou parcialmente: livros, artigos acadêmicos, músicas (cifra e letra), imagens, fotografias, trabalhos técnicos e/ou acadêmicos etc. (MERCADO, 2019).
O autoplágio é um comportamento que também denuncia que o pesquisador não garante a integridade de suas pesquisas. Ele é caracterizado quando o pesquisador repete, em algum trabalho, de forma total ou parcial, algo que já havia sido publicado ou divulgado por ele mesmo. É caracterizado autoplágio nas publicações/criações em que o pesquisador apresenta como inédito algo que já publicou/criou sem mencionar que seja uma nova versão ou versão adaptada do que originalmente já havia sido publicado (MERCADO, 2019).
Em pesquisas acadêmicas, as normas que regem a escrita acadêmica devem ser adequadamente utilizadas, a fim de evitar-se a ocorrência do plágio e do autoplágio. Krokoscz (2015), ao apresentar pesquisas com estudantes de Pós-Graduação a fim de compreender a ocorrência de plágio, identificou, entre outras questões, limitações de ordem técnicas e pouco domínio das regras da escrita científica como condições que tornam vulneráveis jovens pesquisadores na produção de textos. Ainda nesse estudo, foi mencionado que alguns estudantes que não dominavam um idioma além do seu, e mesmo assim eram exigidos a produzirem em idioma que não dominavam, recorriam ao plágio como uma estratégia para concluírem as solicitações do cenário da Pós-Graduação.
Ao pesquisador é exigido apresentar uma conduta ativa em vários contextos da universidade e nos mais variados níveis de formação. A pressão por produzir também é apresentada como justificativa para a incidência de plágio e autoplágio (BOUTER, 2022; MERCADO, 2019). Nesse cenário, quanto mais elevado for o nível acadêmico do pesquisador, maior o risco de este ser qualificado pela quantidade de produções científicas. Krokoscz (2015) e Bouter (2022) alertam para a necessidade de uma avaliação qualitativa do pesquisador na universidade, na qual deva ser atentada a conduta ética e a integridade das pesquisas.
A desonestidade no tratamento de dados é uma das formas de má conduta em pesquisa também frequentemente mencionada. O pesquisador não age com integridade quando modifica, de forma intencional, altera, cria e/ou manipula os dados de sua pesquisa. Essa conduta compromete toda a comunidade acadêmica, pois, quando dados não verdadeiros são difundidos, afetam a integridade do veículo de divulgação, compromete os pares que validaram o conhecimento, as instituições que financiaram a pesquisa e outros estudos que confiaram na sua veracidade (SEVERINO, 2019).
Quando é detectado que um pesquisador tomou uma atitude não ética ou agiu sem compromisso com a integridade da pesquisa, a comunidade científica busca identificar esse pesquisador e as instituições que se responsabilizaram pela pesquisa a fim de que a responsabilidade pela falta de integridade na pesquisa possa ser apurada. Para Bouter (2022), De La Fare, Machado e Carvalho (2014) e Mercado (2019), a constatação de não integridade e de conduta não ética não deve ser encerrada em punições, mas ser promotora de reflexões de ações efetivas de caráter educativo a fim de que o pesquisador possa ser capaz de identificar situações que ponham em risco a ética e a integridade e comprometam a sua identidade de pesquisador.
Desafios relativos à ética e a integridade ou dilemas éticos põem em risco diversos atores. Os dilemas éticos reclamam a capacidade de respostas do pesquisador e da comunidade científica (PEIXOTO, 2021). Savi Neto, De La Fare e Silva (2020) entrevistaram 78 doutorandos professores e questionaram se eles já haviam passado por algum dilema ético. Desses pesquisadores participantes, 46 (63%) responderam ter passado por dilemas éticos. A formação para a conduta ética e responsável na pesquisa favorece a capacidade de reflexão do pesquisador e o qualifica como pesquisador.
O Quadro 1 apresenta, de forma ampla, as etapas da pesquisa e as fragilidades éticas que devem ser atentadas pelo pesquisador. Ele foi construído a partir dos estudos de Alves (2019), Amorim et al. (2019), ANPEd (2019, 2021), Bradley (2011), Carvalho, J. (2019), Brooks, Te Riele e Maguire (2017), Campos (2020), Carvalho e Gonçalves Neto (2015), Carvalho, I. (2019), Cope (2017), Council of Science Editors - CSE (2018), Coutinho (2019), Cruz (2019), Diniz e Munhoz (2011), Gatti (2019), Gray e Jordan (2012), Harris (2011), Kramer e Pena (2019), Krimsky (2019), Mainardes e Carvalho (2019), Nunes (2019), Oliveira, I. (2021), Oliveira, M. (2021), Phitan e Oliveira (2016), Sayão e Sales (2012) e Souza (2016).
Etapa da Pesquisa | Envolvidos | Fragilidades Éticas |
---|---|---|
Proposição da Pesquisa Projeto de pesquisa |
Agências de Fomento Instituição PPGE Comite de Ética Pesquisador |
Plágio e autoplágio. Competência do pesquisador para executar o projeto. Conflitos de interesses. Conflitos de autoria - apropriação indevida de ideias, dados e trabalho intelectual sem dar crédito a seus criadores. |
Execução da Pesquisa Quadro teórico Coleta e produção de dados Análise de dados Relatório da pesquisa Devolutiva às instituições e aos sujeitos envolvidos |
Pesquisador Comitê de Ética Instituições envolvidas Sujeitos da pesquisa |
Potenciais riscos aos participantes da pesquisa: desconforto, sofrimento emocional e físico. Consentimento e assentimento informado e livre dos sujeitos da pesquisa. Invasão de privacidade dos respondentes. Vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa. Conflitos de interesses. Fabricação, falsificação e supressão de dados da pesquisa. Dados sensíveis algoritimizáveis. Viés em dados quantitativos analisados por softwares. Viés da pesquisa. Anonimato e confidencialidade dos informantes. Omissão de resultados que possam levar a interpretações errôneas sobre a pesquisa. Proteção de dados sensíveis: origem social, origem étnica (etnia), convicção religiosa, dados referentes à saúde do indivíduo. Manipulação de imagens e índices. Proximidade (envolvimento) do pesquisador com os sujeitos da pesquisa. Interpretação tendenciosa de dados. Sabotagem de métodos ou imprecisão analítico-metodológica. Ausência de devolutiva da pesquisa. |
Arquivamento e curadoria de dados |
Pesquisador Instituições Repositórios |
Consentimento e assentimento. Dados confidenciais da pesquisa. Conflitos de interesses. Falsificação, fabricação e supressão de dados da pesquisa. Dados sensíveis algoritimizáveis. Dados de grupos vulneráveis. Divulgação de dados imprecisos ou incompletos. Identificação de respondentes e quebra da confidencialidade dos informantes. Divulgação de resultados que possam levar a interpretações errôneas sobre uma pesquisa. Proteção de dados sensíveis. |
Divulgação do resultado de pesquisas Publicização no Banco de Teses e Dissertações Publicação em periódicos, livros e anais de congressos Lives |
Pesquisador Editores de periódicos Coordenadores de eventos Pareceristas em avaliação por pares |
Conflitos de autoria: inclusão no rol de autores de artigos produzidos por estudantes e jovens doutores, de pessoas que não contribuíram para seu conteúdo; usurpação do trabalho intelectual - pressão para ceder posição de autor principal de artigo para pesquisador mais experiente; “Intercâmbio de autoria” - inclusão de pesquisadores estrangeiros sem relação com o estudo realizado; disputa de autoria; inclusão ou exclusão de autores. Plágio e autoplágio de créditos da pesquisa. Conflitos de interesses na editoria e na avaliação às cegas pelos pares. Fracionamentos de resultados visando inflacionar o acúmulo quantitativo de publicações. Publicação de dados confidenciais. Publicação de dados sensíveis. Manipulação, fabricação ou supressão de dados. Divulgação de dados imprecisos ou incompletos. Divulgação prematura de resultados da pesquisa. Assédio para publicação em publicações predatórias. Autocitação ou citação endógena como forma de promover índices de impacto. Publicação duplicada. Publicações pagas e editorializadas com a cumplicidade no relaxamento do rigor científico ou até mesmo destituída de comissão científica isenta. Confidencialidade da avaliação pelos pares. |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir das fontes especificadas.
As fragilidades éticas que atravessam as etapas da pesquisa dificultam a sua conclusão, comprometem participantes e instituições de financiamento, vulnerabilizam a ciência e afetam a identidade do pesquisador. Essa sistematização pode favorecer discussões em cenários formativos favorecendo a qualificação de pesquisas e de pesquisadores.
Cultura da integridade na pesquisa nas IES
Entre tantas outras atribuições, a pesquisa pode ser considerada como mais um ofício do professor. O grande desafio de fazer pesquisa, para o professor ou para qualquer outro pesquisador, está em desenvolver esse ofício atendendo a questões éticas e morais (MAIORINO; CECÍLIO, 2021).
Os processos de formação docente (iniciais, continuados, permanentes e especializações) são responsáveis pela dinamicidade da docência. A identidade docente começa a ser construída nos primeiros anos de formação. Essa identidade inicial, ancorada em teorias e nas diversas práticas vividas nos espaços de formação, terá relação direta com a história pessoal do professor e com o contexto social e político no qual este se encontra. Ao longo da vida profissional, o cotidiano da atuação docente, as vivências formativas e as mudanças sociais e políticas darão conta de ressignificar saberes e produzir reflexões que favorecerão permanentes reedições ou atualizações da identidade docente (RONCARELLI; STECANELA; PAULETTI, 2022).
Consideramos que a conduta ética e a integridade do professor na qualidade de pesquisador também são fomentadas nas diversas etapas da vida acadêmica. Há um crescente contato com a pesquisa nos mais diversos níveis de formação. Quanto maior o nível acadêmico, mais horas são dedicadas à prática da pesquisa e a qualificação do pesquisador. A forma como a pesquisa é apresentada na formação inicial e as reflexões produzidas acerca da identidade e responsabilidade do pesquisador em Educação ao longo dos processos formativos qualificarão a pessoa do pesquisador, a instituição a que ele se vincula e toda a comunidade científica (CARVALHO, 2021).
Em qualquer nível de formação, as experiências do pesquisador precisam que sejam experiências éticas e responsáveis (BESSA, 2014; JESUS, 2019; NUNES, 2017; RUSSO, 2014). Os diferentes níveis de processos formativos possibilitam diversos tipos de contato com a pesquisa.
Espaços de formação para a integridade na pesquisa no cenário da Graduação
Nos cursos de Graduação, o contato com a temática da ética e integridade da pesquisa é menor, quando comparado com os cursos de Pós-Graduação (SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020). Os cursos de Graduação são mais dirigidos à tarefa de ensino, tendo como maior objetivo formar para o mercado de trabalho. Nesse nível de formação inicial, as preocupações com a pesquisa e com a formação ética para a pesquisa não estão em evidência. Diferentemente da Pós-Graduação, que, por vislumbrar o incremento da formação acadêmica, privilegiando a pesquisa, recorrentemente expõe esse tema ao pós-graduando (KROKOSCZ, 2015; SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020).
O compromisso da Graduação como espaço de formação inicial do pesquisador é mencionado nos estudos de Bessa (2014), De La Fare (2019), De La Fare, Carvalho e Pereira (2017) e Savi Neto, De La Frare e Silva (2020). Mesmo sendo menor o contato com a pesquisa em espaços formativos iniciais, e as pesquisas serem realizadas por pesquisadores iniciantes, o espaço da Graduação não pode funcionar como berço de pesquisas não éticas.
Durante a Graduação, a pesquisa é apresentada em componentes curriculares (pesquisas/metodologias de pesquisa), em experiências de iniciação à pesquisa (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica - Pibic, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - Pibid, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação - Pibit), em atividades de extensão e em atividades de orientação para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
A Graduação também desafia o professor em formação a vivenciar o futuro campo de trabalho por meio de estágios e de programas envolvendo práticas pedagógicas (Programa de Residência Pedagógica - PRP). Essas experiências também podem produzir questionamentos em torno da pesquisa e funcionarem como promotoras de reflexões relativas a posturas éticas que envolvem o lugar do professor e do professor-pesquisador. De forma ética e responsável, registros de experiências relacionadas aos estágios e a PRP poderão ser publicados e contabilizados como atividade de pesquisa na etapa de formação inicial do professor-pesquisador.
O estágio e as demais atividades práticas que são vivenciadas durante a formação inicial do professor nem sempre são perspectivadas por estudantes e professores como “[...] culminância de um processo de pesquisa [...]” (KROKOSCZ, 2015, p. 25), o que pode justificar pouco ou nenhum investimento por parte dos estudantes ao desenvolvê-las e/ou registrá-las como um relato de experiência, o que não deixa de ser um relatório científico e que deva estar alinhado com critérios éticos. Muitas vezes as atividades são realizadas apenas como forma de serem atendidos os pré-requisitos para a conclusão dos cursos de Graduação.
Ademais, não é incomum que alguns estudantes apresentem atividades não originais ao longo da formação inicial. A infinita disponibilidade de publicações digitais possibilita que estudantes, em qualquer nível de formação, possam plagiar trabalhos de outros pesquisadores e/ou produções sem nenhuma validação científica. A formação do professor-pesquisador passa pela construção de uma identidade crítica-reflexiva que possa validar produções acadêmicas na perspectiva da ética e da integridade na pesquisa. As IES que não atentam para a qualidade, a eticidade e a integridade dos trabalhos acadêmicos na formação inicial do pesquisador não favorecem o desenvolvimento da ciência e são corresponsáveis pela difusão de estudos nos quais os princípios da integridade e ética na pesquisa não foram respeitados (KROKOSCZ, 2015).
Espaços de formação para a integridade na pesquisa no cenário da Pós-Graduação
A Pós-Graduação é um lócus privilegiado de produção científica (RIVAS; SILVA, 2020). O Parecer do Conselho Federal de Educação (CFE) Nº 977, de 3 de dezembro de 1965, conhecido como Parecer Sucupira, defende a criação dos cursos de Mestrado e Doutorado para a formação de pesquisadores e professores para os cursos superiores (ALMEIDA JUNIOR et al., 2005). O desenvolvimento de pesquisas na Pós-Graduação implica intercâmbios institucionais, trabalho coletivo e a efetiva atuação de professores-pesquisadores e estudantes em grupos de pesquisa.
A pesquisa é considerada como o principal produto das Pós-Graduações. A concretização da pesquisa exige investimentos de toda ordem (financeiros, técnicos e metodológicos) e por parte de todos os envolvidos: professor orientador, o estudante da Pós-Graduação, a instituição na qual o programa está sendo desenvolvido e as agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica.
A Pós-Graduação tende a priorizar a condução da pesquisa, garantindo o movimento da Ciência e o papel da universidade frente à sociedade (CARVALHO, 2021). O professor pesquisador orientador é agente ativo nesse processo e atua em múltiplas tarefas nesse cenário da Pós-Graduação: grupos de pesquisa, trabalho em projetos integrados, publicação com qualidade, orientação/assessoramento a outros pesquisadores com pares nacionais e internacionais (DE LA FARE; SAVI NETO, 2021; SOUZA; LARA; HARRES, 2018).
O professor-pesquisador pode ser considerado “[...] como responsável pela atribuição de fundamento ético às discussões [...]” (SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020, p. 15). O professor orientador é também responsável pelo desenvolvimento de pesquisadores autônomos capazes de identificar quais os cuidados éticos devam ser tomados em cada tipo de pesquisa para qualificar academicamente as pesquisas e proteger os seus colaboradores (DE LA FARE; SAVI NETO, 2021; JESUS, 2019; NUNES, 2017; SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020).
O pesquisador deve operar com a ciência de suas responsabilidades e com a ética como fundamento da pesquisa. As pesquisas do professor orientador, e dos demais envolvidos nos cursos de formação, devem ser modelos de trabalho ético e de boas práticas de pesquisa para os orientandos (DE LA FARE; SAVI NETO, 2021). Ademais, o compromisso desses professores com a formação continuada para o exercício ético e a integridade de suas pesquisas também são referências para o pesquisador em formação (NUNES, 2017; SAVI NETO; DE LA FARE; SILVA, 2020).
No trabalho do professor-pesquisador na Pós-Graduação, destacam-se diversos espaços de formação para a pesquisa e para a construção da identidade ética do pesquisador, como: componentes curriculares relacionados à pesquisa e à produção acadêmica, atividades dos grupos de pesquisa; atividades que produzem interação entre pesquisadores; eventos acadêmicos; bancas de qualificação e defesa final; e a interação com o orientador e com os pares (DE LA FARE; CARVALHO; PEREIRA, 2017). De La Fare, Carvalho e Pereira (2017) também destacam o atravessamento das regulações éticas vigentes no país, considerando que estas embaçam o olhar dos pesquisadores para a singularidade dos processos de pesquisa e desfocam a importância da formação da identidade ética do pesquisador e valorizam a necessidade de discussões em espaços formativos acerca da temática da ética e da integridade na pesquisa.
De La Fare e Savi Neto (2021), Nunes (2017) e Savi Neto, De La Fare e Silva (2020), ao estudarem cenários formativos, pesquisaram a presença da temática da ética e da integridade na pesquisa em PPGEs e concluíram que a presença da temática nesse nível de formação ainda é frágil, pois a maior parte dos cursos que foram pesquisados não apresenta componentes curriculares especificamente dirigidos à temática. O estudo de Nunes (2017), baseado na análise das ementas dos cursos e em entrevistas realizadas com os doutorandos, ressaltou que, além de unidades curriculares, outros espaços formativos podem ter sido utilizados para o trabalho com a temática da ética e da integridade, como reuniões de orientação, eventos extracurriculares, grupos de pesquisas, atividades práticas que possibilitaram discussões com pesquisadores, atentando para boas práticas utilizadas em pesquisas etc.
A perspectiva de desenvolvimento da reflexão em torno da ética e da integridade na pesquisa nesses potenciais espaços funda-se em uma lógica educativa e preventiva no cenário da Pós-Graduação. Nessa lógica, as IES permitem a reflexividade durante todo o desenvolvimento das pesquisas; assim, elas assumem a responsabilidade de examinar e reformar constantemente as próprias políticas de pesquisa com o intuito de vislumbrar soluções aos problemas, proteger as pesquisas, atender suas necessidades e as necessidades dos pesquisadores e preservar os direitos dos que compõem o cenário da pesquisa (CARVALHO, 2021).
No campo da Pós-Graduação em Educação, a discussão em torno da pesquisa e da formação do pesquisador ainda carece de vasto aprofundamento. As instituições formativas e os pesquisadores na área da Educação estão caminhando fundamentados nas atuais discussões em torno do tema e assumem com autonomia a aplicabilidade de ações educativas no sentido da promoção da pesquisa ética (GUERRIERO, 2023; SAVI NETO; DE LA FARE, 2019). O trabalho de orientação e a discussão acerca da ética e da integridade da pesquisa em unidades curriculares no universo da Pós-Graduação podem ser considerados como efetivas estratégias educativas.
Destacamos as experiências de Bianchetti (2022) em grupos de orientação como consolidação da práxis orientadora na Pós-Graduação em Educação, envolvendo eventos como: encontros de estudos/discussão teórica; discussão sobre pesquisas em andamento; produção de artigos científicos; participação em eventos/apresentação de trabalhos; apresentação e discussão dos trabalhos e projetos de pesquisas de bolsistas de iniciação à pesquisa - PIBIC -, mestrandos e doutorandos; trabalhos de extensão, cursos, oficinas, formação continuada de professores e alunos.
Considerações finais
A formação do professor pesquisador envolve conhecimento de paradigmas epistemológicos, procedimentos metodológicos, construção de saberes da prática de ensino e vivência da prática da pesquisa. A preocupação com a apropriação de diversos saberes nos processos formativos está associada à possibilidade de múltiplas atuações do professor, inclusive a atuação como pesquisador.
Todas as ações educativas exigem respeito ao outro, à diversidade, aos valores. Logo, exigem ética. Os processos formativos são responsáveis pela construção da identidade ética do professor. A identidade ética do professor e do professor-pesquisador é influenciada por modelos de comportamento e por uma vasta oportunidade de reflexões acerca das possibilidades de se escolher e assumir um comportamento ético em todas as formas de atuação.
O status de pesquisador ético está associado à formação ética para a pesquisa. As discussões acerca da ética e da integridade na pesquisa têm produzido ações educativas relevantes nas IES, mas ainda não está presente como unidade curricular em todos os cursos de formação de professores. Na formação inicial, essa temática quase não se apresenta, mesmo quando o cenário da Graduação também patrocina múltiplos espaços de contato com a pesquisa (Pibic, projetos de extensão etc.). As pesquisas que fizeram esse levantamento na Pós-Graduação também identificaram inconsistência na apresentação do tema e ausência de discussão em torno do tema em todas as atividades envolvendo a produção acadêmica.
As Comissões de Integridade na Pesquisa (CIP) e Comitês de Ética na Pesquisa (CEP) ligados às IES podem incentivar, de modo permanente, a cultura da integridade ética na pesquisa, promover cursos livres, campanhas de conscientização de prevenção, além da elaboração de material educativo sobre boas práticas de pesquisa: cartilhas, vídeos e minicursos endereçados aos estudantes de Graduação e de Pós-Graduação.
Os componentes curriculares dos PPGEs devem apresentar de forma explícita questões envolvendo pesquisa na Pós-Graduação: orientação de práticas relacionadas a métodos de coleta e de preservação de dados de pesquisa e ao uso de ferramentas estatísticas para interpretá-las; boas práticas obedecendo às recomendações feitas pelo CEP da instituição; disponibilização de ferramentas online para prevenção do plágio; gerenciamento dos dados da pesquisa (curadoria); protocolos de ética em pesquisa; direitos autorais e patrimoniais.
Os materiais produzidos pela ANPEd acerca da ética na pesquisa devem ser utilizados tanto para nortear o desenvolvimento de pesquisas bem como para fundamentar e ampliar a discussão em torno do tema e fortalecer ações que possam promover a autonomia de um sistema de revisão ética próprio para a Pesquisa Educacional.