Introdução
As discussões sobre a ética em pesquisa têm ocupado espaço significativo nas agendas científicas, como congressos, dossiês temáticos, seminários e grupos de pesquisa. De acordo com Mainardes (2022), a ética é essencial na estrutura da pesquisa e não deve ser considerada apenas um apêndice, mas um compromisso que orienta o rigor científico. Nesse sentido, a importância e a relevância da temática têm levado pesquisadores a refletirem e incorporarem em suas práticas investigativas procedimentos e normatividades próprias da dimensão ética. Essa dimensão sobressai o processo de revisão ética, de forma que os seus elementos estruturantes transbordam a subjetividade de formulários padronizados.
É aquilo que Goergen (2015) chama de boa pesquisa. Para o autor, a boa pesquisa é aquela que respeita e reflete a vida ética, que reconhece o outro em seus direitos e produz conhecimentos relevantes e livres das amarras instrumentais da mercantilização (GOERGEN, 2015). No contexto da inovação e das tecnologias aceleradas na globalização, os compromissos éticos com a produção de conhecimento vão além da formalidade de formulários. É necessário que o conhecimento, a inovação, as tecnologias e as pesquisas sejam pautadas pelos princípios éticos em sentido filosófico.
Nesse contexto, a pesquisa pretende, a partir da Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do (BRASIL, 2013), da Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016) - ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS) -, e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) - Lei Nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (BRASIL, 2018), apontar as divergências e as convergências relativas à pesquisa na área das Ciências Humanas e Sociais (CHS). O problema de pesquisa orienta-se pela pergunta: Quais as divergências e as convergências apontadas nos documentos relativos à pesquisa em CHS? A resposta para a questão é tratada ao longo do texto por meio da articulação das perspectivas éticas apontadas por Severino (2014), as quais são assinaladas como a dimensão associada ao contexto macrossocial, a dimensão normatizada pelo direito, que formaliza a penalização das condutas éticas condenáveis e a perspectiva do pesquisador comprometida com a preservação e as garantias da dignidade de direitos dos participantes da pesquisa.
Nessa senda, o objetivo é analisar as divergências e as convergências nas regulações que abordam o tratamento ético de dados de pesquisa e o campo investigativo das CHS. Diante disso, trata-se de uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa e objetivo exploratório, tendo como universo a Resolução No 466/2012 (BRASIL, 2013), a Resolução No 510/2016 (BRASIL, 2016) e a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD (BRASIL, 2018).
Para responder ao problema investigativo, o artigo encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte, são abordados os dilemas e as condições da ética nas áreas das CHS por meio da abordagem conceitual de autores como De La Fare, Carvalho e Pereira (2017), Mainardes (2017) e Peixoto (2017). Na segunda parte, são apresentados os procedimentos metodológicos e a coleta de dados. Na terceira parte, são apresentados os dados coletados e a análise. Nessa etapa, são triangulados os três documentos: Resolução No 466/2012 (BRASIL, 2013), Resolução No 510/2016 (BRASIL, 2016) e LGPD (BRASIL, 2018), com a finalidade de apresentar as convergências e as divergências no tratamento da ética em pesquisa nas CHS.
Os desafios da ética em pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais
Os pesquisadores De La Fare, Carvalho e Pereira (2017) situam, de forma adequada e coerente, os desafios da ética em pesquisa nas Ciências Humanas, ao pontuarem que é necessário superar a concepção denominada de teoria principialista, que tem sobrepujado fortemente a organização do Comitê de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - Sistema CEP/Conep. A ênfase na bioética ligada à área médica tem comprometido a avaliação ética das pesquisas de áreas distintas da Saúde, pois, para Mainardes (2022), a ética é um elemento para além do processo de pesquisa e redação do relatório, sendo, desse modo, um compromisso do pesquisador em todo o processo e nos resultados.
O movimento pela busca de uma regulação ética na área das CHS representa simbólica e materialmente o consenso entre pesquisadores sobre a necessidade de observância dos aspectos éticos (GOERGEN, 2015; SEVERINO, 2014). Contudo, Pinto et al. (2021) alertam que o assunto ainda desperta divergências teóricas entre pesquisadores das Ciências da Vida e das CHS, sobretudo em relação aos protocolos de pesquisa adotados pelo modelo CEP/Conep. Essa condição emblemática é reafirmada por Mainardes (2017), que considera que o problema central para os pesquisadores de CHS se refere ao caráter altamente burocrático da revisão ética que institui procedimentos uniformes e burocráticos decorrentes da pesquisa biomédica. Nesse contexto, Pinto et al. (2021), valendo-se dos estudos de Severino (2014), percebem com estranhamento o esforço para inculcar um sistema de normas quase impositivas de avaliação ética para pesquisadores da área das CHS, afinal, esses pesquisadores, por natureza epistemológica e formativa, possuem consciência do seu agir ético.
Na seara da dicotomia entre as áreas da Saúde e das Ciências Humanas, Mainardes (2017) apresenta três desafios para a pesquisa nas CHS. O primeiro desafio é tratar a ética para além de sua regulamentação. Trata-se do desafio de superar a visão normativa e procedimentalista da aplicação da ética em pesquisa e passar a compreender a partir de suas condições, reflexividade, problematização e formação. Para Mainardes (2017), há necessidade de superar a ideia da ética em pesquisa apenas como norma a ser seguida ou como preenchimento de um formulário. Tal condição alerta que a ética deve ser entendida como uma condição formativa, sobretudo nas instituições que precisam trabalhar com alunos de graduação, pós-graduação e grupos de pesquisas os temas éticos e sua finalidade na pesquisa.
Na mesma esteira, é importante considerar os estudos de De La Fare, Machado e Carvalho (2014), que apresentam que um dos desafios da ética em pesquisa nas CHS é superar ou aperfeiçoar o modelo de avaliação ética baseada na teoria principialista, que engessa as avaliações a partir dos princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça como equidade.
O segundo desafio, pontuado por Mainardes (2017), refere-se às dificuldades de publicação de textos sobre ética na pesquisa. Tal condição está relacionada às dificuldades de realização de pesquisas que tratem sobre as dimensões da ética na pesquisa. Essa condição é potencializada quando observadas as pesquisas e as publicações em língua portuguesa ou que tratem da ética em pesquisa nas CHS. Em ambos os casos, a publicação de textos, segundo Mainardes (2017), é escassa e se resume a poucos estudos. Ainda se destaca a necessidade de realizar a tradução de textos em língua estrangeira que possam ajudar e auxiliar na consolidação da pesquisa na área.
O terceiro desafio evidenciado por Mainardes (2017) diz respeito à necessidade de definição de orientações gerais para a ética na pesquisa ligada à área das CHS. O autor faz parte de um estudo amplo de países que já possuem documentos e práticas de orientação para a área das CHS. Nesse contexto, a ética em pesquisa é atravessada por desafios decorrentes da globalização e do desenvolvimento tecnológico. Para Peixoto (2017), ao menos no cenário internacional, três agendas de pesquisa têm dominado o debate público. A agenda do “direito ao esquecimento”, que engloba o fenômeno do consentimento, a agenda da Ciência Aberta e a agenda relacionada ao grande volume dos dados armazenados em plataformas e portais digitais.
De acordo com Peixoto (2017, p. 152), “[...] a mais abrangente é a agenda da pesquisa responsável e da inovação, também conhecida por Ciência Aberta”. Tal agenda pretende fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico alinhados com os valores sociais e as demandas da sociedade civil. Suas características são: envolvimento público, acesso aberto à informação, igualdade de gênero, educação para a ciência, governação e ética. Ainda, segundo Peixoto (2017):
Ciência Aberta faz parte uma agenda mais restrita, a política do acesso aberto à informação, que procura, entre outros objetivos, garantir ab initio o consentimento daqueles que usam fundos públicos para que os resultados e os bancos de dados das pesquisas sejam públicos e possam ser socialmente partilhados. O que exige, em abstrato, maior transparência e maior rigor ético. (PEIXOTO, 2017, p. 152).
Essa agenda coloca as CHS frente aos desafios apresentados pela disponibilidade de dados e pelos acessos a documentos digitais. De fundo ético, como acessar e utilizar os dados em acordo com os preceitos éticos? Essa questão contemporânea caminha juntamente à implementação de políticas de proteção de dados, da privacidade e da autonomia.
A terceira agenda apresentada por Peixoto (2017) está ligada à agenda da Ciência Aberta e trata das implicações relativas ao grande volume de dados nos direitos fundamentais: privacidade, proteção de dados, não discriminação, segurança e aplicação da lei. Para o autor, o grande volume de dados e informações possíveis de serem armazenados na sociedade tecnológica coloca como desafio a consolidação de um mecanismo de regulação, haja vista que dificilmente o sujeito tem consciência do consentimento sobre o armazenamento dos seus dados. A prioridade é tornar o consentimento mais consciente.
Para as CHS, o desafio se coloca na maneira como serão acessados os bancos de dados, quais os riscos de exposição e de vazamento de informações. Que medidas protetivas aos dados devem ser tomadas e reguladas? E quais as medidas protetivas que, de alguma maneira, podem inviabilizar certos tipos de pesquisa? As duas perguntas são localizadas no contexto da sociedade da informação e se apresentam para a pesquisa em ética como um dos desafios a serem enfrentados.
Outra questão que merece destaque é a formalização da ética em pesquisa em formulários, termos e requerimentos, que têm reduzido sua amplitude e relevância a um instrumentalismo utilitarista. Tal questão é tratada por Schmidt (2015), que considera que as influências de interesses têm levado a ética em pesquisa a uma racionalidade predominantemente administrativa, burocrática e técnica. Essa racionalidade instrumental é visível, em muitos casos, nos debates públicos sobre a ética em pesquisa que ficam na superficialidade de discutir e propor medidas burocratizadas para avaliar os protocolos de pesquisa. Para Schmidt (2015, p. 118), “[...] parecem ‘conversas de despachantes’, nos quais os aspectos formais do encaminhamento dos processos de obtenção de parecer dos comitês [...]” são mais relevantes que a problematização ética. As questões ponderadas na literatura e nos investigadores da área nos servem como aportes para entender as divergências e convergências presentes na Resolução No 466/2012 (BRASIL, 2013), na Resolução No 510/2016 (BRASIL, 2016) e na LGPD (BRASIL, 2018).
Percurso metodológico e universo da pesquisa
Esta investigação se caracteriza como sendo de abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa está atrelada, sobretudo no campo da educação, à reflexão e ao diálogo entre o objeto de estudo e o olhar analítico-reflexivo do pesquisador (LÜDKE; ANDRÉ, 2013). O pesquisador produz narrativas e argumentos, intersubjetivos e compreensivos, sobre o fenômeno ao qual está sendo analisado (ALVES; TEIXEIRA, 2020). Nessa perspectiva, para discutir as convergências e as divergências no tratamento de dados em pesquisas, faz-se necessário, antes de tudo, refletir e compreender o campo ético envolto.
No que concerne aos objetivos, trata-se de um estudo exploratório, de forma a compreender e se familiarizar com o campo da ética em pesquisa nas Ciências Humanas (GIL, 2002). Além disso, quanto aos procedimentos, caracteriza-se como uma pesquisa de coleta documental, pois se utiliza de resoluções e legislações que ainda não receberam um tratamento analítico anterior. Nesse caso, o corpus de estudo é apresentado no Quadro 1.
Resolução Nº 466/2012 | Resolução Nº 510/2016 | Lei Nº 13.709/2018 (LGPD) |
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Resolução que incorpora os direitos e deveres de participantes de pesquisas que envolvem seres humanos. | Resolução que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, com coleta de dados com seres humanos. | Essa Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive digitais, por pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado. |
Fonte: Elaborado pelos autores (2022).
À vista do Quadro 1, são analisados os focos de desafios e possibilidades ligados à ética em pesquisa nas CHS. Por um lado, a Resolução Nº 466/2012 (BRASIL, 2013), do CNS, apresenta um foco geral na ética em pesquisa com seres humanos. Parte de uma concepção principialista, fundada, como pontuam De La Fare, Carvalho e Pereira (2017), na perspectiva de investigação atrelada à grande área da Saúde. Por outro lado, a Resolução Nº 510/2016 (BRASIL, 2016), do CNS, como é evidenciado por Mainardes (2017), apresenta um foco específico na ética em pesquisa nas CHS relacionadas à coleta e ao tratamento de dados com seres humanos.
No entanto, nas entrelinhas da jurisprudência nacional, surgiu a Lei Nº 13.709/2018 (BRASIL, 2018), a LGPD, com foco geral no tratamento de dados em todo o território nacional. Diversamente às duas Resoluções, a saber, Nº 466/2012 e Nº 510/2016, a LGPD opera e organiza-se pelo viés burocrático, legalista e positivista. Desse modo, a sua natureza é jurídica e não eminentemente ética enquanto possibilidade de formação ou de reflexão sobre os dilemas que envolvem os conceitos de liberdade e privacidade. Perante isso, é perceptível que há grandes divergências e convergências que emergem dessas normativas, uma vez que estão intrinsecamente vinculadas ao cenário de ética na coleta e no tratamento de dados no país. Por isso, para que se possa analisar tais convergências e divergências, elegeram-se as categorias analíticas que são apresentadas com detalhe no Quadro 2.
Categoria | Descritivo |
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Termos considerados no tratamento de dados | Será analisado como cada documento apresenta os termos e as definições relacionados ao tratamento de dados. |
Ética na coleta e no tratamento de dados | Será analisado como cada documento apresenta a ética em pesquisa e as suas especificidades. |
Divergências e convergências | Será feita uma síntese descritivo-analítica das discussões apresentadas nas categorias anteriores. |
Fonte: Elaborado pelos autores (2022).
Para que se possa analisar os referidos documentos, de modo a contribuir com o avanço dos estudos sobre ética em pesquisa, fez-se necessária a utilização das categorias dispostas no Quadro 2. Tais categorias são substanciais, pois serão de grande valia na organização e no entendimento dos documentos, que, apesar de diferentes em sua construção, ainda assim apresentam pontos de convergência, mas também de divergência. Desse modo, será possível compreender o valor da ética em um sentido para além dos comitês de revisão, mas sem perder a criticidade de sua abordagem que, muitas vezes, tenciona para uma prática instrumental oposta a uma condição humana para a ética. Além disso, as discussões a partir das categorias analíticas definidas servem como reflexão sobre as movimentações e as transformações que foram realizadas ao longo do tempo, em uma visão que, em muitos casos, tende a atender apenas às prerrogativas do mercado competitivo global.
Resultados e discussões
O processo de análise, separado por categorias, ocorreu por meio do alinhamento das similaridades terminológicas, de modo que fosse possível visualizar as divergências e as convergências nos termos que emergem. Assim, construíram-se quadros comparativos entre os documentos, de maneira a contemplar visualmente a análise, que será seguida das discussões acerca das suas divergências e convergências. A seguir, são apresentadas as análises por categoria, de forma a engendrar discussões na resolutividade da questão-problema que orienta esta investigação.
Categoria analítica: Termos considerados no tratamento de dados
Nessa categoria, são apresentados os termos relativos à sensibilidade e à vulnerabilidade de dados pessoais, participante ou titular do dado, pesquisador ou controlador, protocolos de tratamento de dados, consentimento, uso das informações encontradas e acesso às informações. Para sua sistematização, o Quadro 3 apresenta uma síntese descritiva em comparativo terminológico.
Resolução No 466/2012 | Resolução No 510/2016 | Lei No 13.709/2018 |
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“[...] vulnerabilidade: estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida ou impedida, ou de qualquer forma estejam impedidos de opor resistência, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido” (Item II.25) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] vulnerabilidade: situação na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e opor resistência na situação da pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos” (Art. 2º, inciso XXVI) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] dado pessoal: informação relacionada [à] pessoa natural identificada ou identificável” (Art. 5º, inciso I) (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural” (Art. 5º, inciso II) (BRASIL, 2016, p. 60). | ||
“[...] participante da pesquisa - indivíduo que, de forma esclarecida e voluntária, ou sob o esclarecimento e autorização de seu(s) responsável(eis) legal(is), aceita ser pesquisado. A participação deve se dar de forma gratuita, ressalvadas as pesquisas clínicas de Fase I ou de bioequivalência” (Item II.10) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] participante da pesquisa: indivíduo ou grupo, que não sendo membro da equipe de pesquisa, dela participa de forma esclarecida e voluntária, mediante a concessão de consentimento e também, quando couber, de assentimento, nas formas descritas nesta resolução” (Art. 2º, inciso XIII) (BRASIL, 2016, p. 44). | “[...] titular: pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento” (Art. 5º, inciso V) (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] pesquisador - membro da equipe de pesquisa, corresponsável pela integridade e bem-estar dos participantes da pesquisa” (Item II.15) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] pesquisador responsável: pessoa com no mínimo título de tecnólogo, bacharel ou licenciatura, responsável pela coordenação e realização da pesquisa e pela integridade e bem-estar dos participantes no processo de pesquisa. No caso de discentes de graduação que realizam pesquisas para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, a pesquisa será registrada no CEP, sob-responsabilidade do respectivo orientador do TCC” (Art. 2º, inciso XVII) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais” (Art. 5º, inciso VI). (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] pesquisador responsável - pessoa responsável pela coordenação da pesquisa e corresponsável pela integridade e bem-estar dos participantes da pesquisa” (Item II.16) (BRASIL, 2013, p. 60). | ||
“[...] protocolo de pesquisa: conjunto de documentos contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais e as informações relativas ao participante da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e a todas as instâncias responsáveis” (Item II.17) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] protocolo de pesquisa: conjunto de documentos contemplando a folha de rosto e o projeto de pesquisa com a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais e as informações relativas ao participante da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e a todas as instâncias responsáveis. Aplica-se o disposto na norma operacional do CNS em vigor ou outra que venha a substitui-la, no que couber e quando não houver prejuízo no estabelecido nesta Resolução” (Art. 2º, inciso XXI) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem à coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração” (Art. 5º, inciso X) (BRASIL, 2016, p. 60). |
Privacidade e confidencialidade: “[...] prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos participantes da pesquisa, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das comunidades, inclusive em termos de autoestima, de prestígio e/ou de aspectos econômico-financeiros” (Item III.2, alínea i) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] confidencialidade: é a garantia do resguardo das informações dadas em confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada” (Art. 2º, inciso IV) (BRASIL, 2016, p. 44). | “[...] anonimização: utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo” (Art. 5º, inciso XI) (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] privacidade: direito do participante da pesquisa de manter o controle sobre suas escolhas e informações pessoais e de resguardar sua intimidade, sua imagem e seus dados pessoais, sendo uma garantia de que essas escolhas de vida não sofrerão invasões indevidas, pelo controle público, estatal ou não estatal, e pela reprovação social a partir das características ou dos resultados da pesquisa” (Art. 2º, inciso XIX) (BRASIL, 2016, p. 45). | ||
“[...] consentimento livre e esclarecido: anuência do participante da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar” (Item II.5) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] consentimento livre e esclarecido: anuência do participante da pesquisa ou de seu representante legal, livre de simulação, fraude, erro ou intimidação, após esclarecimento sobre a natureza da pesquisa, sua justificativa, seus objetivos, métodos, potenciais benefícios e riscos” (Art. 2º, inciso V) (BRASIL, 2016, p. 44). | “[...] consentimento: manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (Art. 5º, inciso XII) (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] achados da pesquisa - fatos ou informações encontrados pelo pesquisador no decorrer da pesquisa e que sejam considerados de relevância para os participantes ou comunidades participantes” (Item II.1) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] informações de acesso público: dados que podem ser utilizados na produção de pesquisa e na transmissão de conhecimento e que se encontram disponíveis sem restrição ao acesso dos pesquisadores e dos cidadãos em geral, não estando sujeitos a limitações relacionadas à privacidade, à segurança ou ao controle de acesso. Essas informações podem ser processadas, ou não, e contidas em qualquer meio, suporte e formato produzido ou gerido por órgãos públicos ou privados” (Art. 2º, inciso VI) (BRASIL, 2016, p. 44). | “[...] uso compartilhado de dados: comunicação, difusão, transferência internacional, interconexão de dados pessoais ou tratamento compartilhado de bancos de dados pessoais por órgãos e entidades públicos no cumprimento de suas competências legais, ou entre esses e entes privados, reciprocamente, com autorização específica, para uma ou mais modalidades de tratamento permitidas por esses entes públicos, ou entre entes privados” (Art. 5º, inciso XVI) (BRASIL, 2016, p. 60). |
“[...] benefícios da pesquisa - proveito direto ou indireto, imediato ou posterior, auferido pelo participante e/ou sua comunidade em decorrência de sua participação na pesquisa” (Item II.4) (BRASIL, 2013, p. 60). |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de Brasil (2013, 2016, 2018).
Diante do Quadro 3, é possível aferir que as informações sobre a vulnerabilidade no uso dos dados das pessoas ou dos grupos é apresentada de forma convergente. Tal condição está intrinsecamente vinculada à integridade da pesquisa, uma vez que suscita convergências na conduta do investigador ante o tratamento e a divulgação dos dados diante do indivíduo participante ou titular (DE LA FARE; MACHADO; CARVALHO, 2014). Nessa esteira, tanto os dados pessoais de identificação quanto os dados sensíveis relacionados ao perfil sociocultural são apresentados nos três documentos de forma muito similar, porém, de um lado, são apresentados apenas para fins individuais e, do outro, abrange também para fins grupais.
Cabe destacar que a LGPD considera que o ente privado/público ou o sujeito são responsáveis pelos dados. Inclusive utilizando terminologicamente o conceito de titular. Entretanto, as Resoluções No 466/2012 e No 510/2016 ampliam essa condição e entendem que, para o acesso de dados de sujeitos (ou participar de pesquisas), em determinadas situações, devem ser considerados aspectos étnicos, culturais, religiosos e ambientais. Em outras palavras, as duas Resoluções expressam preocupação com as questões relativas aos aspectos antropológicos, enquanto a LGPD se limita a fundar um código de acesso e proteção de dados do indivíduo sem mencionar aspectos de identidade cultural.
Contudo, enquanto as Resoluções tratam os dados com um enfoque no impedimento ou na resistência por parte do indivíduo à sua coleta, a LGPD trata do dado como sendo pessoal ou sensível relacionado aos valores sociais apresentados pelos indivíduos nas informações coletadas. Para Alves e Teixeira (2020), a pluralidade da pesquisa em seres humanos não é contemplada em questões éticas, o que torna os mecanismos técnicos das Resoluções restritos à dominância dos protocolos de ciências biomédicas. Nessa condição, ao tratar da vulnerabilidade no uso de dados, as duas Resoluções apontam para um caminho voltado ao estado físico e mental dos indivíduos, o que se blinda de questões socioculturais em suas normativas. Do contrário, a LGPD aponta para uma condição mais abrangente, dada a sua conjuntura, a qual aborda questões raciais, de gênero, religiosas e até mesmo político-filosóficas. Dessa forma, o que se percebe é uma complementaridade, ao passo que certa incompletude nas Resoluções para contemplar os reais interesses éticos e científicos das CHS.
Outrossim, quanto à definição de titular ou participante da pesquisa, são apresentadas semelhanças, uma vez que, em ambos os casos, se referem a um indivíduo que tem seus dados tratados. Entretanto, enquanto a Resolução No 510/2016 apresenta a opção de grupo como possível participante da pesquisa, tanto a Resolução No 466/2012 quanto a LGPD apresentam apenas a definição pautada em indivíduos, o que abre espaço para o seguinte questionamento: Até que ponto um grupo de pessoas, com seus dados coletados para uma pesquisa, são definidos nos documentos?
Diante disso, o consentimento fica à mercê da autorização de uma Resolução, sendo excluído das demais a possibilidade de uma possível definição de titular ou participante da pesquisa ser um grupo, mas sim apenas uma pessoa natural e individualizada. Esse não reconhecimento de grupos na conjuntura forma lacunas no reconhecimento das CHS como enriquecedoras de diálogos em pesquisas, na amplitude das reflexões éticas e no levantamento de problemáticas a serem debatidas por outros campos do conhecimento (CAMPOS, 2020). Por isso, os dados coletados deixam de ser reconhecidos em sua totalidade, de modo a serem compreendidos de forma isolada e, com isso, perdem o seu interesse grupal de análise.
No que concerne ao responsável pela pesquisa ou controlador, há uma grande divergência. Se, por um lado, a Resolução No 466/2012 define o responsável como sendo um pesquisador, membro ou coordenador de uma equipe de pesquisa, sem especificidades técnicas, por outro lado, a Resolução No 510/2016 determina que o responsável tenha de possuir titulação mínima ou estar sob a responsabilidade de um orientador. Já para a LGPD, o controlador - aqui considerado como sendo o responsável por esse controle dos dados - é todo aquele “[...] a quem compete as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais” (BRASIL, 2018, p. 60).
Quanto ao tratamento dos dados, os documentos subjacentes apontam para um conjunto de informações e operacionalizações relacionadas à descrição da pesquisa. Se, por um lado, as Resoluções tratam das instâncias de interesse idêntico, a LGPD aprofunda seus interesses em terminologias ligadas, até mesmo, à distribuição, ao processamento e à comunicação das informações. Nesse aspecto, há um possível caminho para o aperfeiçoamento das normas presentes nas Resoluções, pois é um passo importante para garantir um tratamento eficaz de dados pessoais de pesquisa.
No que diz respeito à privacidade, mesmo com terminologias distintas, há convergências no interesse latente de proteger a imagem e a intimidade do participante ou titular. Porém, como sinalizado por Amaral Filho (2017), a Resolução No 510/2016 é concebida com um paradigma da área biomédica, de forma que esse interesse em proteção e confidencialidade não corresponde aos interesses das CHS. Com isso, a garantia de resguardo à intimidade e anonimização fica à mercê de dados que se relacionam diretamente com a coleta de dados, de modo a negligenciar atos morais e de caráter latente a aspectos sociais, já que, ao se tratar de ética, se considera a ação cotidiana na subjetividade.
Por conseguinte, a respeito do consentimento, há uma divergência em relação à finalidade. Enquanto as Resoluções sinalizam para um esclarecimento ao participante sobre os riscos iminentes de participação da pesquisa, a LGPD sinaliza para uma manifestação do controlador e acordo do titular no tratamento de seus dados para uma finalidade preestabelecida. Alves e Teixeira (2020) contrapõem essa sinalização, uma vez que, ao pesquisar escuta e trajetória, se produzem condições subjetivas, sensíveis e intangíveis como resultados, cujas intencionalidades se relacionam para além de um risco físico e mental, mas envolto de condições morais. Desse modo, o consentimento cria a possibilidade de interlocução no tratamento dos dados em pesquisa, uma vez que a sobreposição de sentidos coloca o pesquisador à mercê do tratamento de dados em interlocuções e da não unificação das determinações.
No que se refere aos achados da pesquisa e compartilhamento dos dados, há uma divergência na forma como são tratados. Segundo Lemos e Aquino (2021), tal dado pressupõe um risco complexo e onipresente, tratado como dano prático. Contudo, como abordado ao longo dos três documentos, os achados estão relacionados à relevância dos dados para a investigação ou para quem irá acessá-la, de modo que se compreende as relações morais, culturais e, até mesmo, espirituais do indivíduo participante ou titular.
Categoria analítica: Ética na coleta e no tratamento de dados
Nessa categoria, são apresentadas as discussões e os resultados relativos às dimensões éticas que são apresentadas nos documentos, da coleta ao tratamento dos dados, sobretudo na relação de respeito e moralidade dos indivíduos. Para sua sistematização, o Quadro 4 apresenta uma síntese descritiva em comparativo.
Resolução No 466/2012 | Resolução No 510/2016 | Lei No 13.709/2018 |
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“[...] respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida” (item III.1, alínea a) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] reconhecimento da liberdade e autonomia de todos os envolvidos no processo de pesquisa, inclusive da liberdade científica e acadêmica” (Art. 3º, inciso I) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] demonstre o comprometimento do controlador em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento, de forma abrangente, de normas e boas práticas relativas à proteção de dados pessoais” (Art. 50, parágrafo 2º, inciso I, alínea a) (BRASIL, 2018, p. 63). |
“[...] respeito aos valores culturais, sociais, morais e religiosos, bem como aos hábitos e costumes dos participantes das pesquisas” (Art. 3º, inciso III) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] estabeleça políticas e salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade” (Art. 50, parágrafo 2º, inciso I, alínea d) (BRASIL, 2018, p. 63). | |
“[...] recusa de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de indivíduos e grupos vulneráveis e discriminados e às diferenças dos processos de pesquisa” (Art. 3º, inciso V) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] o respeito à privacidade” (Art. 2º, inciso I) (BRASIL, 2018, p. 59). | |
“[...] ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos” (item III.1, alínea b) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] garantia de assentimento ou consentimento dos participantes das pesquisas, esclarecidos sobre seu sentido e implicações” (Art. 3º, inciso VI) (BRASIL, 2016, p. 45). | Governança em privacidade que “[...] tenha o objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular, por meio de atuação transparente e que assegure mecanismos de participação do titular” (Art. 50, parágrafo 2º, inciso I, alínea e) (BRASIL, 2018, p. 63). |
“[...] garantia da não utilização, por parte do pesquisador, das informações obtidas em pesquisa em prejuízo dos seus participantes” (Art. 3º, inciso VIII) (BRASIL, 2016, p. 45). | “Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito” (Art. 46) (BRASIL, 2018, p. 63). | |
“[...] compromisso de todos os envolvidos na pesquisa de não criar, manter ou ampliar as situações de risco ou vulnerabilidade para indivíduos e coletividades, nem acentuar o estigma, o preconceito ou a discriminação (Art. 3º, inciso IX) (BRASIL, 2016, p. 45). | ||
“[...] garantia de que danos previsíveis serão evitados” (item III.1, alínea c) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] defesa dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo nas relações que envolvem os processos de pesquisa” (Art. 3º, inciso II) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião” (Art. 2º, inciso III) (BRASIL, 2018, p. 59). |
“O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe com consentimento livre e esclarecido dos participantes, indivíduos ou grupos que, por si e/ou por seus representantes legais, manifestem a sua anuência à participação na pesquisa” (item IV) (BRASIL, 2013, p. 60). | “[...] garantia da confidencialidade das informações, da privacidade dos participantes e da proteção de sua identidade, inclusive do uso de sua imagem e voz” (Art. 3º, inciso VII) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem” (Art. 2º, inciso IV) (BRASIL, 2018, p. 59). |
“[...] compromisso de propiciar assistência a eventuais danos materiais e imateriais, decorrentes da participação na pesquisa, conforme o caso sempre e enquanto necessário” (Art. 3º, inciso X) (BRASIL, 2016, p. 45). | “[...] os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais” (Art. 2º, inciso VII) (BRASIL, 2018, p. 59). |
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de Brasil (2013, 2016, 2018).
Diante do Quadro 4, é possível aferir que a ética é apresentada, em primeiro plano, como uma concepção de respeito e comprometimento com a proteção dos dados e da privacidade do indivíduo. No entanto, até que ponto esses valores éticos são submetidos à apreciação de um comitê? Segundo Menezes, Lima e Nunes (2020), há insuficiência e falta de comprometimento com a formação ética dos pesquisadores, o que reflete na baixa adesão à rigidez na ética das pesquisas conduzidas. Dito isso, o processamento dos dados da pesquisa torna-se o princípio de ambos os documentos, o que torna a coleta vulnerável e passível de manifestação livre esclarecida do indivíduo até mesmo quando se há um risco ético evidente, apesar do expresso respeito ao direito de privacidade.
Quanto à ética na segurança e nos riscos da coleta e do tratamento de dados, apresentam-se contradições. Ao passo que há uma busca pela minimização dos riscos nas Resoluções, há falta de elementos que a LGPD supre com maestria: a busca por mecanismos de participação do titular na transparência dos dados e a preocupação com a comunicação dos dados. Nessa perspectiva, a ética presente nas produções materiais humanas deve se preocupar também com a coibição da exploração das fragilidades do indivíduo, na busca pela alteridade e no reconhecimento da dignidade humana (SEVERINO, 2014). Por isso, ao garantir o consentimento de sentidos e implicações, com a não utilização dos dados com medidas de segurança, o que é deficitário ou incompleto nas Resoluções, garante-se também uma atenção a todo o processo de uso dos dados, da coleta à divulgação.
Ademais, quanto aos direitos, às garantias e aos compromissos, a Resolução No 466/2012 trata de forma muito rasa do contexto, ao passo que tanto a Resolução No 510/2016 quanto a LGPD apresentam ampla abrangência. Essa lacuna na primeira Resolução condiciona, muitas vezes, o pesquisador a considerar o preenchimento do formulário na Plataforma Brasil como requisito pleno para execução da sua investigação, de modo a não considerar possíveis danos ao longo do percurso investigativo (AMARAL FILHO, 2017). Nessa seara, apesar de garantir a confidencialidade das informações, a inviolabilidade da honra, imagem e intimidade, assim como a garantia do exercício da cidadania, ainda assim há muitos contrapontos que não são corroborados de forma similar entre os documentos. Diante disso, o que se forma é uma contradição, que ora reflete na forma com que o pesquisador encara e visualiza a coleta, a seleção, a análise e a divulgação dos dados.
Um elemento comum entre as Resoluções e a LGPD é a defesa dos Direitos Humanos como condição para validar os processos de investigação e de garantia protetiva aos participantes da pesquisa. Nos documentos, é expressa a preocupação com a segurança da dignidade, no entanto, na LGPD, a ênfase na proteção à privacidade, enquanto na Resolução No 466/2012 e na Resolução No 510/2016 as garantias aos sujeitos participantes da pesquisa se expande para a proteção da autonomia e da liberdade. Outro elemento convergente nos documentos é a preocupação com a confiabilidade e as garantias de anonimato.
No que diz respeito à categoria Ética na coleta e no tratamento de dados, os documentos de forma convergente apresentam a relação entre pesquisador e participantes da pesquisa. Enquanto a Resolução No 510/2016 e a Resolução No 466/2012 reconhecem uma relação direta entre o pesquisador e o pesquisado, a LGPD trata em específico sobre o acesso de dados que estão disponíveis em plataformas, sistemas, banco de dados, instituições públicas ou privadas etc., que não envolvem diretamente a relação entre o pesquisador e o participante da pesquisa. Desse modo, o acesso aos sujeitos de pesquisa ou a seus dados depende prioritariamente da autorização dos locais nos quais os dados estão armazenados.
Tal questão é tratada por Peixoto (2017), que entende que, na sociedade tecnológica e globalizada, o volume de dados e informações armazenados em plataformas requer que sejam instituídos mecanismos e normatividades de fundo ético que garantam a liberdade, a privacidade e a autonomia dos sujeitos. O desafio consiste em consolidar um modelo ético que afaste, sobretudo, os “assédios” de empresas e setores comerciais que procuram dados pessoais para interesses privados. Nesse caso, a Lei No 13.709/2018, a LGPD, em sua natureza, objetiva tais garantias. No entanto, diferentemente, as Resoluções No 466/2012 e No 510/2016 não possuem uma dimensão ética. A preocupação com a proteção da privacidade na Lei No 13.709/2018, por vezes, engessa e burocratiza o acesso aos dados e inviabiliza o acesso de pesquisadores aos dados e às informações.
Categoria analítica: Divergências e convergências
Nessa categoria, são apresentados as discussões e os resultados da síntese descritiva das divergências e convergências que emergem durante as categorias anteriores. A síntese descritiva compreende um resumo das informações contidas de um aglomerado de informações presentes nas categorias anteriores, de modo a serem apresentadas no Quadro 5.
Categoria | Resolução No 466/2012 | Resolução No 510/2016 | Lei No 13.709/2018 |
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Termos considerados no tratamento de dados | Considera o tratamento de dados a grupos e indivíduos. | Considera o tratamento de dados a grupos e indivíduos. | Considera o tratamento de dados apenas a indivíduos. |
Considera participante da pesquisa o indivíduo que aceita ser pesquisado. | Considera participante da pesquisa o indivíduo ou grupo que aceita ser pesquisado. | Considera o titular como sendo o indivíduo cujos dados são tratados. | |
Considera como pesquisador o indivíduo membro da equipe ou responsável pela coordenação. | Considera como pesquisador o indivíduo com titulação mínima específica, que coordena e realiza a pesquisa. | Considera o controlador aquele que decide os caminhos no tratamento dos dados. | |
Considera o protocolo de pesquisa o conjunto de dados e informações da pesquisa, do pesquisador e das instâncias responsáveis. | Considera o protocolo de pesquisa o conjunto de dados do projeto, do participante, da qualificação do pesquisador e das instâncias responsáveis. | Considera o tratamento de dados toda a operacionalização dos dados pessoais, da coleta à difusão dos dados. | |
Considera privacidade e confidencialidade a partir de procedimentos que devem ser adotados, para que não haja prejuízos a pessoas ou grupos. | Considera privacidade e confidencialidade a garantia de proteção e direito do participante da pesquisa, no resguardo aos seus dados e intimidade. | Considera a anonimização como sendo a forma de garantir a proteção do indivíduo na sua não associação direta ou indireta a partir dos dados. | |
Considera o consentimento a anuência do participante aos termos da pesquisa, depois de um esclarecimento completo. | Considera o consentimento a anuência do participante após o esclarecimento dos seus objetivos e riscos. | Considera o consentimento uma manifestação livre do indivíduo titular em estar de acordo com o tratamento dos seus dados. | |
Considera achados e benefícios da pesquisa as informações obtidas da pesquisa, que possam ser utilizadas pela comunidade ou participante. | Considera as informações de acesso público àqueles dados que podem ser utilizados para a transmissão e ampliação do conhecimento. | Considera o uso compartilhado de dados a comunicação ou o tratamento compartilhado de dados pessoais. | |
Ética na coleta e no tratamento de dados | Considera o respeito e o comprometimento ético como fundamentos para a manutenção da ética em pesquisa. | Considera a liberdade, o respeito sociocultural e a recusa do preconceito como fundamentos para garantir a ética em pesquisa. | Considera a proteção dos dados, os processos internos de salvaguarda dos dados perante os riscos e o respeito à privacidade como fundamentos para manter a ética. |
Considera a ética na segurança e nos riscos da coleta e do tratamento de dados a partir do comprometimento ético do pesquisador. | Considera a ética na segurança e nos riscos da coleta e do tratamento de dados a partir do consentimento, da garantia de não utilização de dados que gerem prejuízos e do compromisso ético do pesquisador. | Considera a ética na segurança e nos riscos da coleta e do tratamento de dados a partir de medidas de segurança, desde a coleta até a comunicação dos dados. | |
Considera que os direitos, as garantias e os compromissos são assegurados com a redução de danos previsíveis e com o consentimento livre e esclarecido. | Considera que os direitos, as garantias e os compromissos são assegurados com a recusa de autoritarismos, com a garantia de confidencialidade e com o compromisso assistencial dos pesquisadores. | Considera que os direitos, as garantias e os compromissos são assegurados com a garantia da liberdade de expressão, inviolabilidade da intimidade e com a garantia da dignidade humana. |
Fonte: Elaborado pelos autores (2022).
Diante do Quadro 5, é válido ressaltar que o interesse público na proteção de dados, enquanto algo recente, é fragilizado na área das CHS. A qualidade moral, na qualidade de condição para a integridade, deve ser entendida para além de regras, de modo a considerá-la como dotada de virtudes e valores (PEIXOTO, 2021). Contudo, a ética tem sido tratada em ambos os documentos de forma instrumentalizada, o que impede muitas vezes que o pesquisador ou o controlador compreenda a ética para além das diretrizes impostas.
Nesse sentido, apesar da mudança social e histórica que separa os documentos, por terem sido implementados em épocas distintas, eles devem ter um estado de mutação e adaptação para as mudanças que ocorrem ao longo da movimentação material. Conforme Ventura e Oliveira (2022), a atividade científica envolve diferentes dinâmicas, com diretrizes éticas que devem ser respeitadas pela comunidade internacional, mas que também devem estar acompanhadas de uma responsabilidade que inicia no planejamento da produção e vai até a divulgação dos seus resultados. Renasce, com isso, a necessidade de tratar a ética para além de um processo de revisão, de forma a compreendê-la como um elemento estruturante que está presente em todas as etapas investigativas, dada a sua subjetividade na área das CHS.
A LGPD diverge tanto com a Resolução No 466/2012 quanto com a Resolução No 510/2016, por considerar o titular todo indivíduo que terá seus dados tratados, pois, do contrário, as Resoluções consideram também grupos. A preocupação das Resoluções reside no cumprimento velado do Sistema CEP/Conep, o que “[...] mostra a ausência de aprofundamento dessa questão dentro das universidades” (CARVALHO, 2021, p. 82). Tal ausência condiciona ambos os documentos a considerarem o protocolo ético de tratamento de dados como algo operacionalizado e sem considerar a autonomia do pesquisador. Ademais, falta uma clareza das Resoluções no que concerne à divulgação dos dados, de modo que a Lei No 13.709/2018 pode se tornar um ponto de auxílio para imbricar essa melhoria.
Não obstante, ambos os documentos consideram a privacidade, a confidencialidade ou a anonimização na proteção da integridade e do direito dos indivíduos participantes. Contudo, as Resoluções se preocupam apenas com prejuízos éticos relacionados ao momento inicial de coleta, de modo que o termo de consentimento é considerado a forma expressa de autorização no uso dos dados, enquanto a LGPD tem um respaldo também na proteção ética e moral no compartilhamento das informações. Essa premissa vai ao encontro da conceituação ética de Severino (2014), na medida em que a reconhece como uma condição humana, entrelaçada aos interesses políticos.
Por conseguinte, as Resoluções tratam dos direitos humanos com um fundo instrumental e de manutenção da ética em pesquisa a partir do que preconizam os comitês, de modo a garantir apenas o cumprimento das suas exigências. Em contrapartida, a LGPD se preocupa de forma mais assertiva com o processo de proteção de dados e de privacidade das informações, com um interesse ético latente. Para Oliveira (2021), a ética reside no reconhecimento e na defesa dos interesses democráticos e no cuidado com o outro, de modo a assegurar o cumprimento de seus direitos. Diante disso, tal condição exposta nas Resoluções reduz os princípios éticos a regramentos sem um sentido de respeito à vida social do indivíduo e do resguardo dos seus direitos.
Isso posto, outra questão pulsante diz respeito à transparência no tratamento dos dados. A LGPD preocupa-se com a transparência e o comprometimento de informar o titular sobre o andamento no tratamento de seus dados, ao passo que as Resoluções estão aquém de um retorno apenas ao final da investigação. Essa divergência, apesar de alguns interesses distintos entre os documentos, torna, por um lado, o processo mais limpo e seguro ao indivíduo titular e, por outro lado, condiciona o recebimento das informações à leitura de um material científico, que muitas vezes não possui uma linguagem de seu domínio. Isso faz com que, de modo muito assíduo, a LGPD seja uma grande aliada no processo de modernização e de aprimoramento das Resoluções no que concerne à ética no tratamento de dados. Ademais, é preciso considerar que a pesquisa nas Ciências Humanas está interligada com a PGPD, ao passo que, em razão do seu caráter positivista e regulatório próprio de sua normatividade, dificulta o acesso e a condução de pesquisas por investigadores das Ciências Humanas.
Considerações finais
Ao analisar as divergências e as convergências nas regulações que abordam o tratamento de dados de pesquisa e o campo investigativo das CHS, para responder ao problema investigativo, é possível aferir que a ética no tratamento de dados ainda necessita de um olhar mais amplo e centrado na condição de um elemento que assegura os direitos humanos. À vista disso, a ética em pesquisa no Brasil precisa ir além do processo de revisão ética, de modo a compreender seus elementos estruturantes, desde a coleta até a divulgação final dos dados. Em todo o processo, a ética deve estar presente, de modo que o pesquisador esteja ciente do seu papel na garantia dos direitos e das condições de dignidade ao sujeito pesquisado. Para Mainardes (2022), a ética vai para além de um apêndice, o que necessita de pesquisadores que tenham um olhar de ativista transformador. Em face disso, um dos perigos é reduzir a dimensão da ética em pesquisa em preenchimento de formulários e normatizações positivas.
Nas palavras de Severino (2014, p. 206), “[...] buscam criar referências legais, normativas, assinalando caminhos e procedimentos a serem seguidos por pesquisadores, até mesmo independentes de suas convicções pessoais”. Logo, a norma assume uma função mais jurídica do que ética. No âmbito do estudo, a LGPD, por um lado, ainda que traga elementos de ordem ética, se caracteriza por uma natureza jurídica e formal, afastando a dimensão ética da pesquisa enquanto reflexividade. Por outro lado, a Resolução No 466/2012 e a Resolução No 510/2016 se fundam no Sistema CEP/Conep, partindo do pressuposto de que é um processo construído pela ampla participação e aprovação dos protocolos de pesquisa pelos Comitês de Ética em Pesquisa. Soma-se a isso o que Barbosa, Corrales e Silbermann (2014) apontam como a falta de compreensão de que o cientista é um ser humano, sendo de responsabilidade dos pesquisadores empregar uma prática ética de forma contínua. Entretanto, isso se transpõe aos documentos.
Nessa esteira, a imagem e os interesses que as CHS consolidam nos documentos balizadores da ética em pesquisa no Brasil ainda é alheia ao seu real fim. Como pontuam De La Fare, Carvalho e Pereira (2017), a implementação verticalizada de um sistema regulador gerou debate entre os defensores de uma ética em pesquisa regulado por princípios morais provenientes da bioética e a tradição pluralista das CHS associada à história e à constituição dos campos de conhecimento que as compõem. Nesse contexto, a LGPD, como também a Resolução No 466/2012 e a Resolução No 510/2016, apresentam um roteiro procedimentalista para a ética em pesquisa. No centro do debate, localiza-se a premissa levantada pelos pesquisadores das CHS sobre a necessidade de o tratamento ético em pesquisa ser mais amplo do que apenas protocolos, procedimentos ou normatividades. Ainda deve-se considerar, a partir dos achados da pesquisa, que a LGPD deve ser entendida como procedimento jurídico e não ético. Dessa forma, tanto a Resolução No 466/2012 quanto a Resolução No 510/2016 devem observar a LGPD como subsídio às garantias éticas aos participantes da pesquisa.
Se, por um lado, há um regramento com propulsor em relação ao cumprimento dos dispositivos éticos; por outro lado, há carência de determinantes que possam retratar a verdadeira condição do ser-ético, dado o seu papel de manutenção de bem-estar social. Essa condição deve ir além dos padrões requeridos pelos comitês de ética, de modo que a educação possa educar professores para a ética e, assim, criar pontes que possibilitem o pensar-ético nas práticas pedagógicas. Por isso, Mainardes (2017) aponta evidências fundamentais para pensar a ética em pesquisa nas CHS ao afirmar a necessidade de a ética ser entendida como uma condição formativa dos pesquisadores. Nesse tocante, a Resolução No 510/2016, a Resolução No 466/2012 e a LGPD possuem a mesma preocupação com a proteção das garantias éticas aos participantes da pesquisa. A base se sustenta na Declaração dos Direitos Humanos, porém, se os documentos forem entendidos como procedimentos e adereços “penosos” aos pesquisadores, eles podem ser burlados ou mesmo negligenciados. O passo decisivo é a consolidação nas instituições de uma cultura ética na pesquisa que está além das prerrogativas formais dos documentos
À face do exposto, apesar de já existirem iniciativas de organização de Comitês de Ética em Pesquisa nas CHS, é imperioso ampliar o debate no que diz respeito à identidade da área, como um campo aberto e subjetivo produtor de sentidos e intencionalidades. A imposição e a padronização de normas atribuem servidão voluntária de áreas que precisam se adaptar às prerrogativas definidas por grupos homogêneos com mais condições de força e poder. É aquilo que Savi Neto e De La Fare (2019) definem como sociedade administrada, na qual não existem lacunas. A falta de instância que propiciem a formulação e o compartilhamento de conceitos morais é substituída pela atividade regulatória. O engessamento administrado e regulatório atribui limitações com relação à autonomia do pesquisador e limita o campo investigativo. Nesse caso, a pesquisa na área das CHS fica em grande medida condicionada ao caráter burocrático e protocolar da área biomédica ou limitada pela regulação da LGPD. Ainda como destacam Savi Neto e De La Fare (2019, p. 11): “Outro ponto a ser considerado é o campo de disputa de forças desiguais nas áreas que são objeto de normatização, fato que acaba favorecendo invasões normativas de esferas hegemônicas sobre esferas menos expressivas política e economicamente”.
Nesse enquadramento, a ética no tratamento de dados deve ir além do que se propõe atualmente nos documentos analisados, sendo um percurso promissor a utilização da LGPD como um aparato para a implementação de melhorias nas Resoluções. Entretanto, é válida a formulação de um documento que possa modernizar e nortear o campo científico para além de uma visão deturpada sobre o processo de tratamento de dados, pois na contemporaneidade os documentos não comportam a subjetividade da área. É importante destacar que a LGPD, ao propor um modelo positivo de proteção, que, por vezes, dificulta o acesso de pesquisadores aos dados, torna-se um dispositivo protetivo de instituições públicas e privadas que, em face desse dispositivo, dificultam ou impossibilitam a divulgação de dados considerados de interesse público. Assim sendo, a LGPD necessita de ajustes para atender, do ponto de vista ético, as pesquisas realizadas por investigadores da área das CHS.
Os resultados do presente estudo servem de base para a compreensão sobre como a ética no tratamento de dados tem sido pressionada por diferentes visões, de modo que o campo de interesse não tem se consolidado. Dessarte, esses documentos tratam das questões da ética no tratamento de dados com muitas dissimilitudes, de modo que é necessário fomentar que discussões sejam empreendidas na uniformização dos princípios éticos. Todavia, faz-se imprescindível fecundar uma cultura de ética em pesquisa nas instituições de ensino, com um ensino calibrado para as necessidades de se pensar o universo social e ético como uma condição humana. Portanto, pesquisas futuras podem entender as movimentações de relutância no interesse de tornar claro o processo de ética em pesquisa na área das CHS.