Introdução
Um Grupo de Trabalho (GT) chamado de “Tipificação” foi instalado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)1 durante o ano de 2017, seus resultados preliminares tendo sido apresentados no mesmo ano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante um evento intitulado “Gradação de Risco e Tipificação de Pesquisa: o que importa para a avaliação ética de pesquisas nas áreas de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas”. Nele, duas propostas de gradação do risco em pesquisas envolvendo seres humanos foram apresentadas: a do Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA), uma avaliação eletrônica na qual o preenchimento de um formulário por parte do pesquisador permitiria concluir se o risco oferecido ao participante da pesquisa é mínimo, baixo, moderado ou elevado; a do mencionado GT, uma avaliação convencional - realizada por um parecerista -, na qual essa gradação de risco seria substituída por um conjunto de fatores de modulação, relativos às particularidades da pesquisa, de seus participantes, de suas consequências e do processo de consentimento, aplicados subsequentemente a uma tipificação da pesquisa em experimental e não experimental, com intervenção direta no corpo ou sem ela.
O resultado desse GT foi materializado na recente Resolução Nº 674, de 6 de maio de 2022, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sobre tipificação das pesquisas e tramitação dos protocolos de pesquisa no sistema CEP2/Conep (BRASIL, 2022). Ela é um desdobramento de outra normativa da Conep e pode inclusive ser considerada a “resolução específica” mencionada na Resolução CNS Nº 510, de 7 de abril de 2016, que dispõe sobre as normas aplicáveis à pesquisa em Ciências Humanas e Sociais - CHS (BRASIL, 2016). Nessa Resolução, há um capítulo exclusivamente para abordar os riscos:
Art. 21. O risco previsto no protocolo será graduado nos níveis mínimo, baixo, moderado ou elevado, considerando sua magnitude em função de características e circunstâncias do projeto, conforme definição de Resolução específica sobre tipificação e gradação de risco e sobre tramitação dos protocolos. (BRASIL, 2016, p. 45).
A proposta apresentada pelo FCHSSALLA no evento citado acima está em continuidade com esse trecho da Resolução CNS Nº 510/2016. O processo de elaboração da outra proposta apresentada no evento, formulada ao longo de cinco anos nas reuniões do mencionado GT Tipificação, será o foco deste texto.
Eu participei do GT Tipificação da Conep na condição de “membro externo”, como veremos ao final. Não sem antes antecipar ao leitor a minha experiência profissional em um CEP e explicitar o referencial teórico a partir do qual desenvolvo este relato de experiência da participação em um GT da Conep. O texto será dividido em quatro partes: prévia, sobre minha atuação em um CEP; proteção, acerca da perspectiva antropológica sobre o Estado que fundamenta minha análise do sistema CEP/Conep; participação, um relato de experiência da minha atuação no GT Tipificação antes da emergência da pandemia de covid-19; pendência, indicando uma possibilidade de compreensão da Resolução CNS Nº 674/2022.
Prévia
O mencionado GT da Conep foi antecedido por um conjunto de iniciativas das associações da área de CHS - Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre outras - entre os anos de 2013 e 2016. Em convergência com essas iniciativas, atuei com integrantes do FCHSSALLA, articulado ao CEP em Ciências Humanas da ABA, na condição de suplente na Instância CHS da Conep3.
No que diz respeito às tensões entre o FCHSSALLA e a Conep, expressas no evento na UFRJ citado na Introdução, posicionei-me e ainda me posiciono a favor da postura tomada por um colega aposentado, tornada pública em 2014:
Está em discussão, no momento, a criação de um sistema específico de avaliação ética da pesquisa, no interior do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que seria alternativo e independente, em relação ao sistema atual, do MS [Ministério da Saúde]. Inúmeras discussões têm sido realizadas em Brasília, com representantes da Anpocs [Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais] e de várias outras associações das áreas de humanas e sociais. No entanto, e é este um objetivo central da presente intervenção, devemos chamar a atenção dos representantes das várias associações de pesquisa para que esse sistema alternativo inclua, necessariamente, pesquisas de ciências sociais “em saúde”, retirando-as da égide das resoluções da Conep/Plataforma Brasil. (SANTOS, 2014, p. 366, grifo nosso).
Entretanto, atuei no sistema CEP/Conep. O CEP do Instituto de Medicina Social (IMS) funciona há mais de 20 anos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atendendo a demanda de dez dos quase 100 institutos, faculdades e laboratórios de uma das quatro universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, na qual funcionam outros dois CEPs. Integrei o CEP entre 2013 e 2019, sendo, a partir de 2017, na condição de coordenador, de maneira que pude aplicar em primeira mão a mencionada Resolução CNS No 510/2016.
O CEP foi registrado internacionalmente junto aoOffice for Human Research Protections, recebendo projetos de pesquisa das áreas de Ciências Exatas, Humanas e Sociais Aplicadas, muito embora os da área de Saúde Coletiva componham a maior parte das postagens na Plataforma Brasil. Nosso colegiado é multiprofissional, reunindo farmacêuticos, biólogos, assistentes sociais e odontólogos, bem como militantes da luta antimanicomial entre os representantes de usuários, sem falar nos advogados com Graduação em Ciências Sociais, psicólogos sanitaristas, médicos filósofos e outros membros de formação mista que avaliam os protocolos do ponto de vista ético.
Quando a Resolução CNS Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013), foi promulgada, a média de dias que um protocolo ficava em trâmite ultrapassava 60 dias. Quando a Resolução CNS Nº 510/2016 passou a vigorar, essa média caiu para 40. Em julho de 2018, essa média atingiu 21 dias. Como compreender essa queda na média de dias que um protocolo fica em trâmite no nosso CEP?
Em 2013 e em 2018, foram realizados levantamentos sobre o trâmite dos protocolos pelo nosso CEP, tendo a Plataforma Brasil colaborado em muito para reunir informações sobre o período durante o qual tais projetos de pesquisa permanecem em avaliação ética pelos membros do CEP, retornam às mãos dos seus proponentes para ajustes de pendências, entre outros dados que nos ajudaram a conhecer os principais desafios que precisamos enfrentar no diálogo com a comunidade de pesquisadores e membros. Ao notar que a maior parte dos protocolos passava mais tempo entre os proponentes do que entre os membros do CEP, apontamos a necessidade de maior esclarecimento no IMS sobre os elementos que compõem a avaliação ética de estudos, acrescentando à palestra já costumeira na recepção dos alunos um conjunto de aulas sobre o assunto nas disciplinas de metodologia do programa de pós-graduação da casa, entre outras medidas de caráter informativo e pedagógico. Também percebemos que a principal causa de pendências dizia respeito aos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), diante do que incluímos no site do CEP um modelo de TCLE formulado com base na Resolução CNS Nº 466/2012 e na Resolução CNS Nº 510/2016. Com essa ação, pretendemos indicar ao proponente que o processo de consentimento pode prescindir da utilização de um TCLE, desde que justificada.
Outro fato identificado foi que muitas pendências diziam respeito aos elementos de ordem metodológica, sem relação com problemas éticos. Pari passu, renovamos nosso colegiado nos últimos anos e nos beneficiamos da Resolução CNS Nº 510/2016 no que diz respeito à centralidade do conteúdo do documento do projeto de pesquisa na análise ética, evitando suposições sobre as práticas de pesquisa dos proponentes. Finalmente, elaboramos uma checklist e a disponibilizamos no site do CEP, bem como explicitamos as fases de avaliação do projeto de pesquisa pelo CEP - documental inclusive - em forma de períodos no mesmo site, ampliando a comunicação com a comunidade acadêmica.
Essas medidas foram complexificando a análise dos projetos de pesquisa no que diz respeito aos seus elementos propriamente éticos, muito embora a simplificasse no que se refere aos metodológicos. Dito de outro modo, consentimento, confidencialidade e outros aspectos éticos suscitaram pendências com cada vez mais frequência do que expectativas de coerência entre técnicas de coleta de dados e abordagens teóricas.
Entretanto, os CEPs coparticipantes nem sempre adotam a Resolução CNS Nº 510/2016, levando em conta elementos que ultrapassam o conteúdo do projeto de pesquisa na avaliação ética, bem como cobrando uma roteirização descabida de procedimentos de coleta de dados, entre elas a observação participante. Além disso, nosso CEP inclui os representantes de usuários como protagonistas e não coadjuvantes no processo de avaliação ética dos protocolos, estimulando-os a realizar pareceres e não apenas conferir o grau de compreensão do TCLE, trazendo os dilemas do ativismo para dentro do cotidiano da avaliação ética.
Dessa maneira, o protagonismo dos representantes de usuários no processo de avaliação ética, bem como a aplicação da Resolução CNS Nº 510/2016, contribuíram em muito para a diminuição do tempo de trâmite dos protocolos no CEP do IMS-UERJ.
Proteção
A Conep é uma das comissões do CNS, um estabelecimento de controle social, ou seja, de fiscalização do funcionamento das políticas públicas por parte da sociedade civil organizada, de maneira que nunca é demais lembrar que não se trata de uma entidade científica, nem propriamente biomédica. Os CEPs podem ser vistos como serviços de saúde (FERREIRA; FLEISCHER, 2014), bem como já foram considerados uma das instituições que ilustram as burocracias da virtude (HARAYAMA, 2014). Esse tipo de serviço de saúde tem como finalidade a proteção dos participantes da pesquisa, não tanto a promoção e a recuperação da saúde, ou mesmo a prevenção de agravos e doenças, podendo ser assemelhado a um conselho de saúde, muito embora esteja longe de ser paritário em sua composição: a maior parte dos integrantes é formada de especialistas, não de representantes dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS); tais especialistas são em grande parte da área Biomédica, não das CHS.
Além disso, o CEP é um tipo de serviço de saúde no qual o usuário não é necessariamente aquele que demanda o que ele oferta, ou seja, não é o participante de pesquisa - a quem é ofertada proteção - que geralmente procura o CEP, mas o pesquisador. Há outros serviços de saúde nos quais esse fenômeno também acontece, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pois esse estabelecimento de saúde mental extra-hospitalar nem sempre é procurado pelas pessoas portadoras de transtorno mental - ditos “usuários”, mas, sim, por seus parentes - ditos “familiares”. A Lei No 10.216, de 6 de abril de 2001 (BRASIL, 2001), conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, diz respeito à proteção e aos direitos dessas pessoas, colocando o CAPS como mais um serviço de saúde com uma finalidade de proteção no qual os beneficiados potenciais não correspondem necessariamente usuários efetivos.
Esse fenômeno não acontece apenas com serviços de saúde. Anteriormente, reuni diferentes modalidades de gestão de populações tuteláveis, destacando como um dos órgãos o próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI) (Quadro 1).
Autor /Noção central | Formas de gestão de populações | Órgão administrativo | População-alvo |
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Michel Foucault/ Poder Pastoral | Soberania, disciplina, governamentalidade. | Variados, fábricas, prisões, asilos etc. | Variadas, entre elas os “loucos” |
Robert Castel/Gestão dos Riscos | Autogestão das obrigações impostas, incitação a colaborar, mobilização voluntária. | Ação sanitária e social na França do final do século XX. | “Desviantes” |
Antonio Carlos Souza Lima/ Poder Tutelar | Atração, pacificação, negociação, sedentarização. | Serviço de Proteção ao Índio no Brasil do início do século XX. | “Índios” |
Adriana de Resende Barreto Vianna/Bondade Opressiva | Produção de responsáveis pelo cuidado e alocação de indivíduos em redes de relação social. | Varas de Família no Brasil do final do século XX. | “Menores” |
Fonte: Adaptado pelo autor de Silva (2011, p. 289).
O poder tutelar, cujo ícone é o SPI, é uma forma de ação estatal protetiva e não punitiva. Trata-se de um modo de gerir pessoas que opera de modo peculiar, como Lima (1995) aponta cercando-os e fazendo em nome da paz e não da guerra. Penso que o órgão administrativo CEP tem como população-alvo os participantes de pesquisa e como forma de gestão de populações principal o consentimento, podendo, como o poder tutelar, incapacitar mais do que habilitar as pessoas. Explico: o CEP pode terminar protegendo quem não demanda proteção, pode até mesmo antecipar situações que não se colocam para segmentos populacionais sobre os quais opera - as ditas “populações vulneráveis” - e mesmo favorecer a ocultação de informações sobre pessoas que demandam visibilidade. Esse é o caso de muitos ativistas e gestores, que precisam ter como opção identificar-se se o desejarem, muito embora os CEPs se preocupem de antemão com a confidencialidade, o anonimato, a intimidade e a identidade dos participantes de pesquisa.
Sobre essa produção incessante de segmentos populacionais como “vulneráveis”, algo que atravessa as práticas dos CEPs e inclusive do GT do qual participei, vale ressaltar que a vulnerabilidade é um fenômeno que não diz respeito a algo intrínseco aos indivíduos, remetendo a um aspecto de ordem relacional e situacional: “A vulnerabilidade é sempre relacional. Então, na verdade, seria mais adequado a gente pensar em relações de vulnerabilização do que em populações vulneráveis”, como afirma José Ricardo Ayres, entrevistado por Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos (CASTELLANOS; BAPTISTA, 2018, p. 59).
Participação
Nota-se que a Resolução CNS Nº 674/2022 aponta um horizonte para essa discussão sobre a aplicação da noção de vulnerabilidade no processo de avaliação ética de pesquisa, materializada em um de seus artigos: “Art. 12 As características do participante de pesquisa, em si, não constituem fator de modulação” (BRASIL, 2022, p. 66). Assim sendo, já não se considera mais pertinente operar com base na ideia de “populações vulneráveis” a priori. Isso é o produto de um longo debate, como veremos a seguir.
Como apresentar o cotidiano do GT Tipificação de modo ético? Foi demandado aos relatores do GT uma apresentação na instância CHS, outro espaço deliberativo da Conep. Entretanto, o relator responsável pela apresentação não se encontrava disponível para participar e o grupo pediu que eu assumisse a tarefa.
Havia apenas dois membros “externos à Conep” nesse GT composto por quase 20 pessoas, o qual se reuniu mais de 15 vezes, entre 2017 e 2018, e quase 30, entre 2017 e 2021. Tomei notas da minha participação nele e elas se tornaram um relato de experiência. Contar minhas atividades nesse grupo tinha como finalidade gerar atitudes por parte de agentes institucionais, suscitar intervenções, sendo composto por descrições, análises, críticas e propostas. Trata-se de uma versão desatualizada do que ocorreu, embora avalizada pelos demais integrantes do grupo. Ainda no que se refere às questões relativas à ética em pesquisa, o texto de quase três páginas é uma narrativa pessoal (e profissional), avaliada pelos pares (e ímpares também) e autorizada para ser divulgada para integrantes das CHS (da Conep).
Entre agosto de 2017 e fevereiro de 2018, os participantes do GT Tipificação da Conep se reuniram em sete meses distintos, durante dez dias não seguidos de reunião, totalizando 14 turnos, quase 50 horas de conversa entre pelo menos dez pessoas e no máximo 20 - exceto um dia, em janeiro de 2018, no qual a reunião não teve caráter deliberativo e contou com menos de dez pessoas. O resultado dessa interação entre clínicos, gestores, pesquisadores e professores de ambos os sexos, habitantes de duas das cinco regiões do país (Sudeste e Sul) e pertencentes a variadas gerações e cores (predominantemente adultos quase chegando na terceira idade e de cor branca) foi uma proposta de tipificação de pesquisa e de tramitação de protocolos - uma alternativa à gradação de risco e à avaliação eletrônica dos projetos de pesquisa postados no Sistema CEP/Conep. Há época, o GT Tipificação não tinha encerrado os seus trabalhos, tendo sido planejado para durar até 2017, embora suas atividades tenham sido estendidas até abril de 2018, depois 2021, de maneira que não havia ainda uma proposta acabada, mas uma minuta em processo de formulação permanente.
O objetivo do Sistema CEP/Conep é proteger os participantes de pesquisa. O GT Tipificação pretende tipificar pesquisas e não graduar riscos justamente para protegê-los, pois, caso a gradação de riscos em mínimo, baixo, moderado e elevado fosse adotada e um participante assinasse um TCLE no qual constasse que o risco de participar do estudo fosse elevado, com essa assinatura, ele poderia estar assumindo a responsabilidade pelas eventuais consequências, inclusive as danosas, de assumir esse risco. Dessa forma, do ponto de vista jurídico, eventuais danos decorrentes à pesquisa poderiam ser imputados ao participante da pesquisa, e não aos pesquisadores e patrocinadores. Em última análise, isso enfraqueceria os direitos dos participantes. Além disso, o GT diz respeito à tramitação de protocolos justamente para garantir que cada projeto de pesquisa postado na Plataforma Brasil, recebido e validado do ponto de vista documental, receba uma apreciação ética elaborada por um relator, pois uma avaliação eletrônica, ou seja, sem a mediação de uma pessoa, não é considerada suficiente em um sistema que procura sublinhar a ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
De acordo com o delineamento do estudo e os procedimentos da pesquisa, o GT propôs a seguinte tipificação da pesquisa: tipo A (pesquisas em que não há experimentação em seres humanos e não há intervenção direta no corpo); tipo B (pesquisas em que não há experimentação em seres humanos e há intervenção direta no corpo); tipo C (pesquisas em que há experimentação em seres humanos e não há intervenção direta no corpo); e tipo D (pesquisas em que há experimentação em seres humanos e há intervenção direta no corpo). Destaca-se que as pesquisas da área CHS encontram-se, sobretudo, no grupo de pesquisas do tipo A.
A tipificação da pesquisa determina, de forma preliminar, as diferentes tramitações dos protocolos: expressa, simplificada, colegiada e especial. Essas modalidades de trâmite de projetos de pesquisa também variam de acordo com os chamados “fatores de modulação”: particularidades do participante da pesquisa, possíveis consequências da pesquisa para o participante, peculiaridades do processo de consentimento e, finalmente, particularidades do tipo de pesquisa.
Interessa à área das CHS principalmente as pesquisas do tipo A, que tramitarão, em sua maioria, na modalidade expressa ou simplificada, a depender dos procedimentos da pesquisa. Em certas situações, o projeto de pesquisa poderá requerer a avaliação do colegiado para um debate ético mais amplo, quando certos fatores de modulação estiverem presentes (por exemplo, nos casos em que a aplicação do termo de consentimento possa trazer riscos ou prejuízos aos participantes ou das pesquisas encobertas). Além disso, projetos de pesquisa em CHS com experimentação podem ser consideradas de tipo C e necessariamente na modalidade colegiada.
Contamos com a contribuição da instância das CHS da Conep para dar seguimento a esse processo de elaboração da minuta com o intuito de proteger os participantes de pesquisa, superando essas e outras lacunas que porventura sejam encontradas, por meio de propostas, principalmente, como também de críticas, comentários e sugestões. Para tanto, contamos com o contexto no qual esse material do GT foi elaborado, para explicitar ainda mais os motivos de nossas decisões.
O GT Tipificação foi um desdobramento do GT Harmonização, acontecido no primeiro semestre de 2017, com a finalidade de integrar as contribuições de outros três Grupos de Trabalho: Pesquisas no âmbito do SUS, Acreditação dos Comitês de Ética e Ciências Humanas e Sociais - pois todos eles apresentavam propostas relativas à gradação de risco. Esse processo de integração, harmonização e uniformização foi uma alternativa à dita “dicotomização” do Sistema CEP/Conep, entre pesquisas de Ciências Humanas e Biomédicas. Embora as especificidades das áreas de conhecimento adquirissem maior visibilidade em uma eventual avaliação ética separada de projetos de pesquisa da área de Ciências Humanas, bem como o trâmite da maior parte dos protocolos dessa área adquirissem maior celeridade, o sistema CEP/Conep optou por manter a unidade. Experimental e não experimental também são dicotomias, bem como invasiva e não invasiva, mas “a Conep não quer dicotomizar por área de conhecimento”, como disse um dos integrantes do GT Tipificação de modo lúcido, enquanto seguíamos o mote apresentado por outra sagaz integrante: “superar as divergências, compatibilizar as propostas”.
Enquanto isso, um preocupado integrante diz que 90% dos projetos de pesquisa que passam pela Conep geram pendências, outra que apenas 10% dos representantes de usuários que compõem os quase 800 CEPs no país tem login e senha; no entanto, ao longo do GT Tipificação, pude apresentar os números do CEP que coordeno no IMS-UERJ: a média de dias que um protocolo ficava em trâmite quando da promulgação da Resolução CNS Nº 466/2012 ultrapassava 60 dias, caindo para aproximadamente 40 quando da promulgação da Resolução CNS Nº 510/2016 e, em fevereiro de 2018, alcançando menos de 30 dias. Atribuo essa queda principalmente ao princípio enunciado por um sábio integrante do GT Tipificação: “não complicar o que não precisa ser complicado, cuidar daquilo que efetivamente precisa de cuidado”.
Partimos do GT Harmonização e passamos por um seminário na UFRJ em novembro de 2017, designado “Gradação de Risco e Tipificação de Pesquisa: o que importa para a avaliação ética de pesquisas nas áreas de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas”, no qual os primeiros resultados do GT Tipificação foram apresentados publicamente, por meio da iniciativa de outra brilhante integrante do GT, cuja resposta à minha pergunta “A bioética que orienta o sistema CEP/Conep é a principialista?” foi: “É uma aplicação de princípios, não é bioética”. Isso diz muito sobre as nossas tentativas de gerar o que um objetivo integrante do GT chama de “consensos e pactuações”, na maioria das vezes alcançando sucesso na descrição dos procedimentos de pesquisa e encontrando barreiras para colocar em palavras o seu delineamento, já que este último envolve traduzir paradigmas complexos em passos simples, transformar em algo aplicável por todos certas noções na maioria das vezes confusas para os próprios especialistas da área, como observação participante, trabalho de campo e etnografia no caso da Antropologia. Superadas essas tensões, chegamos a uma pactuação sobre um tema espinhoso, a vulnerabilidade dos participantes de pesquisa, considerada algo de ordem situacional e contextual também, não só uma condição intrínseca, do mesmo modo como a consensos em torno de todos os fatores de modulação relativos ao tipo de consentimento e a todas as pesquisas que não vão precisar de registro e de avaliação no sistema CEP/Conep.
Enquanto isso, a produção científica no Brasil aumenta de modo espantoso, o processo de sua internacionalização exigindo uma adaptação às normas editoriais vigentes nos periódicos científicos dos países europeus e norte-americanos, que costumam solicitar dos pesquisadores que postam seus manuscritos para apreciação uma aprovação de um CEP quando os estudos envolvem seres humanos. No GT Tipificação, ouvimos relatos sobre CEPs que avaliam projetos que envolvem apenas revisão de literatura e chegam a “dar ciência” nas situações em que casos clínicos são publicados, entre outras práticas que continuarão mal equacionadas enquanto não definirmos quem mais precisa de nossa proteção e que tipos de projetos mais nos preocupam do ponto de vista ético. Lembrando sempre que a Conep deve atuar como uma instância de controle social, do CNS, com ampla representação dos usuários do SUS, não como mais uma rede de especialistas, sendo nossos integrantes do GT oriundos das áreas de Antropologia, Saúde Pública, Bioética, Farmácia, Biomedicina, Enfermagem, Psicologia e Medicina, dentre outras.
Pendência
Outro relato reúne elementos para compreender a Resolução CNS Nº 674/2022, o relato pessoal da coordenadora de um CEP pioneiro no Brasil, o primeiro CEP CHS (FLEISCHER, 2018). Ela mostra sua atuação ao longo de sete anos, entre os anos de 2009 e 2015, antes, assim, da Resolução CNS Nº 510/2016. O foco do artigo é em uma atividade comum no cotidiano dos CEPs: as pendências - quando um projeto de pesquisa é avaliado pelo colegiado do CEP é nem aprovado nem reprovado, ele fica pendente, sujeito a alterações por parte do pesquisador ou pesquisadora que elaborou a proposta de estudo.
Como mencionado anteriormente, quando eu participei do GT Tipificação da Conep, ouvi em uma das reuniões que essas “pendências” eram tão comuns que mais de 90% dos ditos “protocolos” que “passavam” pela Conep ficavam “pendentes”. O que isso quer dizer? Na época eram mais ou menos 800 CEPs, hoje são 864. A minoria dos projetos de pesquisa postados na Plataforma Brasil e em processo de avaliação pelos colegiados desses aproximadamente 800 CEPs locais era encaminhada para ser avaliada também pela Conep nacional; dessa minoria, a imensa maioria retornava para os pesquisadores alterarem trechos, esclarecerem pontos ou acrescentarem informações. Isso durava meses, por vezes semestres e até mesmo anos. Segundo o próprio gestor da Conep na época, esse dado revelava que havia algum problema no sistema, isso não podia ser considerado uma boa prática avaliativa, não era possível que tantos projetos de pesquisa fossem avaliados dessa forma após décadas de funcionamento do sistema CEP/Conep, isso expressava alguma falha nos próprios critérios adotados para avaliar eticamente os projetos.
Não obtive mais informações sobre essas pendências na Conep. Fleischer (2018) aponta as razões dessas pendências no primeiro CEP CHS do Brasil de modo detalhado: a maioria das pendências diz respeito ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o conhecido TCLE, a minoria ao orçamento da pesquisa. Algo muito semelhante ao que ocorria no CEP do IMS-UERJ, assim como em outros CEPs (FERREIRA, 2022).
Poderia a Resolução CNS Nº 674/2022 ser considerada uma espécie de “pendência” da Resolução CNS Nº 510/2016?
Considerações finais
Em carta circular do mesmo ano em que a Resolução CNS Nº 510/2016, carta de agosto de 2016 para ser mais preciso, de número 174, há um comunicado para a seleção de membros das CHS para constituir esse grupo de trabalho, na carta denominado GT Consultivo para tratar de Tipificação de Pesquisa e Tramitação de Protocolo no Sistema CEP/Conep. Consta na carta que esse GT deve ser paritário, ou seja, metade dos integrantes devem ser das áreas Biomédicas e a outra metade das CHS. Constam também os critérios do processo seletivo: dois critérios obrigatórios, ser membro do CEP com experiência de pelo menos dois anos, ter graduação e/ou pós-graduação em CHS; três critérios desejáveis, experiência de atuação na área de ética em pesquisa, publicação na área de ética em pesquisa, título de doutor. Finalmente, consta também que os CEPs, quase 800 em funcionamento na época no país, hoje 864, deveriam encaminhar os nomes de dois candidatos. Mais de um mil integrantes de CEPs provavelmente participaram desse processo seletivo, eu e mais um colega da Antropologia fomos selecionados e, assim, nos tornamos “membros externos” do GT Tipificação. Participamos do referido GT Tipificação em diálogo constante.
Em abril de 2021, foi minha última reunião no GT, e o outro membro externo não conseguiu participar, estava com covid-19. Outros colegas do GT também não conseguiram participar por conta da pandemia de covid-19, alguns doentes, outros convivendo com os efeitos colaterais da doença, ou mesmo sofrendo com a conciliação nada harmônica entre atividades profissionais e domésticas em isolamento domiciliar, outros ainda lidando com serviços de saúde lotados de pessoas afetadas pelo vírus.
Já tinha acontecido a consulta pública sobre a primeira versão de resolução que tínhamos elaborado. Estávamos trabalhando com as centenas de contribuições dos participantes da consulta pública. Só que já não éramos dezenas de integrantes do GT, éramos alguns. Nunca tivemos paridade entre humanas e biomédicas e agora ela era quase nula na prática, pois os adoecimentos e as ausências ocasionavam reuniões nas quais eu entrava e saía sem a companhia de nenhum dos/das colegas de humanas. Pessoas que não participavam das reuniões do GT há anos voltaram, mudando totalmente a direção daquilo que tinha sido acordado coletivamente. A Conep sempre designou relatores para o GT, agora demandava que escolhêssemos coordenadores entre nós, uma mudança substantiva: relatores relatam, coordenadores coordenam, relatores relatam algo que foi decidido coletivamente. O que fazem os coordenadores? Essas e outras mudanças repentinas ocasionaram minha saída do GT. Saída em comum acordo com o outro membro externo do GT. Quem sabe no futuro esse período pós-pandemia de covid-19 do GT Tipificação possa não só ser descrito, como também colocado em análise.