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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 11-Ago-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21664.056 

Seção Temática: Ética em Pesquisa e Integridade Acadêmica em Ciências Humanas e Sociais: atualizando o debate

Ética em pesquisa e a perspectiva do princípio de autonomia no projeto profissional e nas pesquisas em Serviço Social

Research ethics and the perspective of the principle of autonomy in the professional project and in Social Work research

Ética en la investigación y la perspectiva del principio de autonomía en el proyecto profesional y en las investigaciones en Servicio Social

*Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: <marciasgarbieiro@gmail.com>.


Resumo

Este trabalho aborda a ética em pesquisa a partir da fundamentação do projeto ético-político do Serviço Social que se materializa, entre outros documentos, no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993. Tal pesquisa foi realizada por meio de revisão bibliográfica, de reflexões acerca da experiência da autora e de discussões sobre os projetos de pesquisa avaliados junto ao Comitê de Ética no qual atua. Neste artigo, apresentam-se algumas questões relativas ao princípio da autonomia, ponto central nas avaliações dos comitês de ética, porém com foco na concepção da formação em Serviço Social. Os resultados apontam para a necessidade de se respeitar as especificidades epistemológicas das diferentes áreas do conhecimento da produção da ciência, sob risco de gerarem prejuízos à ciência e à produção do conhecimento, em especial à pesquisa em Serviço Social.

Palavras-chave: Ética em pesquisa; Serviço Social; Autonomia

Abstract

This paper addresses ethics in research from the foundation of the ethical-political project of Social Service that is materialized, among other documents, in the Code of Ethics of Social Workers of 1993. This research was conducted through a literature review, reflections about the experience of the author and discussions about the research projects evaluated by the Ethics Committee in which she works. In this article, it is presented some issues related to the principle of autonomy, a central point in the evaluations of ethics committees, but with a focus on the conception of training in Social Work. The results point to the need to respect the epistemological specificities of the different areas of knowledge in the production of science, at the risk of generating damages to science and the production of knowledge, especially research in Social Work.

Keywords: Ethics in research; Social Service; Autonomy

Resumen

Este trabajo aborda la ética en la investigación a partir de la fundamentación del proyecto ético-político del Servicio Social que se materializa, entre otros documentos, en el Código de Ética de los Asistentes Sociales de 1993. Tal investigación fue realizada por medio de revisión bibliográfica, de reflexiones sobre la experiencia de la autora y de discusiones sobre los proyectos de investigación evaluados por el Comité de Ética en el que trabaja. En este artículo, se presentan algunas cuestiones relacionadas con el principio de autonomía, punto central en las evaluaciones de los comités de ética, pero con enfoque en la concepción de la formación del Servicio Social. Los resultados apuntan a la necesidad de respetar las especificidades epistemológicas de las diferentes áreas del conocimiento de producción de la ciencia, a riesgo de generar perjuicios a la ciencia y a la producción del conocimiento, en especial a la investigación en Servicio Social.

Palabras clave: Ética en investigación; Servicio Social; Autonomía

Introdução

Os debates sobre a ética são densos e extensos, construídos dentro de embates históricos em processos não lineares. Essa construção não ocorre fora dos desafios aos quais os indivíduos são confrontados, e se dá a partir das necessidades do ser social, as quais precisam ser supridas por meio do conhecimento. O ser social busca conhecimento para suprir necessidades e para se desenvolver enquanto ser. Entendemos que, assim, se dá uma concepção ontológica da ética. A concepção da qual tratamos no presente texto é a ética como categoria ontológica e que não há dicotomia entre produção do conhecimento e ética, visto que, para se produzir conhecimento, já se constrói os caminhos éticos para a sua produção.

Compreendemos a construção do conhecimento como categoria ontológica e inerente a ele. Como explica Setúbal (2005), o conhecimento emerge da interação entre os seres humanos, os objetos e a natureza, em razão das necessidades forjadas na experiência social, relacionadas aos sistemas de produção que determinam as relações sociais. Desse modo, o conhecimento é construído por intermédio das relações sociais. As ações humanas não são determinadas apenas biologicamente, mas por meio de suas experiências e de seus conhecimentos acumulados na sua relação com a natureza e com outros seres humanos.

Nesse sentido, este artigo problematiza quais são os princípios fundamentais relacionados à autonomia1 dos sujeitos de pesquisa, previstos no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993 do Conselho Federal de Serviço Social - CFESS (2012), e indaga o que ocorre quando esses princípios são submetidos a uma lógica alienígena ao campo de estudos - no caso em tela, os princípios da Bioética Principialista2. Assim, buscamos problematizar o que ocorre quando os pesquisadores do Serviço Social devem se submeter à lógica principialista dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) para terem seus projetos aprovados.

O Serviço Social como profissão historicamente construída fundamenta sua produção do conhecimento e seu exercício profissional na direção de um projeto profissional denominado de “Projeto Ético-político”; dessa maneira, há uma finalidade a ser alcançada pelo fazer profissional, seja pelo exercício da profissão, seja pelas pesquisas produzidas. Esse Projeto está presente na elaboração de seus documentos, como é o caso do Código de Ética, principalmente o de 1993, citado acima, bem como em suas diretrizes curriculares nas escolas de Serviço Social e na regulamentação da profissão de Assistente Social.

A construção do Projeto Ético-político do Serviço Social está baseada na Ontologia do Ser Social de Gyorgy Lukács (2012). Maria Lúcia Barroco (2008), orientadora da tese de Doutorado que deu origem à presente reflexão (SGARBIEIRO, 2017), escreve sobre os fundamentos ontológicos do Serviço Social, baseado em Lukács.

Partimos do pressuposto de que é no mínimo questionável que uma área do conhecimento, com formação histórica, social e epistemológica própria, tendo gerado seus princípios éticos nos embates sociais, seja submetida obrigatoriamente à avaliação de outro campo do conhecimento, também com seus próprios pressupostos epistemológicos distintos. A Bioética gera conflitos epistemológicos evidentes e previsíveis, bem como provoca a subalternização de uma área de conhecimento em detrimento de outra.

Esta pesquisa foi realizada por meio de revisão da bibliografia e, também, é inspirada pela experiência da autora nas discussões acerca dos projetos de pesquisa avaliados junto ao Comitê de Ética no qual atua3, sendo um Comitê nos modelos tradicionais, com todas as áreas de conhecimento reunidas. Os resultados apontam para a urgência de reconhecermos as especificidades dos contextos sociopolíticos de produção das diretrizes éticas de cada área do conhecimento, bem como de respeitarmos suas particularidades epistemológicas, sob risco de gerar prejuízos irreparáveis à ciência e à produção do conhecimento, em especial nas áreas de conhecimento ligadas às Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguísticas e Artes (CHSSALLA)4.

Nossa perspectiva teórico-metodológica é a histórico-crítica, fundamentada na teoria social marxista (NETTO, 2009) e na ontologia do ser social de Lukács (2012), por entendermos o trabalho como categoria fundante do ser social e questionarmos um acirramento da ofensiva do capital sobre a pesquisa (LARA, 2007) bem como sobre a ética na pesquisa. Tal ofensiva ficou mais evidente no período pandêmico, apesar de ter surgido anteriormente (ANTUNES, 2020).

Neste texto, inicialmente, tratamos da questão da ética e dos projetos societários. Em seguida, discutimos a concepção de ética para o Serviço Social e a construção de seu projeto profissional, conhecido como Projeto Ético-Político do Serviço Social, mostrando que existe, na formação profissional, uma direção social e ética construída historicamente. Nesse contexto, apresentamos um dos princípios fundamentais do projeto profissional, que é a autonomia dos sujeitos. O princípio de autonomia é uma das principais diretrizes da Bioética Principialista, que fundamenta as avaliações dos CEPs. Existem diferenças teórico-metodológicas entre o projeto profissional do Serviço Social e o da Bioética Principialista. No decorrer do texto, versamos brevemente sobre o cenário conturbado das discussões acerca da imposição das legislações da área Bioética para as CHSSALLA.

Na parte final, analisamos algumas questões recentes e mudanças impostas pela pandemia. Convém ressaltarmos que não se trata de colocar em questão a importância da regulação ética, bem como dos CEPs, mas de reivindicar o respeito à diversidade das formas de produção do conhecimento que foram geradas ao longo da história. Ao mesmo tempo, compreendermos que, por suas próprias características, a fundamentação ética do Serviço Social pode e deve responder aos desafios impostos pela pandemia em um contexto de precarização das condições de vida dos sujeitos relegados à condição de subalternidade.

Breve panorama sobre a ética

Neste texto, apresentamos o debate sobre a ética e o princípio da autonomia a partir do projeto profissional do Serviço Social. Contudo, vários autores das áreas das CHSSALLA têm se debruçado sobre a temática da ética em pesquisa trazendo reflexões e concepções que muito têm contribuído com o debate, não apenas em seus princípios e normas, mas em termos de concepções e perspectivas acerca da ética em pesquisa. Essas concepções e perspectivas não podem ficar subjugadas à avaliação de uma área de conhecimento única, como é o caso das Biomédicas.

Mainardes (2017) defende que a ética em pesquisa, principalmente na área da Educação, necessita integrar o processo de formação de pesquisadores. Naquela época, o autor escreveu sobre a necessidade de elaboração de um documento que instrumentalizasse tais pesquisadores para a condução ética em pesquisa, mas que fizesse, principalmente, parte de toda a elaboração da pesquisa desde seu início. Mais recentemente, Mainardes (2022) apresenta a perspectiva ontoepistemológica para a pesquisa no campo educacional. De acordo com tal perspectiva, a ética não é um apêndice, mas, sim, um elemento estruturante da pesquisa, pois todas as pesquisas envolvem questões éticas. Conforme o autor, a perspectiva ético-ontoepistemológica pode contribuir para pesquisas mais integradas e coerentes em vários aspectos da investigação. Por fim, mas não menos importante, o posicionamento transformador do pesquisador contribui para atingir a finalidade social da pesquisa.

Nicacio (2023) traz uma análise recente dos impasses e das dificuldades enfrentados pelos pesquisadores das CHSSALLA quando submetem seus projetos ao sistema formado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) - Sistema CEP/Conep - e apresenta, também, o enfrentamento construído pelas associações científicas. O autor também fala de sua experiência em um Comitê de Ética específico da área das CHSSALLA.

Dentre as diferentes significações que a palavra “ética” foi adquirindo ao longo do tempo, desde as reflexões sobre o que vem a ser uma vida digna ou boa de ser vivida, produzidas pelos pensadores da antiguidade ocidental, até a instrumentalização da ética no século XX, por meio do estabelecimento dos diferentes códigos de ética profissionais, estabeleceu-se uma fragmentação entre os próprios sentidos da “ética” e da “ética profissional”. Esta última é entendida como um conjunto de atributos ou atitudes que, uma vez codificados, devem servir de parâmetros norteadores corretos para as ações em uma determinada categoria profissional. Desse modo, os chamados “códigos de ética” tornaram-se uma espécie de égide sob a qual o profissional de determinada área deve guiar suas atitudes5. Diante desse debate da ética e da ética profissional, é importante entendermos as profissões como práxis sociais a partir de necessidades construídas coletivamente. As profissões têm por finalidade dar respostas objetivas às demandas apresentadas pela coletividade. Como se trata de uma práxis construída pelo ser humano, também é uma objetivação do ser social.

No debate em tela, é necessário debruçarmo-nos sobre a concepção ontológica do contexto da construção do ser social, entendendo que o ser social é um ser ético (BARROCO, 2008). Esse ser se relaciona com a natureza para suprir suas necessidades por meio do trabalho. Essa é a forma de objetivação mais primária. O trabalho é uma forma de práxis. A ética é parte da práxis e, por intermédio da ética, o ser social constrói mediações na relação com o outro, pois a ética está inserida na construção de conhecimento como capacidade do ser social.

Assim, quando o sujeito realiza pesquisa, a ética está presente. Para Chizzotti (2005), ao pesquisar, o investigador recorre à observação e à reflexão sobre os problemas enfrentados. Recorre, também, à experiência passada por ele e por outros investigadores na solução desses problemas para munir-se de instrumentos adequados à investigação e à ação. Segundo o autor, o ser humano pesquisa para viver melhor. Nesse ato, relaciona-se com as forças da natureza e com sua própria consciência e capacidade criadora. Seleciona os melhores instrumentos e as melhores técnicas para a realização de atividades do seu cotidiano. Por meio dessa atividade investigativa, o ser humano transforma o mundo, cria explicações e conceitos.

Para uma crítica ao principialismo da Bioética

Segundo Figueiredo e França (2009) a Bioética Principialista é uma corrente de conotação individualista, e sua base de sustentação está na autonomia dos sujeitos sociais a partir da aplicação dos chamados “Termos de Consentimento Informado”. O criador da Bioética, o cancerologista americano Van Rensselaer Potter, da Universidade de Wisconsin, que utilizou o termo pela primeira vez em 1970, pensava em uma ciência que unisse o saber biológico e os valores humanos, ou seja, que unisse as áreas de conhecimento da saúde e das humanidades. Entretanto, de acordo com Figueiredo e França (2009), apesar da visão mais ampla de Petter, a Bioética sofreu uma redução já no começo dos anos 1970 em relação a sua concepção de origem, ficando restrita ao campo de discussão dos dilemas éticos da área Biomédica. Aproximadamente seis meses após a publicação do livro de Potter, André Hellegers usou o termo “bioética” para o Instituto de Reprodução Humana e Bioética Joseph e Rose Kennedy, posteriormente o nome foi alterado para Instituto Kennedy. Esse foi o primeiro instituto dedicado à Bioética no mundo. Diferentemente da visão abrangente de Potter, os cientistas do Instituto Kennedy vislumbravam na Bioética uma possibilidade de controle social sobre as pesquisas com seres humanos e também uma ética aplicada à Medicina e à Biologia. A necessidade de controle em pesquisas envolvendo seres humanos é legítima, uma vez que, historicamente, houve muitos abusos éticos durante a Segunda Guerra Mundial, e pós-guerra6.

Consoante Figueiredo e França (2009), para responder questões éticas que vinham surgindo naquele momento, em 1974, o Governo norte-americano criou a Comissão Nacional para proteção dos seres humanos envolvidos em pesquisas Biomédicas. O objetivo dessa comissão era identificar os princípios éticos que deveriam nortear os experimentos em seres humanos nas ciências médicas. Após a conclusão dos trabalhos dessa Comissão, foram divulgados, no chamado Relatório de Belmont,os três princípios que norteariam os dilemas morais das pesquisas com seres humanos: “Respeito à liberdade das pessoas (autonomia), beneficência e justiça” (FIGUEIREDO; FRANÇA, 2009, n.p.). Contudo, o Relatório não distinguiu abeneficênciadanão-maleficência ,o que foi feito em 1979 por Tom L. Beauchamp e James F. Childress. Assim surgiu a Bioética Principialista, que se denomina dessa forma por ser fundamentada em um conjunto de princípios derivados de diversas raízes históricas. São eles: beneficência,não-maleficência,autonomiaejustiça. As raízes filosóficas do principialismo reúnem concepções de autores diferentes para cada um dos princípios. De acordo com Figueiredo e França (2009), a autonomia se baseia em Kant; e o conceito de justiça, como equidade, tem as ideias de John Rawls.

Com base nos princípios éticos do principialismo, a proposta de Beauchamp e Childress restringiu a visão inicial de Potter (o criador da Bioética) para uma atuação na área Biomédica, “[...] ou seja, uma visão centrada na proteção dos direitos pessoais - uma microbioética, restrita ao privado -, relegando o social, o coletivo e todo ecossistema” (FIGUEIREDO; FRANÇA, 2009, n.p.). A Bioética de Potter englobava o social, era mais abrangente que o principialismo de Beauchamp e Childress que constitui instrumentos burocráticos para a análise prática dos conflitos que ocorrem no campo médico, mas não nas áreas das CHSSALLA.

Princípios éticos do Serviço Social: a autonomia em tela7

De acordo com Netto (2009), dentre alguns dos projetos coletivos, estão os projetos societários e os projetos profissionais. Os projetos societários são macroscópicos, formados pelo conjunto da sociedade, são projetos de classe. Os projetos profissionais, por sua vez, são próprios de profissões que supõem uma formação teórica e/ou técnico-interventiva de nível acadêmico superior. Projetos profissionais possuem dimensão política e se consolidam à medida que a profissão tenha um corpo de profissionais altamente organizado (NETTO, 2009).

No caso do Serviço Social e seu desenvolvimento no Brasil, esse projeto vem sendo construído pela categoria profissional desde o Movimento de Reconceituação da profissão, da década de 1960. No entanto, a produção de conhecimento a respeito do Projeto Ético Político (PEP) data de meados da década de 1990. Com o Movimento de Reconceituação, todo um histórico de conservadorismo na profissão, presente desde sua origem nos anos de 1930, passou a ser contestado. Braz (2008) caracteriza como conservadorismo a influência dos ideais da sociedade burguesa de propriedade e de um projeto de sociedade a serviço do grande capital.

Principalmente após a década de 1970, no Brasil, buscou-se a fundamentação de uma teoria crítica, por meio da tradição marxista, que se consolidou com as pesquisas acadêmicas de Mestrado e Doutorado, exercendo impacto sobre o campo profissional do Serviço Social. Destacamos a relevância da produção de conhecimento em Serviço Social como fator determinante para a “virada epistemológica” em direção à compreensão da profissão e sua base teórico-metodológica8.

Essa “virada epistemológica” ocorreu a partir do Movimento de Reconceituação, no qual muitos estudantes e profissionais de Serviço Social, a partir da segunda metade dos anos de 1960, estabeleceram seus primeiros contatos com o marxismo, por intermédio dos movimentos sociais e da resistência à ditadura militar brasileira, marcando uma ruptura na forma que se praticava e se entendia o Serviço Social e seu papel na sociedade latino-americana até então (SILVA; SILVA, 2015). Naquele momento, a América Latina estava tomada por ditaduras militares em diferentes países, instaladas a partir dos anos de 1960. É importante ponderar que, no decorrer do Movimento de Reconceituação, apesar de uma intenção de ruptura de tendência marxista, ainda houve alguns movimentos de modernização conservadora com inspiração fenomenológica que tentaram se impor.

O crescimento da produção de conhecimento conferiu maturidade intelectual à profissão e contribuiu para consolidar a teoria crítica como fundamento teórico-metodológico para a construção do projeto profissional dos assistentes sociais no Brasil, conhecido como Projeto Ético-Político do Serviço Social. Os projetos profissionais apresentam a “autoimagem de uma profissão”, elegem seus valores, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, prescrevem normas para o comportamento dos profissionais, entre eles e com outras profissões (NETTO, 2009). Nesse contexto, a teoria marxista dá suporte à produção de conhecimento em Serviço Social brasileiro. A teoria crítica fornece elementos que auxiliam a dar sentido à atuação dos assistentes sociais no contexto de um país extremamente desigual. Desse modo, podemos afirmar que a teoria se constitui como um pilar fundamental para dar materialidade ao Projeto Ético Político da profissão.

Alguns dos princípios fundamentais que permeiam a ética no Serviço Social e estão explicitados no Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993 (CFESS, 2012) são: a liberdade, entendida como possibilidade de escolha entre alternativas concretas; autonomia, emancipação; equidade e justiça social; participação e socialização da riqueza socialmente produzida. Autonomia aqui entendida em uma perspectiva histórico-crítica de superação da sociedade de classes e da dominação dos indivíduos à lógica do capital, tal como percebemos nas infrações éticas cometidas contra os sujeitos de pesquisa que vários autores citam quando tratam do surgimento da Bioética (NICACIO, 2023; SGARBIEIRO, 2017). No âmbito da perspectiva da Bioética Principialista, a autonomia é reduzida pelo fato de o sujeito ter conhecimentos da pesquisa da qual é participante. Isso é muito importante, mas a autonomia tem a ver com algo muito mais abrangente, como o retorno e o alcance das pesquisas que possam contribuir com a superação da condição de exploração a qual esses sujeitos estão submetidos (BOURGUIGNON, 2007).

Essa valoração ética, peculiar ao Serviço Social no Brasil, muitas vezes entra em conflito quando se torna obrigatória a apreciação dos projetos de pesquisa pelos CEPs, frequentemente entrando em choque com princípios da Bioética Principialista que fundamenta as legislações do CEP. Um dos valores fundantes da Bioética Principialista é a autonomia do sujeito, que deve ser tratada em seu significado concreto na vida social. Já no Código de Ética do Serviço Social (CFESS, 2012), a autonomia está vinculada à liberdade e à alteridade, o que pressupõe o resguardo dos sujeitos em relação a situações de discriminação e preconceito, bem como o respeito aos seus valores e modos de vida (BARROCO, 2006). Não há como negar a pertinência dos argumentos da autora; entretanto, podemos afirmar que, além dessas questões de respeito ao significado da autonomia com relação aos modos de vida dos sujeitos, devemos enfatizar que, em seu ofício ordinário, os assistentes sociais estão hodiernamente confrontados com situações de precariedade extrema das condições de vida dos sujeitos e das famílias, evidenciando-se laços sociais fragilizados, por condições de pobreza extrema.

O atual contexto brasileiro, de um dos países mais desiguais do mundo, nos leva à reflexão de que é delicado pensar em autonomia em situações em que as necessidades básicas de vida, tão elementares para a sobrevivência, não estejam satisfeitas. Como podemos pensar em autonomia quando trabalhamos com pessoas que vivem à margem, no limite da sobrevivência? Essa é uma das questões que o trabalhador social enfrenta no seu cotidiano. Problemas como esse certamente serão agravados no contexto de crise sanitária, econômica, política e social que atravessamos no Brasil pós-golpe de 20169.

A autonomia, tratada em uma concepção histórica e considerando a complexidade da luta das classes sociais, está vinculada à liberdade e ao respeito aos valores dos sujeitos. A liberdade, que, conforme Barroco (2008), na perspectiva histórico-crítica, é escolha entre alternativas concretas. De acordo com tal perspectiva, é importante indagar sobre as condições que limitam a liberdade e, ao mesmo tempo, promover condições para sua ampliação. Essa limitação se relaciona intimamente com o contexto no qual a vida dos sujeitos transcorre e no qual fazem suas escolhas. Segundo o Código de Ética dos Assistentes Sociais de 1993 (CFESS, 2012), o princípio da autonomia é abrangente no sentido de que trata não só da capacidade dos indivíduos para tomar suas decisões que estejam vinculadas às suas vidas e suas relações, como também ao respeito que o profissional deve ter em relação às escolhas e às opiniões desses indivíduos. Mais uma vez, cabe indagarmos qual o impacto de situações reais e materiais de vida sobre a possível autonomia.

Discussões acerca da ética em pesquisa no Brasil

Historicamente, o Serviço Social é reconhecido como profissão que também faz parte da área da Saúde, de acordo com o Conselho Nacional de Saúde (CNS)10. Desde o surgimento dos primeiros CEPs na década de 1990, o Serviço Social, particularmente aqueles que atuam diretamente nos espaços de saúde, tem submetido suas pesquisas às avaliações do CEP, encontrando muitas dificuldades no preenchimento da Plataforma Brasil e na publicação de suas pesquisas, pois muitos hospitais e instituições de saúde, quando locus de pesquisa, exigem a aprovação do CEP. Assim sendo, os Assistentes Sociais, por muitos anos, têm se confrontado com as exigências do Sistema CEP/Conep. Da mesma forma, os periódicos da área da Saúde também fazem essa exigência.

No início da década de 1990, quando a Bioética no Brasil iniciou sua influência sobre as pesquisas nas áreas Biomédicas, começaram a ocorrer discussões sobre ética em pesquisa no Brasil. Posteriormente, nos anos 2000, começou a discussão dos Comitês de Ética, direcionada em dois polos: em primeiro lugar, uma preocupação centrada na relação profissional e pacientes, principalmente na área médica; em segundo, um debate realizado por grupos mais críticos, preocupados com o andamento das pesquisas e com os avanços tecnológicos envolvendo todas as áreas de pesquisa, e, aqui, podemos mencionar os embates principalmente na área de indústria farmacêutica, por exemplo11. Desde o início da discussão da ética na pesquisa no Brasil, os grupos das CHSSALLA já se mobilizaram por uma resolução que atendesse as suas especificidades em relação à ética na pesquisa (SARMENTO, 2005).

Mundialmente, ocorreram vários incidentes durante o século XX que resultaram em infração ética nas pesquisas envolvendo seres humanos. Daí deriva a necessidade de regulação por meio de resoluções para tratar os problemas relativos à ética na pesquisa. Durante a maior parte da histórica científica, não houve uma preocupação com essa regulação ética no Brasil. Todavia, depois da década de 1990, isso mudou (BARROCO, 2006).

Era necessário estabelecer uma forma de regulação, dada a exigência internacional, principalmente vinda dos Estados Unidos (GRISOTTI, 2015); assim, buscaram-se mecanismos regulatórios para a ética envolvendo pesquisas com seres humanos. Nesse debate, uma das referências pioneiras foi William Saad Hossne, profissional da área da Saúde da Universidade de São Paulo (USP). Esse autor analisa questões da Bioética com uma concepção crítica (mas não histórico-crítica, nem baseada na teoria social marxiana), fundamentada na saúde pública com uma defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Hossne é conhecido por seu trabalho e militância na Bioética. Ele acreditava em uma Bioética que reunisse a Biologia, as Ciências da Saúde, a Filosofia e o Direito e estudava a dimensão ética na pesquisa e aplicação com seres humanos e animais. Hossne foi responsável pela criação da Sociedade Brasileira de Bioética e contribuiu na criação da Conep. Ele coordenou a Conep entre 1996 e 2007 (MARQUES, 2013; SARMENTO, 2005).

A entrada em vigor da Resolução No 196, de 10 de outubro de 1996, do CNS (BRASIL, 1996), marcou o início da regulamentação formal da ética em pesquisa no Brasil. Tal documento resultou de um movimento internacional, mas destacamos que sua fundamentação na Bioética estadunidense não considera as particularidades brasileiras. Sua disposição humanista, de controle dos possíveis danos individuais decorrentes da prática da pesquisa Biomédica, foi advinda de um amplo movimento internacional, desencadeado após a II Grande Guerra. Tal perspectiva foi uma forma de reação à adesão maciça da classe médica alemã à ideologia nazista, com os terríveis efeitos da política de purificação racial e dos campos de extermínio dos indivíduos e populações chamados “degenerados” (DUARTE, 2015)12.

Desse modo, foram se construindo os CEPs no Brasil em um período curto de tempo nos anos de 1990. O que seria um grande avanço para a ética em pesquisa com seres humanos na área Biomédica se tornou um entrave na área das CHSSALLA. Teve início uma predominância de uma área de conhecimento sobre as demais, interferindo no que deve ser pesquisado, como deve ser pesquisado, e não aceitando as particularidades das pesquisas das CHSSALLA13 - o modo de pesquisa, a metodologia, mas, acima de tudo, a concepção. Entendemos que a questão da metodologia de pesquisa não deve ser atribuição da avaliação da ética na pesquisa. Deve-se considerar que a questão da metodologia deve ser uma construção do pesquisador a partir do objeto de pesquisa, pois é a natureza do objeto que determina o método e os procedimentos do pesquisador (NETTO, 2009).

Nos últimos anos - desde meados dos anos 2000 até os dias atuais -, muitas associações e entidades da área das CHSSALLA se posicionaram contrárias à forma como seus projetos de pesquisa têm sido avaliados pelo Sistema CEP/Conep, criado pela Resolução Nº 196/1996, ligado ao CNS, do Ministério da Saúde. Segundo Mainardes (2014), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) foi uma das associações que propôs, em 2011, que a Resolução Nº 196/1996 ficasse restrita apenas ao controle das pesquisas na área da Saúde e sugeriu a elaboração de uma regulamentação específica para a área das CHSSALLA.

Assim, teve início, em 2013, uma jornada de reuniões, lutas e discussões para buscar uma resolução própria para a área de CHSSALLA, na qual a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) também estava presente e representada. Após consultas públicas e discussões nas entidades de classe e nos CEPs, foi aprovada, em abril de 2016, a Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016) que trata da ética na pesquisa em CHSSALLA. Entretanto, tal Resolução, que foi um grande avanço para a área, foi aprovada como resolução complementar à Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013), e está alocada no Sistema CEP/Conep e ligada ao Ministério da Saúde.

O Serviço Social, por meio da ABEPSS, participou desse processo. Entretanto, defendemos que a própria construção do projeto ético-político da profissão, materializado nos princípios fundamentais do Código de Ética dos Assistentes Sociais (CFESS, 2012) já dá respaldo para a condução ética das pesquisas em vários aspectos e princípios exigidos pela avaliação ética, tornando desnecessária a avaliação ética pelo Sistema CEP/Conep com princípios biomédicos (SGARBIEIRO, 2017). Assim como Mainardes (2020), defendemos que a preocupação na condução ética deve ser cotidiana na prática da pesquisa nas CHSSALLA.

A área de CHSSALLA possui uma produção científica que lhe confere autoridade para exigir o reconhecimento às suas particularidades epistemológicas e metodológicas (NOGUEIRA; SILVA, 2012). Nesse sentido, as questões relativas à ética na pesquisa buscam, para a área de CHSSALLA, uma legitimidade em relação a sua metodologia, à ética e às concepções teóricas que vão além da avaliação e do preenchimento na Plataforma Brasil.

O contexto atual e algumas mudanças impostas pela pandemia da covid-19

Com o advento da pandemia da covid-19, assistimos a um quadro de agravamento dos problemas sociais já existentes em nosso país. A pandemia teve um efeito acelerador das desigualdades sociais, impactando de maneira decisiva as populações mais vulneráveis. As interseções de gênero e de raça que, em tempos anteriores já colocavam as mulheres, as populações LGBTQIA+, bem como as parcelas da população negra e indígena em desvantagens e vulnerabilidades, se agravaram ainda mais. Isso transcorrendo em um cenário de degradação das condições de vida, provocado por uma conjunção de fatores como desemprego, diminuição do poder de compra devido à inflação generalizada, cujo elemento mais evidente foi a alta dos preços dos combustíveis que exerceram um efeito em cadeia sobre toda a esfera produtiva etc.

Além desses aspectos, atravessamos a pandemia com um governo que, muitas vezes, negou a existência da doença. Algumas medidas ou declarações do então chefe do Executivo provocaram confusão na população, e não raro tinham como consequência uma maior exposição dos mais vulneráveis ao contágio, ou a ingestão de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da covid-19. Frequentemente, os trabalhadores dos chamados serviços essenciais, aqueles que “não podem parar”, e, se porventura parassem, podiam ser substituídos a baixo custo, foram os que estiveram mais expostos (GRANADA et al., 2021)14.

Antunes (2020) coloca em relevo que a pandemia de coronavírus poderia ser compreendida como consequência de uma simbiose entre uma crise estrutural do capital e crises sociais e políticas profundas. Essa confluência trágica entre a crise estrutural, o sistema de metabolismo antissocial do capital e a explosão do coronavírus foi sintetizada pelo autor na expressão “capitalismo pandêmico” (ANTUNES, 2020, p. 17). Na sua análise, o modo contemporâneo de funcionamento do capitalismo possui um evidente caráter discriminatório de classe social, intrinsecamente relacionado a uma intensa desvalorização do trabalho e ao desemprego.

Essas mudanças trazem novos desafios para o Serviço Social diante da direção social e ética dada pelo seu projeto profissional. O Serviço Social, assim como suas pesquisas, também se vê diante de problemáticas ligadas à precarização do trabalho devido ao acirramento das desigualdades com a pandemia. O desemprego que atingia milhares de pessoas agravou ainda mais o pauperismo e a exclusão social. Populações que já eram vulneráveis viram sua situação piorar consideravelmente.

Atualmente, avanços importantes estão sendo feitos para a construção de uma resolução própria para as CHSSALLA. O que temos no momento são as Diretrizes para Ética em Pesquisa e a Integridade Científica, documento criado, mas ainda não implantado, pelo Fórum de Associações de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA). Esse Fórum é o mesmo criado no início dos anos de 2010, com os representantes das áreas já citadas neste artigo. O FCHSSALLA retomou suas atividades no ano de 2020 e ampliou suas atribuições e pautas na luta em defesa das áreas de conhecimento das CHSSALLA. O Grupo de Trabalho (GT) de Ética continua se reunindo para a implantação das Diretrizes para Ética em Pesquisa e a Integridade Científica. No momento (primeiro semestre de 2023), as diretrizes estão em ampla consulta pública até o dia 1 de julho de 2023, para que pesquisadores de todas as áreas das CHSSALLA possam opinar e dar sugestões.

Têm sido realizadas lives no YouTube15 no canal do FCHSSALLA para que pesquisadores das diversas áreas possam tirar dúvidas sobre a consulta pública das Diretrizes para Ética em Pesquisa e a Integridade Científica. A primeira live teve mais de 800 visualizações e têm sido amplamente divulgadas nas redes sociais e páginas das entidades das CHSSALLA.

Ainda continuam existindo ataques à área, como é o caso do Projeto de Lei (PL) Nº 7.082, de 13 de março de 2017 (BRASIL, 2017a), que tramita na Câmara de Deputados e traz duros ataques à pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil. De acordo com a ABA (2022), o PL tem motivação nos interesses da indústria farmacêutica, que tenta homogeneizar as metodologias e as práticas consideradas científicas e éticas a partir do padrão das pesquisas clínicas em seres humanos. Há, assim, um grande retrocesso na luta pela construção de legislações que garantam as especificidades das CHSSALLA como área de conhecimento no interior das avaliações éticas institucionalizadas.

De acordo com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC (2022), em uma nota divulgada em abril de 2022, os pesquisadores em Ciências Humanas do Brasil, representados pelo FCHSSALLA, solicitaram aos deputados federais brasileiros que alterassem o mencionado PL N° 7.082/2017, que regulamenta a pesquisa clínica com seres humanos. De acordo com os pesquisadores, esse PL foi alterado durante a tramitação na Câmara, impondo às Ciências Humanas as mesmas regras das pesquisas Biomédicas e Farmacológicas16.

Os pesquisadores da FCHSSALLA, apoiados pela SBPC, reivindicaram a retirada do Art. 73 do PL. Entende-se que tal PL, mas principalmente o Art. 73, fere toda a luta das áreas das CHSSALLA pelo respeito a suas especificidades no que diz respeito à regulação ética em pesquisa. Vejamos a redação do artigo: “Art. 73. Esta Lei e seus termos se aplicam às pesquisas com seres humanos em todas as áreas do conhecimento, no que couber, desde que não exista regulamentação específica em contrário” (BRASIL, 2017b, p. 35). Esse artigo reduz o conceito de “pesquisa envolvendo seres humanos” às Ciências Biomédicas em mais uma tentativa de controle da Ciência Brasileira a uma única direção científica. Pesquisa envolvendo seres humanos é um conceito abrangente, pode ser tanto a pesquisa sobre o corpo dos indivíduos, quanto pesquisas envolvendo metodologias como entrevistas, ou mesmo grupos que não estão em situação de vulnerabilidade.

O PL N° 7.082/2017 busca a diminuição da participação da sociedade nos órgãos de avaliação ética, para que processos sejam agilizados, principalmente se forem de interesses mercadológicos. Acompanhamos, nesses últimos dois anos, uma busca desenfreada por aprovar pesquisas com medicamentos sem comprovação científica, para o tratamento precoce da covid-1917, ferindo, assim, a autonomia dos sujeitos das pesquisas. A Conep inviabilizou uma dessas pesquisas por entender que não atendia a critérios éticos e também burocráticos no procedimento de coleta de dados18. Os dados da pesquisa foram divulgados dois dias após a aprovação da Conep, o que mostrou que os dados foram coletados anteriormente à submissão, o que motivou a Conep a retirar a aprovação. Posteriormente a essa retirada de aprovação da Conep, foram feitas diversas denúncias envolvendo tal pesquisa - denúncia de morte de pacientes e de não conhecimento da família e do próprio paciente em relação à medicação utilizada.

O episódio citado mostra como é importante a regulação ética envolvendo pesquisas Biomédicas. Onde há interesses do capital, as questões relativas aos interesses das populações se tornam secundárias. Por esse motivo, o Serviço Social defende um projeto profissional com uma vinculação ético-política com as classes mais vulneráveis, e isso se materializa também em suas pesquisas e sua relação com os sujeitos.

É importante um cuidado ético na condução das pesquisas por meio de comitês, mas a questão aqui analisada é que esse controle não seja estendido a áreas do conhecimento que se utilizam de metodologias completamente diferentes, como é o caso das CHSSALLA. Pensando em uma direção ética política do Serviço Social, também não podemos concordar que pesquisas de interesse mercadológico sejam viabilizadas com mais agilidade para atender à indústria farmacêutica. É preciso uma ampla discussão das áreas de conhecimento a respeito, e pensamos que o Serviço Social não deve estar alienado desse debate que vai ao encontro da ofensiva do capital sobre a ciência, legitimando, assim, a construção de uma ciência burguesa (LARA, 2007) em detrimento da emancipação humana e da busca de uma autonomia e da liberdade dos sujeitos.

Considerações finais

Atualmente, ainda se busca uma autonomia entre a área das CHSSALLA e a área Biomédica nas avaliações éticas nas pesquisas envolvendo seres humanos. Na atual conjuntura de saída de um período pandêmico, a indústria farmacêutica busca agilizar o processo de tramitação, mas em uma lógica de mercado, motivada inclusive pelo impedimento de pesquisas que afetam eticamente os sujeitos na aprovação de medicamentos sem comprovação científica e que atendem a lógicas políticas de mercado e sem o consentimento desses sujeitos.19 Essa lógica fere o princípio de autonomia dos sujeitos e ameaça até mesmo a existência de necessidade de cuidados éticos na área da Saúde, existindo um interesse de mercado em detrimento dos interesses dos sujeitos e dos pesquisadores.

Reiteramos o texto da SBPC (2022), o qual afirma que o Art. 73 do PL Nº 7.082/2017 fere o princípio da especificidade entre as áreas de conhecimento no processo de produção científica e desconsidera o histórico de articulações e de amadurecimento da comunidade FCHSSALLA no país em relação a construção de uma legislação própria e das Diretrizes éticas das CHSSALLA. Por fim, ressaltamos que concordamos com a ABA (2022) que não nos opomos ao cuidado ético na condução das pesquisas com seres humanos; contudo, nossa preocupação é a naturalização da burocratização do trabalho científico, em particular se tal procedimento se assenta em critérios, lógicas e práticas científicas absolutamente estranhas à realidade das CHSSALLA. Os cuidados éticos são extremamente necessários e a Bioética foi um grande avanço na condução ética para as pesquisas, mas seus princípios e suas regulamentações devem ser direcionados e ficarem restritos às áreas Biomédicas.

Agradecimentos

Aos revisores anônimos, pelas sugestões que muito contribuíram com as reflexões e a versão final do texto. Ao Prof. Dr. Daniel Granada, pelas sugestões e pelas reflexões levantadas durante a elaboração deste trabalho. À Prof.a Dr.a Maria Lúcia Barroco, pela orientação da tese que resultou em partes neste trabalho. Ao Prof. Dr. Jefferson Mainardes, por todo o aprendizado e pela inspiração ao tema da Ética em Pesquisa.

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1Vários autores vêm tratando da temática da autonomia, entre eles ver Garrafa, Martorell e Nascimento (2016), Savi Neto e De La Fare (2019), Savi Neto, De La Fare e Silva (2020).

2Os princípios da Bioética Principialista são: beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça. Tratamos dos princípios no presente texto, mas nos debruçamos sobre a autonomia que é o foco deste trabalho.

3O presente texto é parte dos estudos desenvolvidos no projeto de pesquisa de Márcia Sgarbieiro, intitulado Comitês de Ética em Pesquisa: particularidades e implicações éticas das pesquisas em Serviço Social, n.11465 de 2020, do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual de Londrina (UEL), aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UEL, número do Parecer 4.235.033, em 25 de agosto de 2020.

4Utilizamos, neste artigo, a sigla CHSSALLA em vez de CHS (Ciências Humanas e Sociais) por entender, assim como o Fórum CHSSALLA, ser muito mais abrangente nas áreas de conhecimento às quais nos referimos no presente trabalho. De acordo com Nicacio (2023), a partir de 2020, o Fórum passou a ser denominado de CHSSALLA por abranger as áreas das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes.

5Em função dos limites desta publicação, não desenvolveremos tais debates aqui. Para um panorama detalhado sobre as questões relacionadas à formação histórica da ética, sugerimos ver Sgarbieiro (2017).

6Vários autores trazem esses exemplos com mais detalhes: Barroco (2006), Figueiredo e França (2009), Sarmento (2005), Sgarbieiro (2017), entre outros.

7Algumas das reflexões presentes foram iniciadas em Sgarbieiro (2017) e no capítulo de Sgarbieiro e Granada (2022a), publicado em livro impresso na cidade do Porto, em Portugal.

8Utilizamos, aqui, o termo “virada epistemológica” com o objetivo de marcar a ruptura ocorrida com a nova proposta mais engajada e de inspiração marxista, com relação ao modelo que vigorava até então, baseado em uma concepção conservadora, conforme explicado.

9O relatório da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), intitulado Panorama Social da América Latina (CEPAL, 2022), estima que, na região, entre 2020 e 2021 o número de pessoas que estavam em situação de extrema pobreza aumentou em quase cinco milhões. A crise sanitária prolongada, e ainda vigente, teria aumentado a taxa da população em extrema pobreza de 13,1%, no ano de 2020, para 13,8%, em 2021. Segundo o relatório, esse número representa um retrocesso de 27 anos, o que significa que, em números absolutos, a população em extrema pobreza teria passado de 81 para 86 milhões de pessoas (CEPAL, 2022).

10Ver Resolução Nº 218, de 6 de março de 1997. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1997/res0218_06_03_1997.html. Acesso em: 11 jun. 2023.

11Nota metodológica: iniciamos esse resgate histórico trazendo muitas das leituras realizadas nos documentos da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e em textos sobre as discussões da época. Esses textos foram utilizados na construção da tese de Doutorado de Sgarbieiro (2017), especialmente no segundo capítulo. Foi realizada, na época, entrevista com o representante da ABEPSS, em discussão sobre a Minuta de Resolução específica sobre ética em pesquisa para as áreas de Ciências Humanas e Sociais, voltada à resistência que o Serviço Social teve em relação à discussão da ética na pesquisa promovida pela Conep. A entrevista foi realizada no ano de 2016, e o representante em questão assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e autorizou a publicação do seu relato. Optamos por manter o nome da representação em sigilo e, para não romper a fluidez do texto, o depoimento foi reorganizado pelos pesquisadores e restituído aqui, buscando mais o sentido do que foi dito do que a transcrição literal da entrevista. A entrevista literal está presente na tese citada.

12Esse debate é desenvolvido com mais detalhes em Sgarbieiro (2017).

13A discussão sobre a implantação dos comitês de ética e a luta do Fórum das CHSSALLA na elaboração da Resolução No 510/2016 estão presentes no texto de Sgarbieiro e Granada (2022b).

14O relatório elaborado pela Conectas Direitos Humanos, em parceria com o Centro de Estudos e pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da USP, expõe, de modo chocante, a sequência de medidas governamentais tomadas durante a pandemia e que tiveram por efeito favorecer a propagação do vírus no Brasil, de acordo com o Boletim Direitos na Pandemia, em especial o número 10 (CONECTAS DIREITOS HUMANOS; CEPEDISA, 2021).

15Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fA8quJB3cog&t=218s. Acesso em: 7 mar. 2023.

16Para mais detalhes, consultar o Projeto de Lei na íntegra (BRASIL, 2017a), o texto da SBPC (2022) e a nota da ABA (2022).

17Para mais detalhes, ver Balza (2021) e Landim (2021).

18A respeito da retirada da aprovação ética da Conep, ver Vidale (2020).

19Para a discussão envolvendo abusos éticos na condução de pesquisas envolvendo seres humanos durante a pandemia, ver Vidale (2020) e ANS… (2021).

Recebido: 08 de Março de 2023; Revisado: 29 de Maio de 2023; Aceito: 30 de Maio de 2023; Publicado: 16 de Junho de 2023

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