Introdução
A urgência da ética não deve ser vista como um sinal do fracasso da cultura humana, como se a ideia de humanidade fosse uma abstração ultrapassada. Antes, a urgência sinaliza para o necessário movimento da vida humana no tempo histórico e geopolítico no planeta que habitamos.
(Marcia Tiburi)1
Com base nas legislações recentes e vigentes em âmbito nacional - Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (Brasil, 2016), e Resolução nº 674, de 6 de maio de 2022 (Brasil, 2022), do Conselho Nacional de Saúde (CNS) - e local e em discussões de autoras/es contemporâneas/os que têm debatido o tema da ética em pesquisas na área da educação (De La Fare; Carvalho; Pereira, 2017; Mainardes, 2016), consideramos pertinente a discussão a respeito das limitações do Sistema Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/Conep) acessado por meio da base Plataforma Brasil (sistema eletrônico unificado de registro de pesquisas envolvendo seres humanos, vinculado ao Ministério da Saúde) no que diz respeito às especificidades das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (CHS).
O Sistema CEP/Conep, vinculado ao CNS, regulamenta as pesquisas com seres humanos, independentemente da área de sua vinculação2. No entanto, a inexistência de um sistema de revisão ética específico para a área das CHS tem apresentado entraves na realização de pesquisas nessa área, decorrentes da fundamentação biomédica do sistema e, como demarca Sarti (2015), das relações de poder por ele ensejadas. Tais características se traduzem em burocratização e inadequação de exigências para a submissão de projetos na Plataforma Brasil, dificultando a sua aprovação, como testemunharam as autoras deste artigo. Ainda que a questão não seja de incompatibilidade entre o Sistema CEP/Conep e as pesquisas em CHS, interessa pensarmos sobre o papel dos CEPs das instituições e da própria Conep.
Nessa direção, entendemos que o debate sobre a regulação da pesquisa se situa em um campo de disputa científico, que diz respeito ao que é considerado ciência e quais as formas de regulação da produção de conhecimento. Assim, ao discutirmos o processo de regulação, o que está em jogo, é a própria definição de ciência, de fazer pesquisa. Corroborando a defesa de Mainardes (2022), compreendemos que uma perspectiva ético-ontoepistemológica3 se revela como fundamental ao campo da Educação.
A partir da vinculação entre epistemologia e regulação da pesquisa, nossa intencionalidade com o presente artigo é colocar em debate os aspectos, os desdobramentos e as temporalidades implicados nos encaminhamentos relativos à apreciação de projetos de pesquisa submetidos à Plataforma Brasil, diante da exigência de apreciação por dois Comitês distintos, um em âmbito universitário e outro no âmbito do poder público municipal.
A ética na pesquisa: ambivalências nas áreas da Saúde e das Ciências Humanas e Sociais
A pesquisa nas diferentes áreas de conhecimento tem especificidades que demandam que a ética na pesquisa as considere. Essas especificidades têm tensionado as ambivalências entre as definições éticas nas áreas da Saúde e das CHS. O termo “ambivalência” pode sugerir algum exagero em relação à tensão instalada, mas não é. Ao analisarmos os processos de regulação ética das pesquisas biomédicas, podemos observar a inadequação dos critérios considerados na análise dos projetos das CHS pelos Comitês da Saúde.
Vários são os pontos controversos quanto à regulação da pesquisa das CHS a partir de parâmetros da área da Saúde. O primeiro deles é o próprio fato de que, ao se instalar, em 19964, um processo normativo com regras, instrumentos e órgãos supra reguladores, proposto para a pesquisa na área da Saúde de caráter clínico e experimental, este foi estendido para todas as áreas de conhecimento (De La Fare; Carvalho; Pereira, 2017). Assim, a instituição da normatização da ética na pesquisa já se inicia a partir de uma definição de regras que não foram pensadas a partir do que é específico nas diferentes áreas.
Na Resolução CNS nº 466/2012 (Brasil, 2013), que substituiu a de 1996 - Resolução no 196 (Brasil, 1996) -, ressalta-se a necessidade de uma resolução complementar para incidir sobre as demandas das CHS, indicando, em seu inciso XIII.3: “As especificidades éticas das pesquisas nas ciências sociais e humanas e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas serão contempladas em resolução complementar, dadas suas particularidades” (Brasil, 2013, p. 62). Desse modo, a Resolução nº 466/2012 continuou a deixar descobertas as questões próprias às especificidades das CHS, a saber: epistemológicas, objetais, metodológicas, relativas à diversidade de perspectivas de análise, pois a pesquisa com pessoas requer e envolve diálogo, negociação, parceria (no sentido de reciprocidade) e, muitas vezes, resoluções conjuntas de questões advindas da dinâmica da investigação (já) em curso - diferentemente de outras ciências ligadas à saúde que se configuram como pesquisas “em seres humanos”. Trata-se, portanto, de duas realidades totalmente distintas, que vem sendo problematizadas em muitas publicações acadêmicas (Oliveira, 2010).
Sobottka (2015, p. 59), ao discutir a regulamentação, o controle social e a ética em pesquisa nas CHS, enfatiza que as Resoluções CNS (nº 196/1996 e nº 466/2012) buscam “[...] regulamentar uma forma de controle social”, mediada pelos CEPs e pela Conep (em suas atuações voluntárias), avaliando os projetos, sob a óptica dos procedimentos, o que acarreta limite tanto em seu escopo como no seu alcance. Diniz (2008) enfatiza que a equação entre pesquisa e ética deve considerar a ciência, como bem público, e os valores universais, como os direitos humanos e a proteção daqueles em situação de vulnerabilidade. Também, para a autora, faz-se imperioso que os comitês tenham atenção e sensibilidade às particularidades das CHS em seus aspectos epistêmicos e metodológicos.
Chega-se, assim, à Resolução CNS nº 510/20165 (Brasil, 2016) que, embora afirme que as CHS possuem especificidades em suas concepções e práticas de pesquisa, trabalhos recentes (Mainardes, 2017; Santos, 2017) apontam que ainda existem limitações no que diz respeito a uma regulamentação ética condizente com as particularidades da pesquisa em CHS. Isso porque a mesma regulamentação vigente hoje no Brasil propõe-se a compreender as pesquisas da área biomédica e das CHS. Essa universalização no modo de propor uma análise ética em pesquisas, principalmente da área da Educação, tem gerado transtornos, como: atraso na liberação de pesquisas; negativa a solicitações de autorização para a pesquisa; solicitação sobreposta (e, por vezes, desnecessária) de documentos e exigência de preenchimento de formulários que não dão conta de apreender a essência das pesquisas em CHS.
Na base desse processo, está um conjunto de dissonâncias, algumas mais objetivamente identificáveis e outras que seguem sendo tema de debate sobre a sua definição na área das CHS. Do conjunto mais objetivo, destacamos que as pesquisas nas CHS utilizam procedimentos que diferem daqueles utilizados na pesquisa clínica e experimental, pois, enquanto a última tem um caráter interventivo, que permite preconizar a população participante, a amostra, os riscos envolvidos, a primeira tende a priorizar procedimentos plurais, que podem se alterar ao longo do processo de pesquisa, e não focaliza a intervenção direta no corpo humano, o que apresenta características próprias para o grau de risco, como dispõe a Resolução no 510/2016:
[...] as Ciências Humanas e Sociais têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência da qual decorre a adoção de múltiplas perspectivas teórico metodológicas, bem como lidam com atribuições de significado, práticas e representações, sem intervenção direta no corpo humano, com natureza e grau de risco específico [...] (Brasil, 2016, p. 44).
Apesar do reconhecimento das especificidades da área, a Resolução no 510/2016 pouco avança em termos de definições que, pela sua relevância, precisariam ser abordadas de modo pormenorizado6. O risco é um desses elementos. No texto do documento, em seu art. 2º, o risco é definido como “[...] possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural do ser humano, em qualquer etapa da pesquisa e dela decorrente” (Brasil, 2016, p. 45). Entende-se que a pesquisa com seres humanos implica riscos, mas em todas as abordagens? Como prever os riscos? É apenas o(a) pesquisador(a) que pode identificá-los? Como avaliá-los? Como amenizá-los? Como graduá-los?
A seção da Resolução no 510/2016 que aborda especificamente os riscos assevera que o(a) pesquisador(a) deve estar sempre atento aos riscos que a pesquisa possa acarretar aos(às) participantes, a partir dos procedimentos eleitos, e que deve adotar medidas de precaução e proteção, a fim de evitar danos ou atenuar seus efeitos. Quanto à graduação, limita-se a informar, em seu art. 21, que serão considerados “[...] os níveis mínimo, baixo, moderado ou elevado, considerando a magnitude em função de características e circunstâncias do projeto, conforme definição de Resolução específica sobre tipificação e gradação de risco e sobre tramitação dos protocolos” (Brasil, 2016, p. 45).
Além dessas definições, que são tratadas de modo superficial na Resolução no 510/2016, importa ainda considerarmos: Quais princípios estão na base da concepção de risco? Na introdução do livro Ethical Futures in Qualitative Research, Denzin e Giardina (2016) questionam a lógica ocidental de considerar a ética a partir do consentimento individual dos sujeitos, que são tomados como objetos de estudo, e a partir da pesquisa com grupos da cultura Maiori, que têm por base uma lógica comunitária e não individual. Os autores problematizam os preceitos éticos biomédicos que estão na base do desenvolvimento da pesquisa.
Denzin e Giardina (2016) destacam que, no âmbito do código de ética estadunidense, são definidos três princípios: respeito, beneficência e justiça. O princípio do respeito é implementado por meio da obtenção do consentimento informado dos sujeitos. Já o da beneficência é por meio de um complexo conjunto de procedimentos concebidos para avaliar os riscos e os benefícios para os sujeitos que participam da pesquisa. Os “riscos” referem-se a danos potenciais causados aos sujeitos, e os benefícios referem-se ao valor positivo potencial para a saúde ou bem-estar dos sujeitos. E o princípio da justiça é expresso nas garantias de que os procedimentos utilizados na seleção dos sujeitos da pesquisa são justos (Denzin; Giardina, 2016).
Contudo, como alertam os autores, tais termos são problemáticos. Vamos nos ater à crítica realizada em torno da ideia de riscos e benefícios:
A beneficência, incluindo riscos e benefícios, não pode ser quantificada, nem podemos atribuir um significado claro ao risco aceitável ou claramente definir quais benefícios podem servir à grande causa. Smith (1999) e Bishop (1998), por exemplo, defendem que a coletividade deve determinar os custos e os benefícios da participação do grupo na pesquisa. Além disso, os indivíduos podem não ter o direito, como indivíduos, de permitir que determinadas formas de pesquisa sejam feitas se os resultados da pesquisa provavelmente afetarão o todo social maior. Um modelo de custo-benefício de sociedade e investigação faz injustiça ao empoderamento, ao modelo participativo de pesquisa [...] que muitos povos do quarto mundo estão agora defendendo (Denzin; Giardina, 2016, p. 24, tradução nossa).7
O que está em jogo não é apenas a dificuldade de mensurar o risco quando se trata de pesquisas no campo das CHS, mas de situá-lo no âmbito de uma decisão individual e da sua pertinência quando se trata de estudos que têm por princípio uma lógica colaborativa, em que os(as) sujeitos se tornam copesquisadores(as). Tal defesa encontra eco na compreensão de Fernandes (2016, p. 763) quando trata da ética na pesquisa com crianças: “[...] não há uma ética à la carte passível de ser replicada em cada contexto, mas sim que as relações éticas são portadoras de diversidade e complexidade e exigem um cuidado ontológico permanente de construção e reconstrução”.
No sentido de adensar as questões já apresentadas, seguimos com as contribuições a partir dos estudos sobre ética na pesquisa com crianças e, apoiadas em Morrow (2009, p. 3), apresentamos algumas questões sobre riscos e benefícios: “Quais são as contribuições das crianças na pesquisa? Pode haver riscos ou custos? Há riscos e custos se a pesquisa não for desenvolvida? Os riscos podem ser reduzidos e os benefícios promovidos? Como é que respondem às crianças que desejam recusar ou desistir ou se angustiam?”. Além das questões, a autora pondera que a pesquisa com crianças apresenta diferenças em relação à pesquisa com adultos, dentre elas a visão da criança como vulnerável, o que instaura uma tensão entre proteção e participação, e a disparidade de poder e o estatuto social, o que exige atenção redobrada de quem desenvolve a pesquisa ao gerar dados na relação com as crianças, interpretá-los e disseminá-los.
As questões de Morrow (2009) permitem-nos adicionar um elemento ao debate, a depender do grupo e de cada sujeito em particular - o(a) participante da pesquisa: devemos questionar se de fato vale a pena desenvolver o estudo com aquelas pessoas, pois, ao fazer tal avaliação, pode ser que a conclusão indique que a probabilidade dos riscos é tão superior que não é viável realizá-la, já que a ética na pesquisa pretende “[...] prevenir, não prejudicar ou enganar outros, promover o bem, ser respeitosa e justa” (Sieber, 1993, p. 14 apud Morrow, 2009, p. 2).
As orientações de Morrow (2009) levam-nos a outra dissonância: a delimitação de procedimentos e instrumentos de pesquisa. A entrada em campo exige do(a) pesquisador(a) uma preparação que se situa, no mínimo, em quatro dimensões que apresentam implicações éticas: i) teórica: é preciso operar com conceitos básicos do tema que se propõe a estudar; ii) metodológica com foco na entrada no campo: é preciso prever estratégias de aproximação e estabelecimento de relação com os(as) participantes do estudo, que inclusive podem considerar as lógicas próprias de cada grupo e ser partilhadas com os(as) participantes, como sugerem Denzin e Giardina (2016) ao tomar como referência os Maiori; iii) metodológica com foco no desenvolvimento do estudo: prever métodos, procedimentos e instrumentos; iv) metodológica com foco na devolutiva dos dados. Ainda que as quatro dimensões se situem no que poderíamos denominar de preparação para o campo, nenhuma delas se restringe a esse momento; pelo contrário, todas preveem um processo de (re)elaboração, que se constitui na relação com o campo e com os sujeitos.
Ainda que essa característica não esteja ausente nos estudos no campo da Saúde, a previsibilidade exigida em um estudo biomédico se diferencia abissalmente da implicada nas CHS. Em estudo neste último campo, o outro não é objeto de intervenção, mas sujeito ativo da pesquisa, portanto alguém que intervém e pode alterar os caminhos previamente delineados para o estudo, de modo mais ou menos ativo.
A perspectiva que reconhece os(as) participantes como sujeitos ativos na pesquisa nos leva a um último ponto de reflexão nesta seção: a relação com os sujeitos e achados da pesquisa pode alterar o seu decurso. Talvez uma pergunta se instale a partir de tal afirmação: e se as minhas escolhas metodológicas não colocam as pessoas que participam da pesquisa como ativas no processo? A defesa de que as pessoas que participam da pesquisa não são meros objetos, mas sujeitos, não se centra na escolha de métodos participativos, mas na coerência entre o princípio da dignidade dos(as) participantes e da produção de um conhecimento implicado com a realidade. Retomando a perspectiva ético-ontoepistemológica, segundo Mainardes (2022, p. 5),
[...] o desafio colocado aos pesquisadores é integrar a ética, a ontologia e a epistemologia, em termos de conteúdo e forma, em outras palavras, verificar se esses elementos estão coerentes e articulados na pesquisa. Um ponto de partida importante é compreender que a teoria (ou teorias) que fundamenta(m) a pesquisa está articulada a matrizes epistemológicas específicas e a perspectivas ontológicas e éticas. A perspectiva ontológica envolve a cosmovisão do pesquisador, bem como a explicitação de conceitos fundamentais da pesquisa. A clareza do pesquisador a respeito dessas questões é fundamental para que ele possa operar com maior lucidez, discernimento e coerência com as perspectivas ontoepistemológicas.
A partir da argumentação do autor, compreendemos que a pesquisa no campo das CHS, mesmo sem intenção de incidência direta na realidade, está nela implicada8, o que requer uma posição de consideração das pessoas participantes da pesquisa, de modo direto, ao serem convidadas a participar de um estudo, ou indireto, ao acessarem os conhecimentos provenientes dele. A reflexividade, atitude dialética que envolve o afastamento, o diálogo interno e o escrutínio constante das interpretações do processo vivenciado no campo de pesquisa (Coutinho, 2017) constituem elementos fulcrais ao delineamento do decurso da pesquisa.
Em consonância com os argumentos que a ética é um dos elementos estruturantes da pesquisa; que todas as pesquisas envolvem questões éticas; que a ética está presente em todas as etapas da pesquisa e que mesmo que de forma não consciente, os(as) pesquisadores(as) utilizam um conjunto de princípios éticos que orienta todas as suas ações de pesquisadores(as) (Mainardes, 2022), a reflexividade nos convoca a olhar para as relações estabelecidas com os(as) participantes da pesquisa e os achados dela provenientes como elementos que delineiam as escolhas éticas. Mas como esses argumentos/princípios dialogam com o processo de regulação da pesquisa?
A ética na pesquisa em Educação
Nas pesquisas em geral, sobretudo nas da área da Educação, a ética ultrapassa a normatização evidenciada por meio do cumprimento das burocracias, uma vez que o exercício da reflexão ante a prática precisa ser constante. Afinal, conforme defende Santos (2017, p. 178), “[...] a avaliação ética, por si só, não assegura que a conduta de pesquisa seja ética”. Desse modo, “[...] embora as resoluções sirvam para orientar e regular a pesquisa, lidar apenas com seus princípios não garante uma pesquisa ‘intrinsecamente’ ética” (Santos, 2017, p. 178).
Santos (2017, p. 179-180) afirma que “[...] o trabalho como pesquisadores e formadores de pesquisadores é também o de tensionar e produzir elementos críticos”, de maneira que, para além de responder às regulamentações exigidas pelo CEP/Conep9, a fim de proteger os(as) participantes das pesquisas, possa construir também reflexões a respeito dos interesses científicos das investigações: a quem ela se dirige, quais os efeitos/resultados esperados, que relação ela tem com investigações antecedentes, que processos investigações futuros podem ser deflagrados, como poderão ser publicizados os dados construídos e a discussão promovida a partir da pesquisa realizada, entre outros. Isso diz respeito, precisamente, aos modos de fazer e de divulgar pesquisas na especificidade do campo da Educação.
Esse exercício reflexivo deve intencionar tornar evidente o respeito ao(à) participante da pesquisa, seja na proteção de sua confidencialidade, na busca por evidenciar sua livre participação, na negociação permanente durante a realização da pesquisa, na análise honesta e não tendenciosa dos dados e na divulgação (Brooks; Te Riele; Maguire, 2017). No entanto, o grande problema da ética da pesquisa em educação é que há poucos materiais produzidos10, no sentido de instrumentalizar o(a) pesquisador(a) com aquilo que se considera condizente com uma ética de pesquisa em CHS. A esse respeito, Mainardes (2017, p. 165-166) aponta que:
Há uma carência de textos que abordem os princípios da ética em pesquisa e temas como confidencialidade; consentimento; anonimato; conflitos de interesse, vulnerabilidade; arquivamento de dados; identidade, poder e posição (hierarquia); questões éticas na análise de dados (rigor, honestidade, validade); pesquisa em espaços on-line; plágio; aspectos éticos na editoração e publicação; aspectos éticos na orientação e tutoria, etc.
Mainardes (2017), assim como De La Fare, Machado e Carvalho (2014), Nunes (2017) e Pithan e Vidal (2013), também considera que a ética na pesquisa necessita ser entendida como um desafio para a formação em pesquisa. Isso significa que seus princípios e procedimentos precisam ser estudados e discutidos com os(as) estudantes de Graduação e Pós-Graduação, “[...] ser debatida e problematizada nos Grupos de Pesquisa, nas sessões de orientação, nas defesas de mestrado e doutorado e em outros espaços, bem como na divulgação de resultados de pesquisa” (Mainardes, 2017, p. 165).
Em consonância com a atenção sobre o aspecto formativo, Nunes (2017) realizou uma pesquisa documental nas ementas das disciplinas dos Programas de Pós-Graduação em Educação do Brasil, disponíveis em formato digital, na Plataforma Sucupira. O autor identificou que, das 8.892 disciplinas analisadas, apenas 69 incluíam ética em pesquisa em suas ementas. Assim, é urgente que os Programas de Pós-Graduação incluam a questão da ética em pesquisa, seja em disciplina específica ou naquelas que tratem de metodologia de pesquisa. Para Nunes (2017), os conteúdos não devem ficar restritos à normatização das Resoluções do CNS, mas, sim, incluir a conduta ético-profissional do(a) pesquisador(a), as questões afetas à publicação científica, a comunicação em eventos, a avaliação de trabalhos científicos e à dos(as) responsáveis por fazer a formação acerca da ética em pesquisa.
Em outra frente de investigação e em estudo mais recente, Nunes (2021) analisou o registro dos procedimentos éticos utilizados em pesquisas de Pós-Graduação stricto sensu na área de Educação de sete Programas da região Nordeste com nota 5, concluídas entre 2013 e 2017. Nesse período, foram defendidas 679 dissertações e teses nos programas analisados, dentre as quais o pesquisador teve acesso a 657 (96,76%) produções. Destas, apenas 151 (22,98%) foram aprovadas por CEP e 279 (42,47%) fizeram referência ao uso de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O autor aponta um crescimento de 43,55% nas submissões de projetos ao CEP, pois foram 62 em 2013 e 89 em 2017. E o TCLE foi utilizado em 279 dissertações e teses das 679, o que representa o percentual de 42,47% do universo de trabalhos analisados. Observou-se maior presença do TCLE comparativamente a outros tipos de documentos (Termo de Confidencialidade, Termo de Compromisso, Termo de Assentimento, declarações diversas, Carta de Cessão), que buscaram o consentimento ou a anuência dos(as) participantes. Tais dados e considerações advindas da investigação permitem inferir que houve uma dinâmica positiva no número de submissões ao Sistema CEP/Conep no período, ainda que pesquisadores(as) das CHS, em especial da área da Educação, continuem subsidiários(as) ao CNS. O movimento de ruptura a essa subordinação à Saúde conta com vários capítulos, mas fazemos aqui dois destaques. Em 2016, o Fórum das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas elaborou e publicizou um manifesto em prol de um sistema de avaliação da Ética em Pesquisa nas CHS, legítimo. Nesse documento, reitera-se a expectativa de que a Resolução CNS nº 510/2016 fosse o primeiro passo para a reestruturação do Sistema CEP/Conep; e que, na sequência, fosse proposta uma Resolução de Risco no sentido de as características e os níveis de risco virem a constar dessa nova resolução. O manifesto, além de objetar sobre a necessidade desta outra normativa, também explicita a relevância das ações do Grupo de Trabalho (GT) das CHS. Não obstante, a Conep, em agosto de 2016, rompeu o acordo e extinguiu o GT-CHS, criando, em seu interior, um novo GT. Não havendo acolhimento aos pedidos encaminhados à Conep em, 30 de agosto de 2016, conforme a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), as associações representadas no GT-CHS em carta-resposta ao Coordenador da Conep assim se posicionaram:
As associações de CHS estão prontas a colaborar na continuidade do trabalho a que se dedicaram nestes últimos anos e não aceitarão de forma alguma que essa parte essencial de sua contribuição seja subtraída extemporaneamente de sua responsabilidade. A legitimidade de todo o processo de estabelecimento de uma adequação do sistema de avaliação da ética em pesquisa às especificidades das CHS depende visceralmente da manutenção do acordo estabelecido (Abrapso, 2016).
Em 2023, com a perspectiva de contribuir com um posicionamento mais articulado em defesa de um sistema próprio, associações científicas que compõem o Fórum de Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (FCHSSALLA), que existe desde 2013, elaboraram um documento contendo diretrizes para a ética na pesquisa e a integridade científica, ampliando o debate sobre ética, ao incluir a integridade acadêmica. Esse documento, fruto de esforço contínuo coletivo que busca orientar sobre cuidados e procedimentos éticos em pesquisas com seres humanos, foi submetido à análise por meio de consulta pública e desempenha o importante papel de ampliar o debate da incipiente Resolução nº 510/2016, que tem como principais problemas não ter interferido no processo de tramitação dos projetos de pesquisa e ser considerada como complementar à Resolução CNS n°466/2012. Para Nicacio (2023, p. 9), a nominação de “resolução complementar” reafirma “[...] uma hierarquia entre as Resoluções e, portanto, a preservação da subordinação das CHS à área da Saúde”.
Compreendemos que a ausência de uma Resolução própria das CHS que apresente orientações gerais sobre aspectos relacionados à ética da pesquisa em sua prática acarreta um impasse em duas importantes frentes, pois: 1) desassiste pesquisadores(as) em processo de solicitação de liberação de pesquisa, uma vez que os trâmites requeridos pelo Sistema CEP/Conep não conversam com as reais necessidades e características das pesquisas em CHS; e 2) não oferece o suporte necessário para orientar pesquisadores(as) em processo de formação na realização de pesquisas em CHS pautadas em critérios éticos pré-estabelecidos (Nunes, 2017), fragilidades que o documento do FCHSSALLA enfrenta. Podemos flexionar/relativizar tais observações se considerarmos as instituições que já dispõem de CEP em CHS. Estas possivelmente caminham na direção de ter orientações mais alinhadas àquelas que não têm, para as quais, certamente, as dificuldades são maiores. Importante ressaltarmos que, no âmbito da Conep, se tem realizado encontros formativos para discutir os avanços e os desafios da ética na pesquisa em CHS, o que indica um esforço em avançar, porém não sem conflitos, enfrentamentos e rupturas. Para Mainardes (2017, p. 166), a elaboração desse documento regulador, embora seja um movimento complexo e desafiador, “[...] constitui-se em um espaço importante para que as associações possam avançar em termos da definição de princípios gerais e de enfretamento dos dilemas éticos da área”.
Enquanto transcorre o debate sobre as especificidades das pesquisas nas áreas relacionadas às CHS e a necessidade de um modelo coerente com elas, seguem também as discussões e regulações no âmbito do Sistema CEP/Conep. Em 2022, em consideração ao disposto no item XIII.6 da Resolução CNS n° 466/2012 (BRASIL, 2013), e no art. 21 da Resolução CNS nº 510/2016 (BRASIL, 2016), foi exarada a Resolução nº 674/2022 (BRASIL, 2022), a qual trata da tipificação da pesquisa (Figura 1) e da tramitação dos protocolos de pesquisa no Sistema CEP/Conep.
É nessa Resolução que consta, além do Comitê de Ética em Pesquisa Acreditado (art. 2º, inciso IV), o Comitê de Ética em Pesquisa Credenciado (art. 2º, inciso V), que pode atuar como CEP de instituição proponente, participante ou coparticipante. Ali também comparece a questão: dos fatores de modulação (art. 2º, inciso XI), que, em última instância, prescrevem o tipo de tramitação do protocolo no Sistema CEP/Conep; das tipologias de parecer - consubstanciado (art. 2º, inciso XXII), decorrente da tramitação simplificada, colegiada ou colegiada especial, ou sumário (art. 2º, inciso XXIII), em decurso da tramitação expressa.
Ainda que tais especificações busquem uma aproximação às demandas das pesquisas das CHS, a burocracia implicada nas exigências procedimentais não permite a discussão e a reflexão sobre os “problemas éticos” de fato e sobre a relevância social da investigação empreendida. Do mesmo modo, desconsidera o caráter alteritário presente nas pesquisas em educação. Carvalho e Machado (2014, p. 216), anos antes, já haviam afirmado que:
Os procedimentos para submissão (sobretudo a adequação de projetos fundamentados em metodologias qualitativas aos rígidos formulários da Plataforma Brasil) e a forma como são conduzidos os debates sobre os projetos de pesquisa que são submetidos aos CEPs incentiva pouco a discussão, nos termos que as instâncias acadêmicas estão acostumadas a realizar no campo das Ciências Humanas.
Indo além, Sarti (2015, p. 88) problematiza que a regulamentação da ética em pesquisa nos coloca “[...] diante de uma primeira dificuldade estrutural que diz respeito ao paradoxo de normatizar algo que, em si, não cabe inteiramente dentro do que pode ser regulamentado”. A normatização e a padronização advindas da área da Saúde chocam com a dinâmica ética de um conhecimento que é produzido na interlocução com os territórios e sujeitos nas pesquisas em CHS, pois descaracterizam a ética própria do fazer científico nessa área, o que justifica, a priori, todo o esforço empreendido em defesa de um modelo próprio.
Os desafios éticos da pesquisa na interlocução entre os Comitês das universidades e das redes de ensino
Diante do quadro geral exposto e discutido anteriormente e das problematizações que vem sendo levantadas, muitas questões nos afetam. Algumas independentemente da necessidade de submetermos nossas pesquisas ao Sistema CEP/Conep e outras justamente para responder a essa necessidade. Nessa discussão, interessa refletirmos e buscarmos respostas sobre: Como fortalecer a ética nas pesquisas das CHS? Como sustentar a ética dos(as) pesquisadores(as)? Como evitar que o controle social e a regulamentação sobre as pesquisas incorram em sobreposições e burocracias desnecessárias que fazem as aprovações nos Comitês se alongarem de modo a inviabilizar algumas investigações? Que estratégias seriam mais viáveis e passíveis de garantir a condução ética de todo o processo investigativo, seja durante a presença no campo empírico, seja no processo relacional com os(as) participantes da pesquisa? Como assegurar que pesquisadores(as) irão tratar e respeitar os(as) participantes, sujeitos da investigação, como interlocutores(as) ao longo de todo o processo de pesquisa e também após a finalização? É necessário ao campo da Educação a condição de um projeto ser submetido a dois Comitês de Ética (da instituição de origem do pesquisador e da instituição campo da pesquisa) para apreciação? A exigência de verificação e apreciação por dois Comitês assegura todos os aspectos éticos implicados na realização das pesquisas com pessoas (adultos, jovens, crianças)? Qual o impacto quanto ao volume de trabalho e ao tempo gasto para os dois Comitês avaliarem um mesmo projeto? Estaria havendo uma disputa de poder entre as instituições/instâncias? Se sim, qual o sentido dessa correlação de forças e a qual custo? As duas instâncias trabalham com os mesmos critérios de avaliação dos aspectos éticos implicados?
As propostas de investigação que originaram o debate em questão se enquadram na tipificação A (Figura 1), por se constituírem em estudos voltados a descrever e compreender fenômenos que aconteceram ou acontecem no cotidiano dos/as participantes, sem envolver intervenção corporal. Mais especificamente, uma das pesquisas corresponde ao subtipo A3, uma vez que previa a resposta a um questionário pelos/as participantes, considerado o anonimato de todos/as. A intenção de pesquisa em questão, submetida inicialmente junto à Secretaria Municipal de Educação (SME) de Curitiba, em 10 de setembro de 2020, teve a Declaração de Ciência e Interesse de Campo de Pesquisa disponibilizada em 21 de dezembro de 2020 para protocolo e pedido de autorização no Comitê de Ética da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Curitiba.
Somente a partir da disponibilização desse documento é que a solicitação via Plataforma Brasil pôde ser iniciada, sendo a data de submissão 16 de fevereiro de 2021. Após pouco mais de dois meses, na data de 5 de maio de 2021, o projeto foi apreciado e aprovado junto ao CEP, da instituição proponente, do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (SCS/UFPR), e, na mesma data, ficou disponível para a apreciação do CEP da SMS de Curitiba. Nessa etapa, foi novamente requerido o envio de documentos já disponibilizados e outros novos, delongando a aprovação da pesquisa pelo segundo Comitê, efetivada de fato em 20 de agosto de 2021. Dessa forma, o hiato entre a aprovação da pesquisa pelo primeiro Comitê via Plataforma Brasil (SCS/UFPR) e a aprovação no segundo Comitê (SMS/Curitiba) durou cerca de 105 dias.
Na sequência, mais uma etapa específica da instituição coparticipante, na qual o parecer consubstanciado do CEP é encaminhado para a SMS de Curitiba para sua validação e emissão do Termo de Consentimento para realização de pesquisa. O Termo em questão foi disponibilizado em 4 de outubro de 2021. O trâmite de solicitação junto à SME, ao CEP (dois comitês diferentes, conforme já sinalizado) até a liberação para a realização do estudo pela SME exigiu mais de um ano de trâmite para sua efetivação. Considerando somente o período de abertura na Plataforma Brasil (21 de dezembro de 2020) e aprovação pelo CEP da instituição coparticipante (20 de agosto 2021) pela solicitação de abertura de dois protocolos (um para cada Comitê, sendo o segundo só devidamente respondido após a aprovação do primeiro), o que gera bastante tempo de espera para o(a) pesquisador(a) implicado(a) e, de outra monta, se esperaria que os dados poderiam ser facilmente cruzados, otimizando tempo e evitando trabalho duplicado.
Para a pesquisa aqui considerada, a hipertrofia de processos e de exigências trouxe prejuízos para a obtenção dos dados necessários para a continuidade da pesquisa, sobretudo se considerada a temporalidade de uma pesquisa de Mestrado e as inúmeras questões implicadas para as investigações de campo em Educação, que também tem sua temporalidade marcada pelo calendário letivo, ainda mais em tempos de alterações devido ao contexto pandêmico vivido no mundo e no Brasil, em especial. Diante de todos esses atravessamentos, o tempo hábil para a efetivação da pesquisa nos parâmetros desejados não foi possível e exigiu pela decisão de mudança no estudo empírico.
A outra investigação agregava dois subtipos: A1, por prever a consulta a acervo de dados pré-existentes, em meio físico ou eletrônico, não publicizados (mas que poderiam estar ao acesso público se cumprido princípio da transparência), e A3, pela intenção de se realizar entrevistas (podendo ser presencial ou não-presencial/virtual/eletrônica/telefônica). As exigências envolvidas em tais pesquisas deveriam considerar a tramitação simplificada, pelo tipo A3; se a tipificação fosse A1, a tramitação poderia ser expressa. Contudo, entende-se que sempre há graus de complexidade que levam à apreciação colegiada das pesquisas. Com o fato de tais pesquisas implicarem outra instância pública - a SME e os(as) profissionais da Rede Municipal de Ensino - a tramitação implicava a submissão a dois CEPs, o primeiro vinculado à instituição de origem das pesquisadoras e o segundo da instituição/instância consultada, detentora das informações e dos(as) informantes. Nesse sentido, os prazos são, praticamente, multiplicados por dois, o que inviabilizou o desenvolvimento da pesquisa no contexto pretendido, dado o tempo de finalização do estudo estabelecido pelas agências de fomento a ser cumprido junto ao Programa de Pós-Graduação, e, muitas vezes demandam dos(as) pesquisadores(as) o preenchimento de protocolos e documentos diferentes, com base no mesmo conteúdo já informado. Tais exigências e protocolos parecem reverberar a crítica de Schmidt e Toniette (2008, p. 105) quanto a ética ser “[...] forjada na heteronomia, de forma alienante [...]” e, justamente por isso, não assegurar uma “[...] postura ética ao longo da pesquisa, mesmo após ter sido obtida a chancela ‘ética’”.
Outro aspecto que merece destaque no que diz respeito à sobreposição do processo de regulação da pesquisa é a retirada da autonomia das instituições e profissionais para a aceitação e a participação nas pesquisas. Nesse sentido, consideram-se pertinentes o registro e o acompanhamento do órgão central dos estudos desenvolvidos no âmbito das redes de ensino, mas a quem cabe a decisão quanto à participação ou não em uma pesquisa, quando o aceite da instituição e sujeitos é submetido à análise da gestão central e somado a um conjunto de exigências duplicadas, quando analisadas no cotejamento com os Comitês de Ética da instituição proponente? Não seria mais um processo de subordinação das instituições e dos(as) profissionais aos órgãos de gestão central?
Como discutem De La Fare, Machado e Carvalho (2014) e De La Fare, Carvalho e Pereira (2017), pensar a relação entre a Educação e a regulação da ética em pesquisa requer considerar a complexidade, a transversalidade e a transdisciplinaridade implícitas aos projetos investigativos do campo. Para além, “[...] obediência às normas através do preenchimento de formulários, está se falando mais de espaços de controle legal que de movimentos reflexivos que permitam problematizar as relações entre ética e ciência” (De La Fare; Carvalho; Pereira, 2017, p. 200). Ampliar a abrangência e o escopo de ação de um sistema para além da apreciação stricto sensu - de regulação e controle - reconfigurando-o em espaço de debate com incidência pedagógica (De La Fare; Machado; Carvalho, 2014; Mainardes, 2017).
Tal movimento exige, de acordo com Sarti (2015), uma firme resistência institucional movida por uma paciente resistência intelectual e a recusa reflexiva - sem negar a importância da regulação da ética na pesquisa, mas se contrapondo à submissão em vigor em um campo de poder efetivo, ainda não inteiramente consolidado. Nessa direção, Mainardes (2017) inclui as associações científicas da Educação (no caso, a ANPEd) na ampliação das discussões, com vistas a constituir, seja um documento orientador ou um código de ética como possível resolução do conflito entre a norma vigente e o compromisso da área com as questões éticas em pesquisa.
Ainda que na fase da apreciação junto à Plataforma Brasil o projeto seja aprovado por se considerarem adequados os procedimentos metodológicos explicitados, não se está livre de a ação individual do/a pesquisador/a vir a violar direitos de participantes e fraudar, no contexto de sua investigação, princípios éticos essenciais (Severino, 2014).
A hipertrofia de exigências no processo de solicitação de aprovação do CEP via Plataforma Brasil e as burocracias (formulários extensos e generalizados), que nem sempre condizem com as especificidades das pesquisas em CHS, revelam a importância de uma readequação do procedimento adotado, sob a óptica da Educação, que conceba a ética para além de um conjunto de normas e preenchimento de formulários. É importante defendermos a ética em pesquisa como uma questão essencial na formação de pesquisadores(as), na perspectiva de explicitar princípios e procedimentos e, dessa forma, contribuir para o exercício de uma ética em pesquisa reflexiva (Brooks; Te Riele; Maguire, 2017) que respeite e garanta o pleno exercício dos direitos dos participantes.
Considerações finais
O processo de regulação é uma dimensão importante da ética na pesquisa; contudo, como buscamos apresentar ao longo deste artigo, não deve ser compreendido de modo dissociado das suas bases epistemológicas. Nesse sentido, discutirmos a regulação implica inquirir os significados em torno do que se compreende como ciência e os princípios que orientam o seu fazer.
Debates e definições que circunscrevem a especificidade da ética nas CHS têm ganhado corpo e visibilidade nos últimos anos, mas ainda há um caminho a percorrer, especialmente no que diz respeito a reflexões epistemológicas sobre ética, normatizações que dialoguem com essas reflexões, processo de formação de pesquisadores(as) e diálogo entre instituições e atores envolvidos nos processos de pesquisa. A fragilidade desses aspectos reflete, em alguma medida, em problemas de regulação da pesquisa, dentre os quais se coloca a sobreposição de atuação de Comitês de Ética.
Nos casos aqui analisados, destacamos que a exigência duplicada de submissão de projetos de pesquisa - à instituição proponente, CEP da universidade, e à instituição coparticipante, Comitê da SME - tem inviabilizado o desenvolvimento de estudos, que partem não apenas do interesse de pesquisadores(as) e universidade, mas também dos contextos educacionais, o que pode ser identificado pelo aceite expresso de instituições e profissionais.
Essa realidade nos convoca a pensar: Qual ética para as Ciências Humanas e Sociais? E ainda mais especificamente: Qual ética para as pesquisas em Educação? Em coro com Denzin e Giardina (2016), entendemos que as dinâmicas, os sujeitos e os contextos de pesquisa exigem de nós uma ética outra. Dizem os autores11: “Em resposta aos desafios que temos pela frente, é necessária uma metodologia do coração, uma ética performativa, indígena, feminista, comunitária que abrace uma ética da verdade fundamentada no amor, no cuidado, na esperança e no perdão” (Denzin; Giardina, 2016, p. 12, tradução nossa)12.
Os autores destacam que os estudos indígenas estão liderando o caminho nessa direção, na perspectiva do que denominam de “ética comunitária”, que deve se basear no diálogo irrestrito entre os sujeitos e as instituições, assentado especialmente na escuta daqueles(as) que se dispõem a contribuir com nossos estudos. Tal perspectiva nos lança novos desafios, o primeiro deles é o descentramento de uma lógica ocidentalizada, centrada em uma ciência objetiva e em estudos randomizados. No Brasil, a diversidade e as desigualdades que marcam os diferentes territórios nos convocam, desde sempre, a operar a partir de outras lógicas, considerando outras epistemologias, teorias, métodos, procedimentos e escolhas éticas. Há um longo caminho pela frente, vamos com atraso, mas comprometidos(as) com a sua construção.