Introdução
O estudo aqui apresentado busca discutir pressupostos teórico-práticos que possam embasar a formação continuada de professores da Educação Infantil em uma perspectiva da práxis. Para tanto, retoma algumas conceituações referentes à relação teoria e prática que vêm fundamentando os processos de formação de professores, na busca por justificar a compreensão da práxis enquanto unidade dialética da teoria-prática, com vistas à reflexão e transformação da realidade, neste caso, na ação docente com crianças.
A investigação emerge da necessidade de caracterizar os pressupostos teórico-práticos que podem ser considerados para desenvolver um processo de formação continuada de professores de Educação Infantil que considere a práxis como uma possibilidade de desenvolvimento da autonomia, da autoria e da apropriação de conhecimentos validados a partir do trabalho educativo desenvolvido coletivamente.
Neste estudo, propõe-se uma discussão disposta em três eixos que se articulam na busca por elaborar uma compreensão sobre as possibilidades de organização de processos formativos significativos. No primeiro, discute-se a relação teoria e prática e os modos como a articulação ou não desse binômio se materializa na formação de professores. No segundo, apresenta-se a práxis como fundamento para a formação docente, em uma tentativa de superar a visão tecnocrática e espontaneísta que tem sustentado as políticas de formação docente no Brasil desde a década de 1990. Aqui, apresenta-se a retomada de uma perspectiva formativa da década de 1980, que toma o eixo epistemológico da teoria como expressão da prática e da sistematização coletiva do conhecimento como uma possibilidade para a transformação das práticas pedagógicas. No terceiro, discutem-se os desafios presentes nos processos de formação continuada de professores da Educação Infantil e como as compreensões a respeito da relação entre teoria e prática incidem nos modos como se constituem as propostas formativas. Nesse sentido, busca-se argumentar sobre as possibilidades de uma formação continuada pautada na práxis a partir das especificidades da docência com crianças pequenas1.
A relação entre teoria e prática há muito tem sido foco de discussão quando se trata de entender esses dois âmbitos vinculados à educação. No entanto, percebe-se que a compreensão a respeito da necessária articulação entre ambos os conceitos ainda não vem sendo considerada nas práticas formativas, de modo geral. Ora salienta-se a necessidade de uma rigorosa apropriação teórica que fundamente e oriente as práticas de ensino - nessas perspectivas, indica-se que sem teoria as práticas se esvaziam e, nos processos formativos, se privilegia o enfoque nos fundamentos teóricos da educação; ora ressaltam-se as práticas como sendo o ponto de partida e de chegada, a partir da qual a teoria se torna um pano de fundo no processo formativo. Destaca-se que a docência requer um profissional prático, que domine as técnicas como meios de obter a eficácia no ensino e na aprendizagem (Candau; Lelis, 1994). Via de regra, esse entendimento desmerece os conhecimentos teóricos, vendo-os como pouco úteis para a resolução dos problemas cotidianos da prática. Nesse caso, os processos formativos acabam por firmarem-se no praticismo espontaneísta.
Estudos referentes à relação entre teoria e prática e seus desdobramentos nos processos de formação de professores têm ressaltado um movimento de compreensão da articulação entre ambas no sentido de contribuir para a transformação dos processos educativos no Brasil (Borges; Richter, 2021; Candau; Lelis, 1994; Farias; Costa, 2022; Gatti, 2020; Silva, 2018). Os estudos destacam os grandes desafios da atualidade sobre a formação docente, tais como o aligeiramento da formação, a precarização do trabalho, a desarticulação entre formação e realidade das escolas, o processo contínuo de privatização da formação para grandes grupos empresariais e fundações, assim como a crescente desvalorização da profissão docente e, nela, de forma específica, o desprezo pelo trabalho dos professores de crianças pequenas.
Os documentos orientadores para a formação docente (Brasil, 2002, 2006, 2015, 2019) vão indicando, ao longo do tempo, as disputas frente a projetos políticos que se expressam em propostas de formação, em grande medida, instrumentais, com enfoque no desenvolvimento de habilidades e competências (Farias; Costa, 2022; Gatti, 2020; Rodrigues; Kuenzer, 2007), sobretudo na formação de professores para atuar na Educação Infantil. Essa perspectiva pode ser identificada implicitamente nos pareceres e nas resoluções do Ministério da Educação (MEC), mas concretizadas nas diferentes propostas formativas de viés empresarial implementado nas políticas públicas de educação no Brasil, desde o final da década de 1990. Seja na formação inicial, seja na formação continuada de professores para atuar na Educação Infantil, percebe-se tanto uma tendência pragmática e espontaneísta, por um lado, quanto uma tendência teoricista e idealista da formação, por outro. Nessas propostas, desconsidera-se a capacidade docente para atuar de forma autoral, crítica e autônoma, fundamentada em uma sólida formação teórico-prática e socialmente referenciada.
Parece não ser uma coincidência que, a partir de 2016, quando se têm mudanças nos rumos da política nacional de forte caráter neoliberal, percebe-se a retomada de uma visão crítica dos processos formativos docentes. O fortalecimento de uma política pública de educação voltada para a eficiência e a produtividade bem como as perspectivas de formação de professores em uma vertente neotecnicista liberal encontram um movimento contra-hegemônico que vem se fortalecendo. A literatura sobre a relação entre teoria e prática, principalmente após 2016, retoma a dimensão da práxis como um mecanismo de superação das compreensões dicotômicas na formação docente de modo a provocar uma transformação da realidade educacional brasileira (Borges; Richter, 2021; Farias; Costa, 2022; Gatti, 2020; Oliveira; Queiroz, 2022; Saviani, 2017; Silva, 2018). Essa tendência se assemelha aos movimentos críticos que emergiram no final da década de 1970 e 1980 e que contribuíram de forma significativa para o processo de abertura política após o golpe de 1964 e de organização da educação no Brasil na virada para o século XXI.
Nesse sentido, pode-se entender que, na contramão das investidas do mercado e do sistema capitalista na educação e de todos os esforços das políticas públicas de educação em conformar os processos formativos, é possível vislumbrar caminhos contra-hegemônicos na direção de uma formação como processo de humanização dos professores (Oliveira; Queiroz, 2022). Esse movimento emerge da compreensão de que, pelo trabalho, o professor constitui a si mesmo enquanto um profissional, sendo capaz de se apropriar dessa condição, mediante um processo formativo que admite a unidade dialética teoria-prática na perspectiva da práxis. A formação de professores requer uma abordagem teórica e uma prática com a qual o docente se identifique e na qual veja a si mesmo (Freire, 1988; Gatti, 2020; Silva, 2018).
Na discussão referente à formação continuada de professores da Educação Infantil, pretende-se destacar as especificidades da Educação Infantil e os aspectos docentes a serem desenvolvidos nos processos de formação. Portanto, este estudo busca, também, sustentar uma discussão que possa atualizar e ampliar a temática já abordada em trabalhos anteriores (Peroza; Martins, 2016; Peroza, 2018, 2020) a respeito dos desafios na formação docente para atuar na primeira etapa da Educação Básica.
Para vislumbrar a possibilidade de um processo de formação de professores da Educação Infantil, fundamentado na práxis, procurou-se retomar uma perspectiva de formação colaborativa, crítica e de sistematização coletiva de conhecimentos que remonta a autores que vêm criticando a ênfase na teoria como guia da prática, a partir de um movimento que se fortaleceu no final dos anos de 1980 com a perspectiva da “teoria como expressão da prática” (Martins, 2006, 2009; Santos, 1992). Com o intuito de avançar nessa abordagem, tendo como enfoque as exigências frente aos desafios contemporâneos postos à formação docente, buscou-se uma articulação na epistemologia da práxis como uma possibilidade de avivar as contribuições desse movimento do final do século XX (Freire, 1988; Gramsci, 1978; Schmied-Kowarzik, 1988; Vázquez, 2007).
O artigo está organizado em três seções. Na primeira, aborda-se a relação entre teoria e prática em uma breve perspectiva histórica, apresentando as formas como esse binômio vem sendo compreendido e como a formação continuada de professores vem respondendo a essas concepções. Na segunda seção, apresenta-se a discussão que parte da epistemologia da práxis (Vázquez, 2007) e da práxis como processo contínuo de ação-reflexão-ação (Freire, 1988). A partir dessa conceituação, busca-se a articulação com a proposta formativa da sistematização coletiva do conhecimento (Martins, 2006, 2009), como referência para a formação de professores. Por fim, na terceira seção, apresentam-se os pressupostos teórico-práticos que possam embasar a formação continuada de professores da Educação Infantil na perspectiva da práxis a partir das especificidades inerentes a essa etapa da Educação Básica.
A relação entre teoria e prática e a formação de professores
A relação dual e, na maioria das vezes, oposta entre teoria e prática remonta aos clássicos e, na sociedade ocidental, vem assumindo um entendimento dicotômico. Na longa trajetória de constituição do conhecimento, nas diferentes correntes filosóficas, a relação entre teoria e prática e as explicações referentes aos elementos que as compõem ora indicam suas assimetrias, nas quais uma se sobrepõe à outra, ora as colocam em movimento de aproximação e interdependência (Candau; Lelis, 1994; Pereira, 1990; Schmied-Kowarzik, 1988).
A etimologia dessas palavras (Mora, 2004) indica que teoria, do grego, refere-se ao verbo “olhar”, “observar”. O teórico é o observador, aquele que não intervém. Já a prática, também de raiz grega, diz respeito à ação de levar algo a cabo, realizar uma tarefa. O prático é aquele que se ocupa do fazer, que realiza uma tarefa. De acordo com Pereira (1990), a compreensão dos conceitos a partir da etimologia das palavras pode comprometer o sentido dado à relação entre teoria e prática. Isso tem levado a entender a teoria tão somente como abstração, contemplação, enquanto a prática segue sendo entendida como mera ação, o fazer. Para o autor, a abstração se constitui como o movimento abstrato do pensamento e isso não é teoria. A teoria se refere a uma dimensão antropológica: porque vive, sente, cria e age, o ser humano teoriza. Portanto, há uma inter-relação que abre possibilidades de teorização em toda prática humana. Isso implica compreender que a teoria, fora da prática que a fundamenta, é apenas abstração, e a prática, sem a teoria que a sustenta, é puro ativismo, é praticismo.
Como observa Pereira (1990, p. 14), “[...] do ponto de vista antropológico a chave para a compreensão do homem e da sua relação com o mundo não está só no pensamento, mas também no sentido e na ação. É nesse conjunto todo que gera o sentido de todo ato humano. É preciso saber que a contemplação também é ato”. Portanto, não pode haver teoria separada da ação e da abstração, assim como não pode ser concebida a prática sem a teoria que a sustenta. Nessa relação recíproca, subjaz a unidade teoria-prática.
Para compreender a relação entre teoria e prática, faz-se necessário considerar o movimento entre ambas e as contradições que perpassam sua dinâmica no sentido de gerar a unidade dialética teoria-prática. Conforme Pereira (1990, p. 23), “[...] a solução deste conflito, real versus ideal, e concreto versus abstrato, mostra-se justamente no encontro discursivo entre pensamento e realidade, entre o real e o racional, entre a teoria e a prática, numa unidade não fechada, mas aberta e dinâmica”.
Candau e Lelis (1994) apontam a existência, de modo geral, de dois esquemas de compreensão da relação entre a teoria e a prática: um fundamentado na visão dicotômica desses dois polos e outro firmado na visão de unidade entre ambos. Em uma visão dicotômica, propõe-se que teoria e prática são realidades distintas e, portanto, possuem dinâmicas autônomas. Esse entendimento pode levar a uma perspectiva dissociativa (oposição ou separação completa entre ambas as perspectivas) ou associativa (uma se sobrepõe à outra).
Em uma visão dissociativa desse esquema, teoria e prática estão completamente isoladas e como realidades que se opõem, gerando a compreensão firmada em uma completa separação entre quem pensa - os teóricos, cujo trabalho intelectual é mais valorizado -, e os que executam - os práticos, cujo trabalho concreto tem valor relativo e menorizado. Para Candau e Lelis (1994, p. 33):
Dentro deste esquema, corresponde aos “teóricos” pensar, elaborar, refletir, planejar e, aos “práticos”, executar, agir, fazer. Cada um desses polos - teoria e prática - tem sua lógica própria. A teoria “atrapalha” os práticos, que são homens do fazer e a prática “dificulta” os teóricos, que são homens do pensar. Estes dois mundos devem manter-se separados se se quer guardar a especificidade de cada um.
O esquema dicotômico pressupõe, também, uma perspectiva associativa entre teoria e prática. Nela, entende-se que, apesar das aproximações entre esses dois polos da relação, há uma assimetria entre ambos, sugerindo sempre que a teoria se sobrepõe à prática, e esta última implementa o que é indicado pela teoria, assumida enquanto conhecimento válido. Essa abordagem tem fundamentado as apropriações positivo-tecnicistas, em que a ciência oferece as regras e normas que regem a realidade e a ação dos indivíduos, os quais devem se adequar à racionalidade positivista e suas previsibilidades. Assim, segundo Candau e Lelis (1994, p. 54):
A prática está comandada de fora pela teoria. A ênfase é posta no planejamento, na racionalidade científica, na neutralidade da ciência, na eficiência, no erigir a teoria como forma privilegiada de “guiar”, de “orientar”, a ação. Na passagem da teoria à prática, da ciência à ação, a tecnologia ocupa um lugar de destaque como elemento mediador.
Já a visão de unidade, para Candau e Lelis (1994), reconhece a relação teoria-prática como dimensões interdependentes, que compõem uma unidade indissolúvel e dinâmica entre autonomia e dependência de uma com a outra. As autoras chamam atenção para as contradições e as reciprocidades que as engendram, reafirmando que o movimento de negação e de aproximação se dá em um movimento que revela o caráter histórico e social no qual essa relação se estabelece, constituindo-se práxis, conforme se aprofundará adiante.
Historicamente, e com forte incidência na formação de professores, a visão dicotômica ou de total autonomia da teoria em relação à prática tem servido aos princípios do capitalismo, do tecnicismo e a tantos pressupostos que veem na educação uma via para o controle social, e não para a libertação humana. Os resultados dessas formas de conceber teoria e prática são conhecidos e constituem processos muito difíceis de serem superados, uma vez que, para além das bases instituídas na formação docente, esse racionalismo prático se encontra no cerne da organização das propostas educativas desde a Educação Básica.
De fato, ao longo do tempo, essa dicotomia vem se revelando em perspectivas educativas que estimulam uma separação entre quem pensa e quem realiza a ação (Martins, 2006). Nesse sentido, tanto quem “teoriza” quanto quem “executa” se encontra afastado do complexo fenômeno que é o processo educativo. Se em vários campos do conhecimento essa compreensão tem implicações, no âmbito da educação, ela se torna nefasta e vem incidindo paulatinamente desde a proposição dos instrumentos legais e das políticas públicas de educação até o desenvolvimento do trabalho docente.
Pode-se compreender essa relação como um projeto mais amplo, o qual almeja que os professores sejam destituídos de sua principal função, que é oferecer às novas gerações as possibilidades de agirem com autonomia e pensarem de forma crítica para transformar a realidade. Conceber a teoria e a prática de forma dissociada tem levado a um racionalismo prático, no qual os professores não encontram articulação da teoria frente aos problemas observados no seu trabalho educativo.
Essa compreensão da relação entre teoria e prática implica, necessariamente, processos de formação docente que, alijados de uma sólida base teórica e crítica, se evidenciam a partir de uma compreensão frágil sobre a prática docente. O resultado tem sido a formação de profissionais inseguros a respeito do trabalho educativo que precisam realizar; que se sujeitam a condições cada vez mais precarizadas de trabalho; desvalorizados pelos resultados pouco evidentes de sua prática; e convictos de que a teoria está muito distante de sua ação e pouco contribui para o enfrentamento dos desafios do cotidiano. Portanto, de acordo com Borges e Richter (2021, p. 5):
Poder-se-ia inferir que a formação na racionalidade prática (neotécnica) prende o professor em seus próprios conceitos cotidianos por serem marcados por um processo de formação prático-utilitária, visto que o foco de questionamento é a própria experiência e a vida dos professores, a qual deve ser refletida por ele, a fim de promover sua autoformação e encontrar soluções aos problemas vividos no cotidiano. Desconsidera-se que a atuação docente demanda a formação de conceitos científicos, os quais não se constroem na imediaticidade do mundo prático-utilitário.
Esse entendimento se constitui, por um lado, a partir da divisão social do trabalho em uma sociedade de classes e da separação entre o trabalho intelectual e o trabalho “prático” e, por outro, no surgimento de propostas que prometem respostas fáceis para problemas complexos. O pensamento hegemônico, o qual se fundamenta em uma visão mercadológica da educação, insiste em enfatizar os problemas da qualidade da educação tendo como referência tanto o despreparo dos professores para atuar no ensino da Educação Básica quanto a pouca qualidade da formação inicial. Essa descaracterização dos processos formativos abre espaço para interposição de propostas fundamentadas em um praticismo utilitário na formação docente (Borges; Richter, 2021; Farias; Costa, 2022; Oliveira; Queiroz, 2022).
Não obstante, a formação de professores para atuar na Educação Infantil ainda é tratada com pouca seriedade pelas políticas públicas de educação. Em um trabalho anterior (Peroza; Martins, 2016), foi analisada a implementação da política de formação inicial de professores para atuar na Educação Infantil, quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) -Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996) -, completava 20 anos. Constatou-se que o cumprimento dessa lei no que se refere à obrigatoriedade de uma formação básica no nível da graduação ainda estava longe de ser alcançado pela maioria dos municípios brasileiros. Depois desse período, assistiu-se a uma sequência de retrocessos no âmbito das políticas de formação docente, tornando essa discussão ainda mais necessária, uma vez que se abrem possibilidades de contratação de pessoal sem, no mínimo, a formação de docentes em nível médio para atuar como auxiliares em turmas do segmento creche.
A discussão sobre a formação de professores para atuar na Educação Infantil está intimamente relacionada ao debate sobre a relação teoria-prática. Entende-se que quanto mais distante a dimensão teórica estiver das práticas vivenciadas por docentes no trabalho cotidiano com as crianças, mais abissal o fosso que separa o professor de uma prática comprometida, consciente e de qualidade na educação das crianças. É preciso compreender que há um projeto de desvinculação entre teoria e prática que serve ao poder hegemônico, aos interesses elitistas, que veem nos mecanismos de controle das ações docentes uma forma de descaracterizar o papel humanizador da educação. Controla-se o status quo controlando-se os processos educativos das massas, e as instituições públicas de Educação Infantil têm recebido cada vez mais crianças das classes trabalhadoras e da população historicamente negligenciada no acesso aos direitos básicos garantidos em lei, dentre eles a educação.
Reafirmar a necessidade de propostas formativas na perspectiva da práxis é favorecer a autonomia e a emancipação humana, o que, para o poder hegemônico, pode ser perigoso, uma vez que favorece a crítica e a mudança na organização social. Na formação de professores, esse pressuposto proporciona um movimento de apropriação de si e dos processos educativos de modo a romper com práticas homogeneizadoras.
Para discutir propostas formativas na perspectiva da práxis, no próximo tópico, propõe-se a aprofundar a compreensão sobre a relação teoria e prática na epistemologia da práxis (Vázquez, 2007) e no movimento dialético ação-reflexão-ação (Freire, 1988). A partir disso, estabelece um diálogo com um movimento crítico delineado no final do século XX firmado no eixo epistemológico a teoria como expressão da prática, que gerou alternativas para a formação de professores no contexto da década de 1980 e oferece pressupostos para pensar os processos formativos de professores da Educação Infantil na atualidade.
A formação de professores na perspectiva da práxis: a sistematização coletiva do conhecimento como uma alternativa formativa
As análises feitas sobre a relação entre teoria e prática apontam que, historicamente, ambos os conceitos são tratados, via de regra, mediante a prevalência de um sobre o outro ou de mútua exclusão. Como visto anteriormente, há a corrente de pensamento que compreende a teoria como guia das práticas, sugerindo que os professores, para desempenharem suas atividades, precisam, inicialmente, apropriar-se de conhecimentos teóricos que possibilitarão o desenvolvimento de seu trabalho educativo, transpondo esses conhecimentos para a sua prática cotidiana. Vázquez (2007), no processo de definir a práxis, afirma que a teoria, por si só, não transforma a realidade. Para o autor: “Quer se trate da formulação de fins ou da produção de conhecimentos, a consciência não ultrapassa seu próprio âmbito; isto é, sua atividade não se objetiva ou materializa. Por essa razão, tanto uma como outra são atividades; não são, de modo algum, atividade objetiva, real, isto é, práxis” (Vázquez, 2007, p. 225).
Entretanto, foi abordado que há correntes que pressupõem a ênfase na prática como um fim em si mesmo - fonte e finalidade da ação humana. Essa visão, imposta pela racionalidade prática, nos processos formativos dos docentes, assume um caráter meramente técnico, em que as propostas inovadoras, mediadas pela tecnologia são supostamente suficientes para o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem e bastam por si mesmas para a melhoria da ação educativa. No entanto, Vázquez (2007) afirma que a prática sem uma atividade cognoscitiva que a fundamente também não se constitui como práxis. O autor tece suas reflexões advertindo que essa compreensão se constitui em pragmatismo, cujo praticismo busca se justificar no fato de o conhecimento estar associado às necessidades práticas. Para ele, “[...] o pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o qual acaba por dissolver o teórico no útil” (Vázquez, 2007, p. 241).
Cumpre ressaltar que a unidade teoria-prática se constitui na ação humana que a efetiva. Em outras palavras, a unidade se evidencia na prática daquele(a) que age e, por estar no mundo, estabelece uma relação com a realidade, vivencia uma experiência, sendo capaz de significar e dar sentido a ela (Vázquez, 2007). O ponto de unidade entre a teoria e prática se dá, de modo efetivo, na ação transformadora da realidade, na práxis humana. Ora, essa ação sobre o mundo é prática, e o sentido e o entendimento sobre a realidade são teóricos. Assim, “[...] teoria-prática-práxis são conceitos diferentes de um mesmo processo” (Pereira, 1990, p. 68).
Freire (1988) apresenta, de forma aprofundada, uma compreensão sobre a práxis que se constitui no movimento dialético de ação-reflexão-ação, com a finalidade de tomada de consciência sobre o mundo para transformá-lo. Para ele, “[...] a práxis é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos” (Freire, 1988, p. 38). Ao incorporar à ação a reflexão, indica que o fazer humano se concretiza na transformação do mundo de forma consciente, decidida e comprometida. Assim:
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (Freire, 1988, p. 37).
Nesse sentido, toma-se a práxis como a prática objetivada (individual e socialmente) por meio da teoria. É, portanto, ação com sentido humano, ou seja, uma ação projetada, refletida, consciente, transformadora do meio natural, do próprio ser humano e do contexto social (Pereira, 1990, p. 77). Compreende-se que a teoria sem a prática resulta em um idealismo, uma mera abstração. A prática sem teoria é praticismo, visão pragmática utilitária da ação humana, que vem servindo ao pensamento neoliberal para limitar e condicionar o pensamento e as ações dos sujeitos.
A partir dessas provocações, é possível identificar que ambas as vertentes nos levam ao equívoco de compreender de forma distorcida ou dissociada a relação entre a teoria e a prática, quando o que se almeja é uma superação dos modos hegemônicos como a educação e a formação docente têm sido pensadas. Indica, também, que a teoria que não tem por finalidade uma ação de transformação da realidade se constitui como mera atividade da consciência. Por isso, não se pode compreender a teoria como guia da ação, por ela se propor à manutenção da realidade tal qual ela é. A prática, por sua vez, enquanto ação sobre o mundo, sem uma consciência voltada para a sua transformação, é neopragmatismo (Saviani, 2017), traduzido em praticismo utilitário que visa à alienação do sujeito, restringindo sua capacidade de agir conscientemente na perspectiva da humanização de si, da realidade e dos outros.
Para definir a práxis, há de pressupor-se uma relação de interdependência entre teoria e prática que permita a ação e a reflexão humana sobre o mundo, com a intenção de transformá-lo de modo que tanto a realidade quanto a consciência sobre ela se alterem. Para Freire (1988, p. 70):
A reflexão que se propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem homens, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.
Na práxis, compreende-se a prática como fundamento e pressuposto da teoria por determinar tanto a necessidade de transformação de dada realidade prática quanto “[...] o horizonte de desenvolvimento e progresso do conhecimento” (Vázquez, 2007, p. 243). Superando qualquer compreensão que trate a práxis como sinônimo de prática, pode-se compreendê-la como “[...] um conceito dialético que sintetiza, na forma de superação, os dois elementos contrários representados pela teoria e pela prática. Nesse sentido a práxis pode ser definida como atividade humana prática fundamentada teoricamente” (Saviani, 2017, p. 10).
Nessa perspectiva dialética, que fundamenta a relação teoria-prática, a educação é entendida como um processo de hominização; desse modo, “[...] educação não é apenas conscientização. É consciência das determinações - inserção num processo histórico - e ação histórica, isto é, capacidade de se impor, de se autodeterminar” (Gadotti, 1995, p. 24). O trabalho do professor, então, só pode ser considerado dentro de uma compreensão de seu caráter humanizador, histórico e de profunda relação com a transformação social.
Assim sendo, ao tomar-se a formação docente e as práticas que os professores realizam, na perspectiva da práxis, é possível refutar veementemente qualquer proposta que se fundamente em praticismo, que proponha uma prática sem uma compreensão teórica e uma necessária revisão do conhecimento produzido para superar os desafios que a realidade apresenta.
Considera-se que, ao romper com uma visão dicotômica da relação entre teoria e prática, se assume um posicionamento de tomá-la de forma indissociável, como princípio de toda ação docente. Dessa forma, cumpre entender que não se pode conceber qualquer teoria como fundamento da ação, mas a teoria que emerge de um pensar sobre a prática com vistas a humanizar as relações e a própria realidade. Pressupõe entender, também, a prática como uma ação consciente, reflexiva, crítica e comprometida com a transformação da realidade, que se justifica quando se toma o processo educativo como uma jornada de humanização - de si, dos outros e da sociedade, uma vez que “[...] o trabalho do professor não se materializa em um objeto físico, mas, sim, na humanização” (Borges; Richter, 2021, p. 5).
Defende-se, portanto, que a epistemologia da práxis oferece pressupostos teórico-práticos que podem favorecer a humanização e a transformação da realidade pela via da formação docente. Essa compreensão, necessariamente, nega propostas que alienam e destituem o caráter humano de consciência e de intervenção no mundo que estão imbricados na natureza da ação docente.
O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens, não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 1988, p. 67).
Para Oliveira e Queiroz (2022), a contraposição à epistemologia da prática2 vem sendo feita pelo movimento de crítica contra-hegemônica que se constitui em grupos que advêm da academia, das pesquisas e redes que congregam professores e intelectuais que se posicionam em favor da formação docente em uma perspectiva crítica.
Na busca por pressupostos formativos que se constituem na perspectiva da práxis, este estudo retoma a proposta delineada no movimento crítico desenvolvido no contexto da década de 1980, de matriz materialista dialética, que se fundamenta no eixo epistemológico da teoria como expressão da prática. Essa compreensão da unidade dialética entre a teoria e a prática emergiu como um contraponto à constatação de que o tecnicismo de então propalava a teoria como guia da prática educativa.
Para Martins (2009), pensar a teoria como expressão da prática não é supervalorizar a prática em detrimento da teoria, nem apenas refutar a suposta soberania da teoria em relação a uma frágil prática. É, antes, compreender a capacidade humana de emancipação, de um pensar crítico, de projetar um processo de educação justo e transformador, que envolve um pensar-fazer coletivo. Para a autora:
Sem alterar as relações que se estabelecem na divisão social do trabalho na escola e na sociedade, a relação pedagógica libertadora dificilmente ocorrerá. Por outro lado, não podemos ficar aguardando que se quebre essa relação de dominação, no plano social, para alterar a relação pedagógica dentro da escola. Se pretendemos enfrentar a questão da dominação e da dependência e procurar um vínculo mais libertador, não basta alterar o discurso: devemos alterar a relação pedagógica que se experimenta nos cursos de formação dos futuros profissionais do magistério (Martins, 2006, p. 51).
No bojo desse pensamento contra-hegemônico, a partir da disciplina de Didática, forjou-se um processo formativo alternativo que tinha os professores e seus alunos como agentes de transformação, a prática como ponto de partida e de chegada da reflexão, e a teoria como expressão do processo de sistematização coletiva do conhecimento3. Nessa compreensão, há um deslocamento da relação entre teoria e prática que envolve, de maneira significativa, o professor, considerando que ele é capaz de fazer, pensar sobre o que faz, teorizar sobre o processo educativo e transformar sua ação com vistas à humanização de si mesmo, de outrem e do próprio trabalho social. A metodologia elaborada por Pura Lúcia Oliver Martins e expressa em suas obras (Martins, 2006, 2009) organiza-se em quatro momentos: “[...] caracterização e problematização da prática pedagógica dos participantes; explicação da prática mediatizada por um referencial teórico; compreensão da prática no nível da totalidade; elaboração de propostas de intervenção na prática” (Martins, 2009, p. 17-18).
A proposta formativa elaborada por Martins (2006, 2009) e vivenciada por professores pode se constituir como um referencial alternativo, considerando a experiência nos quatro passos propostos. No primeiro momento, procede-se à caracterização da prática vivenciada no cotidiano. Nesse ponto, os professores detalham minuciosamente a sua prática, ressaltando os desafios, os modos de organização do planejamento e os resultados que obtêm. No segundo momento, ocorre uma busca e seleção de referenciais que possam subsidiar a reflexão do grupo de docentes, trazendo elementos teóricos que são confrontados com a prática descrita. Nessa etapa, ocorre a apropriação teórica por meio do discernimento das contribuições que indicam uma relação entre sujeitos e desses com o conhecimento. No terceiro momento, procede-se à reflexão, à análise crítica da própria prática, em um diálogo consciente na busca coletiva de possibilidades de superação dos desafios vivenciados. Por fim, no quarto momento, com uma nova compreensão da prática à luz de um conhecimento teórico, os professores empreendem o retorno à prática pedagógica, mas não do mesmo jeito, visto que os professores têm uma nova consciência de seu fazer, e a realidade se abre para novas possibilidades de ação. Essa nova prática passa a ser uma referência para novas indagações e provocações da realidade sempre dinâmica. Desse movimento dialético e consciente, emerge um processo de sistematização coletiva dos conhecimentos gerados na e pela prática docente. Essa dinâmica se expressa na práxis, cuja experiência se concretiza em um processo participativo e consciente de transformação da realidade por meio da sistematização de conhecimentos.
O fundamento que articula esses quatro momentos formativos é a unidade entre a teoria e a prática; dessa maneira, a práxis torna-se o critério na seleção do conteúdo da formação, na problematização da prática social dos professores em processo de formação e nas reflexões que permeiam a relação com o referencial teórico proposto, assim como a busca conjunta de solução para os problemas da prática e, por fim, na sistematização do conhecimento construído nesse processo dialético e coletivo.
A atitude revolucionária da formação pautada na elaboração coletiva do conhecimento está na reapropriação da totalidade do processo formativo, na reflexão sobre a ação, na intencionalidade dos fins da educação expressa nas práticas educativas e na capacidade docente de participar e ter voz ativa nas propostas formativas. O caráter crítico dessa formação pressupõe uma compreensão dos determinantes sociais e políticos que permeiam a educação como um todo e que, por meio da divisão do trabalho, exerce o controle da ação docente, retirando a autonomia do professor e limitando sua prática pedagógica. Para Martins (2009, p. 46), “[...] o que importa não é a crítica pela crítica, mas a crítica que permita uma compreensão dos determinantes de uma dada prática sobre a realidade, possibilitando alterá-la e transformá-la, tanto no nível do conhecimento quanto no nível histórico-social”.
A abordagem epistemológica da teoria como expressão da prática encontra seu fundamento na práxis, que representa, para além de uma síntese entre ambas, um movimento dialético da teoria-prática que constitui o fazer-pensar-transformar docente. Nessa abordagem, considera-se que não há uma sobreposição da prática sobre a teoria, mas ambas são engendradas no e a partir do trabalho docente, cujos conhecimentos permeiam as ações e podem ser sistematizados de forma coletiva (Martins, 2006). Nesse caso, considera-se que há um saber que se revela a partir do trabalho do professor e que se consolida na sistematização e na apropriação dos conhecimentos que compõem a teoria, gerando a transformação das práticas e ampliando o conhecimento sobre elas de forma compartilhada.
Considerando que o trabalho intelectual precisa estabelecer um diálogo com a realidade em sua concretude histórica, a teoria não se compõe a partir de um ente externo e alheio aos dilemas vivenciados pelos indivíduos. Pelo contrário, ela se constitui na prática vivida, pensada e problematizada em seus determinantes e em suas contradições e, em última instância, deve voltar a essa realidade em um sentido de transformá-la de forma comprometida e coletiva.
A partir da discussão referente à epistemologia da práxis como forma de superar a dualidade entre teoria e prática e tendo a proposta formativa da sistematização coletiva do conhecimento como referência para a formação de professores, passa-se a discutir as implicações dessa abordagem teórico-metodológica para a formação de professores da Educação Infantil.
A práxis e as implicações para a formação continuada de professores da Educação Infantil
Nas últimas décadas, de modo especial no início do século XXI, é possível observar um aumento nas pesquisas sobre a Educação Infantil e, nesse campo, sobre a formação de professores para atuar na primeira etapa da Educação Básica. Esse aumento se deve, em grande medida, ao fato de a educação das crianças pequenas, com faixa etária de 0 a 5 anos, ter sido incorporada à Educação Básica no final da década de 1990. Desse período em diante, somam-se os referenciais legais com o intuito de regulamentar o atendimento à infância e multiplicam-se as discussões sobre como educar as crianças no contexto da Educação Infantil.
O destaque para a formação de professores da Educação Infantil neste estudo se justifica pelas especificidades dessa etapa educativa. Em estudo anterior (Peroza, 2020), destacou-se a necessidade de formar um profissional capaz de trabalhar com o desenvolvimento integral da criança, articulando educação e cuidado em um processo educativo que tem por objetivo, entre outros, apresentar a cultura e os elementos da convivência humana a uma geração que se abre para o mundo com curiosidade e em pleno processo de desenvolvimento. “A prática pedagógica na Educação Infantil envolve um olhar sensível e qualificado para os processos educativos vivenciados pela criança na apropriação da cultura humana” (Peroza, 2020, p. 281).
É nesse contexto que se considera a importância dos pressupostos da práxis na formação inicial e continuada de professores, por entender que quanto maior a apropriação dos processos educativos pelos docentes, maiores as possibilidades de formação para a emancipação humana e, portanto, de indivíduos críticos e capazes de refletir e agir com autonomia para transformar as relações estabelecidas em sociedade. Quanto mais parecer que a teoria está distante da prática, menores as chances de professores de crianças se perceberem como capazes de pensar, teorizar e expressar nas práticas um compromisso com a educação de qualidade para essas crianças e suas famílias. Concordando com Gatti (2020, p. 16-17):
Não se pode conceber a formação de docentes para o exercício do magistério na educação básica sem que se lhes ofereça boa formação teórica e cultural, mas, também, não se pode deixar de lado, associada a esta, uma formação para o trabalho educacional com as crianças, adolescentes e jovens no processo de aprendizagem escolar, o qual faz parte do desenvolvimento dos alunos como pessoas e cidadãos, papel fundante da educação básica.
O que se percebe nas propostas de formação de professores, de modo geral, é a ausência de um trabalho que considere a primeira etapa da educação em suas especificidades. Os currículos de formação inicial em nível superior, muito recentemente e de forma tímida, têm abordado os conteúdos necessários à formação de professores para atuar com as crianças pequenas. E, mesmo que as pesquisas sobre a educação da criança em contextos coletivos tenham avançado significativamente, os cursos, muitas vezes, apresentam uma visão teoricista e idealista, que romantiza a infância e propõe um padrão de criança; ou, de outro modo, se constituem como praticistas e espontaneístas, em que, tomando a criança como centro do processo de ensino e aprendizagem, colocam à margem o professor e descaracterizam a função das instituições educativas.
Esse cenário vem sendo construído ao longo dos anos. Uma breve digressão histórica indica que a formação docente para atuar na Educação Infantil ainda não foi uma preocupação nas políticas públicas. A desvalorização de profissionais que atuam na escola da infância, em sua maioria mulheres, é prova da negligência e descaso dessas políticas de formação. A afirmação de que para ser professor de crianças basta o dom maternal feminino e uma experiência de maternidade ainda ronda a representação social das famílias e de muitos profissionais que acompanham a primeira etapa da educação (Peroza; Silva, 2023). A realidade apresenta “[...] um processo de desprofissionalização e precarização da carreira. Há um reducionismo da escola, e o trabalho do professor é reconhecido como uma vocação, restrito à mera aplicação de práticas acríticas e sem autonomia” (Farias; Costa, 2022, p. 134).
Mediante esses desafios, cumpre apontar caminhos que contribuam para a superação da dicotomia que, ao longo deste trabalho, foi discutida. A epistemologia da práxis desvela pressupostos fundamentais para a valorização do professor na qualidade de um profissional teórico-prático, consciente de sua função na educação-humanização das crianças. Assim, para pensar a formação docente nessa perspectiva, propõe-se destacar cinco aspectos específicos do trabalho com a infância como uma forma de caracterizar a prática realizada por professores de crianças. Este se constitui como um modo de ter a realidade como ponto de partida para a problematização, reflexão e transformação das práticas, premissas da formação na perspectiva da práxis.
Um primeiro aspecto específico da docência na Educação Infantil diz respeito à necessidade de apropriação de uma concepção de criança e de infância a partir da prática. No trabalho, o professor traz consigo uma compreensão sobre a criança e a infância, um saber que se constitui nas experiências vivenciadas ou nos cursos de formação inicial. Muitas vezes, esse conhecimento se pauta em uma visão idealizada, romantizada e teorizada, que não condiz com a criança real que faz parte do seu cotidiano. Ao tomar como referência uma criança ideal - aquela “criança de antigamente” ou a criança padrão dos manuais e livros - e desconsiderar aquelas com as quais atua concretamente, o professor vivencia uma primeira contradição que implica sua prática: planeja e propõe uma prática desvinculada da realidade, portanto, desarticulada das necessidades e potencialidades reais das crianças (Campos, 2012; Coutinho; Côco, 2022). Uma formação na perspectiva da práxis requer a construção de uma concepção que tenha como referência a criança que se encontra no ambiente educativo. Para tanto, exige-se que o professor reconheça quem são as crianças com as quais atua, seu contexto social e cultural, suas experiências e os modos como vivem a infância, empreendendo um caminho de superação do adultocentrismo (Silva, 2021). O processo formativo deve ser capaz de propor a desconstrução da imagem idealizada de criança e a reconstrução de uma concepção de criança e infância que possibilite uma práxis coerente.
Um segundo aspecto que demarca as especificidades da Educação Infantil se refere à dimensão de cuidado e educação que vem fundamentando o trabalho educativo com as crianças e delineando a identidade dessa etapa da Educação Básica. Diferentemente dos demais segmentos, a Educação Infantil se constitui como um espaço social que, de modo complementar à família, tem como um de seus compromissos os cuidados básicos das crianças. Isso porque elas estão vivendo um momento de profunda necessidade de atenção por parte dos adultos, que lhes garantam saúde, bem-estar e o desenvolvimento de suas capacidades humanas, que pressupõem a ação docente para higiene, alimentação, sono, criação de vínculos, comunicação emocional, dentre outros. Ao contrário do que se pensa no senso comum, essas tarefas requerem conhecimento teórico e técnico, uma vez que dessas ações depende a formação integral da pessoa que está no início de seu processo de desenvolvimento. Essa articulação entre cuidado e educação foi identificada, inicialmente, como uma estratégia para superar a dicotomia que constitui o histórico das instituições de atendimento à infância no Brasil (Kuhlmann Jr., 2007; Magalhães, 2017). No entanto, defende-se que a identidade da Educação Infantil vai muito além e reside em uma observação atenta do binômio cuidado-educação. Isso porque é preciso problematizar a concepção de educação que perpassa o processo educativo para identificar como, o que e para que se educa crianças de 0 a 5 anos nos contextos coletivos de educação (Facci; Tavares, 2024; Pasqualini; Martins, 2008). Via de regra, a compreensão de educação que permeia o trabalho com as crianças pequenas está associada à sua socialização e disciplinamento. É preciso que os cursos de formação de professores contribuam com a ressignificação do cuidado para além da assistência básica para o bem-estar da criança e da educação como processo de simples adaptação e socialização. Em uma perspectiva formativa da práxis, a função da Educação Infantil precisa ser reinterpretada para promover o desenvolvimento integral das crianças, o que inclui o cuidado, mas também a apropriação, pelas crianças, dos conhecimentos referentes à cultura humana (Mello, 2018).
Um terceiro aspecto que diferencia a Educação Infantil das demais etapas da educação é o brincar, aqui entendido como uma atividade essencialmente humana e que, na infância, permite que a criança empreenda um processo de significação do mundo e de apropriação da cultura (Huizinga, 2000). O brincar é uma atividade que se constitui como condição do processo de aprendizagem da criança e, consequentemente, do desenvolvimento de suas máximas capacidades. Ainda que muitos estudos na área da educação reafirmem a importância do brincar na primeira infância, observa-se uma indiferença em relação à sua efetivação nas propostas educativas desenvolvidas com as crianças. Seja por desconhecimento ou por negligência, é certo que pouco tempo se dedica ao brincar nas instituições de Educação Infantil. É comum identificar que o brincar só acontece se sobrar tempo nas rotinas intensas estabelecidas nas creches e nas pré-escolas e, quando acontece, revela propostas direcionadas pelo adulto com sentido pedagógico, o que o descaracteriza, ou sem intencionalidade no sentido de não oferecer espaço, tempo e materialidade que favoreçam o brincar das crianças. A brincadeira se constitui em uma linguagem, e, a partir dela, a criança faz experiências significativas das quais ela se apropria para se constituir como ser humano (Pereira, 2009). Portanto, uma formação de professores comprometida com a infância precisa considerar o brincar em seu potencial mobilizador do desejo de fazer parte da cultura. Conhecer sobre o brincar como atividade humana é pressuposto para favorecê-lo nas práticas pedagógicas com as crianças, portanto necessita ser considerado em uma formação que toma como pressuposto a práxis.
Um quarto aspecto a ser considerado como específico da Educação Infantil diz respeito às múltiplas formas de expressão infantil que são traduzidas como múltiplas linguagens pelas quais as crianças se relacionam com os adultos e com o mundo. Desde que nascem, as crianças estão imersas na cultura humana e são impelidas a estabelecer uma comunicação com aqueles que dela se ocupam, o que lhes garante a sobrevivência, mas também a oportunidade de se tornarem partícipes da comunidade humana (Mello; Marcolino, 2021). A comunicação que bebês e crianças estabelecem com os adultos se dá a partir de recursos e capacidades elementares, tais como as expressões corporais, gestos, olhares, sons e silêncios, que indicam bem-estar ou contrariedade, que revelam as sensações e necessidades das crianças. Essas formas elementares de comunicação, aos poucos, vão sendo substituídas por formas cada vez mais complexas de linguagem, que possibilitam às crianças expressarem seus sentimentos, desejos e pensamentos. Por meio dessas linguagens, a criança revela seu modo de estar no mundo, sua curiosidade e suas aprendizagens. Interpretar essas diferentes formas de comunicação, atribuindo sentido e oferecendo à criança oportunidades de aprender e se desenvolver no âmbito da linguagem, requer do professor uma sensibilidade e uma disponibilidade de escuta. A necessidade de comunicação atravessa a vida humana e, no caso das crianças pequenas, essa necessidade precisa encontrar eco em um adulto disponível, disposto a ouvir e atribuir sentido ao que a criança apresenta. Essa atividade comunicativa, quando entendida pelo adulto, resulta em um trabalho pedagógico significativo. Um processo formativo comprometido com a práxis deve considerar as linguagens expressivas das crianças como um aspecto a ser desenvolvido pelos docentes em suas propostas pedagógicas.
O quinto aspecto específico a se considerar nas práticas desenvolvidas na Educação Infantil diz respeito ao afeto e às interações entre adultos e crianças e destas com seus pares. Inicialmente, é preciso destacar que, muitas vezes, o afeto é entendido como expressões de carinho externalizadas por meio de gestos como abraços, beijos, afagos. É preciso considerar que o afeto diz respeito a um processo que se estabelece nas interações entre humanos - uma criança que necessita e um adulto que oferece e recebe afeto - e que possibilita a constituição da personalidade da criança a partir das apropriações feitas nas experiências que vivencia. O afeto está diretamente relacionado aos modos como as ações dos adultos afetam e mobilizam as ações, os sentimentos e as emoções das crianças (Batista; Pasqualini; Magalhães, 2022; Gomes, 2014). De modo mais intenso, na primeira infância (de 0 a 6 anos), a dimensão afetivo-emocional tem um grande impacto no desenvolvimento da criança e na constituição de sua personalidade. Nesse sentido, é importante que as interações e o afeto se constituam a partir de relações pautadas na sensibilidade, no respeito, no diálogo e na escuta, na consideração da criança em sua potencialidade, portanto base para uma prática educativa respeitosa como forma de afetar a criança. A formação docente na perspectiva da práxis que se quer humanizadora precisa considerar as dimensões de afeto e as interações com as crianças como pressupostos fundamentais para a transformação da prática pedagógica na Educação Infantil.
Ainda que tantos outros aspectos possam ser destacados como específicos da Educação Infantil, estes parecem, neste momento, trazer elementos centrais para a reflexão, de modo a desencadear outros desdobramentos para a formação docente com a infância, no limite do que permite a discussão neste artigo. Um agir consciente de professores de crianças requer, necessariamente, uma formação teórico-prática consistente e comprometida com o desenvolvimento das crianças. Por isso, é importante construir uma identidade de Educação Infantil que vá além da relação entre cuidado e educação.
Abordar a formação na perspectiva da práxis pressupõe, também, considerar alguns aspectos a serem desenvolvidos pelos professores nos processos formativos, de modo a apresentar uma nova forma de se constituírem no trabalho que desenvolvem com as crianças. Partindo da compreensão de que a práxis se constitui a partir da unidade teoria-prática, que toma a atividade social humana como um referente para a reflexão e consequente ação transformadora da realidade, há de delinear-se um conjunto de elementos que possam fundamentar esse agir do professor no processo de ação-reflexão-ação (Freire, 1988; Gadotti, 1995; Vázquez, 2007).
No caminho de organização dessa nova perspectiva formativa, é inegável que “[...] formar docentes oferecendo-lhes cultura geral e especializada que lhes propicie a construção de uma filosofia educacional associada a uma praxiologia parece ser uma possível resposta aos dilemas enfrentados nas práticas formativas para a docência” (Gatti, 2020, p. 17). Para estar mais próxima da realidade, a formação deve ser contextualizada e contar com a participação ativa dos professores.
Os desafios na formação docente são grandes e precisam ser problematizados com vistas à organização de novas maneiras de efetivar os processos formativos que respondam às necessidades da prática educativa. Na práxis, o professor não faz o caminho de elaboração do conhecimento de forma autônoma enquanto reprodução do que o sistema hegemônico oferece como resposta aos desafios da prática. Pelo contrário, ele é instado, impelido e mobilizado para construir uma formação que lhe ofereça acesso aos conhecimentos e às práticas que lhe deem instrumentos para enfrentar os desafios da docência e, para isso, precisa contar com outros professores e formadores comprometidos com uma ação transformadora e humanizadora.
Considerações finais
Neste estudo, propôs-se discutir alguns pressupostos teóricos da práxis como um fundamento necessário para embasar a formação continuada de professores da Educação Infantil. Essa busca por um referencial contra-hegemônico se justifica pelas recorrentes investidas do modelo capitalista neoliberal nas políticas públicas de educação, as quais incidem na desvalorização profissional de docentes e no esvaziamento de suas práticas.
O resgate de uma concepção teórico-prática que possibilite aos docentes uma atuação crítica e coletiva, capaz de promover a transformação social por meio de processos educativos humanizadores, se apresenta como uma necessidade no atual cenário. Fica evidente, portanto, que a práxis evidencia pressupostos que contribuem para romper com a perspectiva formativa embasada no racionalismo técnico e no praticismo utilitário como mecanismos de controle da ação docente e do esvaziamento das práticas pedagógicas reprodutivistas.
No bojo dessa discussão, destacam-se as especificidades da primeira etapa da educação básica. O fato de historicamente ser negligenciada nas políticas de formação docente sugere a necessidade de uma formação que ocorra de forma contextualizada e que reconheça os educadores em todo o seu potencial criativo e em seu trabalho humanizador. Portanto, a epistemologia da práxis é apresentada como uma teoria do conhecimento capaz de oferecer elementos para a elaboração de propostas de formação que tomem a prática social dos indivíduos em sua concretude histórica para a compreensão do real e sua possível transformação.
Com o objetivo de evidenciar possibilidades para a efetivação de uma formação docente firmada nos pressupostos da práxis, este estudo apresenta, como proposta formativa viável, a sistematização coletiva do conhecimento. A metodologia, que pressupõe a participação ativa dos docentes como mecanismo de superação da visão fragmentada dos processos educativos, pode se efetivar como uma proposta significativa. Para tanto, é preciso tomar as especificidades da educação da criança pequena no contexto da Educação Infantil como ponto de partida para o estabelecimento de propostas de formação de docentes que considerem a realidade das crianças e dos professores na escola da infância. Nessa perspectiva, defende-se a educação como processo humanizador e o professor como um profissional capaz de pensar sobre sua prática, agir e sistematizar os conhecimentos para que ele possa gerar novas práticas, mais significativas e intencionais.
No entanto, ao concluir este estudo, há de problematizar-se a atual ênfase dada à formação de professores como o meio capaz de resolver os problemas da educação ou como a estratégia mais imediata para introduzir sua significativa transformação. É necessário destacar os limites dessa via e a perigosa ilusão propalada de que a formação dos professores encerra em si a solução dos problemas educativos. Os dilemas da educação brasileira estão relacionados a aspectos mais profundos e que têm se intensificado na última década, tais como a desvalorização e a exploração do trabalho docente; a histórica precarização das condições de trabalho; os frágeis planos de carreira e contratos de trabalho; a alienação dos profissionais expressa na organização dos processos educativos que demarca o lugar de quem pensa e de quem executa as ações; entre outros.
Se processos formativos que tomam por base a emancipação humana precisam ser viabilizados na prática, as discussões sobre esses dilemas necessitam ser pautadas de forma séria e incisiva entre os profissionais e destes com o poder público. Este se constitui como um desafio imposto pela própria concepção de formação defendida neste estudo. A apropriação desses pressupostos só pode ser considerada na realização de propostas formativas que consideram a práxis, no sentido de ir além de uma abstração teórica e se tornar, de fato, ação concreta na realidade. Eis o desafio que se coloca para presentes e futuras discussões.