Introdução
Este artigo visa discutir a perspectiva de considerar Doidão (1963), O meu pé de laranja lima (1968) e Vamos aquecer o sol (1974), – obras autobiográficas escritas por José Mauro de Vasconcelos (1920-1984), – como romances de formação (Bildungsromane), para além da visão do conceito no século XVIII, que tem como protótipo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.
Para isso, primeiramente, contextualizamos o conceito de Bildungsroman, que à luz do século XVIII, possuía como modelo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, escrito por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que apresenta a história de um jovem que vai em busca de seu aperfeiçoamento, deixando para trás sua família e herança do comércio de seu pai. Wilhelm Meister busca sua autoformação e sua liberdade através do teatro, acabando por descobrir a si mesmo e a vida.
Concordando com alguns teóricos, podemos explicitar que o romance de formação ganha novo formato com o passar do tempo, não sendo mais encarado apenas por meio do modelo de Goethe, mas incluindo outros pontos de vista, de maneira que a formação do indivíduo, para além da educação formal, seria um dos panos de fundo. Além disso, é importante considerar que os conceitos estão em constante movimento e variam de acordo com o significado que vamos atribuindo aos objetos e processos de nossa existência. Nesse sentido, o conceito/expressão romance de formação foi assumindo longa permanência na história da literatura, que se renova continuamente pela associação da descendência do gênero ao Meister de Goethe (Maas, 2000). E, por esse viés, admite-se que há obras que são “mais” ou “menos” Bildungsromane, quer se associem ou se afastem do modelo constituído pelo romance de Goethe (Maas, 2000). É o caso dos romances de José Mauro de Vasconcelos, os quais podem ter um modo de apropriação diferenciado uma vez que não se aproximam do modelo classista (entre os quais, os romances de Jorge Amado), tampouco do modelo de crítica feminista que seria também uma forma de recepção dos Bildungsromane eurocêntrico.
Apresentamos algumas partes do texto que vão ao encontro da ideia de Bildungsromane. Em seguida, evidenciamos de maneira sucinta a biografia de José Mauro de Vasconcelos e as obras autobiográficas que serão estudadas, além de seus enredos, para então destacarmos as ideias confluentes entre os romances de formação e as histórias de Zezé. Por fim, encerramos o artigo ressaltando que as obras autobiográficas de José Mauro de Vasconcelos podem ser consideradas romances de formação por um viés atual.
A conceituação de Bildung e Bildungsroman
A formação humana pode ser entendida como um processo em devir, um vir-a-ser, uma formação que se dá ao longo da vida, não apenas em espaços formais de educação, como também com as próprias experiências e a autonomia do indivíduo. Antônio Joaquim Severino (2006) define o termo formação de maneira bastante significativa e condizente com a ideia de que somos seres em construção.
A ideia de formação exposta por Severino (2006) está relacionada a um desenvolvimento para além da racionalidade, num processo que torna possível a emancipação do sujeito tanto em suas relações pessoais como sociais. A formação assim compreendida, é um processo para além dos muros da escola e que extrapola um modo linear de aprender.
Ao pesquisarmos a respeito do modo de tratamento a respeito da formação humana, encontramos três modelos principais: a Paideia e a Humanitas - modelo de formação dos gregos -, a Bildung alemã e a Omnilateralidade. Neste artigo, nos deteremos principalmente à Bildung alemã, por ser um modelo de características autoformativas e cujo indivíduo apresenta um desejo de vir-a-ser. Este modelo do século XVIII envolvia a filosofia, a literatura e a pedagogia alemãs e era uma nova dinâmica de formação voltada para a liberdade e o “cultivo de si”.
Segundo Oliveira & Oliveira (2014) Bildung é “o processo de autoconstrução do ser humano e da constituição de sua vontade no permanente conflito entre a sensibilidade e a razão, ou seja, entre o indivíduo e a sociedade” (Goergen, 2009, p. 45) e nela predomina “aquilo que as Artes e as Letras poderiam oferecer à nova dinâmica de formação” (Oliveira & Oliveira, 2014, p. 214).
Conforme Volobuef (1999), a Bildung “remete à formação enquanto realização pessoal pelo aprimoramento moral, intelectual e espiritual segundo os ideais do humanismo, disso resultando uma integração mais harmônica na sociedade” (Volobuef, 1999, p. 44). Nesta mesma perspectiva, Freitag (2001) cita duas possibilidades de significado para esclarecer o conceito ao leitor brasileiro. Segundo a autora, a Bildung pode significar tanto o indivíduo ajustado a um ideal, quanto ao caráter deste indivíduo, relacionando-se à moral. Ocorre que a formação humana era uma das grandes preocupações da Alemanha no século XVIII e, por isso, começa a ser tratada nos romances da época, fazendo com que estes romances a tivessem como essência. A base da narrativa é o relato da formação dos personagens.
Assim, estes romances tendo como essência a formação do indivíduo foram nomeados Bildungsromane, ou romances de formação, de maneira que esclareciam, através da literatura, a autoformação do indivíduo. A palavra une dois termos de grande importância para a Alemanha do século XVIII: Bildung e roman: a Bildung tida como a emancipação política da classe média alemã e o romance que, no século XIX, teve grande reconhecimento como gênero literário, conhecido como romance realista (Maas, 2000).
Os romances de formação narram as experiências dos personagens a partir da perspectiva de sua formação/educação e apresentam as fases de aprendizado do indivíduo, em sua maioria na juventude, que se refletem na maturidade, revelando o processo de formação dos protagonistas. De acordo com Pinto (1990), o romance de formação “apresenta as consequências de eventos externos sobre o herói, registrando as transformações emocionais, psicológicas e de caráter que ele sofre. Há uma ênfase, portanto, no desenvolvimento interior do protagonista como resultado de sua interação com o mundo exterior” (Pinto, 1990, p. 10).
A rigor, teríamos que o modelo único que cabe na conceituação pragmática de Bildungsroman seria Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann W. von Goethe. A história narra, em oito livros, o percurso da vida do jovem Meister, movido pelo desejo em desenvolver suas potencialidades, abandonando, assim, a possibilidade de tomar conta dos negócios paternos e engajando-se numa companhia de teatro, a qual considerava como ideal para o seu processo formativo. Meister deixa claro sua ambição ao escrever uma carta ao amigo e cunhado Werner: “Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância” (Goethe, 2006, p. 284). O romance de Goethe, tomado como protótipo dos romances de formação, relata esse desejo do protagonista em buscar, por sua própria vontade, o seu aperfeiçoamento.
Ao mesmo tempo em que existe a concepção de que o conceito de Bildungsroman é exemplificado pela história de Wilhelm Meister, existem teorias que o desbancam, pelo fato de este romance ser o único modelo do gênero, e, portanto, o romance de formação não teria sido realizado. Em outras palavras, se tomássemos Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister o protótipo do gênero, nos seus exatos moldes e características, o gênero romance de formação não teria existido, pois, de acordo com Jacobs e Krause (1989), de nada serve um conceito que defina apenas um único romance.
Em realidade, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister pode ser tomado como referência de interpretação de um romance de formação, não necessariamente contendo em absoluto e exatamente aquelas características. Assim fosse, o conceito tornar-se-ia totalmente restritivo e não poderia evoluir para outras formas mais ricas de interpretação e conceituação. Vamos observar o conceito de Bildungsroman que Karl Morgenstern cunhou:
[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance [MORGENSTERN, 1988, p. 64]. (Maas, 2000, p. 46)
Morgenstern expõe que o romance de formação, para além de auxiliar na formação do leitor, apresenta a trajetória de vida do protagonista, que se caracteriza pela sua autoformação em busca de um certo nível de perfeição. Ao mesmo tempo, Maas (2000) traz o excerto no qual Morgenstern expõe sobre o romance de Goethe:
Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da bela formação do homem, sobressai-se, com seu brilho suave, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, obra duplamente significativa para nós alemães, pois aqui o poeta nos oferece, no protagonista e nas cenas e paisagens, vida alemã, maneira de pensar alemã, assim como costumes de nossa época.” [Morgenstern, 1988, p. 66] (Maas, 2000, p. 47)
Mais tarde, vemos que Melitta Gerhard introduz o termo romance de desenvolvimento, conceituando-o como
Todas as obras narrativas que tenham por objeto a problemática do confronto entre o indivíduo e a realidade de sua época, de seu amadurecimento gradual e sua adaptação ao mundo, sempre que se possam reconhecer os pressupostos e objetivos dessa trajetória [GERHARD, 1926, p. 1] (Maas, 2000, p. 49)
Segundo Maas (2000), Gerhard escreve que o romance de desenvolvimento possui um “significado poético simbólico”, possibilitando, portanto, o entendimento deste gênero “para além das especificidades nacionais e históricas” (Maas, 2000, p. 50).
É a partir destas definições de romance de formação, que foi possível abrir portas para outras possibilidades de construção e problematização do conceito. Nesse sentido, é importante destacar que a definição de Bildungsroman que aparece no Dicionário de termos literários de Massaud Moisés (1974) já não é tão restritiva quando diz que é uma “modalidade de romance tipicamente alemã” [grifo nosso] (Moises, 1974, p. 56), ou seja, o conceito admite uma continuidade. Além disso, o verbete ainda traz como exemplos do gênero algumas obras tipicamente brasileiras entre os anos de 1888 e 1966, tais como O ateneu (Raul Pompéia) e Amar, verbo intransitivo (Mário de Andrade), significando que o romance de formação já é visto com uma conceituação mais ampla que aquela apresentada pelos romances alemães dos séculos XVIII e XIX. Ciranda de Pedra de Lygia Fagundes Telles também é obra lembrada como romance de formação brasileiro.
É claro que Bildungsroman, enquanto conceito, está impregnado pelo que representa o modelo do século XVIII, através de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, entretanto, nada impede de trazermos o conceito à luz de nosso tempo, já que outros romances que vem à tona no século XX, já possuem algumas das características dos romances de formação do século XVIII, fazendo com que o conceito esteja em constante movimento.
Desta forma, passaremos a destacar neste artigo as obras autobiográficas de José Mauro de Vasconcelos: Doidão (1963), O meu pé de laranja lima (1968) e Vamos aquecer o sol (1974), romances que narram as experiências pessoais do autor como inspiração. Objetivamos destacá-los como romances de formação em um sentido atualizado do termo. A escolha deve-se ao fato de que o autor, além de ser ainda pouco pesquisado no Brasil, é uma das poucas possibilidades enquanto autor de romance de formação, algo ainda não discutido.
José Mauro de Vasconcelos e suas obras autobiográficas
José Mauro de Vasconcelos nasceu em Bangu, bairro do Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1920. Era um garoto de família pobre, que teve de mudar de cidade para ter melhores condições de vida e estudo, criando-se com os tios em Natal. Era um garoto ativo, inteligente e gostava muito de literatura: foi influenciado por obras de Paulo Setúbal, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.
Suas atividades preferidas foram base para construir suas próprias histórias. Sonhava em ser nadador, porém a vida lhe direcionou para outros caminhos: foi treinador de peso-pluma no boxe, carregador de bananas, pescador, professor primário, garimpeiro, ator de cinema, jornalista, locutor de rádio e, para nossa sorte, escritor.
Influenciado pelos romances de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, Vasconcelos escreve as obras autobiográficas Doidão (1963), O meu pé de laranja lima (1968) e Vamos aquecer o sol (1974), romances que narram suas experiências pessoais. Os três romances apresentam o personagem Zezé: no primeiro livro, a história inicia com Zezé aos quatorze anos e pouco depois já passa aos vinte; em O meu pé de laranja lima, Zezé tem entre cinco e seis anos e em Vamos aquecer o sol, temos a narrativa dos dez aos quinze anos.
Como forma de organização cronológica em relação às obras, focamos a história de Zezé conforme sua idade, ou seja, dos 05 aos 20 anos, independentemente da ordem de publicação dos livros. Então, na ordem cronológica de Zezé teremos O meu pé de laranja lima (1968), Vamos aquecer o sol (1974) e Doidão (1963).
Os enredos das histórias
O protagonista de O meu pé de laranja-lima, Zezé, é um garoto de 5 anos, inteligente e travesso, que mora com sua família em um bairro do Rio de Janeiro com poucos recursos para subsistência. O garoto mora com sua mãe, Estefânia, seu pai, Paulo, e seus irmãos Jandira, Glória, Antônio, Lalá e Luís. Na família, o irmão mais velho sempre age como um preceptor do mais novo, por isso, “Totoca” (Antônio) é responsável por Zezé, que por sua vez, é responsável por Luís.
Ao mesmo tempo em que Zezé é paciencioso e atencioso para cuidar do irmãozinho Luís e se vale de grande imaginação para distraí-lo, como por exemplo levá-lo ao “Jardim Zoológico”, à “Europa” e ao “bondinho do Pão de Açúcar” (frutos de suas invenções, já que estes três lugares localizam-se no quintal de sua casa), Zezé é muito travesso e, por várias vezes, envolve-se em confusões, cujos resultados não variam de alguém brigando, castigando e até mesmo agredindo o menino, física, verbal e emocionalmente. Zezé sente-se injustiçado e pouco amado e, por várias vezes, afirma não servir para nada e ser filho do Diabo, reflexos do que sua família pensa: “Eu não presto prá nada. Sou muito ruim. Por isso, é o Diabo que nasce em mim no dia do Natal e eu não ganho nada. Sou uma peste. Uma pestinha. Um cachorro. Um traste ordinário. Uma das minhas irmãs me disse que coisa ruim como eu não devia ter nascido” (Vasconcelos, 2009, p. 117). Esta autoimagem do personagem atravessa as três obras do autor.
Na primeira obra, a situação é amenizada quando Zezé conhece, de modo bastante peculiar, Manoel Valadares, o Portuga. Os dois começam a se encontrar frequentemente e passar muito tempo juntos, de modo que Zezé apega-se muito ao português e esquece de todo seu sofrimento e falta de amor da família para com ele: “Santo Deus! Nunca vi uma alminha tão sedenta de ternura como tu (...)” (Vasconcelos, 2009, p. 159), diz Portuga a Zezé.
A história tem seu desfecho com Zezé sofrendo muito pela morte de seu amigo, além de ter de despedir-se de seu pé de laranja, o qual seria derrubado em poucos dias.
Em Vamos aquecer o sol (1974), Zezé tem entre dez e quinze anos e mora com uma família adotiva. Como forma de superar sua solidão e em busca de um pouco mais de ternura, o menino compartilha suas histórias com dois personagens criados por sua imaginação: o sapo Adão e Maurice Chevalier, um ator de cinema que Zezé tem como a um pai. Além destes dois personagens, Zezé confia muito em Fayolle, um dos irmãos de sua escola: “Estava feliz perto de alguém que nunca me faria mal ou deixaria que me maltratassem, fora ele o primeiro irmão a descobrir a solidão da minha alma. (...) Ele sabia da minha luta de onze anos. (Vasconcelos, 2006, p. 26)
Estes personagens oferecem-lhe carinho, tão ausente em sua vida, bem como lições, conselhos e proteção. Ao mesmo tempo, o menino continua bastante travesso, mas tem consciência do que faz – o que faz de bem e o que faz de mal –, pede desculpas por alguns de seus atos, nunca deixando de ser um garoto afetuoso. Ao final desta história, o menino também passa por vários processos de despedidas.
Zezé aparece em Doidão (1963) dos quinze aos vinte anos, ainda querendo encontrar a si mesmo e em conflitos com o pai adotivo. A história se dá num processo de buscas do que fazer na vida, o que estudar, em que formar-se, onde trabalhar, ou seja, predominam processos de busca pelo seu vir-a-ser, pelo seu lugar no mundo. Zezé vai ao rio para nadar – uma de suas atividades preferidas – por vezes, ganha dinheiro trabalhando no cais do porto e possui longas conversas com seu amigo Tarcísio. Zezé também conhece seu verdadeiro amor, Sylvia, a qual é obrigado a abandonar, momentaneamente, devido ao pedido de seu pai.
Ao final da história, o protagonista decide enfrentar a tudo e a todos em busca de sua felicidade. Vai atrás de Sylvia, desconsiderando o pedido de seu pai, e também busca uma colocação na Marinha Mercante, como forma de provar que não é vagabundo, como muitos pensam. Por fim, o pai adotivo parece mais compreensivo e afetuoso, algo que Zezé sempre buscou.
O meu pé de laranja lima (1968), Vamos aquecer o sol (1974) e Doidão (1963) como romances de formação
A partir das conceituações de Bildungsroman trazidas anteriormente, nos proporemos a provocar o leitor deste artigo e defender a ideia de que as histórias autobiográficas de José Mauro de Vasconcelos podem ser consideradas romances de formação, na perspectiva de uma conceituação mais ampla do termo, já que Jürgen Jacobs (1989), de acordo com Maas (2000), diz que “Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo. [Jacobs, 1989, p.37]” (Maas, 2000, p. 62)
Jacobs (1989) expõe que a história considerada como romance de formação deve ter como foco principal a história de vida de um indivíduo jovem que, por meio de suas próprias experiências, chega a um conhecimento de e em equilíbrio com o mundo. Este tipo de romance de formação é classificado por Mikhail Bakhtin (2011) como biográfico (ou autobiográfico).
Para Bakhtin (2011, p. 221), a formação do indivíduo no romance biográfico se dá por meio de várias mudanças de vida e vários acontecimentos, nos quais o protagonista vai adquirindo experiência e conhecimentos. É através desta mudança de vida e destas experiências que o homem forma a si mesmo e seu caráter, unindo a sua formação com a formação do seu destino.
Ao longo da trilogia, a história vai mostrando, com o passar dos anos, o discernimento de Zezé em distinguir o que é certo do que é errado, diferenciar o bem e o mal, capitanear sua formação de caráter e ainda lidar com seus sentimentos de culpa, de remorso e de injustiça em determinados acontecimentos de sua vida. Além de tudo isso, o desenrolar da história mostra a constituição do sujeito Zezé como criança, adolescente e a fase inicial da maturidade, mostrando sua consciência ético-estética e expondo que Zezé, ao final, possui a tutela de si mesmo para seguir sua vida. Em outras palavras, a trilogia pode ser considerada como Bildungsroman em um sentido mais amplo do conceito, e ao encontro da visão de nossos tempos. Em débito com aquela característica de narrativa da formação do jovem burguês, os romances de formação brasileiros angariaram uma nova fisionomia e jogam ênfase no desvelar do sentimento do personagem ante as experiências (normalmente de sofrimento) vivenciadas. O meu pé de laranja lima (1968), Vamos aquecer o sol (1974) . Doidão (1963) são exemplares para testemunharem esse novo rumo das narrativas autobiográficas.
As evidências de um romance de formação em descoberta
O primeiro indicativo da autoformação de Zezé foi logo ao início da história de O meu pé de laranja lima, quando Zezé diz descobrir as coisas sozinho (Vasconcelos, 2009, p. 11). O menino se diz feliz ao aprender coisas novas e indica uma vontade de autoformar-se devido a suas curiosidades. Foi o que aconteceu com a leitura – Zezé aprendeu a ler sozinho.
No período próximo ao Natal, sua família passa por grandes dificuldades financeiras e a ceia de Natal ocorre sob grande tristeza. Com esperança de presentes, Zezé coloca seus sapatinhos na porta do quarto para esperar os presentes no outro dia; porém, Zezé exclama alto o quanto é ruim ter pai pobre ao ver seus sapatos vazios. Seu pai escuta e se enche de tristeza. Zezé demonstra seu arrependimento por sua atitude com o pai e sai a engraxar sapatos para juntar dinheiro e comprar um presente a ele como pedido de perdão. Percebe-se que, ao mesmo tempo que Zezé está muito triste, reconhece que errou e se arrepende.
Nesse mesmo capítulo, quando Zezé está a caminho de volta para casa, prestes a comprar o presente do pai, encontra uma meia preta de mulher: “Guardei a meia na caixa [de engraxate], pensando: ‘dá uma bela cobra’. Mas briguei comigo mesmo. ‘Outro dia. Hoje, de jeito nenhum...” [grifo nosso] (Vasconcelos, 2009, p. 33). Aqui, destaca-se que Zezé repreende a si mesmo, pois estava querendo pedir perdão ao pai e, naquele momento, não podia ser travesso.
Zezé, menino precoce, seguidamente visita seu tio, Edmundo. O tio lhe ensina muitas coisas e, certa vez, havia comentado com Zezé sobre um passarinho que ficava na sua cabeça e este vai ao encontro do tio para conversar sobre o passarinho. O diálogo ocorre assim:
— Olhe, Titio, quando eu era pequenininho eu achava que tinha um passarinho aqui dentro e que cantava. Era ele que cantava.
— Pois então. É uma maravilha que você tenha um passarinho assim.
— O senhor não entendeu. É que agora eu ando meio desconfiado com o passarinho. E quando eu falo e vejo por dentro? Ele entendeu e riu da minha confusão.
— Vou explicar para você, Zezé. Sabe o que é isso? Isso significa que você está crescendo. E crescendo, essa coisa que você diz que fala e vê, chama-se o pensamento. O pensamento é que faz aquilo que uma vez eu disse que você teria logo...
— A idade da razão?
— Bom que você se lembre. Então acontece uma maravilha. O pensamento cresce, cresce e toma conta de toda a nossa cabeça e nosso coração. Vive em nossos olhos e em tudo que é pedaço da vida da gente.
— Sei. E o passarinho?
— O passarinho foi feito por Deus para ajudar as criancinhas a descobrirem as coisas. Depois então quando o menino não precisa mais, ele devolve o passarinho a Deus. E Deus coloca ele em outro menininho inteligente como você. Não é bonito? (Vasconcelos, 2009, p. 65)
Zezé corre em direção ao pé de laranja para libertar o seu “passarinho”. “Levantei emocionado e abri a camisa. Senti que ele ia saindo do meu peito magro (...) Parece que aqui dentro a minha gaiola ficou vazia demais” (Vasconcelos, 2009, pp. 66-67). Na verdade, ocorre que Zezé dá-se conta de que possui sua própria consciência e liberta o passarinho.
Com o passar dos dias, Zezé compartilhava com Minguinho, seu pé de laranja lima, tudo o que tinha vivenciado durante o dia, sobre a escola que agora frequentava e ainda sobre os “morcegos”. Zezé confessa para Minguinho que o único carro que ninguém tem coragem de “pegar morcego” é do Sr. Manoel Valadares. Sobre a escola, Zezé demonstra seu caráter quando confessa à professora que divide com outra colega (também pobre como ele), o sonho recheado que ele compra cada vez que a professora lhe dá dinheiro: “E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre” (Vasconcelos, 2009, p. 48); espírito solidário em uma criança de 5 anos.
Finalmente, em outro dia, Zezé cria coragem e “pega morcego” no carro do Sr. Manoel Valadares, o Português. Porém, seu plano dá errado, pois o Sr. Manoel o pega pelas orelhas e lhe dá uma lição. “Meus olhos se encheram d’água, da dor, da humilhação, das pessoas que estavam presenciando a cena e rindo com maldade (...) – E quando eu crescer vou matar o senhor” (Vasconcelos, 2009, p. 62). Zezé justifica que matará o Português devido à humilhação que passou.
Dias passaram, as pessoas esqueceram o ocorrido e o Português sumiu por um tempo. Zezé, quando se lembra da lição do Português, pensa: “toda santa vez que eu ia pegar um morcego num carro menos importante, já não sentia tanto entusiasmo e minhas orelhas começavam a arder penosamente.” (Vasconcelos, 2009, p. 67). Então, talvez Zezé esteja aprendendo que nem toda travessura vale a pena quando um castigo lhe é reservado, posteriormente.
E Zezé segue contando para Minguinho sobre o que tem ocorrido: Zezé finge não ouvir os chamados do português, até que certo dia, quando Zezé machuca o pé roubando goiabas, Valadares o ajuda levando-o à farmácia e depois para casa. Após este gesto, Zezé reconhece que “O Português tinha se tornado agora a pessoa que eu queria mais bem no mundo” (Vasconcelos, 2009, p. 74). Ou seja, Zezé perdoa Manoel Valadares e reconhece o bom caráter do homem.
Zezé e Valadares ficam muito amigos, se veem todos os dias. O Português sempre dá carona a Zezé até a Escola. Zezé conta das surras que leva, das peraltices que apronta, de como é sua família. É notável a mudança do garoto: “Até que lá em casa começaram a notar a minha transformação. (...) Verdade que algumas vezes o diabo vencia os meus propósitos. Mas já não dizia tantos palavrões como antigamente e deixava em paz a vizinhança”. (Vasconcelos, 2009, p. 78). É visível o quanto Zezé compartilha conosco sua mudança. Percebemos sua transformação quando, em cada uma de suas declarações, diz que já não fazia tal ou tal coisa, pois Manoel Valadares não iria gostar.
O capítulo quarto da segunda parte do livro é comovente. Zezé sofre duas grandes surras, sendo que ambas foram por completa injustiça. Da segunda surra, Zezé se recuperou apenas uma semana depois e mesmo assim, andava cabisbaixo. “A realidade era que não conseguia deixar de esticar a minha dor de dentro. De bichinho batido maldosamente, sem saber por quê...” (Vasconcelos, 2009, p. 91). Na verdade, Zezé guardava dentro de si sua dor por ter sido injustiçado.
Outra prova da maturidade de Zezé é quando se reencontra com o Portuga (Sr. Manoel Valadares) e lhe conta tudo o que ocorreu. Fica claro o ressentimento com seu pai devido a uma das surras que levou e diz até que irá matá-lo. Portuga o repreende. Mas Zezé explica: “Vou, sim. Eu já até que comecei. Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu.” (Vasconcelos, 2009, p. 94). Nota-se que Zezé, ao mesmo tempo em que está magoado e decepcionado com o pai, sabe que matar alguém não é correto e, portanto, transforma o significado de matar em deixar de se importar com a pessoa.
Mais ao final da história, Zezé tem dois grandes choques em sua vida: a perspectiva da derrubada do seu pé de laranja lima e o acidente de Portuga, que o leva à morte. Sabemos que Zezé é ainda jovem, mas conseguimos perceber sua consciência e seus sentimentos ao longo da história.
Vamos aquecer o sol (1974) inicia com a apresentação de três grandes criaturas na vida de Zezé: o sapo Adão e Maurice (frutos da imaginação de Zezé) e Fayolle. O sapo Adão aparece já no primeiro capítulo, quando propõe a Zezé que abra seu coração para que o sapo possa morar nele, e ao concordar com a ideia, Zezé explica que não deve ser tratado como “Zezé”, pois “era um menininho bobo de antigamente. Era um nome de moleque de rua... Hoje mudei muito. Sou menino polido, arrumado...” (Vasconcelos, 2006, p. 14). Aqui, o menino explica que cresceu, que evoluiu, e que, portanto, não deve ser chamado de Zezé. De qualquer forma, o sapo o convence a chamá-lo desta forma, pois quando era assim reconhecido sentia mais ternura, algo que há muito não sente.
Em capítulo posterior, Maurice entra em cena. Zezé o quer muito bem, tal como o papel de pai e, por medo de ser abandonado, questiona Maurice sobre ele ir embora e abandonar Zezé. Maurice surpreende-se com a pergunta e questiona Zezé se já teriam morrido muitos que ele queria bem. Eis que Zezé recorda de Portuga: “Muita gente, não. Só um homem, que me ensinou que a vida sem ternura de nada valia” (Vasconcelos, 2006, p. 60). Zezé reconhece a importância de Portuga em sua vida, tendo lhe mostrado o caminho para a ternura.
Ao longo da história, Maurice, Fayolle e o sapo Adão confortam Zezé, dando-lhe carinho, ternura e também grandes lições. O menino continuava travesso, ainda pensava que teria nascido para coisa alguma, com vontade de deixar de existir e ainda sofria algumas injustiças. Uma delas foi quando seu pai interpreta mal uma situação de Zezé com a empregada. Eles estavam no quarto de malas - um quarto escuro - acomodando uma gatinha para protegê-la, quando seu pai desconfiou que ambos estavam se envolvendo. Após uma grande lição, Zezé sofre muito pela injustiça cometida pelo pai e vai para o colégio Marista conversar com Fayolle. Nisso, um dos Irmãos lhe dá um grande sermão, do quanto Zezé é egoísta ao não perceber que o pai também o perdoara pelas suas bobagens e malcriações e também porque possuía várias outras preocupações (Vasconcelos, 2006, pp. 129-130). Após este episódio, Zezé reflete sobre seus atos e volta pra casa.
Zezé também desfruta de alguns momentos felizes, como quando seus pais precisaram viajar e Zezé ficou com os Irmãos no colégio: “Era do que esse cabra precisava. Brincar com outros meninos da sua idade. Sair da gaiola” (Vasconcelos, 2006, p. 107). Um dos Irmãos percebe a felicidade de Zezé a partir da interação com as outras crianças. E ao mesmo tempo, Zezé pensa “Podia fazer de tudo. Ninguém proibia nada. A gente ficava responsável pelo que fazia” (Vasconcelos, 2006, p. 107). Aqui, se percebe o quanto Zezé ficava feliz com sua liberdade. Ao mesmo tempo, era consciente de que havia limites a serem respeitados.
Ao fim, Adão percebe que pode ir embora ao ver Zezé novamente com sua ternura. Maurice retardará mais um pouco sua ida e afirma que irá embora apenas quando Zezé descobrir o amor.
Temos, em Doidão (1963), também algumas evidências para se considerar a obra como um romance de formação, quando do início da obra, Zezé conversa com seu amigo Tarcísio. Este lhe questiona sobre qual rumo Zezé irá tomar após o Ginásio. O garoto lembra que seu pai lhe fez a mesma pergunta dias antes, e Zezé responde: “Meu pai me falara para pensar, ir aos poucos resolvendo, resolvendo, estudando minhas possibilidades, minhas tendências. E na verdade eu só pensava em nadar, em apanhar sol, em ser livre. Por certo, ele julgava que eu continuaria sua clínica como médico. Mas médico, eu?” (Vasconcelos, 2005, p. 15). Recordamos aqui o próprio Wilhelm Meister, quando nega a profissão que seu pai quer que ele herde (no comércio) e vai viajar em busca de seu autoconhecimento. Ao que parece, Zezé tem o mesmo pensamento: quer viver por si mesmo, tomar suas próprias decisões e realizar suas próprias vontades, muito embora tenha iniciado o curso de Medicina e abandonado em seguida.
Ao visitar o Colégio Marista, Zezé fica decepcionado com os Irmãos pelo fato de o pressionarem tanto em relação a seu futuro e, desapontado, coloca-se em perigo ao ir nadar incessantemente; ele pensa na morte, mas é salvo por uma jangada com pescadores. Zezé chega em casa apavorado. Seu pai, tentando consolá-lo, diz: “- Sabe o que me dizem de você, sempre? Dizem que você é o rapaz mais bonito de Natal. Eu fico orgulhoso disso. Não se preocupe com o que se passa. Você ainda será muito importante na vida. Eu acredito muito no seu futuro” (Vasconcelos, 2005, p. 36). Zezé, aqui, começa a perceber algum carinho e confiança vinda de seu pai: “ (...) de agora em diante, não queria mais brigar com meu pai. Podia ser até que eu desse prá alguma coisa na vida. Pelo menos havia alguém que me acreditava ou começava a acreditar em mim” (Vasconcelos, 2005, p. 42).
E, assim, Zezé vai amadurecendo com a vida, até mesmo em relação ao amor, que descobre com Sylvia, sentindo os desejos aflorarem (Vasconcelos, 2005, p. 48).
Zezé vai percebendo a intensidade de seu amor por Sylvia, uma das causas de discordância com o pai, que faz com que Zezé prometa que vai terminar o namoro. Entretanto, Zezé não consegue apartar-se de Sylvia e decide ficar com ela. E é aí que sua vida parece se direcionar ao futuro: decide fazer concurso para a Marinha Mercante. Zezé, enfim, toma sua decisão.
Ao finalizarmos, brevemente, a retomada das obras autobiográficas de José Mauro de Vasconcelos, percebemos que alguns dos excertos aqui apresentados deixam claro algumas das características de um romance de formação, de maneira diferenciada dos Bildungsromane do século XVIII, à moda do Iluminismo, mas um modelo próprio que mostra, ao longo da história completa, que Zezé, dos cinco aos vinte anos, teve preceptores que o auxiliaram, aconselharam e confiaram nele, como também teve suas próprias lições que contribuíram para a formação de sua moral. Alocado para o ambiente brasileiro, o movimento Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto) da literatura alemã encontra, de certa forma, resquícios nas narrativas que desenham o personagem Zezé, se levarmos em conta sua personalidade sensível, seu desejo de reconciliação com os mundos familiar e social e sua postura humilde, natural e realíssima.
Romance de formação? Considerações finais
Conforme observamos ao longo das histórias apresentadas, percebemos as características dos romances de formação nas vivências de Zezé, como a formação do seu caráter, as virtudes do protagonista, o seu discernimento entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, sentimento de culpa, de remorso e de injustiça.
Vê-se o quanto a consciência de Zezé está presente na história, como quando encontra a meia velha de mulher e pensa que aquela não era hora para peraltices, ou quando percebe que Manoel Valadares não é uma pessoa má. Ao contrário, percebe, mais tarde, como quem lê a alma humana, que o Portuga foi a melhor pessoa que ele conhecera até então; quando se conforma com a partida do sapo Adão, por perceber que está crescendo, por aceitar e se relacionar melhor com o pai adotivo. Compreendemos que as vivências de Zezé transformaram seu mundo interior de forma que modificaram sua visão do mundo externo, quando escreve, sempre nos últimos capítulos, já adulto, algumas de suas lições e pensamentos.
Por todas as características apresentadas ao longo da trilogia de Vasconcelos, podemos considerar o conjunto destas obras como romance de formação (Bildungsroman), que de acordo com Jablonski (2006)
consiste, portanto, não em uma literatura meramente pedagógica, mas trata-se de um romance que procura mostrar ao leitor o processo de formação do ser humano ao longo de sua juventude, incluindo ai desde os dados culturais aparentemente irrelevantes (desde o modo de andar, por exemplo), a aprendizagem não-formal por intermédio do convívio social, bem como a educação formal.” (Jablonski, 2006, pp. 21-22)
No final do livro O meu pé de laranja lima, Zezé, já crescido, comenta que aprendeu as coisas muito cedo. Podemos considerar, inclusive, o último capítulo deste livro como sendo o desfecho das três obras de Vasconcelos, pois, além de ter consciência de si, de quem se tornou e de ter demonstrado aprendizado mesmo que muito cedo, Zezé mostra sua formação. De acordo com Bakhtin (2002), “somente o que evolui pode compreender a evolução” (Bakhtin, 2002, p. 400) e, através do processo de formação apresentado ao leitor, Zezé demonstra quem se tornou.