Introdução
Comumente encontramos nos discursos e reflexões frente ao cenário educacional a ideia de educação para a cidadania, da importância de a escola possibilitar a formação de um cidadão crítico, da relação entre ser um cidadão e dominar o saber científico, ou mesmo saber utilizar os produtos científico-tecnológicos, destacando tais relações como condições para movimentar-se na(s) sociedade(s).
Isto revela uma cidadania que depende, de certo modo, da maneira como os indivíduos são educados cientificamente. Hudson já na década de 1980 defendia a necessidade de uma educação onde se ensinasse “sobre a ciência”, “sobre o modo de produção das ciências” e “sobre os usos da ciência” (Battistoni, R. M., & Hudson, W. E. 1997). Este tripé proposto por Hudson logo se converteu em um programa de pesquisa para a educação científica na forma de uma metáfora Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT) (Vesterinen et al., 2016). Neste programa se defendia que a ciência na segunda metade do século XX assumia a função de cidadania que a alfabetização tivera no final do século XIX/início do século XX.
Para Cassab (2008) o conhecimento científico e suas diversas tecnologias a elas associadas, devem estar disponíveis a todos, implicando a possibilidade de participação nas discussões e decisões políticas que estruturam a sociedade do bem-estar social. Toti e Pierson (2008) destacam as ideias de ciências e de cidadania como centrais para uma boa formação política que busque uma identificação tanto com a cultura como com o conhecimento dos interesses sociais da comunidade. Para eles, a ciência na formação perpassa questões de cunho ético e moral e permitem a tomada de consciência.
Seja na perspectiva ACT ou por outros slogans como Letramento Científico (LC) ou Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), os currículos da educação básica e os projetos de formação de professores de ciências adotaram o viés do ensino de ciências para a cidadania. No entanto, nem sempre fica claro qual a concepção de cidadania pretendida, nem a maneira como a ciência e a tecnologia se constituem em forças sociais. Em particular, o processo de globalização tem modificado a maneira como a ciência e a tecnologia moldam a sociedade contemporânea. No contexto atual, tratar as facetas natural, social e tecnológica não é suficiente para abarcar os desafios da vida coletiva. Hoje os indivíduos são colocados frente a dilemas e não mais a problemas, pois ao mesmo tempo que a ciência e a tecnologia progridem, todos são colocados sob uma fronteira na qual absolutamente ninguém é capaz de entender completamente os contornos. Cada nova descoberta cientifica, cada nova aplicação tecnológica gera uma diversidade de futuros possíveis, sobre os quais não somos capazes de ter uma opinião fundamentada para decidir frente às incertezas que lhe são inerentes. Ou seja, a formação científica, pretendida nos projetos formativos, não habilita os indivíduos a lidar com os riscos produzidos pela presença da tecnociência na vida contemporânea. Kreuger e Ramos (2017) percebem que algo se modifica na ideia tradicional de cidadania ao afirmar que existe:
[…] uma relação próxima entre o “cidadão individualmente responsável” e as concepções de cidadania advindas das teorias liberais, que se fixam nos direitos individuais, propiciando à sociedade que desenvolva o conhecimento científico capaz de possibilitar que as pessoas tomem decisões mais vantajosas individualmente. (Kreuger & Ramos, 2017, p. 4)
Neste sentido, cabe se perguntar afinal o que significa cidadania nos tempos atuais? O que significa ser cidadão? Quais as implicações dessa discussão para a prática pedagógica e a aprendizagem das crianças e adolescentes, por exemplo? Cidadão é aquele que tem documento, certificados e diplomas? Têm direitos e deveres? E quais seriam esses direitos e deveres? É aquele que trabalha? Atitudes ecologicamente corretas são atitudes cidadãs? Respeitar as diferenças tanto em nível local como global é cidadania?
Tomando como base estas ideias e questionamentos tão presentes no cotidiano, pretendemos discutir o papel da ciência e da tecnologia no mundo atual e, de que forma a cidadania tem seus contornos alterados, pela maneira como essas áreas de conhecimento moldaram a sociedade contemporânea.
Na primeira seção deste texto discutimos os aportes teóricos relativos ao termo Cidadania. Em seguida, apresentamos as ideias de Ulrich Bech sobre a sociedade de risco e dos riscos manufaturados socialmente. Na terceira seção discutimos e analisamos as implicações da ideia de risco para educação científica. Por último apresentamos as considerações finais deste estudo.
O conceito de cidadania e a educação
Questões como as apresentadas na seção anterior auxiliam a dar ressonância a complexidade do termo cidadania, bastante presente nas discussões que tangem os processos de ensino-aprendizagem, porém, muitas vezes utilizado sem grandes reflexões. Sabe-se que não há um consenso para a definição do termo cidadania.
Segundo Riesenberg (1992) a palavra cidadania possui um aspecto polissêmico, ou seja, é um conceito historicamente diversificado e mutável; é determinado diante dos contextos e momentos específicos No entanto, Tarozzi et al. (2013) conseguem identificar elementos comuns à ideia de cidadania, indicando que ela se refere ao “espaço público” e à “coletividade política”. O relatório Jacques Delors (Brasil, 2010) deixa claro que a missão da educação do século XXI e oferecer os meios para o acesso à cidadania consciente e ativa e que isso só é possível em estados democráticos.
Talvez a existência desses aspectos comuns se relacione a própria origem do conceito na Grécia Antiga. Lá implicava na participação ativa do sujeito, seja na política, seja na guerra para defender a cidade, embora não se articulasse com o exercício da atividade produtiva. Importante destacar que nem todos eram considerados cidadãos. Isso nos leva a pensar que a cidadania atual é um conceito de matriz iluminista, baseado na razão, que ganha ressonância com as ideias de Rousseau, que atrela o conceito à concepção de contrato social.
Contudo, a Modernidade traz outras nuances ao conceito de Cidadania ressignificando-o e acrescentando a ele aspectos democráticos. Termos como individualismo, lealdade e igualdade se articulam ao conceito de cidadania e este acaba englobando o privado, não apenas o público, ou seja, a comunidade não é o foco exclusivo das decisões do Estado, o foco, nesta perspectiva, é o sujeito, o cidadão.
O conceito de cidadania moderna tem origem nos séculos XVII e XVIII, com a formação dos estados nacionais da Europa, e se consolida nas declarações dos direitos do homem e do cidadão, num período caracterizado pela ascensão da burguesia e por uma mudança no modelo de produção (Louis-Albert Serrut, De lacitoy enneté. Histoire et émergence d'un concept en mutation., Paris, éditions du Cygne, 2016). Assim, segundo, Dominique Schnapper, Qu'est-ce que lacitoyenneté, Gallimard, 2000: “Vivre ensemble, ce n'est pluspartagerlamêmereligion ou être, ensemble, sujetsdumêmemonarque ou êtresoumis à lamême autorité, c'estêtrecitoyens de lamêmeorganisation politique” (op cit. p. 11)
Tal noção é marcada pelo seguinte princípio: os interesses individuais devem ser deixados de lado em nome do “bem coletivo” e o cidadão aceitará e buscará a concretização dessa vontade do coletivo. Assim sendo, a escola possuía a função de formar esse cidadão.
No contexto do conceito de cidadania moderna, a formação para a cidadania, segundo Machado (1998), nega os interesses individuais, separa fatos e valores, deixando de lados valores e enfoca a ciência. É uma ideia de cidadania que oculta as desigualdades econômicas por considerar todos iguais nas “relações de troca” e nas “relações jurídicas” e a desigualdade é justificada por causas naturais. Nesse processo temos duas escolas: a escola para a elite; e a escola para o povo.
De certa forma, esse discurso moderno de cidadania continua presente. Contudo, não podemos desconsiderar que o contexto atual caracteriza-se por uma crise do Estado-nação frente à Globalização (HALL, 2006). É um contexto marcado pelo global e pelo local. Ou seja, pela economia mundial, pela ampliação dos canais de comunicação e pela divulgação e produção da informação em escala global. E também marcado pelas comunidades de defesa dos interesses locais.
Esse cenário ambivalente mostra certa indefinição do sentido do exercício da cidadania, isto é, pode-se inferir que os significados da cidadania na modernidade são questionados e nesse sentido, ressaltamos a importância de ressignificar nosso olhar para o conceito de cidadania e, nesse contexto, é importante que a escola busque a construção de novos vínculos que não se fundamentam simplesmente no mercado de trabalho.
Machado (1998) assessora esta discussão afirmando que considerar a ideia de que a cidadania envolve apenas o cumprimento de deveres e a garantia de direitos não é suficiente para manifestá-la. Sabe-se que as violações aos direitos humanos ainda ocorrem e que há relações de poder intrínsecas à concretização desses direitos. Segundo o autor, legalmente, todos possuem os mesmos direitos e deveres, porém, “restringir a ideia de cidadania à de ter direitos pode significar uma limitação da formação do cidadão à vigilância sobre o cumprimento das deliberações da DUDH [1], ou de outros documentos similares” (Machado, 1998, p. 24).
Ao discorrer sobre a construção do conceito de cidadania e a polissemia que esse conceito assume, Igreja (2004), aponta quatro direções para a compreensão do conceito, a saber: i) Conjunto de direitos e obrigações; ii) Conjunto de qualidades morais, iii) Manifestação da identidade nacional; iv) Capacidade de juízo político.
Ao analisar as práticas de cidadania em sua pesquisa, Igreja (2004) enfatiza que essas direções podem assumir enfoques políticos, econômicos ou sociais. Ademais para ele, as práticas cidadãs podem ser exercidas no local (o Estado) e/ou no mundo. As práticas no âmbito do Estado implicam no cidadão participante do debate político e na gestão dos negócios públicos. Nessa discussão, o autor elenca a “cidadania mundial”, que evidencia a consciência de que: vive-se em um “mundo comunicacional”; a tomada de decisões políticas envolve uma trama de relações complexas e difíceis de serem compreendidas; e “que vivemos num mundo cada vez mais precário em termos de emprego, de esgotamento dos recursos naturais, de contradição entre as necessidades de desenvolvimento e as pressões crescentes com riscos acrescidos sobre o meio ambiente” (Igreja, 2004, p. 36).
Focando ainda a necessidade de construir um novo entendimento sobre a noção de cidadania, Westheimerand & Kahne (2004) organizam a discussão sobre o conceito de cidadania de uma outra forma. Para eles, as perspectivas diversas sobre cidadania têm significativas e relevantes implicações para o currículo. Por isso, propõe três categorias que englobariam os argumentos de respostas para a pergunta “Qual tipo de cidadania?” que teria importância central para educadores e intelectuais em geral. Assim, caracterizam os cidadãos em cada uma dessas três categorias, construindo uma imagem do cidadão segundo os argumentos de educadores partidários das mesmas. São elas: Cidadão pessoalmente responsável; Cidadão participativo; Cidadão orientado para justiça.
A primeira categoria incluiria “cidadãos que agem responsavelmente nas suas comunidades, por exemplo, retirando o lixo, doando sangue, reciclando, obedecendo as leis e não sendo devedor” (pag. 239). As correntes teóricas que defendem esses tipos de cidadãos esperam construir caráter e responsabilidades pessoais enfatizando honestidade, integridade, autodisciplina e trabalho duro. A premissa é que cidadãos bons e engajados ajudam a resolver os sérios problemas sociais, pelo engajamento em serviços de relevância na comunidade.
Na segunda categoria, estariam aqueles cidadãos que tem participação ativa em assuntos cívicos e da vida social da comunidade em nível local, estadual e nacional”. (Id). Nesta categoria estão aquelas correntes que defendem a cidadania participatória. É aquele que transcende o nível de ação imediata do indivíduo na comunidade. Nela se espera que a cidadania construa compromissos coletivos e de verdades que ultrapassam o nível da comunidade. Um dos autores que professa tal nível de engajamento é Deway (1916), que adianta sua visão de desafios coletivos na obra “Democracy as a way of life”.
A terceira categoria é menos perseguida. Ela desenha uma imagem de cidadão que precisa entender a interconexão entre as forças sociais, econômicas e políticas para ser efetivo. Westheimer & Kahne referem-se a essa visão como a cidadania orientada para a justiça, porque os “defensores dela usam a retórica e a análise que chamam explicitamente atenção para assuntos de injustiça e a importância de buscar justiça social” (p. 240). O foco principal é responder a problemas sociais e produzir críticas estruturais. Para os autores, essa perspectiva é construída sobre argumentos de Shor (1992) e Freire (1970), que fazem críticas sociais e pregam por mudanças estruturais. Para os autores, enquanto o cidadão participativo organiza os processos de arrecadação de alimentos, o cidadão responsável doa os alimentos, o cidadão orientado para a justiça pergunta por que existe a fome no mundo.
Cada categoria reflete distintos arranjos de objetivos teóricos e curriculares. Essas categorias não são cumulativas, nem necessariamente independentes, na medida em que se revestem de visões políticas e ideológicas diferentes.
A noção de cidadania numa sociedade de risco
Um dos impactos mais sensíveis da globalização na vida social é uma percepção difusa por parte dos indivíduos sobre o papel da ciência e tecnologia nos dias de hoje. A despeito dos benefícios que foram desenvolvidos a partir da ciência e da tecnologia para a sociedade (ao menos para as pessoas que vivem em regiões ricas e industrializadas), tais como o aumento na expectativa de vida, água potável, saneamento básico, a modernidade tardia, testemunhou um aumento da ansiedade pública e da frágil confiança na ciência (Giddens, 1990). Riscos têm essa capacidade de gerar ansiedade nas pessoas, pois justamente impõem a necessidade de tomada de decisão num cenário de incertezas, envolvendo fatores imponderáveis e incomensuráveis, que não podem ser reduzidos a zero, nem pelas experiências prévias, nem pelo recurso aos experts. Isso pode ser percebido, na afirmação feita pelo comitê de ciência e tecnologia, da câmara dos Lordes no Reino Unido, no relatório Ciência e Sociedade: “When science and society cross words, it is often over the question of risk” (House of Lords, 2000).
Ulrich Beck afirma que esta situação é característica da atual sociedade industrial, que não produz apenas "goods" (bens), mas também "bads" (males), ou como ele afirma, riscos e aflições associadas à tecnologia. Poluição, disputas nucleares, aquecimento global, efeitos colaterais nos tratamentos médicos, são aflições vivenciadas hoje pelas pessoas. Para Eric HSU (2011), “certamente, o sistema não pode garantir que apenas efeitos positivos serão produzidos sobre o meio ambiente, a saúde e o bem-estar e na busca da justiça” (p. 214).
A natureza com a qual a humanidade aprendeu a lidar e a conhecer, desde os primórdios de sua existência, já não existe mais. Em algum momento nos últimos 70 anos, a humanidade deixou de se preocupar com o que natureza poderia fazer com ela e passou a preocupar-se mais sobre o que se havia feito com a natureza. A tomada de consciência de que o ambiente em que vivemos começava a se degradar é algo que data dos anos 1980. Ficou cada vez mais clara a mudança de percepção de que os povoamentos humanos não estão cercados pela natureza, mas ao contrário é a natureza que vem sendo cercada pela humanidade, de tal modo que as reservas naturais, as matas, os mananciais passaram requeridas e defendidas pelas leis dos países.
O ponto enfatizado por Beck é que vivemos numa sociedade de risco, que emerge no período do pós-guerra em estágio de modernidade reflexiva (Beck et al. 1994; Giddens, 1990). Somos uma sociedade que vive a pós-natureza, reflexo de como a tecnociência transformou a natureza em tecnonatureza. Neste tipo de modernidade, as preocupações centrais da sociedade mudam do desenvolvimento e implementação de novas tecnologias para o gerenciamento de riscos associados às tecnologias já existentes. Na sociedade de risco, a percepção do risco teve um impacto fundamentalmente transformativo. Nas palavras de Daniel Mendelson (2011):
In Risk Society, Beck argues that the perception of risk within contemporary society has had a fundamentally transformative impact. Vitally, risk was apparent in previous eras of history; indeed, natural disasters constantly tested communities across the globe. Yet Beck distinguishes the period before the work’s publication as a particularly significant moment in risk acuity, in which institutions are undermined by risk as influenced by human responsibility: what Giddens later termed ‘manufactured risk’ (as opposed to external risk). (p. 231-232)
Em momentos passados da história, o risco era aparente. Os desastres naturais testavam constantemente as comunidades ao longo do globo. Nesse sentido, Beck, diferencia a percepção de risco na atualidade, onde as instituições são desestabilizadas pelo risco de responsabilidade humana. Deste modo a essência do risco foi completamente modificada na atualidade, principalmente nos domínios ecológicos, políticos e cultural. Isto é o que Giddens (1990) define como riscos manufaturados em oposição aos riscos externos.
Riscos externos seriam eventos que podem atingir indivíduo e populações, normalmente vindos de fora, mas que acontecem com regularidade e frequência, capazes de serem previsíveis e assim asseguráveis. A ideia de "apólice de seguro" nasce dessa possibilidade. Inicialmente como seguros individuais, para mais recentemente se transformar em seguros coletivos –doenças, desemprego, desabamentos são todos tratados pelo Estado de bem-estar como acidentes do destino.
Riscos manufaturados são criados pela progressão do desenvolvimento humano, especialmente pelo progresso da ciência e da tecnologia. Eles referem-se aos novos meio-ambientes arriscados, para os quais a história nos forneceu muito pouca experiência prévia, como por exemplo: terrorismo.
Ainda segundo o autor, na sociedade de risco, temos a substituição do par perigo-segurança, pelo par risco-confiança. Nesta nova estrutura, fica claro que embora o uso coloquial possa criar uma zona de superposição semântica entre perigo e risco, essas noções pertencem a mundos muito diferentes. Desta forma, podemos afirmar que duas transformações fundamentais vêm afetando as vidas das pessoas, ambas conectadas com a crescente influência da ciência e da tecnologia, embora não completamente determinadas por elas: o fim da natureza e o fim da tradição.
Em outra obra, Beck (1999) põe em xeque a instalação de um cosmopolitismo mundial resultante da percepção de que os problemas mundiais não são mais localizados no tempo e no espaço, mas atingem a todos. Para HSU, este ponto é destacado na obra de Beck. Ele afirma que:
However, as some have noted, trying to actualize cosmopolitan virtues is not something that comes about easily. This is a point articulated by Ulrich Beck who, in World Risk Society (1999), identifies the deferral of risk as one of the most serious obstacles to cosmopolitanism. (HSU, 2011, p.214)
Se é correto afirmar que os riscos são hoje globalizados, como são o aquecimento global e a poluição, a maneira como eles são compartilhados e gerenciados não é igualmente distribuída. Certamente, um habitante de Nova York viverá as consequências do aquecimento global de maneira muito diferente de um habitante de Nova Delhi ou das ilhas Maldivas. Beck refere-se à possibilidade de retrocesso de um processo de cosmopolitismo nascente em prol de um posicionamento egoísta do "me first". Isto, pois quando as pessoas se virem em face de conflitos ou problemas de ordem mundial, buscarão soluções que resolvam as ameaças imediatas. As recentes decisões do governo Trump, em abandonar protocolos globais de combate ao aquecimento global, em prol da proteção do PIB americano, pode ser visto como uma evidência dessa atitude egoísta em nível de nação. Da mesma forma, a resistência da grande parte da opinião pública brasileira ao fluxo de imigrantes venezuelanos é outro exemplo. A pergunta subliminar neste contexto e que merece nossa atenção é: Por que se deveria investir na fé dos outros? Essa questão é importante, pois toca diretamente em qual a formação dos indivíduos necessária para lidar com situações de ameaças, cujos efeitos podem ser sentidos de maneira próxima, mas cujas causas estão localizadas em relações complexas, envolvendo fatores de ordem global. Isso implica repensar urgentemente o que seria uma educação científica e tecnológica para o risco.
Risco como tema curricular
Nas últimas duas décadas, o tema risco passou a integrar os currículos de ciências e programas educacionais nas escolas de alguns países. Na Inglaterra temos o Qualification Sand Curriculum Development Agency, (2011), nos Estados Unidos Science Education for Public Understanding Program (2011), na Austrália o Australian Curriculum, Assessment and Reporting Authority, (2011). Em todos estes currículos encontramos unidades de aprendizagem sobre avaliação de riscos. No relatório Nuffield 2000, sobre educação científica nas escolas, Millar & Osborne (1998) fazem recomendações sobre ideais básicas de ciência:
By considering some current issues involving the application of science, pupils should […] understand the ideas of probability and risk; be aware of the range of factors which can influence people’s willingness to accept specific risks […]. (p. 2022)
Em muitos outros países e especialmente no Brasil, os currículos estão muito distantes de incorporar aspectos da sociedade de risco. Uma análise mais detalhada das bases que sustentam a formação científica proposta nesses currículos, revela um posicionamento anacrônico, no qual o saber científico e tecnológico ainda é direcionado a uma suposta ciência e tecnologia que pretendem garantir um estado de bem-estar social. A noção de riscos manufaturados pela incorporação dos resultados da ciência e da tecnologia, nos modos de vida contemporâneos não é tratado.
Precisamos aprender a ensinar os indivíduos a lidar com situações de riscos que exigem uma competência diferente no uso do conhecimento. Riscos são problemas de um tipo diferente, pois não existem respostas seguras, nem no contexto das práticas já vivenciadas, nem da parte dos “experts”. Neste sentido, Christensen (2009) defende que o tema risco seja parte importante dos currículos de ciências.
Em relação a possibilidade de tratar este tema na educação básica, uma série de trabalhos realizaram pesquisas, envolvendo risco e as formas de tomada de decisão pelos alunos: Eijkelhof (1990, 1996), Lijnse, Eijkel- hof, Klaassen, e Scholte (1990), Keren e Eijkelhof (1991), Dillon e Gill (2001), Kolstø (2001, 2006) e Ryder (2002).
Em particular, Kolstø (2001) estudando os dilemas sociocientíficos, mostra que os estudantes questionam as fontes de avaliação de risco, em geral sobre a base de uma relação de confiança em relação à oposição de interesse dos cientistas, mas ao mesmo tempo a análise dos estudantes é fracamente baseada no entendimento que eles têm sobre o conhecimento científico ou sobre o entendimento dos problemas ao fazer avaliações de riscos.
De modo geral, esses trabalhos tem o mérito de ter desenvolvido protocolos de pesquisa sobre o tema risco e a tomada de decisão. No entanto, a quase totalidade deles, foca as fontes sobre as quais os alunos depositam suas crenças para realizar as avaliações de riscos. Embora essa habilidade seja importante na tomada de decisão, fontes de certeza são falsos alicerces quando se trata de enfrentar riscos manufaturados. Nestes casos, o mais importante é ser capaz de entender que na modernidade reflexiva, os conhecimentos científicos e tecnológicos são em si fontes de bens e males (no sentido proposto por Beck e apresentado mais acima).
But decision making is usually complex. It is relatively, and possibly deceptively, easy to decide on a course of action, where both the possible outcomes and the probabilities for each of these potential outcomes are known. This is the kind of situation involved in gambling on roulette tables or betting on horses. However, in many techno scientific situations such as SARS and global warming and nanotechnology, where scientists frequently disagree about the models on which any prediction of risk can be calculated (Millar, 1997), neither the probabilities nor the outcomes are known —“the injured of Chernobyl are […] not even born yet” (Beck, 1996, p. 31)—arising in a situation of “ignorance,” for example, in the emergent GRAIN (genomics, robotics, artificial intelligence, nanotechnology) technologies, where uncertainties are high and decision stakes are urgent (Ravetz, 2005). Standard risk assessments fail to fully characterize the uncertainties, unknowns, and issues of ignorance associated with the impacts of new technologies (Levidow, 2002). (levinson et ali., 2012, p. 216)
Outra perspectiva importante são os meios disponíveis para que os professores consigam lidar com o risco como componente curricular. Levinson e colaboradores afirmam que “[…] escolheram trabalhar com professores de ciências e matemáticas sobre a temática risco, pois: 1. Risk is not only becoming prevalent in science curricula, but in mathematics curricula too; 2. there are often rigid divisions between subjects in schools…” (Levinson et all, 2012, p. 217)
Neste trabalho, Levinson et al., 2012, fazem uma investigação que visa responder as seguintes perguntas: Quais são os fatores prevalecentes que influenciam a tomada de decisão, quando pares de professores de ciências e matemática constroem modelos de risco através de uma estrutura de micromundo estruturados, baseado numa abordagem utilitarista? Para isso, quatro pares de professores devem tomar decisões numa situação imaginária dita “dilema de Deborah”. Usando ferramentas digitais que medem probabilidade, os professores foram gravados e a maneira como se portavam, foram analisadas frente a uma situação de risco. A conclusão do trabalho apontou que:
Scenarios structured like Deborah’s dilemma could support students’ engagement with risk assessment incorporating values explication and be adapted to diverse contexts and test the validity of the microworld as a means of constructing a personal understanding of risk in a particular context. However, further research is needed to identify the opportunities and barriers for learning and decision making in these kinds of scenarios. (pag. 230, negritos acrescentados)
Cabe, no entanto, questionar se todos esses trabalhos desenvolvidos no âmbito da tomada de decisão frente às situações de risco, consideram o risco como integrante da sociedade contemporânea fundada nas forças produtivas da ciência e da tecnologia. Em outras palavras, a ideia de modernidade reflexiva é tomada como base ontológica nos cenários de risco, desenvolvido tanto nas pesquisas acima listadas quanto na forma como o tema é integrado nos currículos tratados mais acima. Nossa análise parece indicar que esse não é o caso. Assim, abaixo finalizamos nosso trabalho apontando implicações importantes para a educação científica e tecnológica quando se toma a perspectiva da sociedade de risco e os impactos gerados na concepção de conceito de cidadania.
Implicações
A discussão realizada ao longo deste trabalho, evidenciou que noções de cidadania e o foco na formação do cidadão, emergem com força na construção dos currículos de ensino de ciências e tecnologia. Infere-se que a concepção de cidadania por trás da relação cidadão, conhecimento científico e tecnológico baseia-se no direito à liberdade individual; ou seja, o cidadão é visto como aquele que respeita e que é respeitado e tem como base seus valores e conhecimentos pessoais.
Ao mesmo tempo, as concepções mais atuais de cidadania destacam a globalização e apontam para uma cidadania orientada para a justiça social, onde as responsabilidades se estendem para além do âmbito da realidade imediata e a prática de resolução de problemas se transforma no gerenciamento de riscos.
Vários eixos centrais presentes na sociedade moderna industrial, foram sendo substituídos. O casamento, a concepção de família, a relação com a religião e escolarização, ocuparam outras configurações na vida das pessoas. Mudanças sobre as questões de gênero colocaram em xeque a identidade dos homens e mulheres e as funções até então a eles atribuídas. Nessas novas formas de se organizarem, se arriscam à possibilidade de fazer escolhas, viver de múltiplas formas, correr risco, impactando a noção de cidadania. O indivíduo passa a ocupar lugar de destaque em relação a todas as esferas da organização social.
Configura-se assim, um conceito de cidadania que dialoga com um novo tipo de conflito social, já que na sociedade de risco as ameaças se distribuem de forma não excludente. A luta de classes, não faz mais o mesmo sentido nesse conceito. Pobres e ricos, brancos e negros, serão afetados pelos riscos, não da mesma maneira, mas gerando impactos no desenvolvimento da noção de cidadania e processos de relação com o conhecimento.
Dessa forma, a contribuição deste trabalho é refletir sobre aspectos a serem considerados no exercício dessa cidadania numa sociedade de risco. Parece-nos necessário identificar oportunidades e barreiras para a aprendizagem da tomada de decisão, em cenários que envolvem situações de riscos externos e manufaturados. Para isso, listamos abaixo aspectos a serem considerados, identificando possíveis oportunidades e barreiras em cada uma delas.
Oportunidades aparecem na medida em que a nova maneira de conceituar o risco, permite inseri-lo na dinâmica da modernidade reflexiva. Desta forma, contextos, temas e assuntos passam a se apresentar como conteúdos naturais para serem tratados em ambiente educacional. A seguir, apresentamos alguns desses temas/contextos que podem servir a esse propósito:
A. Risco na modernidade reflexiva:
1. Globalização do risco no sentido de intensidade: por exemplo, a guerra nuclear pode ameaçar a sobrevivência da humanidade.
2. Globalização do risco no sentido da expansão da quantidade de eventos contingentes que afetam todos, ou ao menos, grande quantidade de pessoas no planeta: por exemplo, mudanças na divisão global do trabalho.
3. Risco derivado do meio ambiente criado, ou natureza socializada: a infusão de conhecimento humano no meio ambiente material.
4. O desenvolvimento de riscos ambientais institucionalizados afetando as possibilidades de vida de milhões: por exemplo, mercados de investimentos.
5. Consciência do risco como risco: as "lacunas de conhecimento" nos riscos não podem ser convertidas em "certezas" pelo conhecimento religioso ou mágico.
6. A consciência bem distribuída do risco: muitos dos perigos que enfrentamos coletivamente são conhecidos pelo grande público.
7. Consciência das limitações da perícia: nenhum sistema perito pode ser inteiramente perito em termos das consequências da adoção de princípios periciais. (implicação educacional importante)
B. Consequências da Modernidade:
• Incertezas manufaturadas introduzidas diretamente na vida pessoal e social.
• Tecnologia expandindo o domínio de escolhas à medida que desaparecem tradições.
• Crise do sistema de bem-estar como crise das possibilidades de gerenciamento numa sociedade dominada por um novo tipo de risco.
• Orientação mais ativa para a vida dos indivíduos implica necessidade de orientação mais ativa também no gerenciamento do risco – não é de se estranhar que as pessoas que conseguem tal habilidade optam por colocar-se fora do sistema de bem-estar.
• Retorno à natureza - movimentos naturalistas. Investigar a possibilidade de devolver a responsabilidade sobre os destinos do mundo à natureza. Crença na capacidade da natureza de tomar as decisões corretas frente aos riscos externos a própria esfera de existência dos indivíduos.
Por outro lado, existem barreiras a serem enfrentadas quando se propõe a abordar os riscos na modernidade contemporânea como temas educacionais. Abaixo apresentamos alguns desafios que se apresentam, oriundos tanto da forma tradicional de se conceber o risco e o papel educativo do ensino das ciências e da tecnologia.
A. Tradição na ciência e a educação científica:
• Por mais de dois séculos a tomada de decisão baseada numa ciência que funcionava como uma forte tradição na sociedade ocidental.
• Conhecimento científico visto como alternativa à tomada de decisão baseada em tradições, mas transformado ele próprio numa uma autoridade dada como certa/segura em seus próprios direitos.
• A ciência colocada fora da vida das pessoas e por isso respeitada como um meio de gerar segurança.
• Busca naturalizadadas opiniões dos experts (cientistas e engenheiros)
• Relação tornada menos dialógica ou engajada com a ciência e a tecnologia em relação aos tempos anteriores.
Finalmente, o novo papel do conhecimento científico e tecnológico na formação para a cidadania, não pode se manter alinhado com a ideia de um estado de bem-estar progressivo. O conhecimento científico e tecnológico teve papel fundamental em ampliar o sentimento de segurança ontológica das pessoas, mas isso aparentemente terminou em algum momento no pós-guerra. Aprender a viver num mundo, onde o futuro se mostra opaco, em várias direções e onde a tomada de decisão precisa ser feita num ambiente de incertezas é a nova fronteira educacional a ser perseguida nas escolas e em outros contextos de aprendizagem. Não há como escapar de tomar decisões em ambientes conflitivos, onde as informações oferecidas pelas ciências e pela tecnologia são cambiáveis e sujeitas a pontos de vistas contraditórios.
Podemos dizer que ter consciência de risco é ter projeções para o futuro e não a certeza do presente. Dessa forma, a Ciência assume um outro papel, ligado à construção dessa consciência de risco. Não como o lugar da certeza absoluta, mas como fonte importante para legitimação e reconhecimento dos riscos. Mais do que nunca, a educação deve buscar preparar os indivíduos, para estabelecerem uma relação mais dialógica e engajada com a ciência e a tecnologia.
De maneira geral, a sociedade moderna tem poucos meios para lidar com os riscos manufaturados. Hoje praticamente inexistem instituições capazes de monitorar as mudanças tecnológicas e suas influências nos modos de vida das pessoas. A educação científica parece colocar a natureza como se ela ainda fosse a velha natureza; como se a tradição científica ainda fosse a tradição no período industrial. Isso reduz a capacidade das pessoas em lidar com os riscos, que nascem no interior desse amalgama, em que se tornaram a Ciência-Tecnologia-Sociedade na contemporaneidade.
Assim, vale o alerta de Giddens sobre os riscos no modo de vida atual:
Reconhecer a existência de um risco ou conjunto de riscos é aceitar não só a possibilidade de que as coisas possam sair erradas, mas que essa possibilidade não pode ser eliminada. A fenomenologia de uma tal situação é parte da experiência cultural da modernidade em gera […]. (Giddens 1990, pag. 143)