Introdução
A maioria dos problemas educacionais e sociais são complexos e não há soluções rápidas com respostas imediatas para superá-los, principalmente pelo fato de estarem interligados e apresentarem caráter indissociável (Fialho, 2015). A pobreza, a fome, a evasão escolar e a situação de rua são alguns desses problemas que merecem atenção especial, o que justifica a necessidade de elaboração de estudos, pesquisas e reflexões críticas acerca das nuances que perpassam, fundamentam e/ou constituem tais mazelas para ampliar suas compreensões.
Ante a estranheza de deparar-se diariamente com inúmeros moradores em situação de rua na cidade de Maracanaú, região metropolitana de Fortaleza, no estado do Ceará, Brasil, questionou-se o que levava um jovem a abandonar a escola e constituir moradia nos espaços públicos, bem como que políticas públicas – educacionais e sociais – foram-lhe fomentadas com vista à garantia de direitos constitucionais. Ademais, Maracanaú, município que se destaca por conter o maior parque industrial do estado, permanece em constante crescimento no que tange à arrecadação de impostos por serviços, ocupando o terceiro lugar no ranking estadual do Produto Interno Bruto (PIB), com renda per capita de R$ 30.684,40 em 2014 (Ipece, 2016).
Para investigar tal inquietação, desenvolveu-se uma pesquisa que objetivou biografar a vida de um jovem em situação de rua, há mais de 10 anos, em sua relação com as vivências de fome, abando escolar e pobreza. A investigação foi desenvolvida no período de julho de 2015 a agosto de 2018 por meio de estudo do tipo biográfico (Dosse, 2009; Loriga, 2011), realizado mediante a metodologia de história oral (Ferreira & Amado, 2006), que permitiu não apenas conhecer a trajetória do jovem em alusão, mas analisar suas narrativas na interface com o contexto social e cultural, lançando luz às nuances vivenciadas por um sujeito que foi expurgado da escola e fez da rua seu espaço de moradia e sobrevivência.
A realidade vivida pelos moradores de Maracanaú é complexa, pois a cidade, ao mesmo tempo que apresenta grande desenvolvimento econômico, possui enorme déficit no desenvolvimento social da população, demonstrando severa desigualdade e exclusão social, fato comprovado pela má distribuição dos recursos, o que impõe à maioria dos moradores uma renda per capita média inferior a R$ 372,91 (Ibge, 2010), ainda que, numa divisão igualitária, tal valor devesse ser acima de R$ 30.000 mensais. Essa injustiça social acomete moradores com a vivência da pobreza e da fome, todavia, importa uma explanação sucinta acerca da compreensão que se utilizou nesta pesquisa sobre os conceitos de juventude, pobreza, fome e situação de rua que emergiram no decurso de fala do jovem biografado, distanciando-o da educação formal.
No que concerne à educação formal, esta é entendida com aquela que se dá de maneira sistematizada, intencional, com objetivos pré-estabelecidos, geralmente desenvolvida em instituições de ensino formalizadas, a exemplo de escolas e faculdades. Já a educação informal é fomentada no seio familiar e social, sem intencionalidade, de maneira espontânea (Libâneo, 2002). Neste estudo, buscamos reconstituir a trajetória educacional do jovem considerando suas vivências educativas plurais, pois, acredita-se que “não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar em que ela acontece; o ensino escolar não é a única prática, e o professor profissional não é seu único praticante” (Brandão, 1981, p. 64).
São muitos os estudiosos que definem o termo “juventude” de diferentes maneiras: “[…] como uma faixa etária, um período da vida, um contingente populacional, uma categoria social, uma geração” (Abramo & León, 2005, p. 6). Para o Estatuto da Juventude e a Política Nacional de Juventude (PNJ), são jovens aqueles com idade entre 15 e 29 anos. No entanto, “[…] apesar de ter por base marcos etários e biológicos, a definição da população jovem é indissociável do contexto sociocultural, político e econômico” (Brasil, 2010, p. 15). Logo, “[…] há muitas outras formas de conceituar a juventude, lançando mão de aspectos sociais, culturais ou legais, entre outros de igual relevância, respeitando uma diversidade de contextos e realidades” (Batista, 2009, p. 6962). Ao contrário de compreender tal categoria como uma fase de vida delimitada etariamente e “[…] marcada por uma certa instabilidade associada a determinados problemas sociais” (Pais, 1990, p. 141), entende-se como uma categoria social heterogênea, que necessita de contínua decifração por ser uma invenção moderna, que passa a ser um terreno de constante transformação, inclusive se “[…] constituindo objeto de inúmeros estudos de diferentes perspectivas” (Souza, 2004, p. 48). Por isso, nesta pesquisa, compreendem-se juventudes como uma fase da vida complexa, heterogênea, permeada de singularidades biológicas, psíquicas, sociais e culturais (Dayrell, 2007; Fialho, 2015).
Vários autores (Ivo, 2008; Montaño, 2012; Siqueira, 2013; Yazbek, 2012) discutem a pobreza e são consensuais em inferir que a esta corresponde a condição de não satisfação de necessidades humanas elementares, como comida, abrigo e vestuário, sendo que a extrema pobreza e a miséria são o agravamento da restrição de acesso a esses elementos. Algumas pessoas com acentuada restrição de recurso econômico, além de não conseguirem acesso a insumos elementares, vivem sob constante situação de insegurança alimentar, pois não conseguem sequer acesso regular e permanente à alimentação (Monteiro, 2003).
Compreende-se que a fome humana não deve ser mensurada apenas a partir de aspectos isolados de disponibilidade de alimentos no mercado ou no domicílio, de gastos familiares com alimentos, de inquéritos de consumo alimentar e de indicadores de estado nutricional (Albuquerque, 2009), pois a fome, como um fenômeno geograficamente universal, configura-se com faceta fortemente subjetiva, uma calamidade social que assola grande parte da sociedade por estar excluída do direito fundamental da alimentação (Valente, 2003). A restrição alimentar reverbera primeiramente na fome momentânea, aguda, caracterizada pela vontade iminente de comer; em seguida, não saciada, transforma-se em fome crônica (Castro, 2003). A primeira é aquela equivalente à urgência de se alimentar, um grande apetite momentâneo, já a última se caracteriza pela permanência da fome, “[…] ocorre quando a alimentação diária, habitual, não propicia ao indivíduo energia suficiente para a manutenção do seu organismo e para o exercício de suas atividades cotidianas” (Monteiro, 2003, pp. 8).
Consoante a Política Nacional de Inclusão Social (Brasil, 2008), a população em situação de rua é um grupo heterogêneo que apresenta algumas características em comum: pobreza, rompimento de vínculos familiares, abandono escolar, vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado, ausência de moradia convencional, o que faz da rua o seu espaço educacional, social, de moradia e de sustento Como tal vivência não é necessariamente permanente e comporta trajetórias, experiências, espaços e identidades distintas (Giorgetti, 2006), utiliza-se a terminologia “situação de rua” em vez de “morador de rua”, já que essa última expressão está permeada por paradigmas preconceituosos estáticos e universalizantes.
De posse de uma compreensão elementar acerca da problemática do estudo, do seu objetivo e das categorias principais suscitadas – educação formal e informal, juventudes, pobreza, fome e situação de rua –, interessa destacar que a pesquisa biográfica com o jovem em relato suscita possibilidade de alargar a compreensão acerca da educação de sujeitos relegados aos porões da memória e a segundo plano de importância nas políticas públicas, na interface com problemas sociais que perpassam o cotidiano de muitas crianças e jovens brasileiros. Ou seja, permite refletir a educação numa perspectiva ampla, interdisciplinar e indissociada do contexto social.
Percurso metodológico
Partindo da tentativa de compreender a vida e o cotidiano de pessoas em situação de rua na condição de extrema pobreza, com vistas a entender melhor os motivos que as fazem abandonar a escola e morar na rua, tornando-se pouco visíveis pelo poder público e desassistidas de políticas educacionais e sociais, elaborou-se uma pesquisa consoante a história do presente (Ferreira, 2002), de natureza qualitativa (Minayo, 2000), do tipo biográfica (Dosse, 2009), que possibilitou considerar as subjetividades do biografado e analisar com maior minúcia as suas narrativas. Logo, não se concedeu importância à amostra e quantidade de variáveis, mas, ao que há de singular nas percepções do sujeito, numa relação indissociável entre o individual e o coletivo, que valoriza a qualidade em detrimento da quantidade, ensejando visibilidade a questões macrossociais, como é o caso da fome e da situação de rua, sem perder de vista as particularidades que as permeiam no âmbito microssocial da educação formal e informal.
Amparada nos pressupostos da História Cultural (Burke, 2011), utilizou-se a metodologia da história oral (Alberti, 2005; Ferreira, 2002) para biografar um indivíduo em situação de rua do município de Maracanaú, por possibilitar evidenciar importantes revelações e interpretações educacionais e socioculturais, especialmente com a colaboração de atores por vezes marginalizados socialmente (Thompson, 1998), que estão destituídos de direitos básicos e silenciados pelo estigma da inferioridade devido às condições econômica e social desfavorecidas e à exclusão social (Simões, 2010).
Interessa destacar que a pesquisa do tipo biográfica, por muitas décadas, foi relegada a segundo plano de importância na ciência por ser julgada subjetiva, imprecisa e pouco confiável. No entanto, já é consenso sua relevância no século XXI, especialmente para as ciências humanas e sociais, pela possibilidade de ampliar a compreensão de aspectos educacionais, culturais, históricos, sociais, etc. (Dosse, 2009). Ademais, “[…] atualmente há importantes trabalhos sobre as narrativas de crianças, adolescentes e jovens” (Meihy, 2002, p. 39), o que permite entender que o jovem, ao narrar sua história de vida, assume o papel protagonista de si, mesmo sendo interpelado por uma realidade social, econômica e cultural que expõe suas facetas nos relatos (Fialho, Machado & Sales, 2014). Em congruência, a oralidade juvenil permitiu estudar cientificamente a interlocução entre educação, fome, situação de rua e pobreza à luz da narrativa de vida de um sujeito que vivencia tal situação e que pode possuir um olhar valioso sobre a realidade em que se insere.
Um jovem despertou especial atenção, doravante denominado ficticiamente de João, pelo fato de estar perambulando pelas ruas de Maracanaú havia 10 anos e, mesmo recentemente usufruindo dos equipamentos e políticas públicas de assistência social do município, continuava nas ruas, queixando-se de fome e longe da educação formal. João tornava-se não apenas sujeito desta pesquisa, mas indivíduo histórico de narrativa ímpar para a compreensão da inter-relação entre a situação de rua, o abandono escolar, a fome, a pobreza e os condicionantes da permanência nessa condição.
João foi contatado no Restaurante Popular de Maracanaú, localizado na região metropolitana de Fortaleza, no estado do Ceará. Esse local foi escolhido pelo fato de que, aparentemente, seria o lugar mais provável de encontrar o sujeito desta pesquisa, já que ele se alimentava ali todos os dias úteis. Importa salientar que o projeto, antes do contato inicial com João, foi submetido à aprovação da Secretaria de Assistência Social e Cidadania de Maracanaú, que emitiu parecer favorável; depois disso, João assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que lhe assegurou esclarecimento do objetivo da pesquisa, riscos, ausência de benefícios e sua maneira de colaboração, bem como o sigilo da identidade e a garantia de participação voluntária sujeita a interrupção a qualquer momento, como rege a resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466, de 12 de dezembro de 2012, que trata da ética em pesquisa com seres humanos.
Foram realizadas três entrevistas livres – gravadas, transcritas, textualizadas e validadas segundo a técnica geradora de estrutura do discurso (Flick, 2009) –, que somaram aproximadamente 90 minutos, em sala reservada, com boa acústica, do Restaurante Popular. A única orientação fornecida foi para que João contasse tudo o que lembrava a respeito de sua história de vida.
Importa destacar que a pesquisa biográfica trabalha essencialmente com a memória, e esta, além de seletiva, permeia-se por lembranças e esquecimentos (Nora, 1993). Logo, não se pretendeu uma história única, verdadeira e inquestionável. Com efeito, buscou-se uma narrativa histórica, a qual tem, por característica, não negar a subjetividade própria das ciências humanas (Minayo, 2000), nutrindo-se desta com vistas a realizar interpretações macro-históricas das quais os estudos macro-históricos não dão conta (Loriga, 2011). Sem intenção de linearidade (Le Goff, 2003) ou generalizações, foi possível compreender o todo pela parte – afinal, as histórias individual e coletiva são indissociáveis (Burke, 2011). Consequentemente, analisar a narrativa de João à luz da metodologia da história oral de vida, refletindo sobre as nuances vivenciadas por quem é pobre, faz da rua seu espaço de moradia e sobrevivência e que experimentou a vivência do abando escolar e da fome, é relevante para ampliar a visão crítica concernente a uma problemática que não pode ser compreendida sem que se suscitem as percepções e anseios de quem sofre no dia a dia tais mazelas.
Resultados em discussão
João nasceu na cidade de Acaraú, interior do Ceará, e sua família deveria ser composta por seus pais e 12 irmãos, porém, apenas seis permaneceram vivos após a infância, os quais foram doados a outras famílias com condições econômicas menos miseráveis do que a de seus pais. João foi separado de seus genitores ainda na infância, mantendo esporádicos contatos com eles, pois contou que seus pais não tinham condições financeiras de cuidar dele e dos irmão. por conta disso, ele ficou sob o cuidado de outras pessoas durante toda sua infância: amigos, avós ou tios.
Silva (2006) compreende que a situação de rua é um fenômeno multifacetado que não pode ser explicado desde uma perspectiva unívoca e monocausal, mas que apresenta, como fator de predisposição, o rompimento de vínculos familiares, o que se constata na narrativa de João:
[…] Eu não tenho contato com meus pais, com minha família, há 10 anos; eles moram no Acaraú. Hoje minha família são os irmãos da rua, porque, às vezes, o pessoal de fora lhe trata melhor do que os da própria casa. É por isso que você os trata como irmãos, como uma família. Não sinto falta deles, porque eu nunca fui criado com meus pais, sempre fui criado com os outros; só via meus pais de 15 em 15 dias. Com 6 anos, comecei a trabalhar na feira.
O jovem relatou que, por não ter tido muita convivência com seus genitores, não sentia falta deles e que o ambiente familiar não era auspicioso. Entregue aos cuidados de outra família, não possuía uma figura de referência e sua educação informal foi marcada por omissões e rejeições sem a constituição de laços familiares sólidos. Assis e Constantino (2001) caracterizam este fenômeno como “Pingue-Pongue” emocional, indicando que os adolescentes autores de atos infracionais foram empurrados de um lado para outro durante a infância e que essa vivência prejudica sobremaneira o desenvolvimento psicossocial da criança e do jovem.
João começou a trabalhar muito cedo, aos 6 anos, carregando caminhão numa feira e depois vendendo frutas no mesmo local. O trabalho infantil priva as crianças de condições essenciais a um pleno desenvolvimento, como, por exemplo: frequentar a escola e estudar regularmente; ter momentos de lazer e de brincadeira; estar protegida contra acidentes, doenças e desgastes; e acarreta problemas no “aspecto psicológico, dadas as limitações das aquisições cognitivas no que refere à aprendizagem escolar” (Sousa & Alberto, 2008, p. 721)
Segundo a Constituição Federal do Brasil (1988), a educação é um direito fundamental, inclusive a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (LBD 9394/96) assevera que o ensino fundamental é um direito subjetivo, ou seja, ao mesmo tempo que é um direito é também um dever, de modo que nenhuma criança deveria estar desassistida da educação formal. No caso de João, contudo, não houve qualquer intervenção para assegurar esse condão. Em decorrência do trabalho infantil e da negligência dos seus responsáveis e do Estado, ele iniciou-se tardiamente nos estudos, aos 12 anos, por influência de seu padrasto, que o matriculou em uma escola na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), por já estar fora da faixa etária exigida para a matrícula na escola regular. João conseguiu permanecer estudando mesmo ante a dificuldade de enfrentar os preconceitos raciais e sociais (Carvalho & França, 2019), especialmente, por causa do atraso no aprendizado. Ainda assim, em menos de dois anos de permanência na escola, ele aprendeu a ler e escrever. Salienta-se que a evasão no EJA é um problema histórico e multifacetado no Brasil (Fernandes & Oliveira, 2019).
Sobre a escola, João não lembra de nenhum professor que tenha lhe marcado de maneira especial, também não recorda de qualquer profissional que tenha lhe estimulado a permanecer na escola, possivelmente porque a práxis educativa vivenciada era descontextualiza (Genú, 2018), gerando o fracasso escolar para o qual a vítima não ser culpabilizada (Pereira & Ribeiro, 2017). Acrescenta, inclusive, que houve um período em que ele estudava de noite e trabalhava de dia, realizando o curso de padeiro pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), exercendo atividade-fim pertinente ao curso durante um tempo numa padaria. Eduardo e Egry (2010, p. 21), todavia, lecionam que
Na retomada histórica, verifica-se que a preocupação social com os jovens aparece a partir da era industrial moderna, quando surge o interesse na capacitação técnica do jovem para o trabalho. Coincidentemente ou não, a maioria dos programas e projetos hoje existentes no Brasil para o atendimento de adolescentes está relacionada à capacitação do jovem para o trabalho, para a inserção no modo capitalista de produção.
No entanto, sua dupla jornada, trabalhando todo o dia e estudando à noite, era muito cansativa. Ademais, em nenhum momento sentiu interesse por ser padeiro, bem como não conseguia vislumbrar, por intermédio da educação formal, um futuro mais promissor. Sousa e Alberto (2008, p.1) estudaram a relação do trabalho precoce com o processo de escolarização de crianças e adolescentes, constatando implicações psicossociais, tais como: “[…] vivências subjetivas de responsabilidades prematuras; incertezas sobre as perspectivas de futuro e, sobretudo, danos ao processo de escolarização, uma vez que contribui para reprovações, repetências, defasagens, e não raro, para a evasão escolar”.
Como os estudos não eram a principal alternativa para o crescimento profissional, João abandonou a escola, buscando a inserção no mercado de trabalho como atividade primária. Considerando que “[…] os recursos psicológicos, sociais, econômicos e culturais dos pais são aspectos essenciais para a promoção do desenvolvimento humano” (Polônia & Dessen, 2005, p. 304), pode-se inferir que a falta de apoio familiar e a não valorização da escolarização desde a primeira infância pode ter colaborado para a decisão de João. Afinal, quando a necessidade da sobrevivência se sobressai, a escola passa a ser um espaço pouco atrativo dentro de uma rotina de trabalho infantil.
João relatou que começou a se envolver com drogas aos 19 anos por meio de alguns amigos já usuários, que o levavam às festas. Ele narrou que sua iniciação aconteceu no dia de um de seus aniversários, quando lhe foi oferecida a cocaína:
[…] não vou mentir para você, não, eu passei três anos usando pó, cocaína; aí a minha vó descobriu que eu cheirava pó. Eu tinha muitos amigos da balada que também cheiravam pó, daí, no dia do meu aniversário de 19 anos, eles me ofereceram para cheirar, e aí eu me viciei. Todo dinheiro que eu pegava era para comprar cocaína, de R$ 50,00, de R$ 100,00. Não sentia fome, a maconha é que dá fome. Se você fumar pedra e cheirar pó, não dá fome, por isso emagrece muito, porque, se você fumar pedra, você não quer parar, porque vai roubar, se prostituir, fazer o que não presta para conseguir a droga. Todas as drogas – o nome já está dizendo: droga! – não prestam.
O sujeito desta pesquisa relatou que esse período de três anos foi muito complicado em sua vida, uma vez que, além de abandonar os estudos, saiu de casa por conta das drogas, até porque seu tio, que era policial, não aceitava que ele fosse usuário e continuasse morando na casa da avó, local em que passou a residir após sair da casa de sua mãe adotiva e de seu padrasto.
Salienta-se que o uso de substâncias psicotrópicas entre os jovens não é algo raro (Stecanela & Craidy, 2012), todavia, quando da pesquisa, o jovem avaliou-se como adicto. Observa-se que ele continua sendo usuário, porém de maneira mais moderada:
Eu já fumei droga, sou um adicto, eu uso pedra, mas eu não fumo todo dia, só fumo em curtição. Eu trabalho a semana todinha, só fumo de 15 em 15 dias ou de mês em mês. Primeiro eu faço a minha obrigação, depois a devoção. Tenho 10 anos de rua, nunca mexi em nada que é dos outros, sempre trabalhei […], mas agora estou há quatro meses sem usar pedra, graças a Deus. Eu uso cachaça, mas estou reduzindo, estou conseguindo me erguer […]. Eu gastava R$ 600 por semana no ‘Oitão Preto’ com pedra, hoje se eu gastar R$ 20,00 é muito.
Durante a sua fala, João mencionou que comprava droga na favela denominada “Oitão Preto”, localizada no bairro Moura Brasil, próximo ao centro de Fortaleza, estando completamente dependente de substâncias psicotrópicas por três anos, o que lhe consumia todo o tempo e atenção, abdicando até da alimentação para o consumo de entorpecentes.
Ante toda a negação de direitos relatada ainda na tenra infância, como situação de abandono do núcleo primário, trabalho infantil, escolarização tardia, rompimento de vínculos familiares, não surpreende que João tenha se envolvido com drogas. O alcoolismo e a drogadicção são aspectos corriqueiros na vida de quem está em situação de rua (Silva, 2006). Inclusive, em pesquisa nacional censitária com adultos em situação de rua promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), aponta-se que 35,5% das pessoas em situação de rua estão nessa condição por problemas de alcoolismo e/ou drogas (Brasil, 2008).
Fatores subjetivos, como os vínculos familiares rompidos, a baixa escolaridade, a dependência química, a estigmatização, a luta pela sobrevivência diária com iniciação precoce no trabalho irregular, colaboraram para que João não conseguisse superar a condição de sujeito em situação de rua e permanecesse usando os espaços públicos para a realização de suas atividades privadas por dez anos. O mais curioso de sua oralidade foi averiguar que sua rotina de vida se voltava quase que exclusivamente à busca por alimento, o que direcionava quase todas as suas ações.
Nesse sentido, João relatou que tinha o hábito de dirigir-se ao Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop) para tomar o café da manhã, local que serve gratuitamente alimentos variados para pessoas de extrema pobreza, como vitamina de frutas, sucos, frutas, café com bolacha, sanduíche, dentre outros itens. Após o café, ele participava das oficinas ofertadas no local, tomava banho, lavava suas roupas e guardava seus pertences. João informou que frequentava o Centro Pop porque havia conseguido a isenção do pagamento das refeições realizadas no Restaurante Popular, unidade pública de alimentação e nutrição pertencente à Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, por estar inserido no acompanhamento técnico realizado pela Política de Assistência Social de Maracanaú.
Após essas atividades no período da manhã, o jovem se direcionava ao Restaurante Popular, onde almoçava e ficava aguardando para retornar ao Centro Pop para lanchar às 14 horas. Segundo ele, o lanche da tarde é feito dos mesmos itens que foram servidos pela manhã. Em não havendo sobras, não é fornecido o lanche da tarde. João disse que trabalhava como flanelinha quando isso acontecia, a fim de juntar o dinheiro necessário para comprar algum lanche nas barracas próximas ao Hospital Municipal, situado na região central da cidade.
Eu prefiro lanchar no Centro Pop, porque pelo menos sobra dinheiro para o outro dia, porque o salgado com o suco nas barracas da praça é R$ 3,50. Assim, eu acho o lanche das barracas mais gostoso […]. no Centro Pop, a gente não enche o bucho, porque tem a quantidade certa para cada um, senão falta para os outros.
Após o lanche da tarde, João relatou fazer bico de flanelinha para arrecadar dinheiro com o intuito de poder assegurar a alimentação dos finais de semana, dias em que os equipamentos da prefeitura de Maracanaú estão fechados. Chegando o período da noite, a refeição de João e de outras pessoas que vivem em situação de rua é incerta, por não haver garantia de provisão de alimentação. Conforme João, havia noites em que ele e outros moradores em situação de rua recebiam a doação de sopa de um grupo religioso; nos dias em que isso não ocorria, eles tinham que pedir alimentos na vizinhança para preparar o jantar ou usar o dinheiro arrecadado com esmolas.
Por exemplo, sábado e domingo não tem Restaurante, né? Aí a gente chega nas casas e diz: ‘Senhora, desculpa estar incomodando, tem como você ajudar com um quilo de arroz? Porque a gente mora na rua, e o Restaurante em que a gente come de graça está fechado hoje, aí não tem onde a gente comer’.
O jovem contou que se alimentava na praça do centro da cidade nos fins de semana normalmente, local onde os sujeitos em situação de rua que viviam pela redondeza aglomeravam-se. Cada um levava um item para a preparação da refeição: uns, as panelas; outros, os insumos; outros, o dinheiro para comprar a bebida alcoólica. A refeição era dividida entre todos que haviam cooperado e entre aqueles que não haviam levado nada.
Essa era a rotina diurna de João; à noite ele retornava à casa de sua colega, onde via televisão até a hora de dormir. João, por estar em situação de rua havia 10 anos, não se acostumava mais com o fato de ficar dentro de uma casa. Nessas circunstâncias, ele revelou que ficava ansioso para que o dia amanhecesse a fim de voltar às ruas novamente e conseguir se alimentar. Inclusive, relatou que dormir na rede era ruim, pois se sentia mais confortável dormindo no chão.
João salientou que muitas vezes não conseguia se alimentar adequadamente no almoço e no jantar, havendo vários dias em que apenas almoçava por não possuir dinheiro para comprar outras refeições, especialmente nos finais de semana, situação que pode levar ao acometimento de atos delitivos (Soares & Viana, 2016), ainda que não tenha sido o caso de João. Quando almoçava no Restaurante Popular, ele disse que buscava repetir a refeição várias vezes, para se satisfazer bem e não sentir fome logo.
Nem sempre eu tenho dinheiro para comprar as coisas para a janta. Eu, por exemplo, quando estou almoçando no Restaurante, repito quatro vezes, como bem muito, porque aí eu não sinto fome na janta. Eu como a primeira vez como isento e as outras eu pago. Eu prefiro pagar para repetir o almoço, que enche mais, do que guardar para a janta. Se eu encher a barriga, é garantia de que eu não vou sentir fome mais tarde. Aí passo a tarde arranjando dinheiro, cinquenta centavos, e fico só tomando café e fumando, aí vai passando a fome.
João afirmou que os momentos em que passava fome eram os mais difíceis de sua vida. Ele disse que isso não ocorria mais, por possuir acesso à refeição com maior facilidade por meio do Restaurante Popular e do Centro Pop. Apesar disso, ele pontuou que ainda vivenciava situações de insegurança alimentar e nutricional e de pobreza, o que lhe gerava angústia e medo de passar fome, tal como ele explicou: “Eu não guardo para amanhã, sempre penso, como se diz: ‘Só o dia de hoje; viva um dia de cada vez, sem saber o dia de amanhã, só o hoje’”. Sobre isso, Burity et al. (2010, p. 26) lecionam que a insegurança alimentar pode desenvolver problemas psicológicos, manifestados através de ansiedade, medo, depressão, dentre outros, decorrentes “[…] de uma pessoa ou de uma família com a falta do alimento de forma regular, ou seja, que o alimento acabe antes que haja condições ou dinheiro para produzir ou comprar mais alimentos”.
No tocante a esses momentos de restrição alimentar, o jovem indicou que nada se comparava ao período em que havia vivido no município de Maranguape, Ceará, antes de ir para Maracanaú:
A fome é você olhar para os quatro cantos da parede e não ter nada para comer. Eu já comi barro, já enchi a barriga de farinha e açúcar. Quando eu morava em Maranguape, eu comi do lixo. O pessoal botava o resto de comida no lixo, eu ia e catava. Já comi o pão que o diabo amassou na minha vida. Já vivi muitas coisas ruins e agora estou vivendo o outro lado da moeda. Eu nunca imaginei viver isso […]. Aí, quando eu estava morando no Maranguape, eu dizia: ‘Ei, senhora, me arranja um pouquinho de comida para eu comer?’. Eu estava havia dois dias sem comer, só bebendo água, ninguém me dava nada. Lá eu morava só na Rodoviária, dormia lá no Gonzaguinha. Eu dizia: ‘Ei, senhora, me dá um pouquinho de comida?’. Ela só dizia: ‘Tem não! Tem não!’. Eu via ela botando no lixo e não me dava. Aí, quando ela virava as costas à noite, né, eu ia lá no lixo, tirava os bregueços de cima, ajeitava os melhorzinhos e comia, daí depois ia dormir. No outro dia, para tomar café? Nada.
A partir do relato de João, entende-se que as vivências de insegurança alimentar e nutricional foram diversas ao longo de sua história de vida. Conforme a concepção de Castro (2003) e Monteiro (2003), pode-se afirmar que João tanto viveu situações de fome aguda, revelada na urgência de se alimentar, como de grande apetite, bem como de fome crônica, que se configura como uma alimentação diária insuficiente em quantidade e em nutrientes para a manutenção diária de um indivíduo. Esse dado é revelador de como a pobreza dentro da insuficiência de renda pode vir a provocar a fome decorrente das desigualdades sociais, o que assujeita o indivíduo a uma situação de vida sub-humana que se torna irreversível.
Importa esclarecer que existem dois tipos de países nos quais persiste a pobreza absoluta: aqueles cuja riqueza nacional é insuficiente para garantir o mínimo indispensável a cada um dos cidadãos e aqueles cujo produto nacional é suficientemente alto para garantir esse mínimo, portanto, a pobreza torna-se resultado de uma má distribuição de renda (Ivo, 2008). Ainda que a fome não possa ser reduzida apenas a aspectos econômicos (Valente, 2003), o Brasil – e consequentemente o município de Maracanaú – é exemplo do segundo caso mencionado, pois apresenta uma das taxas mais elevadas do mundo de desigualdade social. Observa-se, todavia, que as políticas educacionais não alcançaram o João. Parece que a educação formal não extrapola os muros da escola (Santos, Silva, & Silva, 2019), no entanto, as políticas sociais chegaram tardiamente e lhe assistiam, ainda que parcialmente, para amenizar seu problema mais emergencial: a fome.
A população em situação de rua vive num desamparo levado ao paroxismo (Menezes, 2006) de tal maneira que, além da insegurança nutricional, aspecto preponderante nas narrativas de João, a saciedade psicológica também é algo a ser considerado no processo de saúde mental, tendo em vista que o indivíduo tende a se alimentar de forma exacerbada, buscando uma saciedade psicológica gerada pela insegurança de não ter o que comer na próxima refeição. Essa situação determina o seu objetivo de vida: conseguir alimento. Castro (2003, p. 79) assevera que essa necessidade primária pode, inclusive, desagregar a personalidade humana:
Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados, e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes.
Ainda que a população em situação de rua seja um grupo heterogêneo, constata-se que, na experiência contemporânea, essa categoria se constitui como um processo social que se configura a partir de múltiplos condicionantes (Frangella, 2009), o que não comporta generalizações. A história de vida de João, no entanto, permite não apenas lançar lume a problemas emergenciais como a fome, mas instiga a reflexão e discussão atinentes ao contexto de negligência do poder público que sequer tomou conhecimento do seu abandono familiar; nada fez para impedir o seu trabalho infantil; não lhe assegurou a educação básica; ignorou a sua evasão escolar; não lhe assistiu no âmbito da saúde ante o envolvimento com drogas; e lhe relegou à extrema pobreza, fome e moradia de rua. Afinal, somente com quase 23 anos de idade, João conseguiu ter acesso à política pública de assistência social no que concerne ao provimento de alimentação, o que não consegue impedir, sequer, que João passe fome.
Conclui-se que, no caso de João, ele já não conseguia vislumbrar nada diferente para seu futuro além da vida na rua em decorrência da condição estigmatizante que envolvia relações de desigualdade e experiência escolar pouco significativa (Kaplan, 2012). Ele não mencionou retomar os estudos, conseguir um trabalho ou mesmo constituir uma família em suas narrativas porque não visualizava uma educação libertadora (Vasconcelos, Fialho & Lopes, 2018). Todo o seu relato de vida direcionava-se ao desejo de saciar sua fome. Tal constatação permite inferir que a situação de fome “aprisiona” o indivíduo em condições impiedosas de vida de tal forma que a sua maior preocupação não extrapola o plano do presente imediato: saciar a fome, proporcionando condições ínfimas de elaboração de planos a longo prazo e mudança de perspectiva de vida. Destaca-se que 10 anos nas ruas fizeram João naturalizar essa condição; esse ciclo de situação de miséria e abandono, para ser interrompido, necessita de ações preventivas ou ainda interventivas, sobretudo quando o tempo de estada na rua dos sujeitos é ainda curto, potencializando, assim, a efetividade das ações para sua reversão (Prates, Prates & Machado, 2011).
O acesso à alimentação, inclusive, direcionou a seleção do local de moradia de João: Maracanaú, escolhido para residência por possuir um Restaurante Popular, instituição que lhe asseguraria pelo menos um prato de comida saudável cinco vezes por semana. O relato de João permite perceber que o imediatismo da necessidade da obtenção de alimentos para se manter vivo o impossibilitava do desenvolvimento de objetivos de vida que fomentassem mudança em sua situação de rua, dificultando-lhe conceber importância para a educação e busca consciente pela melhoria de sua vida. Suprir a fome era seu objetivo diário principal – e até único –, sendo uma preocupação constante, imediata, impossibilitando-lhe alçar outros planos de superação da pobreza. Logo, constata-se que a condição de extrema pobreza e a vivência da fome permitem ao ser humano tão somente o contato com um padrão de consumo alimentar de natureza insuficiente e inadequada (Albuquerque, 2009), rechaçando a educação formal.
Ainda segundo as narrativas de João, é possível inferir que o Programa Restaurante Popular e o Centro Pop tornam-se parte de uma política pública paliativa importante no combate à fome, mas, ao garantirem apenas refeições saudáveis pontuais, não asseguram a quantidade suficiente de comida por dia para sanar a insegurança, o medo e a angústia ocasionados pela vivência da instabilidade do acesso à alimentação. Ademais, a vida do jovem João revelou diversas negativas de direitos – educação, lazer, moradia, família etc., que não se resumiam unicamente à privação da alimentação, ainda que esta tenha se tornado o centro de suas narrativas por representar uma necessidade básica, urgente e imediata. O que sinaliza para a necessidade urgente de políticas com mote na redução de desigualdades sociais (Lara, 2016) para inimizar as consequências danosas do neoliberalismo (Banfield, Haduntz & Maisuria, 2016).
Considerações finais
A pesquisa partiu da inquietação acerca do que levava um jovem a abandonar a escola e constituir moradia nos espaços públicos, bem como que políticas públicas – educacionais e sociais – foram-lhe fomentadas com vista à garantia de direitos constitucionais. Para responder essa problemática, desenvolveu-se uma pesquisa que objetivou biografar a vida de um jovem em situação de rua, há mais de 10 anos, em sua relação com as vivências de fome, abandono escolar e pobreza. Esta foi realizada por meio da metodologia da história oral de vida, coletada mediante entrevistas livres, o que possibilitou conhecer as nuances da vida de João referentes ao seu contexto familiar, processo de escolarização, modo de subsistência e moradia nos espaços públicos.
João se apresentou como um garoto que não teve oportunidade de conviver com sua família consanguínea devido à situação de extrema pobreza. Sendo doado para outra família, viveu a falta de figuras de referência, morando na casa de um amigo dos pais, na da avó e na rua. Sua infância foi caracterizada pela ausência de escolarização e pela iniciação precoce no trabalho informal. A necessidade do trabalho infantil para sustentar-se, iniciado aos 6 anos, transformou-se no principal objetivo de vida. Sua rápida passagem pela escola, na qual ingressou apenas aos 12 anos, não durou mais do que dois anos em decorrência da ausência de sentido atribuída a esta, para além do aprendizado elementar da leitura e escrita.
O uso de substâncias ilícitas e o rompimento definitivo dos vínculos familiares ocasionou sua inserção de vida nas ruas. A jornada de vivência de exclusão e negação de direitos foi observada durante toda a vida de João, culminando em uma rotina diária com ênfase nas experiências de fome e nos mecanismos desenvolvidos para saciá-la. A insegurança alimentar aguda e crônica, associada ao uso de substâncias ilícitas, levou João a comer lixo e vivenciar experiências de alimentação escassa e precária.
A negação de direitos e a vivência do abandono familiar, do trabalho infantil, da escolarização tardia em situação desfavorável, do desemprego, da falta de moradia, da drogadicção, da fome e da pobreza foram aspectos que impulsionaram a vida em situação de rua; mas foi o imediatismo da fome, sem a certeza do acesso à próxima refeição, que interferiu mais negativamente na possibilidade de constituição de um plano para o futuro, levando João à naturalização da vida na rua e dificultando o desenvolvimento de uma autonomia mínima que pudesse ensejar sentido à escola e mudança de conjuntura.
A biografia de João permite inferir que não apenas a ausência do alimento em si gera a alienação do futuro, ainda que seja fator de extrema relevância, sendo também a desigualdade social e a omissão do Estado fatores importantes para isso, as quais assolam mais enfaticamente parte da população em extrema pobreza, não permitindo o acesso a condições dignas de sobrevivência. Dessa forma, ainda que haja políticas importantes sendo implementadas no Marcanaú-Brasil, como o Restaurante Popular e o Centro Pop, elas são reflexos de programas paliativos no combate à fome, pontuais e incapazes de resolver tal problemática. Sendo assim, essa vida enseja a urgência de pensar mecanismos que possam proporcionar vida digna e assegurar os direitos básicos constitucionais à parcela da população desprovida desse acesso.