Introdução
No século passado, alguns autores, notadamente nos Estados Unidos da América (EUA), na Europa e no Japão, davam início ao processo de institucionalização dos conteúdos da Administração como uma ciência. Enquanto nos EUA, Frederick Taylor popularizava seu livro “Princípios de Administração Científica”; Henri Fayol, na Europa, defendia enfaticamente que a Administração deveria ser sistematizada em doutrinas e ensinada nas escolas (Serva, 2013). Concomitantemente, as empresas se desenvolveram, se multiplicaram, ganharam níveis mais complexos do que aqueles encontrados nas sociedades capitalistas primitivas, tornando as empresas capitalistas modernas em instituições referência da sociedade (Rodrigues & Dellagnelo, 2013).
No decorrer do século XX, a Administração se desenvolvia vertiginosamente, expandindo-se como prática profissional em muitos países (Reed,1999). Logo ela também alcançou o status de ciência (Serva, 2013). Na contramão do binarismo entre Administração como uma ciência e Administração como uma arte (Mattos, 2009), os estudiosos da área começaram a realizar pesquisas, observando intenções e comportamentos na atividade administrativa. Nesse período, muitos pesquisadores começaram a investigar o mundo organizacional e as correlações de diversas variáveis pertinentes ao campo (Serva, 2013). Como resultado, a área ganhou espaço cativo em inúmeros congressos, periódicos, associações e editoras (Augier et al., 2005).
Enquanto a publicação científica, em todas as áreas, passava a ser a moeda de troca da ciência, a área de Administração não ficou atrás. As escolas de negócios, no Brasil, passaram a adotar métricas de publicação de artigo científico para avaliar a competência de seus professores (Mattos, 2012; Rossoni, 2018, Sá et al., 2020), o que resultou no conhecido jargão “publishor perish” (Alcadipani 2017). Tal feito convertia o trabalho do pesquisador em mercadoria, transformando valor de uso em valor de troca. Os autores dos trabalhos científicos passaram a ganhar prêmios, reconhecimentos e a enfatizá-los em seus currículos.
Professores e universidades passaram a ser prestigiados de acordo com a quantidade de suas publicações (Miller et al., 2011). Ressalta-se que no caso do Brasil, essa discussão sofreu poucas adaptações que pudessem contemplar as especificidades e características de suas escolas e de seus pesquisadores. Essa discussão está longe de ser encerrada, por mais que o produtivismo acadêmico seja discutido em artigos, a busca por quantidade de publicações e pela internacionalização dos autores nacionais só aumentou a pressão por publicação em detrimento de seu valor científico (Alcadipani 2017). Assim, o objetivo deste ensaio é compreender a produção científica da área da Administração no Brasil como uma construção análoga à mercadoria, considerando os aspectos que são inerentes a ela no pensamento marxista. Seguindo a pergunta de pesquisa: Como as lógicas de replicar, publicar e perecer têm reforçado o produtivismo acadêmico no campo da Administração no Brasil, vulnerabilizando a Administração enquanto ciência social?
Outros autores já levantaram argumentos de que a produção em massa de pesquisas e artigos científicos tem aumentado a pressão sobre escolas e pesquisadores. Ressignificando, consequentemente, o sentido da pesquisa científica em Administração no mundo inteiro (De Rond & Miller, 2005; McGrail et al., 2006). No entanto, uma reflexão crítica para entender como a pressão pela quantidade de publicação vem transformando o mundo da ciência ainda é necessária. Ao trazer os conceitos de Marx para essa discussão, este ensaio busca desenvolver a discussão sobre a função do artigo científico e as questões que o circundam, como quem controla os mecanismos de produção, e qual tem sido o lugar dos pesquisadores brasileiros na ciência administrativa.
Para contribuir com essa reflexão este artigo a) reflete sobre a realidade brasileira em um cenário de pressão por publicações acadêmicas; b) analisa criticamente esse cenário, à luz das teorias organizacionais baseadas em Marx; e c) problematiza possíveis efeitos perversos e ambíguos da superprodutividade acadêmica e seu impacto no universo científico, abarcando o quanto alguns autores brasileiros e latinos de renome seguem sem ser adotados ou profundamente entendidos.
As contradições da Administração enquanto campo e enquanto ciência
Para muitas comunidades a Administração não pode ser considerada uma ciência, uma vez que utiliza e aplica conhecimentos de outras ciências, como da psicologia, da economia, sociologia e da antropologia. Para outras, a Administração deve ser considerada uma “arte”, uma vez que não pode ser explicada ou pesquisada. O argumento é o de que a Administração é praticada com pessoas que possuem formação acadêmica específica, mas também por pessoas que não são formadas e contam somente com sua utilização prática (Damke et al., 2010).
Walter e Augusto (2008) argumentam que a dificuldade de a Administração ser considerada uma ciência pela academia se deve ao fato dela ser uma ciência social. Isso dificulta critérios rígidos de cientificidade, baseados nas ciências naturais. Ainda assim, seus pesquisadores se preocupam com os critérios de cientificidade que podem ser aplicados a ela. Tais características colocam em questão a validade e a relevância dos resultados obtidos pelos estudos da área. A afirmação dos autores é corroborada, em nível empírico, pelos trabalhos de Martins (1997), Bertero et al. (1999) e Bertero et al. (2013), sendo que os dois primeiros analisaram a qualidade da pesquisa científica em Administração no Brasil nos anos de 1990 e o terceiro nos anos 2000.
Para Bertero et al. (1999) houve significativo aumento na quantidade da produção, porém essa evolução não foi acompanhada por melhoria na qualidade dos trabalhos. A produção local foi pouco difundida e não influenciou as pesquisas desenvolvidas no país. Já o estudo de Martins (1997) apontava que o nível teórico das abordagens em dissertações presentes no período não apresentou contribuições marcantes, aparecendo na maioria das vezes na forma de revisão bibliográfica e apresentação sucinta de resultados de outras pesquisas assemelhadas, sem que houvesse uma relevante inovação teórica e/ou metodológica.
Recentemente, observa-se um movimento de internacionalização dos periódicos brasileiros em bases de dados científicas internacionais bem como nos rankings de periódicos estrangeiros (Rosa & Romani-Dias, 2017; 2019). Cabe discutir se essa busca pelo alcance internacional ajuda a ciência da Administração no Brasil, visto a repetição do sistema estrangeiro de publicação científica, sem pensá-lo e conectá-lo à realidade nacional (Alcadipani, 2017).
Existem barreiras para a entrada de brasileiros no jogo das publicações internacionais. A primeira delas é o idioma, a segunda é o fato de que as nossas escolas não estão nos grandes centros e debates acadêmicos, e, por fim, as regras e rankings tendem a beneficiar àqueles que já estão inseridos nessas redes. Essas barreiras são como diferenças e privilégios, nos termos de Marx e Engels (2005), que limitam o trabalho de alguns pesquisadores, enquanto favorece o trabalho de outros.
As escolas de Administração do Brasil passaram a sofrer críticas por representarem fábricas de produção em massa de administradores que apreendem ferramentas técnicas da área de Administração, sem desenvolver senso crítico ou um comportamento ético, função esperada do ensino superior (Colossi, 1998; Coelho & Camargo, 2018) e encontrada em alguns cursos e de forma heterogênea entre os alunos (Palassi et al., 2016). Além disso, as políticas e os programas de ensino tem flexibilizado a formação de uma cultura empreendedora e gerencialista que não atende às necessidades de formação crítica (Costa & Silva, 2019).
Parte dessas fragilidades são consequências da forma pela qual a Administração e o gerencialismo nasceram e se propagaram (Cunliffe, 2009). Nessa sociedade se fetichizam as formas de organizar, atuar e conduzir o mundo (Godoy et al., 2013). Cunliffe (2009) destaca três dessas ideias que guiaram a pesquisa e o ensino de Administração nos EUA, mas que reverberam no campo brasileiro.
A primeira é que a gestão é etnocêntrica. A história da gestão é baseada em conhecimento desenvolvido no norte global. Essas origens ocidentalizaram valores culturais, sobrepondo a gestão aos outros valores culturais. O ensino de Administração disseminou o conhecimento desenvolvido para organizações do ocidente; desse modo, as demais culturas acabam por se conformar com o modelo americano de se pesquisar e teorizar, dando pouco espaço para outras abordagens, como estudos do hemisfério sul (Cunliffe, 2009).
Tal processo de aculturação passa a se tornar regra institucionalizada, com novos mecanismos de manutenção das formas de organização da ciência administrativa vigente (Thornton, 2004). O campo científico brasileiro, repetidamente, se vê copiando tais ferramentas sem a necessária adaptação à sua realidade (Alcadipani & Caldas, 2012). Wanderley et al. (2020) afirmam que tal aspecto denota uma dependência das escolas de negócio no Brasil nos investimentos estadunidenses, sendo necessária uma teorização reflexiva da Administração que considere não apenas realidades locais, mas também teorizações locais.
Outro aspecto é que a Administração reflete uma questão de gênero, pois, tradicionalmente, se revela uma história feita por homens, sobre homens e para homens. Por essa razão, não se trata apenas de uma questão de números de homens versus mulheres na academia e em posições estratégicas nas empresas, mas também na natureza masculina da prática organizacional e de seus consequentes desdobramentos. Além disso, o discurso que se perpetua na Administração contém regras que são inconscientes e utilizadas pelos cientistas para manter a unidade de sua disciplina e a credibilidade de seu trabalho (Cunliffe, 2009).
Ao resgatar o nascimento das escolas de negócio no Brasil, Caminha (2019) e Barros (2013) destacam que as escolas pioneiras no ensino superior de Administração no Brasil foram criadas na década de 1950, no âmbito da Fundação Getulio Vargas (FGV), no período do Estado Novo (Caminha, 2019). Vasconcellos (1998) aponta que a FGV foi criada e atrelada aos poderes político-econômicos de sua época, já que sua gênese reunia esforços de empresas e de autoridades do governo. Para Barros e Carrieri (2013) os marcos iniciais dos cursos eram reflexos do período desenvolvimentista dos governos enraigados no Estado.
Barros (2013) discorre que o ensino de Administração no Brasil foi radicalmente influenciado pela escola americana. Por meio de acordos bilaterais entre os dois países, bem como pela participação de comissões estadounidenses e treinamentos, nasceram e foram aperfeiçoados importantes cursos superiores de Administração. Além do já citado curso de administração da FGV, seguiram o mesmo modelo os cursos da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outras.
Nesse sentido, não é estranho que a mentalidade ocidental da Administração mais técnica e direcionada a determinados interesses (Cunliffe, 2009), tenha penetrado no ensino superior de Administração no Brasil. A eleição de Educação, Ciência e Tecnologia como centrais para promover progresso econômico e social reduziu a Universidade, predominantemente, à executora e refém, não autônoma, de um sistema importado e pré-estabelecido. Enquanto é o capital que precisa do conhecimento gerado pelos trabalhadores-pesquisadores para reproduzir-se, esses vivenciam a intensificação e alienação do seu trabalho científico para fins gerenciais (Machado & Bianchetti, 2011; Russel, 2008).
Mattos (2008) corrobora que o atual sistema de avaliação da pós-graduação stricto sensu tem levado a uma exaustiva pressão por produção acadêmica. Por essa razão, o sistema é alvo de críticas, principalmente por estar levando aos descredenciamentos temporários de programas e professores, em função da baixa pontuação na produção acadêmica, configurando-se em certa violência institucional. “Essa política leva à massificação da produção, pois, na prática, a qualidade é sempre sacrificada à quantidade” (Mattos, 2008, p. 145).
No Brasil, o curso de Administração é um dos maiores em números de estudantes, tendo mais de um milhão e trezentos alunos inscritos em mais de 817 cursos de graduação em gestão e Administração, sem contar os cursos de áreas específicas como marketing e finanças (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2019). Logo, “cabe consciência mais ampla do que se passa, pois estamos sendo conformados enquanto tradição” (Mattos, 2008, p. 149). Por fim, a formação necessita ensinar aos estudantes valores emancipatórios, capazes de romper com práticas estruturalmente consolidadas e que possam ser mais úteis e críticas à sociedade (Paula & Rodrigues, 2006).
Discussões recentes no país têm-se orientado para o direcionamento das escolas diante do produtivismo. Bispo (2020), por exemplo, relatou que, após análise de currículos de docentes atuantes na pós-graduação em Administração no Brasil, foi possível evidenciar que alguns conseguem publicar mais de um artigo mensalmente. E ao refletir sobre as circunstâncias dessas publicações, notou que o volume de produção resulta de coautorias, na qual não são primeiros autores. Essa prática é o que Rossoni (2018) denomina de coautoria cerimonial “é aquele tipo de coautoria em que o indivíduo é caracterizado como autor, mas cuja contribuição é inexistente ou superficial” (Rossoni, 2018, p. 1).
A pressão por publicações de boa reputação também infla e inflama os processos editoriais das revistas mais ranqueadas. O “inflar” refere-se ao aumento do número de artigos. Já o inflamar destaca o processo que se tornou mais doloroso, pois apenas dez por cento das centenas de artigos enviados para dois dos principais periódicos do país são aceitos e publicados (Sá et al., 2020)
Após descrever as contradições da área de Administração, é necessário voltar às ideias de Marx sobre mercadoria, seus valores de uso e de troca e sobre o trabalho que incute valor na mercadoria para, depois, analisar criticamente as políticas de consolidação da área.
O trabalho e a mercadoria para Marx, seus valores de uso e de troca
Na época de Marx, no século XIX, a produção científica era radicalmente diferente da atual. Preocupado com a economia, a política, os meios de produção e a exploração do trabalho, Marx se aproxima de temas caros e importantes à sua época. Suas ideias e discussões ao longo dos anos foram base para inúmeras análises de diferentes contextos desde a luta de classes, o feminismo, a teoria crítica e a modernidade como a conhecemos. Nesse sentido é que também utilizamos do conteúdo e da forma de seu pensamento para analisar criticamente a área de Administração e seu produtivismo científico.
O trabalho de Marx é vasto e complexo sob o ponto de vista teórico e conceitual, e tem na mercadoria o seu ponto de partida (Harvey, 2015). Na perspectiva marxista, a mercadoria não é sinônimo de produto ou objeto, ela não é natural. Marx (2013) aponta que é na circulação de mercadorias que se desenvolve a acumulação de capital.
A mercadoria representa “antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (Marx, 2013, p. 97). Não é necessário discutir como as necessidades são supridas; a mercadoria é uma coisa que satisfaz a necessidade humana, diretamente (subsistência) ou indiretamente (meio de produção) (Marx, 2013). Um produto só se torna mercadoria quando reúne valor de uso e valor de troca.
Para Marx, a utilidade de algo faz com que isso tenha valor de uso. Por estar condicionada pelas propriedades do corpo da mercadoria ela não existe sem esse corpo. É o corpo da mercadoria que é seu valor de uso (Marx, 2013). No entanto, ela possui ainda um valor de troca, ao poder ser comercializada por outras mercadorias. “Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de distinta qualidade, enquanto como valores de troca, elas podem ser apenas de quantidade diferente, sem conter, portanto, nenhum átomo de valor de uso” (Marx, 2013, p. 98).
Ainda assim, uma mercadoria só possui valor porque nela está objetivado ou materializado o tempo ou a quantidade de trabalho humano necessários para sua produção. Quando essa mercadoria é vista somente pelo seu valor de troca, o valor da mercadoria fica atrelado à sua possibilidade de troca e não ao valor de uso nem ao trabalho objetificado nela. Alienando o esforço e o tempo de reprodução, esse trabalho torna-se alienado (Marx, 2013).
Ainda na análise da mercadoria, verifica-se que ela contempla muitas instâncias e dimensões objetivas e subjetivas.
Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. (Marx, 2013, p. 121)
Na relação entre o valor de uso e o valor de troca algo de misterioso e fantasmagórico ocorre com a mercadoria. Ela faz um salto no qual a sua utilidade já não traz valor, mas a sua troca trás. Isso modifica a própria essência do que é a mercadoria para quem a possui. Ela não é mais o que o seu uso faz dela, mas pelo que ela pode ser trocada (Marx, 2013). Na própria relação de troca das mercadorias, seu valor de troca aparece como algo completamente independente de seus valores de uso; no entanto, abstraindo-se o valor de uso dos produtos do trabalho.
O elemento comum, que se apresenta na relação de troca ou valor de troca das mercadorias, é, portanto, seu valor. A continuação da investigação encaminha-se para o valor de troca como o modo necessário de expressão ou forma de manifestação do valor. A mercadoria que alcança o ápice dessa relação é a moeda, ou dinheiro. A moeda não tem nenhum valor de uso intrínseco a ela, no entanto, pode ser trocada por qualquer outra mercadoria. Tal abstração do uso de uma mercadoria passou a ser elemento sustentador da forma de capitalismo que vivenciamos na atualidade (Marx, 2013).
Ao tocar no ponto do fetichismo da mercadoria, Marx busca compreender todas subjetividades que a circunda. Em sua obra, o conceito de fetichismo já fora abordado na discussão acerca das antinomias e contradições que escondem ou confundem importantes aspectos do sistema político e econômico, tendo como exemplo a contradição da mercadoria dinheiro com os valores fantasmagóricos (Harvey, 2015). Ademais, o fetichismo do mercado traz com ele uma boa bagagem ideológica.
Fontenelle (2002, p. 327) aponta que “o que Marx nos oferece de mais precioso na análise do fetichismo de mercadoria é o retrato da sociedade moderna a partir de sua constituição sob a forma de valor”. Sua análise também mostrou a que ponto somos governados pelas forças abstratas do mercado naquilo que fazemos e como estamos constantemente ameaçados de ser governados por construtos fetichistas, que nos impedem de ver o que está acontecendo no contexto capitalista (Harvey, 2015).
Tendo discutido o conceito de mercadoria, seu valor de uso e de troca é possível voltar às contradições da área de administração. Com o intuito de melhorar a ciência Administrativa no Brasil é que se faz uma analogia, enxergando o artigo científico como uma mercadoria que tem seu valor de troca utilizado por pesquisadores e escolas de negócios, mas seu valor de uso, no entanto, fica perdido, alienado. Outra comparação possível é a de que editoras, rankings, instituições e associações funcionam como detentoras do capital, controlando os meios de produção como a língua e as metodologias, epistemologias e ontologias a serem reconhecidas como conhecimento válido para a área de Administração.
A pesquisa em Administração no Brasil: uma mercadoria sem valor de uso?
Há muitos indicativos que explicam a dimensão atual do campo da Administração. Se pegarmos o exemplo do Brasil, verifica-se que a área tem crescido com vitalidade. O número de cursos de graduação, de programas de mestrado e doutorado multiplicou-se nos últimos anos (Bertero et al., 2013). Os principais eventos, organizados pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD), estão bem consolidados e recentemente outros movimentos têm surgido nas diversas subáreas (Bertero et al., 1999; Damke et al., 2010; Serva, 2013).
Ainda há de se considerar o incremento no número de pesquisadores dedicados à Administração, e à ampliação do volume de livros e de trabalhos de natureza técnico-científicos publicados. No âmbito das instituições de fomento à pesquisa científica, os pesquisadores atuantes no campo da Administração passam a disputar e obter apoio como os demais pesquisadores de outras áreas do conhecimento (Augier et al., 2005; Damke et al., 2010; Serva, 2013).
Um grande trabalho de institucionalização da área de Administração como ciência no Brasil tem sido feito pela ANPAD. O encontro nacional organizado pela associação, o EnANPAD, é o segundo maior evento científico do mundo da área de Administração, só perdendo para o encontro da Academy of Management da América do Norte. Segundo a Associação brasileira, o encontro de 2019 contou com 1.666 participantes e foram publicados 1.255 trabalhos nos anais eletrônicos do evento.
No entanto, há que se argumentar que essa institucionalização por quantidade não significa uma maior qualidade do trabalho científico. De certa forma, essas instituições passam a agir como donos do capital, apropriando-se dessa quantidade de trabalhos acadêmicos para se consolidar, mas usando de seus valores de troca e não de seus valores de uso. Isso acontece também com as grandes editoras e revistas que funcionam como gatekeepers do que é conhecimento. Elas se apropriam do trabalho dos pesquisadores e da mais-valia gerada por eles na conversão do valor de uso em valor de troca do artigo acadêmico (McGinty, 1999; Thornton, 2004).
Outro ponto de destaque é que o Brasil ainda busca legitimidade na academia de Administração internacional por duas rotas: aplicando as teorias internacionais às especificidades do contexto brasileiro ou criando teorias próprias que possam contribuir com as teorias internacionais (Rodrigues et al., 2012). Enquanto isso, Aguinis et al., (2020) publicam no prestigiado e bem ranqueado Journal of Management um artigo com autores brasileiros que guia autores internacionais no uso do Brasil como fonte de dados. O artigo poderia abordar teóricos, pesquisas, fenômenos e formas de gestão genuinamente brasileiras de forma a agregar a academia de Administração. No entanto, o artigo se mostra paternalista e colonizador, apresentando o país como um objeto de pesquisa para estrangeiros.
Tais práticas da área dão continuidade ao projeto colonizador de Administração, não mais na fundação das suas escolas, mas no direcionamento de suas pesquisas agora com parcerias internacionais (Aguinis et al., 2020). Tal publicação reforça o que Wanderley et al., (2020) criticaram ao exortar a promoção de uma teorização reflexiva que leve em consideração não apenas as realidades locais, mas as teorizações locais.
A diferença de língua também tem papel importante nessa dominação dos meios de produção acadêmica. A ciência Administrativa no Brasil é, em sua maioria, escrita em português, sendo mais uma razão para ser ignorada pelos grandes detentores dos meios de produção acadêmica internacional (Alcadipani, 2017). Ademais, Caregnato et al., (2016) destacam que as redes de relações e interações atribuídas ao processo de produção acadêmica e científica envolvem arranjos complexos e nem sempre devidamente explicitados.
Quanto aos aspectos metodológicos da área, em virtude da própria natureza racionalista que foi dada à Administração, as pesquisas têm priorizado abordagens quantitativas. Assim como na grande maioria das ciências, o arcabouço positivista é fortemente presente nas metodologias de pesquisa na área (Gomes & Araújo, 2005). Esse modelo uniforme de analisar os fenômenos da Administração minimiza a possibilidade de se criar teorias próprias para os contextos do campo.
É necessário, então, afunilar essa análise em um ponto específico da ciência: a publicação científica. Vê-se que, em quantidade e qualidade, a Administração tem melhorado a partir dos critérios de avaliação das ciências ditas como mainstream. No entanto, é possível pensar no valor de uso de uma publicação científica e em seu valor de troca. O valor de uso para Marx (2013) é o valor da mercadoria pelo seu uso material. Pode-se argumentar que um artigo científico tem seu valor para o leitor na medida em que divulga um determinado conhecimento científico obtido rigorosamente. Ele é utilizado também como referência para futuras pesquisas acadêmicas e tenta contribuir para a explicação de algum fenômeno social, teoria ou metodologia. O valor de uso é construído a partir do trabalho dos pesquisadores.
Hambrick (1994), na época presidente da Academy of Management, proferiu e publicou um discurso que ressaltava a importância da associação e como o encontro anual e as leituras dos artigos pelos pares têm sido um círculo vicioso que luta por audiência, mas que se esquece de mostrar os avanços da pesquisa em Administração. O discurso, apesar de ser de 1993, ainda é atual ao constatar que a publicação científica, e não seu conteúdo, se tornou cada vez mais importante. Na época, o presidente pautou suas propostas na busca por significado no trabalho realizado pelos pesquisadores, algo que ainda se encontra perdido.
Para os pesquisadores o valor do artigo não é mais de uso, mas de troca. O autor de um artigo científico ganha reconhecimento, aperfeiçoa seu currículo e melhora o posicionamento de sua instituição nos rankings da academia (Adler e Harzing, 2009). Ao entregar sua peça autoral para uma revista acadêmica nacional ou internacional, ele finaliza um processo de pesquisa que resulta em um artigo acadêmico que passa a interessar para seu currículo e não mais por sua contribuição científica.
Esse fenômeno tem sido estudado mundialmente e afeta professores e pesquisadores, aumentando o nível de estresse, marginalizando o ensino de Administração e diminuindo a relevância e criatividade das pesquisas científicas (De Rond & Miller, 2005; Miller et al., 2011). O modelo de mercado que afetou a graduação passa então afetar também a pós-graduação. O prestígio das escolas de negócio foca na venda de conhecimento aos alunos, mas seu reconhecimento vem do número de publicações (Linton et al., 2011).
Dentro das subáreas de estudos organizacionais, estudos críticos em gestão, ensino e pesquisa existem esforços bem estabelecidos para a emancipação da ciência em Administração no Brasil e na América Latina. A exemplo disso, existem trabalhos que têm uma perspectiva decolonial e que produzem ciência a partir dessas realidades (Ibarra-Colado, 2006). Mesmo esses autores, como ironiza Misoczky (2006), corriqueiramente buscam validação na publicação internacional. Outras exceções, ainda dentro dessas áreas no Brasil, reconhecem uma tradição e autonomia nos estudos de gestão (Paula et al., 2010), ou adaptam temas internacionais à realidade brasileira no ensino em Administração, principalmente na pós-graduação (Waiandt & Fischer, 2013).
No Brasil a pressão por publicação em periódicos nacionais e internacionais não é diferente. Uma publicação aumenta o prestígio do pesquisador e de sua instituição, sendo, inclusive, medida de qualidade de ensino e pesquisa daquela instituição. A publicação dos professores é importante para manter uma alta nota do programa de pós-graduação. A publicação dos formados da pós-graduação, a participação em grupos de pesquisa e a internacionalização do programa também são critérios relevantes na classificação da CAPES (Belintani Shigaki & Patrus, 2012). Ainda assim, a produtividade dos alunos de pós-graduação no Brasil é concentrada em 10 por cento dos doutores recentes, e são esses os mais propensos a conseguir um emprego internacional (Falaster et al., 2016).
A avaliação feita pela Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) tem motivado mudanças em rotinas e normas, discussões, queixas e até observações jocosas, como aquela que associa o pesquisador ao “publish or perish”. As aulas e orientação de alunos de graduação não valem nada na pontuação feita pelo sistema CAPES (Machado & Bianchetti, 2011; Mattos, 2008).
A Administração vem sendo orientada para a cultura do consumo (Fontenelle, 2005). Para Bennis e O’Toole (2005) essa característica quantifica e agrava ainda mais o quadro das escolas de negócio. As escolas líderes adotaram silenciosamente um modelo de excelência acadêmica inapropriado e, em última instância, autodestrutivo. A fábrica de administradores passa a ser avaliada pela produção de administradores fartos de ferramentas gerenciais e, quando existe uma pós-graduação, pela quantidade de artigos publicados. Existem poucas tentativas de realizar outros tipos de contribuições além da teórica, como a fotográfica e a vivencial, e um bom exemplo disso é o relato de vivência da formação crítica de administradores (Saraiva et al., 2019).
Algumas características decorrem da pressão por publicação: O aumento do número de coautores (Ferreira et al., 2018), o aumento das autocitações como forma de alavancar as métricas (Seeber et al., 2019) e um problema na solidariedade e colaboração entre os pares no momento das avaliações às cegas não remuneradas (Patrus et al., 2015).
Além da publicação como forma de prestígio, sua produção também pode ser comparada com uma exploração do trabalho. O trabalho para Marx é uma condição humana de metabolismo da natureza. Ele é um processo em si (atividade a um fim), possui um objeto como a matéria prima e possui meios, como o ferramental, a estrutura e a tecnologia. Para o autor o trabalho é produção de valor, ou seja, o valor é a objetivação do trabalho em mercadoria, transformar esse trabalho em um objeto. A força de trabalho, por outro lado, configura a atividade humana exercida nesse processo (Marx, 2013). O trabalho, seja ele simples e fisiológico ou abstrato e complexo, incorpora valor na mercadoria.
Trazendo para a analogia do artigo científico, o trabalho é a pesquisa realizada pelos docentes. Eles transformam seu trabalho abstrato em um produto específico: a publicação científica. O valor de uso dessa mercadoria é o conhecimento gerado por ela, e seu valor de troca é o prestígio da publicação em journals conceituados. A lógica de mercado que domina as escolas de negócio explora esse trabalho de seus pesquisadores e ganham renome a partir da quantidade e qualidade das publicações. Os meios de produção como a língua e as revistas são controlados pelos donos do capital: editoras, rankings, instituições e associações como a CAPES, a ANPAD e a Academyof management. Esses controlam quais são as publicações que valem mais, limitam a entrada de novos atores e ampliam a expropriação do valor de troca dessa mercadoria.
Como visto, esses donos do capital, em busca de validação perante outras áreas da ciência, e no Brasil, em busca de internacionalização, acabam internalizando a lógica do mercado. As revistas brasileiras passam a ser escritas em inglês e a serem avaliadas pelos rankings internacionais (Alcadipani, 2017). A validade e o rigor das pesquisas são medidos pela sua capacidade em se conformar com as normas das ciências exatas, impedindo a criação de sua própria forma de uso do conhecimento. Finalmente o artigo científico passa a valer mais pela sua quantidade e conformidade com essa lógica do que com o conhecimento que ele gera.
O artigo acadêmico é mercadoria possuidora de valor realizada a partir de um trabalho abstrato e complexo que segue determinadas condições específicas. As condições têm sido dadas pelos mecanismos de dominação acadêmica, que regem o formato, o rigor metodológico e a relevância da pesquisa. Quanto maior for o enquadramento da publicação científica nesses moldes, maior será seu prestígio e, portanto, seu valor de troca. Como resultado, essa relação “entre trabalho e educação na sociedade capitalista se manifesta pela alienação do homem de sua própria essência, na medida em que o trabalho perde seu caráter emancipador” (Handfas, 2010, p. 130).
Tendo em vista essa analogia, é necessário observar que a área de Administração, em sua luta por aceitação como ciência, passa a observar o valor de troca da mercadoria ao invés de seu valor de uso. Um exemplo concreto está nos artigos brasileiros da área de marketing que não se referenciam apesar de tratarem temas similares. É mais interessante para eles referenciar artigos internacionais, ganhando mais valor de troca com a publicação (Vieira, 2003). De forma similar, um estudo da área de estratégia comparou artigos brasileiros com artigos das melhores revistas internacionais publicados entre 2006 e 2015. A pesquisa mostra que os artigos brasileiros são, em sua maioria, testadores de teoria, enquanto são os estudos estrangeiros que avançam com essas teorias (Leonel et al., 2018).
Com isso ocorre um aumento no número de publicações, mas uma significativa diminuição da importância e relevância das mesmas (Alvesson & Sandberg, 2013). O importante passa a ser ter a publicação e trocá-la com o mercado. Seu valor de uso como contribuição científica fica em segundo plano. Para melhorar este cenário, Lazzarini (2017) propõe que os pesquisadores avancem a teoria e aumentem o impacto de suas pesquisas voltando-se para fenômenos empíricos relevantes e interessantes que tenham, além de potencial teórico, uma contribuição social.
Em resumo, a área de Administração no Brasil ainda busca ser aceita como ciência internacionalmente. Para tanto, ela importa as métricas de qualidade e produtividade científicas internacionais, tentando equiparar-se, seja na formação de seus programas de pós-graduação ou nas métricas de avaliação das instituições de ensino e pesquisa. A Administração como um todo ainda se pauta nos critérios de validação das ciências exatas em uma luta para se consolidar enquanto ciência, mas com tentativas tímidas de criar seus próprios critérios.
Nessa busca desenfreada, perde-se o valor de uso da mercadoria resultante da pesquisa científica. O artigo, representação material do trabalho dos pesquisadores, perde seu conteúdo e não é utilizado como contribuição para o conhecimento nem mesmo por seus pares. O que passa a importar é o valor de troca dessa mercadoria que aumenta a reputação das instituições de ensino e dos seus pesquisadores
À guisa de conclusão
Pode-se dizer que a modernidade presenciou o triunfo do que é privado da sobreposição do racionalismo, do positivismo na ciência, do materialismo, da ideologia e, também, as noções lineares de progresso como uma imensa superestrutura construída no topo de um regime majoritariamente de mercado (Rifkin, 2001). Ao longo dos anos, grande parte do que se ensina e pesquisa na área de Administração tem dado suporte para reforçar essa relação, contemplando aspectos de superioridade racial, misoginia e discursos para suas perpetuações (Cunliffe, 2009).
Considerando que uma atitude transformadora da realidade social, no contexto universitário, considera ampliar e fortalecer a tríade ensino, pesquisa e extensão (Pivetta et al., 2017), as pressões por publicações e pelo produtivismo nas pesquisas geram uma falsa impressão de melhora no volume de publicações, quando na verdade são uma busca por indicadores de produção para comparação internacional e com as outras áreas. Isso fragiliza frentes importantes como melhoria na qualidade de ensino e desenvolvimento de atividades de extensão.
O alinhamento quantitativo de produção intelectual compromete a qualidade das pesquisas, tendo em vista que não possibilitam seu amadurecimento. Como resultado, as ciências que podem padecer desse mal ficam estagnadas, sem criação de referencial teórico próprio, alimentando um círculo contínuo de reprodução de teorias e pouca produção de conhecimento.
Buscou-se, através dos conceitos de trabalho e mercadoria para Marx, mostrar que essa discussão na seara de Administração não está acabada, e ainda, que é necessário um olhar crítico para ela, para mudar a forma de pensar a publicação científica em Administração. O contexto internacional (a ser atendido) não pode ser preliminarmente invocado contra isso: não há, no Brasil, instituições maduras nem bem instrumentadas, com organização do trabalho bem definida socialmente.
O que nos coloca, enquanto Brasil, em uma posição colonizada e reprodutora de conhecimento que muitas vezes só serve para fortalecer ainda mais estruturas de inferiorização (Mattos, 2008). Por isso, é preciso pensar a reprodução como uma dinâmica que dê resultados contraditórios, pois em seu interior emergem elementos que podem ser articulados com outro formato de produção (Handfas, 2010), que não será necessariamente melhor.
As ideias de Marx, ainda que deslocadas no tempo, contribuem de forma a nos fazer pensar sobre como os meios de produção capitalista afetam o modo de vida humano (Adler, 2009), entre outros elementos importantes para o desenvolvimento da sociedade. Tal constatação também cabe ao mundo da ciência. O artigo científico é mercadoria que possui valor de uso incutido pelo trabalho dos pesquisadores, mas alienado pela relevância de seu valor de troca. As editoras, revistas e associações agem como detentoras do capital e exploram a mais-valia dessa mercadoria ao decidir qual artigo tem maior ou menor relevância. Por outro lado, os pesquisadores e as escolas de negócio compactuam com essa pressão por publicação, pois se aproveitam dela para melhorar seu prestigio no meio acadêmico.
Paradoxalmente, este artigo critica aquilo que ele mesmo promove. Ainda que seja um agregado de conhecimento e reforça a ciência nos moldes aqui criticados, utilizando de um autor europeu para tanto, a crítica precisa ser feita dentro do sistema científico atual com a intenção de refletirmos sobre suas atuais contradições e melhorá-lo. Embora esse artigo tenha se delimitado, especificamente, à área de Administração no Brasil, ressaltamos que a questão do produtivismo e seus entraves ao desenvolvimento científico não é uma questão única da área da Administração. Portanto, outras áreas no país e fora dele também podem carecer de investigações sobre as consequências do produtivismo acadêmico. Novas pesquisas empíricas com a utilização de outros referenciais críticos, brasileiros ou latinos, podem dar continuidade à discussão sobre o produtivismo acadêmico.
Outra forma de pensar, formar e fazer pesquisa em Administração pode ser feita ao contemplar epistemologias do sul ou parcerias sul-sul. Autores como Paulo Freire, Alberto Guerreiro Ramos e Conceição Evaristo ainda são pouco explorados quando comparados com outros autores(as) do norte global. Outras possiblidades podem ser exploradas com abordagens decoloniais presentes nas leituras de Aníbal Quijano e Walter Mignolo, ou com parcerias sul-sul como as propostas por Boaventura Souza Santos.