Com muito entusiasmo, apresentamos o dossiê[1] “Participações e resistências das infâncias e juventudes da América Latina: agência, protagonismo e mobilização coletiva”, concebido a partir das discussões geradas no âmbito da Rede latino-americana de pesquisa e reflexão com crianças e jovens (REIR). Trabalhando em uma perspectiva de articulação de pesquisadores no âmbito da América-Latina e contando com pesquisadores/as de língua espanhola e portuguesa, a REIR tem, como objetivo central, tornar visíveis as agências, os protagonismos e os co-protagonismos com as crianças e com os/as jovens, na perspectiva da transdisciplinaridade. Assim, este dossiê, que abre o diálogo para o debate, representa, ainda, espaço acadêmico para construção de vínculos e de alianças para visibilizar essa temática em favor de crianças e jovens.
A temática do dossiê não poderia ser mais oportuna, já que foi concebido em um momento de emergência sanitária, com isolamento social, momento em que se vivenciam grandes incertezas e uma desconfortável anormalidade que parece querer persistir como regra. Além disso, trata-se de um momento em que jovens, de diversas localidades da América Latina, resistem a governos autoritários, a múltiplas violências, como expulsões de seus territórios, às milícias e aos paramilitares, ao narcotráfico, ao racismo, entre outros, e se levantam em favor da democracia, da justiça social, da equidade e contra as medidas neoliberais que sufocam a região.
Assim, a temática deste dossiê: infância e juventude, na perspectiva da participação, resistência, protagonismo e ação coletiva, impõem-se, considerando que, em momentos mais explícitos de crise, de um modo geral, esses sujeitos estão presentes no debate e em ações concretas, sofrendo, porém, com processos que vão da invisibilidade, ao silenciamento ou mesmo à violenta repressão. Portanto, esse dossiê procura ser um espaço que acolhe, escuta, visibiliza e ecoa a grande diversidade de maneiras pelas quais crianças e jovens agem no mundo e contribuem para definir histórica, social e culturalmente as maneiras pelas quais expressam agência, protagonismo e constroem mobilização coletiva. Consideramos que eles/as são capazes de organizar, atender, propor e gerar processos relevantes para resolver suas necessidades e problemas sociais junto aos adultos, embora saibamos que, muitas vezes, façam isso sozinhos/as. Dessa forma expressam-se não apenas como atores e agentes sociais, mas como agentes políticos; não apenas como indivíduos, mas como coletivos.
Propondo a reflexão sobre os conceitos de participação, resistência, agência, protagonismo e mobilização coletiva, buscamos decantar reflexões coletivas sobre o alcance e as limitações desses conceitos e apresentar várias maneiras pelas quais a infância e a juventude se expressam contra a estrutura das relações sociais construídas historicamente, procurando, ainda, abordar perspectivas que possibilitem desvelar os mecanismos que contribuem para a naturalização da desigualdade.
Cumpre destacar que o conceito de ação tem sido usado como sinônimo de agência, muitas vezes sem problematizar ou reconhecer as múltiplas formas de ação de crianças e jovens contra a estrutura nos processos de reprodução, produção, apropriação, resistência e transformação. No entanto, esse debate encontra caminhos do pensamento latino-americano e de movimentos sociais que atendem à dimensão da subjetividade e da alteridade, ou seja, o poder da "experiência" e do "encontro", dos contextos coletivos que constroem o comum e não apenas o social. Essas contribuições apoiam-se em experiências de pesquisa com crianças e jovens para gerar dispositivos metodológicos que explicitam as relações de poder e possibilitam condições para a participação real de crianças e jovens nos processos de produção de conhecimento que permitem uma compreensão mais ampla e reflexiva de suas experiências diárias e, dessa forma, a compreensão da organização política, econômica, cultural, entre outros, que marcam suas experiências no mundo.
O conceito de resistência acionado neste dossiê refere-se à ação consciente à intencionalidade, colocando a motivação política no centro do debate, de forma a compreender a resistência como indignação política e não como desamparo aprendido. Assim, o resiliente não é quem renuncia à luta, mas quem se propõe a mudar sua sociedade e suas condições de existência, o sujeito político da resistência, ou o coletivo dele derivado, mudando e impactando o grupo imediato.
Sabemos que crianças e jovens estão expostos/as a múltiplas dimensões da violência (estrutural, simbólica, física ou psicológica) manifestadas na violência política estatal ou intrafamiliar, que naturaliza comportamentos sociais como punição, agressão ou abuso, enquanto constrói sujeitos de invisibilidade e anonimato, muitas vezes submetidos a condições de interseccionalidade que os/as (re)vitimizam e excluem.
Nessa perspectiva, este dossiê procura ecoar as vozes de crianças e jovens, dialogar com eles/as, conhecer e dar a conhecer suas múltiplas realidades. Assim, os artigos: “Espacios lúdicos y territorios para niños y niñas: ludotecas en zonas vulnerables”[2]; “Bibliotecas comunitárias: dialogismo y colaboracióncon las niñeces para descolonizarnos”[3]; “Del efecto phármakon a la reinvención de subjetividades infantiles en la cibercultura”[4] e “Vivências infantis nos territórios do Paranoá e Itapoã no Distrito Federal” [5] apresentam processos coletivos, realidades e contextos que facilitam a construção de novos conhecimentos, articulam a perspectiva da educação e dos direitos a partir das vozes dos próprios atores e de suas formas de ver e entender o mundo. Os artigos “Infâncias e agência política em ações coletivas e movimentos sociais latino-americanos”[6] e “Ser zapatista a los 4 años. Socialización y subjetivación de niños tseltales”[7] analisam as agências e resistências, crianças na defesa de autonomias e territórios, bem como a participação infantil no âmbito dos movimentos sociais. Cabe destacar que essas participações estão ancoradas na avaliação positiva da identidade pessoal e coletiva, bem como na atuação de crianças, homens e mulheres para a construção de sua autonomia territorial, da defesa de seu território e dos recursos naturais. Trazemos também metodologias colaborativas, horizontais e reflexivas com crianças e jovens que permitem construir espaços nos quais se estabelecem múltiplos lugares de enunciação dialógica, que compreendem resistência e transformação social, ao mesmo tempo em que apresentam as dificuldades que enfrentam, abordagem expressa no artigo: “Por que rimos das crianças?”[8].
Este dossiê apresenta uma miríade de realidades e contextos sociais, econômicos e culturais. Nele evidencia-se a agência de crianças e jovens em estratégias de resistência e sobrevivência - concreta e simbólica. Tal enredo social e político pode ser vislumbrado nos artigos: “Juventudes étnicas universitarias, procesos organizativos y espacios de incidencia en Monterrey, México”[9] e “Jóvenes indígenas y resignificaciones identitarias en la educación superior intercultural en México”[10], nos quais o protagonismo étnico toma relevância em processos de troca, resistência e ressignificação no ensino superior. Já nos artigos “Subjetividades juveniles de la cultura callejera: participación y exclusión en Xalapa” e “Niñez indígena trabajadora migrante en contextos urbanos: participación, poder y resistencia”[12] abordam a infância e o trabalho nos grandes centros, tendo as crianças como partícipes do cotidiano numa postura de resistência. A vivência da violência em suas múltiplas dimensões está expressa no artigo: “Habitando la escuela en contexto de violencia armada: negociaciones con su presencia”[13].
Assim, trazemos ao público estas reflexões, cientes dos desafios e das potencialidades que a temática enseja. Desejamos boa leitura a todos/as.