Introdução
Nas instituições educacionais brasileiras, historicamente, a maior parte dos discentes pouco estudou sobre os líderes negros e negras, como Luís Gonzaga das Virgens, Luíza Mahin, Lucas Dantas, Teresa de Benguela, João de Deus Nascimento, Maria Felipa de Oliveira, Manuel Faustino Lira, Esperança Garcia, Dom Cosme Bento de Chagas e tantos outros que desenharam a história do Brasil. As memórias das lutas do povo negro, homens e mulheres, foram deliberadamente ocultadas, postas à margem da história oficial[4], especialmente da história da educação brasileira, que reduziu a existência dessa população às narrativas em torno da escravidão (Aguiar, 1989; Vale & Santos, 2019).
Um contraponto importante foi a Lei n.º 10.639/03 (Brasil, 2003a), fruto das pressões históricas do movimento negro, que implicou na obrigatoriedade da temática Histórica e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. A legislação ampliou as condições de redesenhar o imaginário popular e fortalecer a autoestima das populações negras (Gomes, 2017; Silva, 2021). Embora a inclusão de conhecimentos sobre a educação das relações étnico-raciais represente um avanço político importante, ainda se tem observado no currículo escolar um tratamento desigual na escolarização da população negra (Passos & Santos, 2018).
Mesmo depois da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas em 2003, continua necessário produzir argumentações que confirmem a existência do racismo no Brasil, além de demarcar que esse fenômeno, acrescido das desigualdades produzidas pela sociedade de classe, ainda produz trajetórias desiguais e injustas entre negros e brancos. Silva e Pereira (2013) sublinham também que a maioria das ações tem se voltado para o ensino de história, esquecendo-se da importância da literatura africana e seu contexto cultural, bem como da necessidade de habilitar os professores para a nova realidade.
Outra variável estratégica nesse processo diz respeito aos livros didáticos que, fundamentados na conquista de uma política pública de distribuição nacional de livros, o Programa Nacional de Livros e Materiais Didáticos - PNLD[5], de forma gratuita, visa garantir o acesso aos conteúdos fundamentais para a compreensão crítica da sociedade. Porém, ao se questionar quem avalia os conteúdos que são inseridos nos materiais didáticos, com quais orientações ideológicas os materiais são previamente debatidos pelos professores nas escolas, nota-se o tamanho da luta antirracista nas instituições educacionais (Copatti, 2021).
Em similaridade, mesmo a renovação da historiografia com o expressivo número de trabalhos, que tratam dos movimentos negros e suas conquistas, não deu conta de desnaturalizar uma tradição monoculturalista e eurocêntrica que subalternizou os saberes fora do cânone (Fonseca, 2007; Munanga, 2015). Ou seja, para além das ausências dos corpos negros nos espaços escolares, especialmente nos níveis mais altos de ensino, há também o racismo epistêmico e cultural, por meio da repressão de outras formas de produção não europeias, que negou o legado intelectual e histórico dos povos africanos e indígenas (Ferreira, 2018).
Ao observar a bibliografia da área de história da educação brasileira, disciplina específica no currículo de formação dos educadores, Cruz (2005) reforça que não foram evidenciadas experiências escolares da população negra anteriores à década de 1960, momento de maior expansão da rede pública no país. Nesse caso, como explicar essa ausência, se desde o início da república, através das organizações negras e da imprensa negra, já se tinham ações políticas e intelectuais, escolares e não escolares, voltadas à educação do povo negro, e articulações políticas que reivindicavam garantias de inserção dessa população em um sistema público educativo adequado às suas necessidades?
Remando contra a corrente, os movimentos negros continuam trabalhando para que personalidades como Pretextato dos Passos e Silva, Abdias Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigues, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro sejam inseridos nesse contexto histórico de luta por educação de qualidade, pública e gratuita, como protagonistas.
No intuito de contribuir para o processo de descolonização dos saberes, dialogando com outras perspectivas epistemológicas que reconhecem o protagonismo do povo afrodiaspórico, propomos com o presente artigo resgatar a luta dos movimentos negros na busca pelo acesso à educação, oferecendo maior visibilidade à atuação dos mesmos, ao longo dos últimos séculos. Assumiremos a definição de Gomes (2017), que entende o movimento negro pelas diversas formas de organização e articulação no campo da questão racial. Assim, serão englobados os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos e artísticos com o objetivo de superação da discriminação racial no campo educacional do Brasil.
Com base nesse conceito, buscamos romper com a historiografia hegemônica que considera os movimentos negros oriundos apenas em 1930 (com a Frente Negra Brasileira), e retomada, depois de refluxos, no Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. Por compartilharmos da ideia de que lideranças e organizações situadas na microesfera do poder também contribuíram, enquanto formas de resistência, para a luta antirracial, neste artigo serão incorporadas às ações no campo da educação que vão das primeiras reivindicações de pais e mães por escolas para os negros (no século XIX), aos recentes coletivos estudantis nas universidades brasileiras.
Assim, por meio de uma revisão de literatura apoiada em pesquisas em bibliotecas eletrônicas nas plataformas da Scielo e Google Acadêmico, acessamos periódicos, livros físicos e virtuais que tratassem da história do movimento negro no Brasil na educação. Buscamos autores que contam a história do engajamento dos povos negros como protagonistas na luta pela educação, sob a orientação de uma epistemologia crítica à historiografia que omitiu as suas ações. Assim, trataremos de “enegrecer” as conquistas históricas e apontar para os atuais desafios dos movimentos negros no campo das políticas educacionais.
Além da presente introdução, o artigo se estrutura em seis seções que resgata as fases[6] dos movimentos negros no campo da educação, perpassando desde as condições do período do início do século XIX aos desafios dos últimos anos. Por fim, serão tecidas as considerações finais.
Condicionantes e as primeiras lutas afrodiaspóricas pela educação (1824-1889)
Desde a chegada em massa dos povos africanos ao Brasil, as formas de exploração da vida do povo escravizado eram totalitárias, impossibilitando qualquer garantia no campo da educação. Esse processo se arrastou ao longo de quatro séculos, sendo reforçado na primeira constituição do país (Império do Brasil, 1824) que impossibilitava a alfabetização formal desses povos (Domingues, 2009).
Na província do Rio de Janeiro, presidida por Paulino José Soares de Souza, foi expedida a Lei n.º 1, de 1837 (Associação Rio Grandense de Pesquisadores em História da Educação [ASPHE], 2005), sobre instrução primária, que em seu artigo 3º proibia escravos e pretos africanos, ainda que livres ou libertos, de frequentar as escolas públicas, uma clara indicação ideológica da política educacional brasileira (Fonseca, 2007)[7]. É somente a partir do Decreto n. 1.331, de 17 de janeiro de 1854 (Império do Brasil, 1854), que se passou a prever a instrução de pessoas negras, mas condicionada aos negros livres e à disponibilidade de professores.
Uma das primeiras experiências de destaque no campo da reivindicação pelo direito à educação ocorreu a partir da criação da Escola de Primeiras Letras, em 1853, gerida pelo professor negro, Pretextato dos Passos e Silva, no Rio de Janeiro (Silva, 2012). A escola, situada na Rua Alfândega, 313, foi criada a partir das demandas dos pais e mães de crianças que, por serem malquistos nas escolas dos brancos, clamaram para a formação dos seus filhos (Pereira et al., 2020).
Segundo Silva (2012), em 1856, Pretextato dos Passos requereu ao inspetor geral da Instrução Primária e Secundária da Corte, Eusébio de Queiroz, a sua dispensa das provas de capacitações, na época, uma exigência para o exercício do magistério. Nas argumentações, montou um dossiê com dois abaixo-assinados dos pais em defesa da continuidade do ensino e as justificativas que o impossibilitavam de prestar os exames para docência. Após a sua aprovação, a escola funcionou até 1873 com 15 alunos, quando foi despejado da casa onde lecionava.
Nas décadas seguintes, o Decreto de Leôncio de Carvalho (Palácio do Rio de Janeiro, 1878) permitiu a criação dos primeiros cursos para os livres e libertos. No entanto, das 403.827 crianças negras nascidas entre 1871 e 1885, apenas 113 (0,02%) foram encaminhadas para os estabelecimentos de ensino, o que colocava um alto déficit educacional na população negra (Gonçalves & Silva, 2000). Em 1893, mesmo com o direito das crianças negras às escolas públicas, um dos primeiros jornais da imprensa negra, o Exemplo, denunciava que escolas públicas de Porto Alegre se recusavam a admitir crianças de cor (Domingues, 2009), o que reforçava a estrutura racista na educação.
Após a abolição da escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, em 1889, a lenta inserção dos negros nas escolas oficiais se constituía em um dos principais problemas para a inserção no mundo do trabalho. Os ex-escravizados ficaram abandonados à própria sorte sendo rejeitados pelos donos da produção no que tange a vagas de empregos. Enquanto isso, as discussões das políticas públicas passaram a versar acerca do embranquecimento populacional, centrado no apoio aos imigrantes europeus (Azevedo, 1987).
A emergência de organizações negras em prol da educação (1900-1937)
A passagem do século XIX para o XX foi marcada por expressivas associações negras que atuavam no campo da educação. Nesse período, como a educação básica gratuita não era obrigatória e só quem era alfabetizado tinha direito ao voto, a afirmação da cidadania passava pelo exercício do letramento para os negros. Dentre as organizações criadas, destacamos: a Sociedade Progresso da Raça Africana, em 1891, em Lages (SC); o Clube 28 de Setembro de 1897 (SP); a Sociedade Cooperativa dos Homens de Cor, em 1902; o Centro Literário dos Homens de Cor, em 1903; a Sociedade Propugnadora 13 de Maio, em 1906; o Centro Cultural Henrique Dias, em 1908; e a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor, em 1915, no Rio de Janeiro (Domingues, 2008).
Essas organizações (grêmios, clubes e associações) mesclavam sua atividade nos setores em que o Estado se fazia ausente, prevendo o amparo educacional aos seus associados (Bettine & Sanchez, 2017). Muitas empreenderam ações educativo-culturais em suas dependências com: aulas noturnas, bibliotecas, cursos e palestras, musicais, encenações teatrais e sessões de recitais de poesia (Loner, 2008).
Outra movimentação social de relevância foi a emergência da imprensa negra definida como um conjunto de jornais elaborados por negros, para negros e que tratavam de assuntos de interesse da população negra (Pinto, 2010). Assim, as denúncias sobre o analfabetismo, a precarização da escolarização dos negros e o regime de segregação racial que os impedia, em algumas escolas, de ingressar, foram centrais para a criação de escolas voltadas majoritariamente para a inclusão de crianças negras (Domingues, 2007).
Dentre elas, sublinhamos a Escola Noturna do Jornal o Exemplo, em 1902, e a Progresso e Aurora, de 13 de maio de 1908, na cidade de São Paulo. A primeira ofertava ensino primário, médio e secundário, enquanto a segunda era coordenada por um negro que atuou no movimento abolicionista, o Salvador Luís de Paula, atendendo mais de mil pessoas durante um período de dez anos. Além de se fundarem em propostas organizacionais coletivas com direção colegiada (professores e membros das associações), não cobravam taxas dos estudantes e permitiam, inclusive, a matrícula de estudantes brancos. Porém, por serem mantidas apenas pelas doações dos associados, as restrições financeiras levaram à descontinuidade da atuação dessas escolas (Domingues, 2009).
Em vista da necessidade de atuação nos aparatos estatais para lidar com as desigualdades, em 1931, emergem as primeiras organizações de cunho político partidário. Destacamos a Frente Negra Brasileira de maior expressividade no período. A associação avançou substancialmente no campo educacional com a realização de cursos de formação política para os seus associados, bem como a introdução de uma história do negro brasileiro para combater a história oficial (Pinto, 2013). Esses elementos parecem contestar as ideias de alguns pesquisadores que enfatizam apenas o caráter integrador e acrítico da educação defendida pelos movimentos negros da época.
A Frente Negra reuniu mais de 60 delegações em diversos Estados e 20 mil associados. Ao assumir uma presença cada vez maior no debate nacional, transformou-se em um partido político em 1936. Porém, acabou extinta em 02 de dezembro de 1937, devido ao Decreto-Lei n.º 37 (Brasil, 1937), assinado por Getúlio Vargas, que em seu artigo 3º colocava na ilegalidade todos os partidos políticos (Gomes, 2012).
Descontinuidades e resistências nas ditaduras do século XX (1937-1978)
O regime autoritário do Estado Novo começou a enfraquecer em meados da década de 1940, criando condições para o retorno legal dos movimentos negros. Ressaltamos, no período, a União dos Homens de Cor (UHC), em 1943, na cidade de Porto Alegre. Inaugurada com o objetivo de atuar na vida administrativa, apresentava em suas reivindicações uma das primeiras propostas de políticas afirmativas no país. No jornal UHC, enfatizava a necessidade de tornar gratuito o ensino, admitidos brasileiros de cor em todos os estabelecimentos de ensino superior (Silva, 2003).
A curta abertura democrática foi marcada também pela presença de intelectuais negros, como Abdias Nascimento, Alberto Guerreiro Ramos e Ironides Rodrigues. Essas figuras se tornaram fundamentais para ampliar as reflexões sobre as dimensões materiais e subjetivas do racismo no país. Além de terem criado o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, contribuíram para importantes eventos que traziam a educação na estratégia de enfrentamento ao preconceito, como o I Congresso do Negro Brasileiro (1950).
O TEN cumpria um papel de educação popular voltado para cursos de alfabetização como também para resgatar a herança africana em contraponto às raízes eurocêntricas da cultura brasileira (Nascimento, 2004).
No I Congresso do Negro Brasileiro, organizado pelo TEN, o intelectual e pesquisador Guerreiro Ramos enfatizou que não bastava a simples escolarização dos negros, mas produzir uma radical revisão dos mapas culturais para combater o sentimento de inferioridade nas culturas brasileiras. No período, a agenda de pesquisas desses intelectuais foi marcada por denúncias dos preconceitos e estereótipos raciais nos livros da época, como pelas primeiras reivindicações para a inclusão da História da África e dos africanos nos currículos escolares (Gonçalves & Silva, 2000).
No começo da década de 1960, sublinhamos dois elementos relevantes no campo da educação. O primeiro se trata da defesa da criação de uma Universidade Afro-Brasileira, em Porto Alegre, pela Sociedade Floreta Aurora e Associação Satélite Prontidão. A proposta elaborada em 1962, que visava aos estudos dos elementos da coletividade negra, continha, inclusive, uma maquete das futuras instalações (Domingues, 2009). O ideal, contudo, só seria efetivado em 20 de novembro de 2003, com a Faculdade Zumbi dos Palmares, com quase dois mil estudantes, destes, 80% negros.
O segundo se refere à atuação do Movimento Negro, a partir de fóruns de política educacional que conseguiram, ainda que de forma genérica, incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de número 4.024/61 (Brasil, 1961), a discussão da raça enquanto inclusão temática nas escolas públicas. No entanto, com o golpe militar de 1964, os movimentos sociais negros novamente foram proibidos, e a questão racial perdeu lugar nos princípios que regiam a educação com a Lei n.º 5.692/71 (Brasil, 1971), sendo retomada somente na LDB (Lei n.º 9.394/96) (Brasil, 1996) e com a alteração dos artigos 26-A e 79-B pela Lei n.º 10.639/03 (Brasil, 2003a).
Abertura política e a retomada dos movimentos negros “oficiais” (1978-2000)
O período de 1964 a 1978 foi marcado pelo exílio de lideranças negras e pela proibição dos movimentos sociais, no entanto, estes não permaneceram em silêncio. Abdias Nascimento escreveu no exílio o célebre estudo sobre o genocídio do negro brasileiro, contrapondo-se à narrativa oficial do regime militar sobre o mito da democracia racial (Nascimento, 2016). Da mesma forma, os estudos de Azevedo (2016) indicavam a presença de grupos de pesquisa em universidades brasileiras, que traziam à tona novas bases epistemológicas para a reconstrução da historiografia afro-brasileira.
O momento de pujança, marcando o retorno dos movimentos negros em dimensão oficial, ocorreu em 1978, a partir da criação do MNU. Mesmo inserido em condições estruturais contraditórias, marcadas pela abertura gradual e lenta no governo de Ernesto Geisel, a sua criação emerge das tensões do racismo da época (Pereira, 2013).
A organização se fundou em princípios que primavam pela reavaliação da atuação do povo negro na história do Brasil. No Programa de Ação de 1982, buscava-se a capacitação de professores para desenvolver uma pedagogia interétnica, pleiteando o fim da literatura eurocêntrica. Em 1986, na Convenção Nacional “O negro e a Constituinte”, o MNU atuou ativamente na elaboração da nova Constituição Federal. No documentopropunham: a educação como meio para combater o racismo e a discriminação, o apreço e a valorização da diversidade e a implantação da obrigatoriedade do ensino de História das populações negras (Bettine & Sanchez, 2017).
Apesar de essas proposições não terem sido incorporadas à Constituição Federal de 1988, os movimentos e parlamentares negros foram protagonistas no processo da democratização da nação. Aprovaram legislações complementares sobre os direitos étnico-quilombolas e garantiram a prescrição legal do racismo como um crime inafiançável (Gomes & Rodrigues, 2018).
A década de 1990 foi marcada por um forte processo de institucionalização das organizações não governamentais, favorecido por apoios políticos e econômicos internacionais ligados à luta antirracista. A emergência dessas organizações[8] tinha um caráter primordialmente educacional, evidenciando, de modo crescente, a política de focalizar o acesso à universidade (Rodrigues et al., 2019). Destas, destacamos, em São Paulo, a articulação com a Pastoral do Negro da igreja católica que levou à concessão de 200 bolsas de estudos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tal doação encorajou a organização de um curso para estudantes no Rio de Janeiro em junho de 1993, o que viria a se tornar um movimento pré-vestibular para negros e carentes (Nascimento, 2005).
Outro fato que consideramos marcante no período foi a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em Brasília, no dia 20 de novembro de 1995. No documento entregue ao presidente da república destacavam a retificação de livros didáticos, dos programas de ensino voltados para as questões raciais, bem como o desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes e universidades de ponta (Pereira et al., 2020).
Mediante o acúmulo de pressões dos movimentos negros, no ano seguinte foi promulgada a LDB (Brasil, 1996), que passou a oferecer base legal e fundamental para a discussão da temática das relações étnico-raciais na educação.
Do avanço nas Políticas Educacionais para os negros (2001-2015)
A entrada do século XXI marca uma fase caracterizada pela efetivação de políticas públicas que foram bandeiras históricas dos movimentos negros na luta pela educação no Brasil. A III Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban, África do Sul, em 2001, foi um marco para as políticas afirmativas. Ao final do evento, conseguiram um compromisso (assinado) de que o estado brasileiro passasse a colocar em sua agenda ações governamentais que reparassem as desigualdades de acesso à educação e ao trabalho. A visibilidade do pós Durban possibilitou, ainda, a emergência das primeiras ações afirmativas em Estados pioneiros, como Rio de Janeiro, Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul. Destacamos o Rio de Janeiro, a partir das leis estaduais dos anos de 2001, n.º 3.708/2001 (Rio de Janeiro, 2001), e de 2003, n.º 4.151/2003 (Rio de Janeiro, 2003), que adotaram 40% das reservas no ensino superior para os egressos de escolas públicas e negros (Paiva, 2015).
Contudo, é importante ressaltar que essas conquistas não foram pacíficas, mas resultados de intensas lutas nas esferas legais das universidades (conselhos) e disputas judiciais, como apontam os trabalhos de David (2019) e Navegantes (2019), sobre os embates na Universidade Estadual de Londrina e Universidade Federal do Pará.
Com o apoio político dos movimentos negros e a consequente eleição de um governo (Partido dos Trabalhadores) com características mais progressistas na área social, a partir de 2003, as condições políticas ampliaram o espaço dos movimentos negros nos processos decisórios. Foram criadas a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a partir da Lei n.º 10.678/03 (Brasil, 2003b), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, na Lei n.º 13.005/14 (Brasil, 2014), e a composição de diversos conselhos de políticas públicas com a participação dos movimentos negros.
Nesse período, ganhou força também a entrada de um número maior de jovens negros nas universidades (reflexos das primeiras políticas afirmativas), que passaram a intervir nas disputas em torno dos currículos escolares. Nessa conjuntura favorável, destacamos importantes vitórias, como a alteração das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, acrescentando a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira em todos os níveis de ensino pela Lei n.º 10.639/03 (Brasil, 2003a), que posteriormente foi modificada pela Lei n.º 11.645/08 (Brasil, 2008), que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola no Parecer do Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) 16/12 (Brasil, 2012a).
Essas leis visam desconstruir os estereótipos raciais de conteúdos eurocêntricos, sem, contudo, impor um único paradigma afrocêntrico. A descolonização dos currículos almeja dar visibilidades a vozes silenciadas, respeitando uma base crítica multi e intercultural, a partir da coexistência e convivência das diferenças e das identidades particulares (Munanga, 2015).
Outro marco central nas políticas educacionais foi a aprovação da Lei n.º 12.711/12 (Brasil, 2012b) e da portaria normativa do Ministério da Educação (MEC) n.º 13/16 (Brasil, 2016), que contemplam cotas na graduação e pós-graduação das 69 universidades federais e 38 institutos federais do país. As políticas distributivas foram acompanhadas também nas esferas regionais, de modo que até o final de 2019, das 42 universidades estaduais espalhadas pelo país, 38 instituições adotaram algum tipo de modalidade de cotas de acordo com a legislação de cada instituição (Pinheiro et al., 2021).
Os resultados das políticas educacionais no contexto do ensino superior indicaram uma “virada” no perfil dos estudantes, ainda que não seja distribuída hegemonicamente entre os cursos de maior prestígio social. Se na década de 1990, a constituição de negros era de apenas 0,6%, em 2005 (reflexo das primeiras políticas afirmativas) passou para 3,1% e superou, pela primeira vez na história, o número de brancos em 2019, com o total de 51,2% das matrículas nas federais (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior [Andifes], 2019).
O novo perfil dos estudantes também contribuiu para a ampliação da chamada militância negra de base acadêmica, composta por integrantes de núcleos de pesquisa e coletivos estudantis. Mesmo em um ambiente eurocêntrico, com corpo docente majoritariamente branco e resistente à mudança em seus currículos, esses grupos passaram a se orientar para o enfrentamento do racismo dentro e fora das universidades (Mesquita, 2021). Enquanto os primeiros contribuem, principalmente, com pesquisas científicas sobre o tema e divulgações de produções em ambientes virtuais, os coletivos negros passaram a ter um papel central na recepção de estudantes cotistas e no controle das ações afirmativas nas universidades, promovendo debates sobre as comissões de heteroidentificação racial (Guimarães et al., 2020).
Retrocessos e desafios nos tempos atuais (2016-2021)
À medida que os movimentos negros avançaram nas conquistas e lutas pela superação do racismo, dialeticamente, manifestaram-se também formas de opressão e dominação para contrapor às mudanças (perdas de privilégios) daqueles detentores do status quo (Santos, 2006).
Isso fica evidente a partir da emergência de movimentos conservadores em escala mundial (Mudde, 2019). No Brasil, com o impeachment presidencial e os resultados nas eleições legislativas de 2016, observou-se a extinção de importantes ministérios, como: Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos e a recriação do Ministério dos Direitos Humanos - com poder e recursos esvaziados pelo Executivo Federal (Gomes & Rodrigues, 2018).
Sob o rótulo da luta contra a chamada ideologização do ensino, ganham força discursos sobre a neutralidade educacional e a consequente proposta de projetos, como a Escola Sem Partido e a militarização das escolas. Soma-se a isso a Reforma do Ensino Médio, mediante a Lei n.º 13.415/17 (Brasil, 2017), aprovada sem diálogos com profissionais da educação e movimentos sociais. A reforma esvaziou disciplinas com potencial crítico (Filosofia e Sociologia), tornando-as optativas e deixando para as instituições escolares ofertá-las, se tiverem condições.
Nesta avalanche, entre 2016 e 2018, 18 municípios aprovaram projetos de Lei vinculados às ideias da Escola sem Partido, e 103 seguem em tramitação (Gomes, 2018). Da militarização das escolas, observou-se, entre 2015 e 2021, a criação de 74 instituições dessa natureza por meio do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares do Ministério da Educação (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior [Andes-SN], 2021).
Em contraponto, os recursos vinculados às universidades e instituições federais seguem sucessivos cortes orçamentários, o que tem comprometido não só a pesquisa científica, como a assistência estudantil, que atingem majoritariamente aos estudantes negros. A Lei n.º 14.144, que estimou o orçamento anual de 2021 (Brasil, 2021), aprovou um corte de 18,2% nos recursos em comparação com o ano de 2020, o que pode impactar, até o momento, uma redução de até 21,9% no orçamento do Programa Nacional de Assistência Estudantil (Andifes, 2021).
No âmbito da gestão democrática, foram aprofundadas as formas autoritárias que afastaram a sociedade civil de órgãos governamentais. Além das sucessivas interferências nos processos eleitorais e das dinâmicas das instituições de ensino superior, o Decreto n.º 9.759/19 (Brasil, 2019) extinguiu todos os órgãos colegiados (conselho e comitês) que tinham a participação da sociedade civil na administração pública, que são criados por lei.
Ressaltamos que essas ações seguem acompanhadas de narrativas racistas por membros de órgãos governamentais. Entre 2019 e 2020, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas mapearam pelo menos 49 declarações racistas proferidas (algumas já condenadas civilmente) por membros do governo federal, parlamentares e servidores do Judiciário (Bassi, 2020).
É importante destacar que o contexto hodierno colocou também para o movimento negro o desafio da manutenção da Lei de Cotas para o ingresso em Instituições Federais de Ensino. Se a Portaria n.º 545/20 do atual Governo Federal (Brasil, 2020) revogou a adoção de cotas nos programas de pós-graduação, o prazo para a revisão das cotas na graduação na Lei n.º 12.711/12 (Brasil, 2012b) estava previsto para o ano de 2022. Contudo, a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara, liderada por parlamentares que tinham em sua base os movimentos negros, conseguiram o adiamento de sua revisão de 2022 para o ano de 2032, o que se apresenta como um alento para os tempos atuais.
Considerações finais
Apesar de compreendermos que os movimentos negros no Brasil atuaram em lutas diversas com múltiplas conquistas, neste artigo tivemos por objetivo dar maior visibilidade às lutas pelo direito à educação. A opção pela ênfase no contexto educacional ocorreu por considerá-lo um espaço em que as representações negativas sobre os negros são difundidas, por isso mesmo também é um importante local onde estas podem ser superadas (Gomes, 2003).
Cientes de que muito foi feito e não dito nas limitadas linhas deste artigo, ao longo do texto, buscamos indicar marcos centrais nas conquistas dos movimentos negros, como: as primeiras escolas e os cursos de alfabetização criados por negros, as reivindicações por formas universais de escolarização, as denúncias nos materiais didáticos e silenciamentos da história negra e a efetivação de políticas públicas educacionais.
Essas legislações abriram espaço para a produção de conteúdos acerca da história e cultura negra, da visibilização de biografias de personagens negras, o que resultou em um contraponto aos séculos de educação epistemicida. Logo, buscamos indicar que foram em decorrência das lutas dos movimentos negros nas suas amplas formas de organização, com tensões, desafios e limites, que muito se sabe no Brasil sobre a questão racial e afrodiaspórica em uma perspectiva crítica e emancipatória (Gomes, 2017).
Por fim, é importante ressaltar que este artigo foi concebido durante uma pandemia que colocou o Brasil com uma das maiores taxas de mortalidade. Se a morte atingiu todas as classes sociais, no entanto não foi sinônimo de democracia. A população negra tem 62% mais chance de morrer pela doença do que os brancos, uma vez que 73,5% deles estavam mais expostos a viver em domicílios com condições precárias do que os brancos, e sofrem mais com diabetes, hipertensão e asma, comorbidades que pioram o quadro de covid-19 (Instituto Unibanco, 2021).
No âmbito educacional, historicamente, os estudantes negros do ensino básico possuem maiores taxas de evasão (27%) do que os brancos (19%). Porém, os estudos do Instituto Unibanco (2021) revelam que, no ano de 2021, 61% dos jovens negros entre 15 e 17 anos não possuíam computadores ou internet. Considerando-se que o ensino durante a maior parte da pandemia seguiu na modalidade remota, isso indica que não faltarão novos desafios para os movimentos negros, em vista dos abismos educacionais que reforçarão, mais uma vez, o racismo estrutural do Brasil.