Preâmbulo
A obra de Célestin Freinet […] há muito continua a suscitar reservas, dúvidas quando não descrédito. A razão de uma tal atitude de prudência ou de desconfiança, segundo o caso, certamente se deve ao fato de que Freinet não seguiu o curso universitário clássico. Deve-se também ao fato de que sua pedagogia foi, desde o início, uma pedagogia coletiva e militante, obra de percursores, tendo como único mérito a paixão pela educação a tenacidade e a coragem. (Freinet, 1978, p. 9)
Como indicado pela epígrafe, de autoria de sua esposa Elise Freinet, este é um texto sobre o educador francês Célestin Baptistin Freinet: um professor idealista e trabalhador, cuja proposta pedagógica centrava-se na atividade e criação humana. Freinet inspira esta escrita que se dá em meio à pandemia da covid-19, iniciada no primeiro quartil de 2020, cujos efeitos negativos ainda se alastram na segunda metade de 2021. Nesse ínterim, acumulamos dor e luto pelas fatalidades ocasionadas pela doença que revelou, dentre outros aspectos, as fragilidades da vida humana e de nosso sistema capitalista industrial algoz, que se mostrou incapaz de controlar a destruição inimaginável de um inimigo invisível.
A pandemia agudizou um mundo que prontamente se verteu ao virtual, cristalizando ou alterando formas de relações interpessoais e trabalhistas, como um meio de resguardo ao contágio e à doença. Apenas como exemplo, tomemos algo trivial do cotidiano, como o aperto de mãos ou beijo no rosto como formas de cumprimento, que se transformaram em um toque de punhos ou mesmo um aceno à distância. O que antes da pandemia se fazia com afeto, durante (e quem sabe depois) se faz com receio. Assim, ficamos expostos à exigência de lidar com novas formas de organização da vida social nos espaços da comunicação digital e de aproximação (virtual) e distanciamento (físico) entre as pessoas.
Nesse mesmo contexto, a educação também se voltou ao modo remoto mediado pela internet e seus gadgets, pois parecia haver apenas duas opções: parar tudo ou seguir virtualmente. Outras opções somente seriam possíveis de vislumbrar se houvesse como refletir e repensar o status quo; ou seja, repensar as coisas como estão, em amplo sentido, desde as questões de mercado e trabalho, até a própria organização da educação escolar, orientadas pelos exames externos (Fortunato, 2021; Fortunato et al., 2021). Como pensar em alternativas sequer foi cogitado, seguiram-se os trabalhos institucionais assumindo o “ensino emergencial remoto”, às vezes sob outras nomenclaturas, mas, em qualquer uma delas, em condições precárias de trabalho, no que diz respeito às dificuldades de estudantes e docentes na adaptação de um ensino organizado, como o próprio nome diz, “emergencialmente” de forma remota. Como afirmam Jorosky e Barros (2020) o ensino remoto foi adaptado também para as crianças pequenas de creches e pré-escolas, buscando se adequar a todas as modalidades de ensino, da melhor forma que era possível diante a conjuntura inédita e que desafiava a vida planetária. Mas, em linhas gerais, as instituições de ensino que tiveram que se adequar a essa forma de trabalho enfrentaram muitas dificuldades ao longo do processo.
Assim, resgatar a proposta teórica e epistemológica de Célestin Freinet e sua pedagogia, neste contexto histórico, exige destacarmos um duplo objetivo: I. recuperar parte do percurso de vida deste educador, destacando-o com militante da educação (no sentido de colocar em prática suas crenças), sendo propositor de uma pedagogia voltada à autonomia, cooperativismo e autogestão, frente às ações conformistas da cultura burguesa, o que se daria a partir da consciência da inadaptação a uma escola que serve ao sistema econômico de dominação; e, ao mesmo tempo, II. buscar elementos para nos manter esperançosos na humanidade por meio daquilo que fazemos, por opção, que é lecionar.
Para alcançar esses objetivos, este ensaio foi elaborado em duas seções. A primeira é sobre o itinerário da Pedagogia Freinet, estabelecendo marcos para uma educação renovada, pautada pelo bom senso. A segundaé sobre o mundo da educação virtualizada e como podemos superar o momento e seus devires, junto com a proposta pedagógica deixada como legado por Freinet.
Como afirmou o autor:
Somos aprendizes, por vezes com a pretensão de mestres e ocultando de bom grado, a nós mesmos, as nossas imperfeições e as nossas impotências. Temos de acreditar que a máquina humana é muito mais complexa e delicada do que os mais engenhosos mecanismos dos especialistas, pois os próprios professores de psicologia e pedagogia são aprendizes que não descobriram ainda os verdadeiros segredos de uma ciência que os ultrapassa. (Freinet, 2004, p. 108)
Ao final espera-se apenas deixar registrados elementos de reflexão sobre o momento que ajudem a mobilizar uma práxis educativa mais humanizada (a nossa inclusive), para o futuro, mas também para o agora.
Freinet: um itinerário marcado pelo bom senso para educar
Ninguém melhor que Freinet, seu iniciador e líder, teve consciência deste ato de audácia cujo sucesso, ao longo de meio século, é testemunha, ainda hoje, de sua grande eficácia popular, sem, entretanto, desarmar as críticas evasivas e a desconfiança dos conformistas da cultura burguesa. (Freinet, 1979, p. 10)
Célestin Baptistin Freinet nasceu no dia 15 de outubro de 1896, no sudoeste da França, no pequeno vilarejo Gars, situado nos Alpes Marítimos, região de Provença. Estudou na Escola Normal de Nice, mas teve que abandonar o curso para atender a convocação para a Primeira Guerra Mundial, da qual voltou adoentado e frágil. Impossibilitado de continuar a servir o exército francês, em 1920 assume como professor em uma escola primária de meninos na cidade de Bar-sur-Loup, Alpes Marítimos. Depois seguiu para Vence, onde deu início aos trabalhos cooperativos e de educação pautada no método livre que lhe dariam notoriedade como o grande educador que foi, influenciando professores e escolas em diversos países.
Ao regressar ferido da guerra, Freinet (1998, p. XXV) assumiu suas aulas em “uma obstinação insana em honrar um ofício que […] escolhera e amava”. De fato, somente a paixão pela educação pode explicar como alguém que resistiu aos ferimentos quase fatais sofridos em guerra, superou os traumas deixados pela insanidade de uma luta sangrenta e se dedicou a transformar a escola, em busca de outro mundo, melhor. Quando começou, tinha como referência autores que refletiam as tendências educacionais do momento, como Rousseau, Montaigne, Pestalozzi, porém, percebia que as crianças para as quais lecionava eram diferentes das descritas nos livros, com outras dinâmicas de vida. Mesmo se sentindo incapaz, resolveu permanecer como professor primário na pequena vila onde vivia, mas, sem deixar suas inquietações e anseios pedagógicos. Era preciso outra escola.
Para Célestin Freinet (1975a, p. 158), por meio do trabalho pedagógico, a escola tem a função de ajudar cada criança a ser capaz de desenvolver todas as suas potencialidades: reflexão, desenvolvimento de valores, inteligência, razão, fraternidade, bondade, justiça, generosidade, ou seja, direcioná-la aos “eminentes direitos do espírito”. Assim, Freinet foi um militante assíduo contra o ensino tradicional, vivendo uma luta diária em oposição à educação escolar chamada popularmente de tradicional (professor, apostila, lousa, exercícios, exames, aprovação, reprovação, silêncio, controle, fileiras, sinal de entrada e de saída).
A essa educação tradicional Freinet se referia como escolástica, cuja fórmula segrega as pessoas (educandos e educadores) da sua própria vida cotidiana e as coloca em contato com um mundo à parte, sectário, pretensioso, desumano. Além de uma outra fórmula de escola, baseada na aprendizagem por tentativa-erro-acerto, no método livre de escolha dos estudos, no interesse dos educandos, no envolvimento da escola com a comunidade etc., Freinet (2001) batalhou também por uma escola para o povo, defendendo sempre uma proposta pedagógica cujo objetivo era promover uma educação que não fosse alienante, mas que pudesse ajudar a superar a exploração e a desigualdade social proporcionadas por um sistema social e econômico de exploração, dominação e alienação.
Freinet deixava clara a sua preocupação com uma prática pedagógica humanizadora que tinha como eixo de trabalho a realidade das crianças e suas vivências, incluindo a arte, a cultura e a ciência. Encontrou bases para o desenvolvimento de sua pedagogia no marxismo, assim como em clássicos como Montaigne, Rousseau e Rabelais, além de educadores expoentes como Montessori, Decroly e Ferrière. Com este último, em especial, “orientou suas tentativas, por defender a prática da escola activa” (Freinet, 1975b, p. 13).
Para deixar mais evidentes suas ideias a respeito da educação escolar e suas críticas a respeito da escolástica, Freinet (1998) as expressou por meio do personagem Mathieu, que era provavelmente seu alter ego. Mathieu era um sábio camponês (e poeta e filósofo, como o qualificou o próprio Freinet), que revelou ao acadêmico personagem professor Long os erros do escolastismo, ao conceber uma escola que serve para tratar de assuntos alheios ao mundo vivido, por meio de um rigor supostamente benéfico aos estudantes. Mathieu acreditava na poesia inerente ao aprendizado a partir do encantamento com as coisas da vida, desde observar as folhas caindo ou o balé das formigas, ou mesmo o cozimento de um pão. Em outro momento, Freinet (2004) organizou as palavras mais contundentes de Mathieu em uma obra que foi assertivamente traduzida para o português como Pedagogia do Bom Senso.
Educar pelo Bom Senso seria a maneira mais simples e segura de educar, pois começaria pelo encantamento da vida que estivesse ao alcance dos sentidos para, progressivamente, ampliar a curiosidade sobre outros lugares, outros saberes, outros mundos. Caso contrário, o que temos é uma escolarização como um cabresto, que faz com que alguém, que não se sabe quem é, tome as rédeas e guie os educandos para um lugar que não se consegue divisar no todo. Uma educação operando como uma máquina, como bem delineou Freinet (2004), articulando as seguintes palavras como se tivessem sido proferidas por Mathieu ao professor Long:
É claro que a sua máquina escolar gira bem, melhor mesmo do que a nossa, pois você previu tudo, já não digo alguns dias antes, mas vários meses ou vários anos.
A distribuição mensal das disciplinas de acordo com os programas é afixada, segundo o regulamento, à direita do quadro; à esquerda, a utilização do tempo, à qual você obedecerá rigorosamente.
A única coisa que você tem a fazer é instalar a mecânica e virar as páginas. De passagem, o inspetor poderá pedir-lhe o diário de classe, minuta exterior dessa mecânica; então, ele ficará tranqüilo, pois tudo estará acontecendo, de fato, segundo as normas.
Essa mecânica, porém, tem um inconveniente: o professor, o inspetor e o Estado — digamos antes: o Estado, o inspetor e o professor —, com efeito, previram tudo, exceto que essa mecânica não engrena na complexa mecânica humana. O motor gira bem. Dá o seu rendimento máximo de tantas voltas por minuto — no caso, de tantas lições por manhã —, mas só muito por acaso se consegue engrenar. Então a máquina gira em vão. Ronca ou ronrona segundo o ritmo, ou se acelera e aquece. Mas a mecânica humana não treinada só raramente se atém à minuciosa organização escolar. A maioria das vezes mantém-se imóvel e aguarda… a saída. Às vezes — e mesmo freqüentemente — gira em sentido contrário, sob o impulso da vida. (Freinet, 2004, p. 33)
Como vimos em seu “itinerário” – título de obra escrita por sua esposa Élise Freinet (1979) alguns anos após o falecimento de Célestin – sua dedicação em transformar a escola por meio da sabedoria camponesa, contrária à escolástica de um cientificismo mecânico, não foi nada simples, tendo sido necessário enfrentar todo o sistema educacional constituído na França. Sua primeira escola em Vence, inclusive, foi destruída, porém reconstruída pelo próprio suor do casal e daqueles que vislumbravam, na pedagogia que começava a se delinear, um caminho para a vida.
Freinet sempre defendeu a educação para todos, e que também formasse seres críticos, autônomos, criativos, e que os educandos fossem inspirados a aprender pelos próprios mistérios do mundo em que viviam. Para Freinet (1975b), o grande problema da escola estava em não oferecer às crianças trabalho que fizesse parte de suas vidas, sendo que:
[…] o trabalho escolar não lhes interessa porque já não se inscreve no mundo. Então, inconscientemente, concedem-nos apenas a porção mínima do seu interesse e da sua vida, reservando todo o resto para aquilo que consideram verdadeira cultura e alegria de viver. Freinet (1975b, p. 11)
Vimos, portanto, que Célestin Freinet havia percebido que era preciso outra escolarização, que pudesse ser interessante e fizesse parte da “alegria de viver”. Talvez essa outra forma de conceber a educação pudesse ajudar as pessoas a viverem plenamente, construindo algo muito diferente do mundo que o havia colocado em um pelotão de guerra. Dessa maneira, elucida em seu trabalho pedagógico a busca por vivências significativas no processo escolar, dando espaço para a curiosidade e o aprendizado pela experiência, pelo fazer, experimentando, ensaiando, errando…
Guiado pelo respeito e interesses das crianças e pela perspectiva de afazeres coletivos, idealizou várias técnicas de trabalho pedagógico como: a aula-passeio, o texto livre, a correspondência interescolar, o jornal de parede, o jornal escolar, o livro da vida, os ateliês, o fichário escolar cooperativo, o fichário autocorretivo, planos de trabalho e a imprensa na escola. Por meio da utilização de tais técnicas, construiu seu trabalho pedagógico dentro dos seguintes princípios: o tateio experimental, a autonomia, a cooperação, o coletivo, a livre expressão, a reflexão individual, a educação para o trabalho e a documentação (Freinet, 1975a; Freinet, 1979).
A aula-passeio foi uma das primeiras técnicas de trabalho realizada com as crianças por Freinet. Sair da sala de aula para conectar-se com o mundo era momento importante de exploração, do toque, da observação e da experimentação… movimentos que continuaram a florescer em outras técnicas. O texto livre, por exemplo, nasceu dos registros curtos que o educador fazia coletivamente na lousa após as aulas-passeio, ocasião em que as “as crianças liam, comentavam, acrescentavam observações e depois copiavam o texto nos seus cadernos, ilustrando-os com desenhos da forma que quisessem” (Sampaio, 1989, p. 18). Assim, “a originalidade de Freinet encontra-se no fato de ter atribuído às atividades escolares a configuração de um verdadeiro trabalho e não a de uma simulação” (Santos, 1996, p. 259).
Suas atividades pedagógicas carregavam um objetivo importante: formar cidadãos capazes de compreender o mundo à sua volta e de lutarem por causas coletivas. Nessa perspectiva, o professor assume a responsabilidade de ser criador de novas experiências pedagógicas para as crianças que, por sua vez, participam ativamente na construção do conhecimento para a vida (Buscariollo et al., 2021).
Como já delineado, Freinet foi influenciado por muitos pensadores, porém a corrente marxista teve seu papel fundamental em suas lutas e anseios para a transformação das estruturas sociais. Sua relação intensa com o partido comunista e sua escrita crítica às questões educacionais da época abalavam os ideários políticos e educacionais, e aos poucos o Movimento Freinet foi sendo organizado, atraindo pessoas interessadas na sua educação progressista (Freinet, 1979).
Freinet foi um educador que, para além de seu tempo, construiu cooperativamente com os alunos atividades movidas por suas necessidades, de maneira significativa e cheia de sentido, que vieram a ressignificar a prática pedagógica, ou melhor, a “práxis pedagógica”. Tinha em vista transformar o ser humano e a natureza pelo trabalho. Nessa perspectiva, suas atividades laborais ultrapassaram o cumprimento de técnicas com direcionamento para formar apenas habilidades nos estudantes, mas, sua pedagogia era orientada por ações pedagógicas intencionais, embasadas teoricamente, transformadoras dos processos objetivos e subjetivos dos envolvidos. Vázquez (1997) salienta que a teoria por si só não pode ser considerada como práxis, assim como a prática sem teoria também não se qualifica como práxis. É necessário que haja articulações entre teoria e prática, para que se possa representar uma atividade material e transformadora capaz de contribuir para o progresso do conhecimento e, consequentemente, da sociedade. Essa articulação, para Freinet, também não poderia ser apenas simulada, mas vivida, na relação da vida com os conhecimentos que se aprende a refinar na escola.
Nessa perspectiva, Freinet nos enriquece com seus princípios, técnicas e constante busca por uma educação libertária. Assim, o trouxemos para o momento atual, em um contexto marcado pela pandemia da covid-19, no qual se assumiu um discurso de “reinvenção” em várias esferas da vida social, incluindo a escola. Diante da necessidade de distanciamento social para evitar o aumento da curva de contágio da doença, houve um esforço enorme, via comunicação de massa e organização da agenda social, para que toda a comunidade escolar acreditasse que se tratava de uma nova maneira de ensinar e aprender, medida pela tecnologia da internet e seus diversos aparatos de acesso remoto. Mas, seria mesmo uma reinvenção da escola, revolucionária, como havia proposto Freinet cem anos atrás? Ou seria a mesma velha escolástica travestida de tecnologia digital?
Freinet vive e seu legado nos impulsiona a refletir sobre uma trama possível: a de tentar transformar nosso espaço de ensino em um lugar da práxis – seja no ensino emergencial remoto vivido agora pelas circunstâncias, seja na educação da presença que se avizinha com o final da pandemia.
Freinet, práxis, pandemia e mundo virtual – uma trama possível?
Na ignorância da natureza humana em que nos encontramos, a educação aparentemente científica e objetiva do exterior não passa ainda de um logro. É no indivíduo que iremos buscar os fundamentos e as linhas de ação. (Freinet, 1979, p. 2)
Cá estamos, em 2021, no meio de uma pandemia de um vírus letal, que se espalha facilmente pelo ar. A medida profilática mais eficaz é o distanciamento social, tendo ocasionado o fechamento de escolas no Brasil e no mundo – embora de maneira bastante controversa e em tempos díspares, dados os entendimentos divergentes a respeito da curva de contágio. Efeitos negativos dessa pandemia foram veiculados diariamente e seus efeitos sobre a educação e a escola ainda têm causado muitas reflexões e embates a respeito da solução dada: o ensino emergencial remoto.
Críticas já foram registradas de diversas formas, desde aquilo que é objetivo, como a falta de equipamentos e acesso à internet, assim como a falta de local apropriado para realização de tarefas voltadas aos estudos, até à obstinação em se dar continuidade à normalidade do mundo, por meio da virtualização, sob o mote de que as coisas não podem parar (Fortunato, 2021; Fortunato et al., 2021).
Apesar de contextos muito distintos, ainda assim podemos traçar certo paralelo entre a pandemia da covid-19 que fez parar a escola e a Primeira Guerra Mundial que paralisou a carreira docente de Freinet. Esses dois momentos são similares, na medida em que dois eventos ocasionados pela própria organização humana do espaço trazem efeitos negativos perversos, de dor e sofrimento, a um contingente de pessoas que não têm relação alguma com a origem do problema. Dito de forma mais simples: a guerra e a pandemia são alguns dos reflexos da sociedade industrial, baseada no capitalismo neoliberal, cujas ideias mais fundantes vêm atreladas ao consumo exagerado e a mecanização da atividade humana.
Ainda, apesar dos efeitos desastrosos, os ferimentos da guerra não foram suficientes para impedir que Célestin Freinet continuasse a perseguir seu caminho como educador, assim como a pandemia da covid-19 não foi capaz de impedir que a educação escolar prosseguisse com a disseminação dos conteúdos curriculares e todas as suas práticas de controle da organização escolar. Importante destacar que Freinet, em seu tempo, espaço e princípios deslumbrava uma educação libertária, ao contrário da educação que vivenciamos há tempos, em específico no Brasil, cujo objetivo gira em torno da burocracia e do controle dos exames externos, gerando currículos estanques a serem cumpridos. Com a pandemia, só se mudaram os instrumentos de acesso a esse conhecimento engessado, sendo possível observar não só a obstinação em dar prosseguimento às práticas educativas, mas a efetiva centralidade da educação na nossa sociedade.
No entanto, a obstinação de Freinet pela educação não é a mesma da manutenção da escola pelo modelo emergencialmente remoto. Afinal, o ensino remoto está calcado na ideação de que não se pode parar o modelo de mundo por causa da pandemia, a partir de um slogan ideológico de que há tecnologia de ponta da internet para dar respaldo às atividades educativas para todos. Não obstante, sabemos que se trata de uma obstinação pela manutenção de uma proposta política dos sucessivos governos de “democratização” da educação, calcada mais na quantificação do que na qualidade, fundamentando-se nos índices de matrícula, escolarização, notas etc. como subterfúgios para demonstrar que as administrações estão preocupadas com a escolarização das crianças e dos jovens.
Célestin Freinet, por sua vez, obstinava-se em não deixar as marcas da guerra sobrepujar seu destino escolhido de educador. Ao longo de seus escritos, o autor explica que educar não se trata de uma vocação, no sentido de um chamado divino, mas também não descarta a ideia de que lecionar pressupõe um apreço inato pela humanidade. Daí seu adágio: “A educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida” (Freinet, 2004, p. 13).
Nesse período de pandemia, voltamos à pedagogia de Freinet para nos ajudar a pensar a escola do hoje, de tempos de ensino remoto. Sua pedagogia empírica não representava apenas assimilar os conteúdos tidos como fundamentais para o futuro dos estudantes, pois ela era motivada pelos órgãos do sentido, ou seja, partindo daquilo que é visto, tocado, ouvido, sentido, que efetivamente desse significado ao que é aprendido. Essa fórmula de educação aproximava as crianças do mundo vivido, trazendo para o aqui-agora as lições que fossem tomadas e apreendidas. A grande questão é se o ensino remoto pode, mesmo que remotamente, chegar perto disso?
O itinerário e as técnicas por ele criadas para uma Escola Moderna, embora todas fossem iniciadas pelo empirismo (Fortunato, 2018), conduziam à educação como obra de vida. Contudo, as críticas de Freinet ainda não mudaram a escola que temos, com seus conteúdos voltados aos exames internos e externos, cujos trabalhos servem apenas para dentro da sala de aula presencial ou da sala de aula virtual – não importa.
A pedagogia Freinet exigia um “espírito” que movia o desenvolvimento de uma educação como obra de vida:
Lá fora está a aldeia, cenário familiar onde os constrangimentos se desfazem, movimento de simpatia em relação aos seres, aos animais e às coisas, que tecem uma atmosfera de impregnação sensível. Mais além estão os campos, onde trabalham os camponeses, a ondulação das árvores, os prados verdejantes, as pequenas veredas que personalizam as terras. E, banhando essas paisagens tocantes, o ar sonoro onde se elevam as vozes das crianças, que por um momento saíram da prisão. Por ter sido também uma criança de aldeia, é que Freinet é sensível, tanto quanto seus alunos, à solicitação destes sutis alimentos do corpo e do espírito, numa natureza que é, permanentemente, explosão de vida. Mas mesmo assim era preciso voltar ao prédio escolar, à classe poeirenta, ao alinhamento das carteiras, ao quadro negro e a tantas obrigações tradicionais que condicionam o comportamento de imobilismo e nervosismo dos alunos e de seu professor. (Freinet, 1979, p. 18)
Uma citação tão pertinente ao momento vivido pelos educadores nesses tempos de pandemia, a qual nos coloca à distância uns dos outros, longe dos colegas professores, dos estudantes e de toda comunidade escolar, especialmente quando se leem as duas primeiras palavras: “lá fora”. Cientes de que estar separados fisicamente é necessário para a segurança sanitária e preservação da saúde e da vida, padecemos virtualizados. O “lá fora” adquire o sentido de “em outro lugar que não o computador” (ou celular ou outro dispositivo de conexão remota). Enquanto a vida acontece lá fora, no computador permanecemos na ilusão de que não alteraremos também o espírito!
Docentes, com maior ou menor grau de experiência e/ou motivação para a tecnologia, produzem material didático, vídeos, jogos, configuram e atualizam ambientes virtuais de aprendizagem, preparam e avaliam atividades, respondem e-mails e mensagens que chegam por meio de diversos aplicativos de comunicação, produzem relatórios, fazem reuniões, redigem atas, ofícios e memorandos… Enfim, vivem mergulhados em um mundo digital, cheio de janelas abertas, ao mesmo tempo que investem esforços para cumprir todas essas atividades mencionadas, juntas e misturadas.
Discentes acessam as salas virtuais de algum aplicativo para esse fim e participam da aula ao vivo online (ou apenas permanecem logados). Isso nos lembra a citação de Élise Freinet (1979, p. 18) no trecho em que diz “por um momento saíram da prisão”. Se, no período antes da covid-19, os prédios escolares eram referidos como cárceres, nos quais os estudantes eram encarcerados dentro de salas, sentados em fileiras com a face voltada ao quadro-negro, durante a pandemia os écrans dos aparelhos de conexão com a internet assumem essa mesma função. De qualquer modo, pela presença nos prédios escolares ou pela virtualização das salas de aula, a escolástica predomina, os corpos permanecem inertes e as mentes padecem com tanto trabalho e pouco sentido. Freinet nos ajuda chegar a essa compreensão e que devemos retomar a mesma crítica à escola do hoje, de tempos de ensino remoto. Em tempos de pandemia, onde poderia estar a “explosão de vida”, que alimenta corpo e espírito, neste mundo doente?
Obviamente que não se trata de abandonar a segurança do distanciamento social, demandando um retorno às instituições de ensino, pois isso é colocar vidas em risco. Afinal, o vírus é disseminado pelo ar. Também não se trata de dar prosseguimento aos conteúdos da escola, pelo intermédio da internet, como se nada efetivamente de perverso estivesse acontecendo com a humanidade.
Muito acontece e Freinet nos ajuda a compreender e nos inspira a não ceder. Obstinados, continuamos procurando por caminhos mais empíricos, quer sejam online, mas sempre mobilizadores dos afetos, tentando outros contornos para a educação tradicional, escolástica. Assim como propôs Freinet, necessitamos de vivências humanizadoras para a sala de aula, utilizando-nos da capacidade natural de interagir com o mundo e fazendo com que os estudantes passem a questionar a própria realidade transformando-a e transformando-se a si mesmo. E ainda bem que existem registros de trabalhos educativos, realizados remotamente durante esse período de isolamento, que buscavam resistir e esperançar, pois esses também nos dão forças para persistir acreditando na Educação que transforma (Frauendorf et al., 2020; Varani et al., 2022).
Vimos, assim, pensamento e práticas semelhantes ao da pedagogia de Paulo Freire, o que nos ajuda em tempos de pandemia: se não podemos realizar agora, precisamos resgatar, rememorar o fato de que a ação escolar deve ser sempre coletiva, que deve promover a problematização da sociedade, indo além dos muros escolares por meio de práticas pedagógicas intencionais, direcionadas à transformação social, dizendo que as vivências pedagógicas devem manter o comprometimento com a humanidade e que isso implica práxis, ideia central do movimento da Escola Moderna.
Como nos afirma Vázquez (1997, p. 219) “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. Segundo o autor, a práxis precisa ser distinguida como uma forma de atividade específica. É, na verdade, uma categoria central da filosofia que significa não apenas interpretar o mundo, mas se torna guia da sua transformação ajustada a objetivos.
No contexto escolar proposto por Freinet, a vinculação entre teoria e prática tem a função de formar sujeitos mais humanizados e capazes de modificar e modificar-se. Por isso, podemos afirmar que as vivencias pedagógicas de Freinet se consolidaram por práticas revolucionárias, alicerçadas teoricamente, e que buscavam construir grupos transformadores movidos por objetivos coletivos. Tudo isso acabou consolidando uma escola da práxis, afrontando as normativas educacionais da época – que, embora com certas diferenças contextuais, ainda se mantém na instituição escolar. Isso é inspirador em tempos de ensino remoto.
Se atualmente enfrentamos, com muitas dificuldades, a pandemia da covid-19, uma delas é justamente a educação e sua emergência de dar continuidade ao seu modo de trabalho, porém pela internet. Não se trata, como delineado, de uma reinvenção de professores e estudantes com as “novas” tecnologias. Trata-se, como bem apontado por Chomsky (2020, p. 27), de escolhas a serem feitas: “Estamos em um momento de confluência de diferentes crises de extraordinária gravidade, diante da qual o destino da vida humana está literalmente em jogo [4] ”.
Ao dar continuidade às práticas educativas pela internet, com conteúdos, registros de presença e ausência, avaliações internas e externas etc., negamos “a confluência de crises” e continuamos operando, por meio da via da educação, como se nada estivesse acontecendo de perigoso à própria humanidade!
Parece ser necessário recuperar Freinet e sua obstinação em dar sentido à escola, transformando-a. Isso não se faz de repente, mas por meio de uma práxis de resistência ao que está posto e de uma revolução da escolástica pela educação progressista, como nos demonstram Célestin e Élise.
Considerações parciais, transitórias, esperançosas
É o indivíduo que deve construir as bases sólidas de suas aprendizagens, recorrendo aos adultos e ao meio como auxiliares que favorecem sua ascese: existe, então, educação. Se, do exterior, se impõe ao indivíduo um quadro de condicionamento que não serve a suas necessidades naturais, existe domesticação. (Freinet, 1979, p. 133)
Trouxemos aqui o itinerário de Célestin Freinet no intuito de dialogar com o seu legado e a realidade que vivemos durante a pandemia da covid-19, a respeito dos processos educativos. O que ocorre é que muitos educadores, ao estarem diante das telas e frente às inúmeras aprendizagens tecnológicas, se viram em desafios constantes, o de aprender e o de como ensinar nesse novo modelo. Na rotina desses profissionais, da educação infantil ao ensino universitário, angústias sobre como usar as tecnologias que foram impostas da noite para o dia, enfrentamento da ansiedade das famílias e crianças em relação à nova organização escolar, a viabilização de uma aprendizagem significativa considerando a necessidade do uso da via remota e a ansiedade pela vacina, foram alguns dos desafios que ainda continuam a acompanhá-los. Muitas das dificuldades encontram-se implicadas na dimensão histórica da política educacional, que compactua também com a desvalorização dos profissionais da educação.
Voltamos à nossa pergunta: há possibilidade de uma trama possível entre práxis, Freinet, pandemia e mundo virtual nas condições atuais?
Ao trazer uma perspectiva de reflexão sobre o ensino emergencial remoto que adentrou em nossas vidas pessoais e profissionais, estamos pensando sobre nossa realidade concreta. Fato é que a Pedagogia de Freinet não tem a pretensão de ser a redentora da escola no momento pandêmico, como também não pretende solucionar todas as dificuldades apresentadas pelo sistema brasileiro de educação. Afinal, essas questões se situam num contexto mais amplo de realidade social, por outro lado, e a despeito de todas as críticas que são a ela relacionada (Costa, 2006), em função de sua centralidade na esfera da vida cotidiana, é na cotidianidade que a pandemia tenta tornar normal o ensino remoto.
E sob o pretexto de se voltar à normalidade da escola continuamos a viver a denúncia de Freinet (1998), feita no livro A educação pelo trabalho. Mesmo no ensino remoto, continuamos com práticas pedagógicas de educação que tornam ainda mais evidentes as alienações da escola do povo no regime capitalista neoliberal:
Deterioração, obsolescência dos locais, falta de instrumental educativo e de créditos, hostilidade dos poderes públicos a toda iniciativa dos professores. Estado de privação e de subalimentação da infância proletária. Falta de formação dos professores primários, relegados ao empirismo pedagógico, diante dos professores universitários altamente especializados, possuidores de todos os meios que favoreçam suas obras pedagógicas. Oposição permanente entre uns, de cultura intelectualista, e outros de cultura popular de sensibilidade e bom gosto. Existe uma escola de Classe. (Freinet, 1998, p. 79)
Por certo, a pedagogia de Freinet impõe mudanças, movimentos, lutas pela democratização da escola. Suscita a reflexão que nos remeta à nossa realidade concreta, que nos ajude a superar a pandemia, mas isso só ocorrerá, pelo caráter solidário da pedagogia freinetiana, a partir da verificação de seus fundamentos como a autonomia, a livre expressão, o livre trabalho cooperado. O caso é retomar o fato que Freinet (2004) orienta que a escola deve estar conectada ao cotidiano das crianças para ser promotora de saberes significativos, mas também que cabe a nós, professores, refletir sobre os conteúdos postos pelo ensino remoto, sob a pena de vivermos uma farsa que não conseguiremos superar após o fim das limitações impostas pela pandemia da covid-19. Por qual caminho seguiremos?