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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 01-Dez-2021

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.72825 

Article

A centralidade da família: intersecções entre pautas do Escola sem Partido e a Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC

The centrality of the family: intersections between guidelines of the Non-Partisan School and the Law 7.595/2018 of the Municipality of Jaraguá do Sul/SC

La centralidad de la familia: intersecciones entre los lineamientos de la Escuela sin Partido y la Ley 7.595/2018 del Municipio de Jaraguá do Sul/SC

Iana Gomes de Lima1 
http://orcid.org/0000-0002-6386-7248

Maria Angela Nolli2 
http://orcid.org/0000-0002-6856-2267

Jane Mery Richter Voigt3 
http://orcid.org/0000-0003-2180-5476

1Pós-Doutora pela Universidade Federal de Pelotas. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, tendo realizado doutorado sanduíche na University of Bristol (Inglaterra). Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora colaboradora do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade da Região de Joinville-UNIVILLE. Porto Alegre, RS. Brasil.

2Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade da Região de Joinville-UNIVILLE. Professora de Direito na Faculdade Guilherme Guimbala - ACE/FGG. Joinville, SC. Brasil.

3Pós-Doutora em Ciências da Educação na especialidade Desenvolvimento Curricular pela Universidade do Minho - UMINHO, Braga, Portugal (2018). Doutora em Educação, área de concentração Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2012). Professora titular do mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade da Região de Joinville-UNIVILLE. Joinville, SC. Brasil.


Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise da Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC, apontando a presença de algumas pautas do movimento Escola sem Partido (ESP) nas justificativas que embasaram a sua propositura e aprovação. A Lei 7.595/2018 proibiu aos profissionais da educação a implantação e o desenvolvimento de atividades pedagógicas na matriz curricular que visem à reprodução do conceito de ideologia de gênero, orientação sexual e congênere. De abordagem qualitativa e de cunho interpretativo, a pesquisa contou com a realização de entrevistas semiestruturadas com três vereadores, um representante da instituição religiosa Assembleia de Deus e uma representante do ESP do município de Jaraguá do Sul/SC. A análise dos dados revelou justificativas para a propositura e aprovação da lei pautadas na retomada da autoridade e centralidade da família, assim como da moralidade e dos valores cristãos. Para os entrevistados, é papel da escola ensinar/instruir os estudantes, sendo a educação moral de responsabilidade exclusiva das famílias. Depreende-se das análises, que as pautas do movimento ESP estão presentes e fundamentam a lei jaraguaense, resultado de um movimento conservador cada vez mais atuante e consistente, dotado de nuances e particularidades próprias, em todo o nosso país.

Palavras Chave: conservadorismo; gênero; políticas educativas; escola; família

Abstract

The purpose of this article is to present an analysis of the Law 7,595/2018 of the Municipality of Jaraguá do Sul/SC, pointing out the presence of some guidelines of the movement Non-Partisan School (NPS) in the justifications that supported its proposal and approval. The Law 7.595/2018 prohibited education professionals from implementing and developing pedagogical activities in the curriculum that aim to reproduce the concept of gender ideology, sexual orientation and the like. With a qualitative approach and of an interpretative nature, the research included semi-structured interviews with three city councilors, a representative from the religious institution Assembly of God and a representative from the NPS of the municipality of Jaraguá do Sul/SC. The analysis of the data revealed justifications for the proposition and approval of the law based on the resumption of authority and centrality of the family, as well as of morality and Christian values. For the interviewees, it is the role of the school to teach/instruct students, with moral education being the sole responsibility of the families. It appears from the analyzes that the guidelines of the NPS movement are present and support the Jaraguaense law, the result of an increasingly active and consistent conservative movement, endowed with its own nuances and particularities, throughout our country.

Keywords: conservatism; gender; educational policies; school; family

Resumen

El propósito de este artículo es presentar un análisis de la Ley 7.595/2018 del Municipio de Jaraguá do Sul/SC, señalando la presencia de algunas pautas del movimiento Escuela Sin Partido (ESP) en las justificaciones que respaldaron su propuesta y aprobación. La Ley 7.595/2018 prohibió a los profesionales de la educación implementar y desarrollar actividades pedagógicas en el plan de estudios que tengan como objetivo reproducir el concepto de ideología de género, orientación sexual y similares. Con un enfoque cualitativo y de carácter interpretativo, la investigación incluyó entrevistas semiestructuradas con tres concejales de la ciudad, un representante de la institución religiosa Asamblea de Dios y un representante de la ESP del municipio de Jaraguá do Sul/SC. El análisis de los datos reveló justificaciones para la proposición y aprobación de la ley basada en la reanudación de la autoridad y la centralidad de la familia, así como de la moral y los valores cristianos. Para los entrevistados, el papel de la escuela es enseñar /instruir a los estudiantes, y la educación moral es responsabilidad exclusiva de las familias. De los análisis se desprende que las directrices del movimiento ESP están presentes y apoyan la ley Jaraguaense, resultado de un movimiento conservador cada vez más activo y consistente, dotado de sus propios matices y particularidades, en todo nuestro país.

Palabras clave: conservadurismo; género; políticas educativas; escuela; familia

Introdução

Neste artigo tem-se como objetivo analisar a Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC, apontando a presença de algumas pautas do movimento Escola sem Partido (ESP) nas justificativas que embasaram a propositura e aprovação desta Lei. Para tanto, em um primeiro momento, apresenta-se o ESP, trazendo algumas das pautas deste movimento que são importantes para analisar a Lei em questão. Nesta mesma seção, mostra-se que a criação do ESP tem relação com um cenário maior no Brasil, no qual há um avanço de políticas conservadoras. Assim, defende-se que algumas das características conservadoras do cenário brasileiro se fazem presentes nas agendas deste movimento. Na sequência, faz-se a análise da Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC, mostrando algumas intersecções entre as pautas do ESP e justificativas trazidas por entrevistados/as para a propositura e aprovação da Lei.

A Lei 7.595/2018 proibiu aos profissionais da educação a implantação e o desenvolvimento de atividades pedagógicas na matriz curricular que visem à reprodução do conceito de ideologia de gênero, orientação sexual e congênere. A Lei abrange as instituições de ensino escolar do Município de Jaraguá do Sul/SC, privada ou pública. Para efeitos desta proibição, consideram-se meios pedagógicos: exposição de livros, cartilhas, panfletos ou similares que contenham ou se refiram, direta ou indiretamente, à ideologia de gênero, orientação sexual e congêneres.

A pesquisa insere-se em uma abordagem qualitativa de cunho interpretativo e foi desenvolvida a partir da análise das entrevistas semiestruturadas com três vereadores, um representante da instituição religiosa Assembleia de Deus e uma representante do ESP. O corpus da pesquisa foi constituído pela transcrição das cinco entrevistas gravadas em áudio e analisadas por meio da análise temática (BRAUN; CLARKE, 2006).

O Escola sem Partido: pautas conservadoras na educação brasileira

No site4 do Escola sem Partido é informado que este movimento “é uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”. Ademais, afirmam serem “uma associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”. O objetivo do grupo é barrar “um exército organizado de militantes travestidos de professores [que] prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”.

O ESP foi criado pelo advogado Miguel Nagib5 em 2004. Contudo, o movimento ganhou efetiva notoriedade em 2014, quando Nagib foi convidado pelo deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, para redigir um projeto de lei, a ser apresentado na Assembleia Legislativa daquele Estado, que fosse contra a doutrinação nas instituições escolares. De acordo com Nagib:

Fiquei extremamente satisfeito com essa provocação do deputado porque nunca tinha pensando em redigir um projeto de lei contra a doutrinação. A partir desse momento, elaboramos um anteprojeto, que é um modelo de lei, e colocamos na nossa página na internet para começar a divulgar para parlamentares começarem a divulgar nas casas legislativas por todo o país.6

Cabe destacar que este movimento é criado em um momento - especialmente, a partir de 2010 - em que há um aumento de pautas conservadoras no cenário educacional brasileiro (LIMA, HYPOLITO, 2019; CORSETTI, 2019; MIGUEL, 2016). Dentre estas pautas, pode-se destacar um ataque aos/às professores/as, que são constantemente chamados de doutrinadores/as e incompetentes, o que justifica, assim, a criação de cada vez mais materiais didáticos e currículos à prova de professores/as, fazendo com que o trabalho docente se torne cada vez mais mecanicista. Outra pauta que merece destaque é a discussão do ensino domiciliar, defendido como uma forma dos pais e mães ensinarem seus/suas filhos/as a partir daquilo que entendem como a melhor educação e protegendo-os/as dos professores/as doutrinadores/as. Há, ainda, a militarização das escolas, que promete trazer o retorno de uma educação embasada em princípios morais tradicionais. Poderiam ser elencadas muitas outras agendas, mas já é possível perceber o que autores como Miguel (2016) e Piaia (2019) têm chamado de uma onda conservadora no Brasil. Como uma das consequências desta onda, emerge o discurso antigênero com grande relevo e alcance no debate público. Este é um tema que ganha mais força, especialmente, a partir de 2014, principalmente, por meio de projetos e leis que proíbem a discussão de gênero nas escolas, nos materiais didáticos, em textos legais, assim como nos planos de educação7 (MIGUEL, 2016). Tendo em vista que a Lei a ser examinada neste artigo proíbe a discussão de gênero nas escolas municipais de Jaraguá do Sul/SC, abordam-se, nesta seção, especialmente, as pautas que grupos conservadores têm trazido em relação a esta temática, bem como a maneira que o ESP tem se posicionado em relação a este tema.

Na atual conjuntura, circunda a expressão “ideologia de gênero” no debate público com conotação de depravação moral ou de corrupção da natureza humana. Esta ideia é apoiada e difundida pelo setor conservador da igreja católica (pelas várias denominações protestantes), pela bancada evangélica e pelo ESP - uma vez que a fusão da denúncia da doutrinação marxista de inspiração gramsciana com a oposição à “ideologia de gênero” deu ao movimento uma habilidade e um discurso com ressonância popular muito mais imediata (MIGUEL, 2016).

Todo esse movimento encampado por uma aliança conservadora deu azo à supressão do gênero na legislação educacional, no que se refere à organização social da relação entre os sexos. Neste aspecto, importante trazer à tona que “ideologia de gênero” se trata de uma construção católica como forma de deslegitimar um campo de estudos relacionados ao gênero como categoria (GARBAGNOLI, 2014, apud, MIGUEL, 2016, apudROSENO & SILVA, 2017). O conceito de gênero foi utilizado para enfatizar o traço fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, numa tentativa de rejeição do caráter determinista da biologia, e como desafio teórico de utilizar o gênero como categoria analítica capaz de produzir conhecimento histórico.

Segundo Apple (2003), a questão de gênero é um exemplo que demonstra como o poder conservador atua de forma contundente na vida das pessoas, pois demonstra a forma pela qual narrativas criam estruturas afetivas propiciando a sensação de serem isentas, ou liberadoras, porém, de forma paradoxal, mantém uma relação construída por obediência, autoridade ou opressão. Para o autor, gênero é um tema que está relacionado a questões mais amplas que permeiam grande parte das agendas conservadoras: o medo do outro e o Estado como perigo.

Apple (2003), ao estudar o contexto estadunidense na década de 1980, trouxe à cena distintos grupos conservadores que defendiam uma pauta relativa à gênero bastante similiar ao contexto brasileiro. Naquilo que Apple (2003) denomina de Nova Direita - uma aliança formada entre neoliberais, neoconservadores, populistas autoritários e nova classe média - há dois grupos (neoconservadores e populistas autoritários) que trazem uma pauta mais conservadora no que tange a costumes e à moral. Tais grupos, com diferenças entre si, possuem uma perspectiva romântica em relação ao passado, na qual um “‘verdadeiro saber’ e a moralidade reinavam supremos, onde as pessoas ‘conheciam o seu lugar’ e em que as comunidades estáveis, guiadas por uma ordem natural, protegiam-nos dos estragos da sociedade” (APPLE, 2003, p. 57). Os discursos destes grupos fazem ataques, ainda, ao multiculturalismo, entendendo o “outro” como um perigo para os “valores tradicionais” (APPLE, 2003). Uma das exigências, assim, tem sido um Estado cada vez mais forte no sentido de regular a ação dos professores, passando de uma “[...] ‘autonomia permitida’ para uma ‘autonomia regulamentada’ à medida que o trabalho dos professores torna-se extremamente padronizado, racionalizado e ‘policiado’” (APPLE, 2003, p. 62).

Portanto, estes grupos conservadores defendem o resgate da família e sua não degeneração e possuem uma plataforma baseada em certas visões da autoridade bíblica. Gênero e família, por exemplo, são compreendidos como uma unidade divina que resolve o “egoísmo do homem e o altruísmo da mulher” (APPLE, 2003, p. 65-66). Para estes grupos conservadores, o ensino público é por definição um local muito perigoso, uma vez que a escola não é mais a extensão da moralidade doméstica tradicional (APPLE, 2003). Essa é uma parte bastante central na argumentação deste artigo: é possível vislumbrar essa ideia da escola como um lugar perigoso, quando muitas das pautas do movimento do ESP atacam duramente as instituições escolares e os/as professores/as que nelas atuam, justamente por ensinarem questões distintas àquelas consideradas ideias por pessoas que compõem este movimento. O ataque inicial do ESP foi, especialmente, no que tange ao que é chamado de doutrinação ideológica. Isso fica evidente, no site do ESP, quando afirmam que:

Não é fácil saber o que acontece dentro de uma sala de aula. A doutrinação, em geral, não deixa rastro, a não ser na cabeça dos alunos. Por isso, é importante conhecer o conteúdo dos livros didáticos, pois eles constituem um forte indício do enfoque adotado pelos professores em suas aulas.

O ESP defende, assim, que é necessário policiar - o que se aproxima do que Apple (2003) diagnosticou em relação ao contexto estadunidense - a ação de professores/as em sala de aula. Os tópicos presentes no menu do site do ESP contribuem para essa premissa do policiamento. “Corpo de delito”, por exemplo, é uma seção que tem como objetivo exibir artigos, textos e documentos “que comprovam a instrumentalização do ensino para fins políticos e ideológicos”. São mostrados, por exemplo, print screens do Facebook de professores/as que “revelam o uso que fazem da liberdade de ensinar”. “Defenda seu filho” é o item no qual são divulgadas “mensagens enviadas por pais de alunos que tenham sido ou estejam sendo vítimas de doutrinação político-ideológica em sala de aula”. “Educação moral” é a seção na qual são publicados artigos, denúncias, depoimentos e reportagens “relacionadas à usurpação, pelas escolas e pelo governo, do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções, direito este assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos”. O que se pode perceber neste último item é aquilo que Apple (2003) traz em relação ao medo que grupos conservadores têm do que é ensinado para seus filhos nas escolas, representado no perigo do Estado intervir na vida da família.

A pauta da doutrinação ideológica foi bastante forte e importante desde o nascimento do movimento em 2004. Contudo, Miguel (2016) destaca que, mais recentemente, a agenda da “ideologia de gênero” ganha espaço. Entende-se, contudo, que uma pauta não é contraditória a outra: a ideia, agora, é que além de doutrinar os/as estudantes em relação ao marxismo, docentes também doutrinam no que se refere à gênero. Portanto, há, assim, mais um tipo de doutrinação. Cabe destacar que o tema gênero representa uma possibilidade de maior visibilidade do ESP, conforme afirma Miguel (2016, p. 595-596):

O crescimento da importância do MESP [o autor utiliza-se da sigla MESP para referir-se ao Movimento Escola sem Partido] no debate público ocorre quando seu projeto conflui para o de outra vertente da agenda conservadora: o combate à chamada “ideologia de gênero”. Antes, a ideia de uma “Escola Sem Partido” focava sobretudo no temor da “doutrinação marxista”, algo que estava presente desde o período da ditadura militar. O receio da discussão sobre os papéis de gênero cresceu com iniciativas para o combate à homofobia e ao sexismo nas escolas e foi encampado como bandeira prioritária pelos grupos religiosos conservadores. Ao fundi-lo à sua pauta original, o MESP transferiu a discussão para um terreno aparentemente “moral” (em contraposição a “político”) e passou a enquadrá-la nos termos de uma disputa entre escolarização e autoridade da família sobre as crianças.

Essa disputa entre escolarização e autoridade da família também é identificada por Penna (2017) como sendo uma pauta central do ESP. Ao analisar o fenômeno educacional a partir das lentes do ESP, o autor afirma que há o entendimento, por parte deste movimento, que educar é diferente de instruir: “O ato de educar seria responsabilidade da família e da religião; então o professor teria que se limitar a instruir, o que no discurso do ESP equivale a transmitir conhecimento neutro, sem mobilizar valores e sem discutir a realidade do aluno” (PENNA, 2017, p.36). Portanto, caso professores/as venham a discutir a realidade dos/as alunos/as ou mobilizar valores, eles/as estariam educando seus/sua alunos/as e não os/as instruindo. Logo, na visão do ESP, docentes estariam, nestes momentos, realizando um papel que não lhes cabe o que, na sequência, é chamado de doutrinação. Essa ideia coaduna com outra lente usada pelo ESP para entender o fenômeno educacional: “a defesa do poder total dos pais sobre seus filhos” (PENNA, 2017). O autor afirma que essa defesa está pautada, especialmente, no que tange à “ideologia de gênero”. Os que se identificam com o movimento do ESP usam as hashtags “#MeusFilhosMinhasRegras” e “#NãoMexamComAsNossasCrianças”, defendendo que o sistema educacional como um todo tem usurpado o direito dos pais sobre a educação moral dos alunos e da própria autoridade moral sobre seus filhos (PENNA, 2017). Penna (2017) aponta que a defesa da educação moral se vincula à de “ideologia de gênero” quando, por exemplo, um dos memes veiculados pelo ESP é o que segue:

https://br.pinterest.com/pin/776589529473977503/?autologin=true Acesso em: 27 de março de 2020.

Figura 1 - Meme de “ideologia de gênero” veiculado no ESP 

A imagem da figura 1 mostra uma família heteronativa - homem, mulher e dois filhos - segurando um guarda-chuva contra aquilo que é chamado de “ideologia de gênero”. Portanto, este pai e esta mãe protegem suas crianças de uma “cultura gayzista”. Assim, os pressupostos das hashtags “#MeusFilhosMinhasRegras” e “#NãoMexamComAsNossasCrianças” inclui a ideia de que as famílias é que devem dar a educação moral - entendido, especialmente, pela questão da sexualidade - de seus/suas filhos/as.

Assim, nesta seção, objetivou-se apontar algumas das pautas defendidas pelo ESP e algumas relações com o atual contexto conservador brasileiro. Entende-se que o ESP vai ao encontro de agendas conservadoras na educação quando afirma que há uma doutrinação ideológica que tem provocado o caos, especialmente, no que tange às questões de sexualidade. Portanto, o ESP defende que a educação moral deve ser de responsabilidade das famílias e que a escola deve atuar apenas na instrução dos/as educandos. Estes são dois pontos amplamente utilizados pelos/as entrevistados/as para justificar a propositura e a aprovação da Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC, que será abordado no próximo subitem.

A centralidade da família: pautas do Escola sem Partido presentes na Lei 7.595/2018 do Município de Jaraguá do Sul/SC

A Lei Jaraguaense, conforme já mencionado, dispõe sobre a proibição de lecionamento de qualquer temática relacionada à “ideologia de gênero” no âmbito educacional no Município. Para alcançar o objetivo proposto, foi realizada entrevista com três vereadores (Jalão, Matias e Demétrio8), um representante da Assembleia de Deus e (Jeremias) uma representante do ESP de Jaraguá do Sul (Marta)9. Ao analisar as transcrições das entrevistas, foi possível identificar: a) a defesa da divisão dos papeis entre a esfera pública (escola) e a privada (família); e b) a autoridade da família, uma vez que o termo família aparece constantemente, sendo dotado de uma conotação sagrada. Tais perspectivas se relacionam com as pautas analisadas por Penna (2017) e Miguel (2016) no que se refere ao programa do ESP.

A primeira categoria, que inclui a divisão entre educação por parte da família e ensino por parte da escola, é contemplada na fala do Jeremias (representante de uma das Assembleias de Deus do município. Estava presente na segunda sessão de votação, prestando apoio à aprovação do PL 213/2017 que deu ensejo à Lei 7.595/2018) quando ele afirma que um dos fatos que motivou a proposição da lei jaraguaense foi que quando a criança

[...] chega na escola acaba gerando uma confusão na cabeça das crianças que têm educação da família desde que nasceram, que é homem, que é mulher. Agora chega na escola, os professores que vão ensinar que as crianças que vão optar pelo sexo que elas vão querer ser. (JEREMIAS).

Ao que tudo indica, essa fala possui conotação no sentido de propiciar uma desordem social grave quanto aos papéis masculinos e femininos pré-definidos. Percebe-se, ainda, neste mesmo excerto, o entendimento de que há limites entre o papel da escola/professor/a na educação das crianças e jovens e o papel da família. Tal premissa é corroborada pelo Vereador Matias, quando afirma que a lei “[...] foi um meio de chamarmos a atenção da sociedade para que a escola cumprisse o papel dela, que é de ensinar, que é de formar, e não educar, auxiliar na educação sim”. Deste modo, há uma clara defesa da divisão entre o ensino escolar e a educação familiar, que implicaria em a escola ensinar apenas conteúdos sem uma conexão com a realidade do aluno e compromete o desenvolvimento e formação humana. Sobre isso, Penna (2017), ao tecer sobre essa concepção de escolarização proposta pelo PL 867/201510, entende que se trata de algo muito próximo de um neotecnicismo, ou seja, “o professor aplica, transmite conhecimento, não discute valores, não pode falar sobre a realidade do aluno: essa é a concepção de escolarização” (PENNA, 2017, p. 38).

Tal distorção vem ao encontro do fundamento legal que o ESP utiliza. Para compreender a separação entre a esfera pública (escola) e a privada (família), o art. 2º do referido PL 867/2015 menciona que a educação nacional atenderá aos seguintes princípios (...) “VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. A respeito, Penna (2017) questiona o fato de que o fundamento legal utilizado para amparar tal princípio foi retirado do art. 12, incido IV, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José), que trata sobre a liberdade de consciência e de religião e propõe: “os pais, e quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. De acordo com essa afirmação, poder-se-ia dizer que o ESP tem razão, ou seja, que os pais têm essa autoridade total sobre seus filhos. Mas não: ocorre que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos tem como meta principal “[...] proteger o indivíduo, a família, o espaço privado, o espaço doméstico, contra intervenções indevidas, especialmente a intervenção do Estado” (PENNA, 2017, p. 47). A partir desta Convenção, o pai, a família têm o direito de educar, no espaço privado, os seus filhos de acordo com seus valores. O problema é que o ESP faz uma trasposição equivocada, a partir da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, para o âmbito educacional. Penna (2017, p.47) afirma que o equívoco do ESP “[é] quando você pega algo que foi pensado para proteger o espaço privado contra a interveção do poder públivo e habilita uma invasão do espaço público, da escola pública, pelas vontades privadas”. Assim, o autor alerta que, diferentemente da escola pública, esta Convenção não está tratando da prestação de serviços e, portanto, seu uso para definir um espaço público seria equivocado.

A premissa de que a escola tem ensinado questões que seriam de responsabilidade da família aparece, também, na fala do Vereador Matias:

[...] a maioria das reclamações que a gente tem é que as escolas mudaram muito (...). Principalmente na questão do ensino. Vemos, por exemplo, a grade curricular nossa, hoje, ela é bem diferente do que era alguns anos atrás. Hoje, se ensina muitas coisas que, no meu ponto de vista, quem deveria estar ensinando era a família. Por isso, que quando eu falo para você, assim, nós passamos por um período sócio comunista lá do governo Fernando Henrique Cardoso até o final do governo Temer, isso transformou a sociedade. Transformou. E não estou dizendo que é o certo ou que é o errado, mas tudo tem que ter um equilíbrio. Enquanto não há equilíbrio nas coisas, há um distúrbio. E é o que estava acontecendo. E é o que ainda está acontecendo na sociedade brasileira. (MATIAS).

O que se percebe é que há o anseio por uma retomada de um passado que é romantizado. Pode-se depreender da fala do vereador que, devido a um “afrouxamento” moral, enseja-se o resgate da disciplina para que deixe de haver um “distúrbio” e retome-se o “equilíbrio”. Apple (2003) afirma que, para os grupos conservadores, dar as costas para os valores e princípios cristãos só pode levar à desordem econômica e moral e é uma ameaça à prosperidade e à liberdade, pois qualquer movimento considerado imoral - como o feminismo ou a política da sexualidade - e que levem ao socialismo devem ser combatidos. Em outras palavras “qualquer ameaça externa - comunismo, socialismo, anti-imperialismo, lutas de liberação - também tem de ser combatida, com imensa força militar se necessário” (APPLE, 2003, p. 172). A fala do vereador demonstra, ainda, a tentativa de retomar um passado moral em que “todos conhecem o seu lugar e onde as hierarquias baseiam-se no plano de Deus” (APPLE, 2003, p. 197). Assim, justifica-se ou legitima-se a propositura e aprovação da lei por meio de uma ideia de que há um anseio social de que a família tradicional volte a ter autoridade moral sobre seus/suas filhos/as.

No que tange à segunda categoria encontrada por meio das análises - a autoridade da família -, cabe ressaltar que não se trata apenas da família tradicional, mas, também, do reestabelecimento de uma ordem fundamentada nos preceitos judaico-cristãos. Isto pode ser vislumbrado na fala do Jeremias ao afirmar que:

na igreja isso não foi discutido [referindo-se à Lei?], até porque os pastores já têm a responsabilidade de ensinar... Orientar pelas próprias orientações pastorais já inibe essas discussões, né, e até alerta os pais com respeito a acompanhar os filhos que estão sendo ensinados errado na escola. Que aí vai pra escola pra aprender matemática, português e outras matérias chega lá pra aprender ideologia de gênero, para trazer confusão que não vai trazer nenhuma edificação cultural. (JEREMIAS).

Para Apple (2003), há muitos outros grupos que levantam questões, muitas vezes legítimas acerca do conteúdo e sobre os métodos do que é ensinado nas escolas como estereótipos de raça, gênero, incapacidade e homofobia, porém, o número e o alcance desses protestos por parte dos conservadores religiosos superam os demais grupos. Para os cristãos conservadores, o ‘saber oficial’ opõe-se ao cristianismo, à autoridade legal, à família, aos militares, à livre iniciativa, e também promove o feminismo, a evolução e consequentemente o culto ao demônio. Além do mais, alguns ativistas chegam a afirmar que uma ênfase curricular como o multiculturalismo é perigosa, “respeitar, digamos, sociedades e crenças não cristãs costuma ser interpretado como um ataque à crença fundamental de que a fé absoluta em Jesus Cristo é o único meio de salvação” (APPLE, 2003, p. 141).

As premissas judaico-cristãs são utilizadas por mais de um entrevistado para justificar a propositura da Lei. É o caso, novamente, da fala do Jeremias quando afirma que entende que esta Lei veio “[...] como manifestação da família, em especial da família cristã, que tem princípios cristãos. E uma coisa que se pode notar que nem precisava ser um cristão para contraditar uma lei dessa”. Neste mesmo sentido, o Vereador Matias destaca que tomou como referência a sua própria família. Estas falas nos revelam que a família heterossexual é considerada um padrão ético e moral a ser seguido. O que fica bastante evidente na fala a seguir:

[...] essa discussão tem sido feita entre os pastores, nós temos reunido o conselho de pastores aqui, e os pastores têm se posicionado, todos, né, contra essa[“ideologia de gênero”] (...) Defendemos a família, e a família onde não tem autoridade da família para poder educar os filhos essa família se torna desfacelada como nós estamos vendo hoje na sociedade. Essa lei tem o objetivo realmente de enfraquecer ou até mudar como vem sofrendo as mutações o conceito de família. O conceito de família hoje já não é mais o conceito original como estava na Constituição, que era um homem e mulher com filho. O conceito de família já é um conceito muito mais amplo. (...) É uma lei que tem mais o cunho [referindo-se ao fato de ir contra as questões de “ideologia de gênero”] de uma depravação moral do que mesmo uma educação, não traz educação nenhuma, mas uma depravação moral de corrupção da natureza humana, em especial do sexo. (JEREMIAS).

Entre os pastores há um consenso quanto à desaprovação da suposta “ideologia de gênero” no sentido de que possui cunho de depravação moral ou de corrupção da natureza humana. Em razão disso, se deve primar pela autoridade da família na educação dos filhos, sob pena dela se tornar desfacelada. Segundo Jeremias, é o que se tem visto na sociedade atualmente, tendo em vista que o conceito constitucional de família é mais amplo e não mais aquele de “homem e mulher com filho”. Para os conservadores, se a família tradicional, assim como os papéis de gênero convencionais são tanto naturais quanto de origem divina, qualquer discussão está encerrada. A ordem natural e divina é, por definição, incontestável. O discurso culmina então na defesa de valores que deveriam ser fixos, mas estão sendo “invertidos” e “trocados” (Pastor Marco Feliciano, PSC-SP, sessão de 25/2/2016). A disputa é movida para um terreno pré-político, de cruzada moral. Diante disso, tem-se que o corpo deve ser educado para produzir e reproduzir o padrão normativo vigente e os que desviarem da norma serão alvo de constante escrutínio e sofrerão as sanções sociais inerentes. Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para transgressões (LOURO, 2016, apud SOUZA JUNIOR, 2018). No caso dos homossexuais, por exemplo, eles se tornam o foco de discursos homofóbicos que os desqualificam e deslegitimam em função de sua sexualidade desviante da heteronormatividade (SOUZA JUNIOR, 2018). Esse resultado, que fortalece a intervenção reacionária nos processos educativos, não seria alcançado caso o ESP tivesse permanecido fiel a seu projeto original de combate ao que apresentava como “doutrinação marxista” no ensino. É a “ideologia de gênero” e a defesa da família que o permitem (MIGUEL, 2016). A “ideologia de gênero” como uma das pautas do ESP é trazida na fala da Marta, representante deste movimento em Jaraguá do Sul:

Nós [referindo-se ao Escola sem Partido de Jaraguá do Sul] tivemos o nosso projeto barrado, teoricamente, porque haveria uma previsão de gastos. Essa foi a informação que os Vereadores nos deram. (...) Nesse meio tempo que nós estávamos com o projeto de lá pra cá, indo pro Jurídico da Prefeitura, o Jalão, que é o Vereador, fez essa propositura desse projeto de lei [referindo-se à Lei 7.595/2018] que não abrange o que nós temos interesse... Para falar bem a verdade, ele abrange, assim, digamos, parte dos nossos interesses, né? Interesses, quando eu falo nossos, é do próprio movimento em si, do Escola sem Partido. Porque ele [referindo-se à lei analisada] trata especificamente da questão de ideologia de gênero. É uma causa que nós somos contra, defendemos também, sim, mas ela é muito resumida. (MARTA).

Aqui, nesta fala, pode-se perceber uma clara intersecção o ESP e a Lei 7.595/2018, que abrange - como bem diz Marta - parte dos interesses do ESP. Cabe destacar que os grupos conservadores defendem que a “ideologia de gênero” veio, conforme a fala do Jeremias, para “comprometer e desconstruir, quebrando inclusive a autoridade dos pais com os filhos”, o que traz à tona a ideia do padrão da heteronormatividade e dos arranjos familiares binários (somente entre homem e mulher). Assim, justificaria-se a frase “não mexam com nossas crianças” ou “meus filhos minhas regras” no sentido de que os professores/as e escola estariam usurpando o direito ou a autoridade moral dos pais.

Percebe-se, nestas falas, como pano de fundo, uma obrigação evangélica de ativismo em todas as esferas da vida. Em vista disso, a separação entre o público e o privado é, em parte, rejeitada pela direita cristã: as crenças religiosas e morais são vistas como a reforma moral e a cura da sociedade e parte de seu projeto restauracionista é intervir no papel do público. Assim, a autoridade das crenças, valores e moralidades evangélicos seriam a forma de colocar ordem na bagunça e no caos vigente. Por outro lado, segundo Apple (2003), há um paradoxo quanto à rejeição evangélica em relação à separação entre o público e o privado: por exemplo, nas questões de oração nas escolas, aborto, na educação e na vida familiar é preciso resistir à intrusão pública na vida privada. Trazer o privado para a esfera pública em torno de seus valores religiosos é bom, mas trazer os valores públicos para a esfera privada é ruim. Em suma, o público pode ser bom, mas só quanto atender os interesses evangélicos (APPLE, 2003). Esta premissa vai ao encontro do que é entendimento pelo ESP ao defender - como já arrolado anteriormente - a inclusão, no PL 867/2015 de que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Há, portanto, a defesa da inserção do privado no público.

O que se pode perceber por meio das falas acima é que, para muitos grupos conservadores, um dos inimigos-chave é o ensino público, havendo a compreensão de que a educação secular está transformando seus/suas filhos/as em estranhos/as ao ensiná-los/as a questionar, o que os/as acaba colocando contra a própria família. No caso desta pesquisa, a defesa das crianças ou a idealização da família foi uma das tônicas dos argumentos para a propositura e aprovação da Lei. Estes temores configuram uma ameaça satânica em relação à nação, ao lar e à família e à inocência das crianças. Valores religiosos e visões tradicionais das relações de gênero estão relacionados há algo muito maior: a destruição da orientação moral e da liberdade pessoal (APPLE, 2003). Portanto, a lei de Jaraguá do Sul se configura como uma forma de pautar a educação pública a partir dos preceitos cristãos, já que a escola pública tem, na visão destas pessoas, tratado de aspectos que não devem ser abordados.

Para Apple (2003), da mesma maneira que o “outro” é racionalizado, ela ou ele também é sexualizado. A política corporal e moral coloca o outro como elemento dessa estrutura afetiva: “a homossexualidade é uma ameaça à sagrada família e aos papeis de gênero que a constituem e que foram determinados por Deus. Pode poluir a cabeça das crianças e suas identidades enquanto cristãos” (Apple, 2003, p. 194). Dito isso, para os grupos conservadores, as escolas são locais perigosos porque estão promovendo a agenda gay e os recursos que deveriam ser destinados a elevar os padrões, prevenir a violência e assegurar a qualificação dos/as professores/as estão sendo desviados para incentivar a educação sexual e agenda de imoralidade. Para tais grupos, essas questões só poderão ser barradas se a educação sexual voltar ao âmbito privado, deixando-a por conta da família, e para o tema da abstinência (APPLE, 2003).

Considerações finais

A Lei 7.595/2018 vetou a discussão de qualquer temática relacionada à “ideologia de gênero” no âmbito educacional público e privado do Município de Jaraguá do Sul /SC. No decorrer das entrevistas e durante todo o processo de análise dos dados desta pesquisa identificou-se que as justificativas tomadas pelo corpo legislativo do município de Jaraguá do Sul/SC, foram entendidas, por unanimidade, como corretas e morais e como um exemplo a ser seguido.

Por conseguinte, as justificativas que deram ensejo ao projeto inicial e se mantiveram até alcançar força de lei foram pautadas pelas crenças pessoais (contraditórias muitas vezes) que fundamentam as decisões cotidianas e práticas dos/as entrevistados/as. Observou-se na fala dos/as participantes da pesquisa uma preconcepção de que inserir na escola e no seu Projeto Político Pedagógico o debate acerca do gênero é algo negativo, pois geraria a instabilidade da família - entendida, aqui, como heterossexual -, a “desordem” social e a “confusão” de papéis masculinos e femininos, uma vez que as crianças são as mais vulneráveis à “ideologia de gênero”, o que acarretaria a “perda da sua referência”. Assim, para os/as entrevistados/as, isso tudo precisa ser eliminado, considerando que a “ideologia de gênero” impede a consolidação dos papeis tradicionais e da identidade biológica masculina ou feminina.

Ainda, foi possível observar como concepções e justificativas que fundam a propositura e aprovação da lei, a autoridade e centralidade da família, havendo uma idealização. Tem-se como suporte a retomada da moralidade e dos valores cristãos, asserções consideradas válidas e legítimas pelos/as entrevistados/as. Como visto, essas defesas estão relacionadas à noção de uma educação “neutra”, e, de forma paradoxal, cedem espaço à primazia da família sobre a escola, especialmente no campo dos valores ou julgamento moral. Essas são pautas identificadas no movimento ESP. Assim, mesmo que a Lei de Jaraguá do Sul não seja exclusivamente baseada nas ideias do ESP, percebe-se que este movimento influenciou sobremaneira11 - como ficou evidente na própria fala da representante do ESP de Jaraguá do Sul - a propositura da Lei.

Segundo Miguel (2016), a pretensa neutralidade evocada pelos setores conservadores, projeta uma educação que é incapaz de intervir no mundo e, por isso, torna-se cúmplice das injustiças e das violências que nele ocorrem. A noção de que os papéis estereotipados de meninas e meninos, mulheres e homens, são naturais e obrigatórios leva, como consequência necessária, a reforçar as barreiras que isolam mulheres de determinados espaços sociais, a estigmatizar determinados comportamentos, a marcar como desviantes aqueles que não seguem a regra. A cultura do estupro, que deriva da ideia de que as mulheres não são seres capazes de autonomia, e as agressões a gays, lésbicas e travestis, vistos como “anormais” e, portanto, indignos de respeito, são dois dos efeitos decorrentes. Impedir que gênero seja discutido na escola é impedir que se aja no sentido de reverter tal quadro. Uma escola “sem partido” é uma escola que toma o partido da injustiça e da opressão (MIGUEL, 2016).

As falas trazidas ao longo do artigo evidenciam uma naturalização do conceito de família, tendo como premissa as famílias “normais” que são aquelas compostas por homens e mulheres héteros. Por sua vez, as justificativas para a lei ignoraram que a criança e/ou adolescente são sujeitos de direitos civis, humanos e sociais, que têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas garantidos na Constituição e nas leis, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Diante do exposto, foi possível observar uma evidente distorção do campo do gênero o que repercute diretamente nas políticas educacionais e nos processos de construção da identidade dos jovens. É surpreendente e assustador a dimensão que toma a naturalização e a defesa contundente de determinados conceitos relacionados à falsa premissa da “ideologia de gênero”, pois, como visto, tal termo é fruto de uma estratégia conservadora, inicialmente católica, com o fito de afastar a igualdade pretendida pelo feminismo e de todas as nuances políticas e sociais que o cercam (boicote à agenda gay, defesa da família tradicional e binária, manutenção da feminilidade da mulher na condição de gestora/mãe etc).

Diante disso, é possível inferir que há um movimento conservador muito atuante e consistente dotado de nuances e particularidades próprias de nosso país. Cabe destacar que, no Brasil, nas últimas décadas, se tem presenciado um salto significativo essencialmente em sua versão pentecostal, que vem articulando-se com êxito no contexto nacional na busca de uma estabilidade social e cultural, contra a ameaça de uma suposta decadência moral e de decomposição cultural (homossexualismo, feminismo, descriminalização do aborto etc.). Tal movimento tem atuado em nome de uma estabilidade familiar, especialmente contra as mudanças sociais que envolvem as discussões sobre gênero, uma vez que o discurso antigênero é uma das pautas do movimento conservador brasileiro.

4Disponível em: http://www.escolasempartido.org/ Acesso em: 05 de agosto de 2016.

5Procurador do Estado de São Paulo.

6Disponível em: http://comunhao.com.br/escola-sem-partido-entrevista/ Acesso em: 08 de janeiro de 2019.

7Com base em recente levantamento realizado pelo Coletivo de Professores contra o Escola sem Partido, a respeito do número de projetos propostos no Brasil, foram identificados pelo menos 1124 projetos de lei municipais, 25 estaduais e 14 federais em tramitação. Disponível em: https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=1AbaBXuKECclTMMYcvHcRphfrK9E&ll=-17.33374562477426%2C-49.38082785000003&z=4 Acesso em: 01 de abril de 2020.

8Todos os/as entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, concordando em participarem da pesquisa e que as entrevistas fossem utilizadas integralmente ou em partes.

9Os nomes dos/as participantes são fictícios, matendo, assim, o anonimato. A pesquisa obteve parecer aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade XXX (Número do Parecer: 2.772.622), de acordo com as atribuições definidas na Res. CNS 466/12.

10Projeto de Lei apresentado pelo Deputado Izalci (PSDB-DF), para incluir entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o “Programa Escola sem Partido”.

11Representantes do ESP de Jaraguá do Sul estiveram reunidos no dia 09 de novembro de 2017 na Câmara de Vereadores a fim de instituir o projeto “Escola Sem Partido” e demonstrar apoio a não “ideologia de gênero” nas escolas. A proposta inicial era de que a lei instituísse o projeto do ESP.

Referências

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Recebido: de 2020; Aceito: de 2020; Publicado: de 2020

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