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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 01-Dez-2021

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.73897 

Article

Construção e desconstrução da política de indução do tempo integral no ensino fundamental

Construction and deconstruction of full-time school induction policy

Construcción y desconstrucción de la política inductora de la jornada ampliada

Zenildo José Barbosa1 
http://orcid.org/0000-0001-5788-540X

Cibele Maria Lima Rodrigues2 
http://orcid.org/0000-0003-4310-4216

1Mestre em Educação, Culturas e Identidades -PPGECI (UFRPE/FUNDAJ). Professor da Educação Básica de São Lourenço da Mata e Paulista, Professor da UNINASSAU e Pesquisador no Grupo de Pesquisa Docência na Educação Básica: políticas, formação e práticas (FUNDAJ, Recife, PE, Brasil.

2Cientista Social e, Doutora em Sociologia (UFPE). Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco. Professora do PPGECI (UFRPE/FUNDAJ) e do ProfSocio (FUNDAJ). Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Docência na Educação Básica: políticas, formação e práticas (FUNDAJ). Recife, PE, Brasil.


Resumo

O presente artigo tem por objetivo fazer análise comparativa do Programa Mais Educação (2007-2015), do Programa Novo Mais Educação (2016-2018) até o desmonte no governo atual. Considerando a política como discurso e como texto, utilizamos a abordagem pós-crítica para a análise dos documentos oficiais. São claras as diferenças nas políticas de currículo desses programas. O primeiro possuía uma proposta curricular com o objetivo de “formação integral” e intercultural e representou a maior iniciativa federal de indução do tempo integral no ensino fundamental porque foi implantado em quase 60 mil escolas. O “Novo Programa” estabeleceu como prioridade a melhoria das avaliações padronizadas em detrimento de outros conhecimentos. Mesmo considerando que ambos possuíam limitações, o cenário atual é de total desaparecimento de uma proposta do governo federal, em um contexto de aprofundamento do neoliberalismo e do neoconservadorismo. Argumentamos que os programas e sua ausência estão vinculadas aos projetos políticos das gestões, como políticas de governo.

Palavras-chave: Educação em tempo integral; jornada ampliada; Programa Mais Educação; Programa Novo Mais Educação; currículo

Abstract

The purpose of this article is to make a comparative analysis between the More Education Program (2007- 2015) and the New More Education Program (2016-2018) until the dismantling in the actual administration. Considering politics as discourse and as text, we use the post-critical approach to analyse the documents of these programs. The differences in the curriculum policies of these programs are clear. The first had a curricular proposal with the objective of “integral formation” and interculturality and represented the biggest federal initiative to induce full-time in elementary education because it was implemented in almost 60 thousand schools. The “New Program” established as a priority the improvement of standardized assessments to the detriment of other knowledge. Even considering that both had limitations, the current scenario is the total disappearance of a proposal from the federal administration,, in a context of deepening neoliberalism and neoconservatism. We argue that the programs and their absence are linked to the political projects of the administrations, such as government policies.

Keywords: Full-time school; More Education Program; New More Education Program; curriculum

Resumen

El propósito de este artículo es hacer un análisis comparativo entre el Programa Más Educación (2007-2015) y el Programa Nuevo Más Educación (2016-2018) hasta el desmantelamiento del gobierno actual. Considerando la política como discurso y como texto, utilizamos el enfoque poscrítico para análisis de documentos oficiales de estos programas. Las diferencias en las políticas curriculares de estos programas son claras. El primero tuvo una propuesta curricular con el objetivo de "formación integral" e intercultural y representó la mayor iniciativa federal para inducir el tiempo completo en la educación primaria porque se implementó en casi 60 mil escuelas. El “Nuevo Programa” estableció como prioridad la mejora de las evaluaciones estandarizadas en detrimento de otros conocimientos. Aun considerando que ambos tenían limitaciones, el escenario actual es la desaparición total de una propuesta del gobierno federal, en un contexto de profundización del neoliberalismo y neoconservadurismo. Sostenemos que los programas y su ausencia están vinculados a los proyectos políticos de las administraciones, como políticas de gobierno.

Palabras clave: Jornada Ampliada; Programa Más Educación; Nuevo Programa Más Educación; Currículo

Introdução

As políticas educacionais são espaço de lutas e disputas por diversos atores sociais, com influência da iniciativa privada e de organismos multilaterais. Diversas concepções de educação e o modo como ela deve ser gerenciada estão no centro dessas lutas/disputas. A pressão dos movimentos sociais, historicamente, tem atuado no sentido de reivindicar uma educação pública universal, laica e com qualidade social.

Esse debate está presente desde as reivindicações dos Pioneiros da Educação,em seu primeiro Manifesto em 1932. A universalização das matrículas não foi acompanhada de uma política de ampliação da jornada escolar e de garantia do direito à educação, esse “modus operandi” é constatado na maioria dos países da América Latina por Pablo Gentili (2009).

Está relacionado com o que Janete Azevedo (1997, p.05) afirma sobre as políticas serem “definidas, reformuladas ou desativadas com base na memória da sociedade ou do Estado em que têm lugar e que por isso, guardam estreita relação com as representações sociais que cada sociedade desenvolve sobre si”. A sociedade brasileira, com sua herança escravocrata e colonial, marcada por desigualdades sociais profundas, sem a noção de direito consolidada (QUIJANO, 2005). No caso do direito à educação, mesmo tendo ampliado o acesso ainda permanece a lógica da exclusão (GENTILI, 2009).

Essa lógica foi invertida ao longo das gestões do Partido dos Trabalhadores no governo federal, com aumento considerável nos recursos. Muito embora tenha havido esforços de inseri-lo na agenda, o tema da educação em tempo integral no ensino fundamental não se estabeleceu como uma política de Estado, como acontece em outros países (UNESCO, 2010).

Essa é a questão que permeia o presente artigo que tem por objetivo comparar os dois maiores Programas federais que existiram (o Mais Educação e o Novo Mais Educação) e refletir sobre o momento atual de ausência de iniciativas do governo federal. Essa discussão é relevante no marco deste ano no qual se completam 10 anos do Decreto nº 7083/2010 que instituiu o Mais Educação como programa que visava induzir uma política de educação em tempo integral no ensino fundamental. Esse Decreto ampliou a proposta do que tinha sido posto na Portaria interministerial nº 17/2007, no governo do presidente Lula. Em 2016, o programa foi substituído pelo Novo Mais Educação com foco nas avaliações padronizadas (Prova Brasil). E no governo atual essa discussão desaparece totalmente.

O Programa Mais Educação foi o que teve maior duração e com maior abrangência na história, atingindo cerca de 58 mil escolas (distribuídas em todo o território nacional) e teve sua repercussão avaliada em diversas pesquisas.

Por essa razão, o presente artigo ganha relevância ao realizar uma análise recente do desmonte que a política de educação integral vem sofrendo desde a extinção do Programa Mais Educação, passando pelo Programa Novo Mais Educação (PNME), até sua inexistência nos dias atuais (2020). Desse modo, expomos como no Brasil, as políticas educacionais tendem a ter descontinuidades como uma regra que mantém a educação como um privilégio e não como um direito (TEIXEIRA,1999).

Aspectos teórico-metodológicos

Recorremos às análises de Stephen Ball (1992) para compreendermos a política como discurso e como texto. Nesse sentido, que as orientações contidas nos documentos oficiais expressam a vontade de verdade dos governos. O resultado expresso no texto é fruto de um contexto de disputas entre os diferentes grupos sobre o que deve ser ensinado (LOPES E MACEDO, 2011). Nesse processo, o texto da política pode ser contraditório ao tentar atender a interesses divergentes ou, simplesmente, pode atender apenas ao grupo dominante - geralmente o de maior poder econômico.

O texto pode ser interpretado de forma diferente pelos sujeitos que possuem a tarefa de executar tais diretrizes. Essa análise se aproxima da concepção de política do currículo de Apple (2006), considerando interesses ideológicos e hegemônicos e as possibilidades de resistência contra os neoliberais. A partir desses pressupostos, analisamos os textos oficiais dos dois programas até chegarmos ao vazio do contexto atual.

Genealogia da educação em tempo integral?

Mesmo com os esforços iniciados por Anísio Teixeira à frente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (INEP), as iniciativas de educação em tempo integral foram pontuais. Sua trajetória tem início como secretário de educação da Bahia, com a criação da Escola-Parque em Salvador, em meados do século XX. Sua proposta de educação, baseada na concepção pragmatista e democrática de Dewey (TEIXEIRA, 1955) influenciou também a criação da Escola Parque na fundação de Brasília.

O debate sobre educação em tempo integral foi abafado pela ditadura militar, com sua proposta positivista e autoritária. Somente retomado no governo Collor, na década de 1990, por influência da experiência do governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro. A experiência com este programa, de certo modo, teve influência de Anísio Teixeira, pois foi criado por um dos seus colegas do projeto no Distrito Federal, Darcy Ribeiro.

Os governos de Collor e Itamar Franco (1990-1994), criaram o programa nacional dos Centros Integrados de Atendimento à Criança (CIACs), depois denominados de Centro de Atendimento Integral à Criança e Adolescente (CAICs) que esteve centrado na construção de prédios, mas sem uma discussão curricular.

A educação em tempo integral para o ensino fundamental voltou ao âmbito do governo federal, em 2007, no governo Lula. Nesse hiato, iniciativas estaduais e municipais foram identificadas (CAVALIERE, 2012).

O Programa Mais Educação (PME)

Nos anos do governo Lula, houve diversas mudanças na rota da política educacional. Em 2007, o governo federal, sob a coordenação do ministro Fernando Haddad, lançou um conjunto de políticas e programas que faziam parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). O PDE surgiu como uma novidade na política educacional, pois, pela primeira vez, a educação era pensada de forma sistêmica, da creche à pós-graduação, a partir de um discurso que postulava a educação republicana (CARVALHO, 2010). Porém, segundo Saviani (2007), uma lacuna do PDE foi a falta de articulação entre suas ações, a melhor saída seria criar um sistema nacional articulado. Mesmo com limitações e contradições que são inerentes de processos que estão dentro do sistema capitalista, o PDE representou a maior iniciativa do governo federal no sentido de se aproximar da garantia do direito à educação. Como dizia o presidente Lula, nunca antes na história do Brasil houve essa o volume de investimentos que se transformaram em obras concretas para a população.

No âmbito do PDE foi inserido um conjunto de ações para Educação Básica com o nome de Compromisso Todos pela Educação. E, dentre suas ações, o Plano de Ações Articuladas (PAR), um instrumento de gestão para planejamento de municípios e estados. Contraditoriamente, nesse rol de ações também foi criado o Índice da Educação Básica (IDEB) - sucumbindo às orientações dos organismos multilaterais que fazem parte da agenda neoliberal. Nas ações do PAR também estava inserido o Programa Mais Educação instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007. Nasceu como estratégia para diminuir as desigualdades sociais e educacionais.

O Programa foi ampliado pelo Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010. Nesse segundo documento, aparece explicitamente o objetivo de induzir a política de educação integral em jornada ampliada. Barbosa e Rodrigues (2017, p.06), ressaltam que esse Decreto explicita essa intenção, postulando a perspectiva intersetorial.

Segundo Moll (2012), o programa começou timidamente e foi sendo ampliado a cada ano, ganhando mais adesão dos estados e municípios, como em Jaboatão dos Guararapes/PE e João Pessoa/PB (Ferreira, 2018) e (Albuquerque, 2018), trazendo-o para a agenda pública. Iniciou em 2008 com cerca de mil escolas e ampliou para cerca de 58 mil no último ano que houve adesão, graças ao esforço da sua coordenação (Rodrigues et al., 2017, p. 74).

Em termos de seu funcionamento, a cada ano, o Programa publicava o Manual Operacional que estipulava, inicialmente, a duração de 7 horas diárias, depois a distribuição das horas ficava a cargo da escola que poderia distribuir ao longo da semana.

Para operacionalizar sua proposta nas escolas, o Caderno Programa Mais Educação: passo a passo (2013), descrevia a função de um(a) professor(a) coordenador(a) ou professor(a) comunitário(a). Este profissional deveria ser do quadro efetivo da rede e da escola, possuir forte vínculo com a escola e a comunidade na qual a escola estava inserida, deveria ser sensível e fazer a ponte entre os monitores (voluntários (as) das oficinas, e os professores do ensino regular. Esse Caderno (BRASIL, MEC/SEB, 2013, p.16) orientava o seu perfil, que incluía o diálogo com a comunidade e a perspectiva de cidade educadora, com visitas a museus, teatros e praças.

As atividades eram desenvolvidas pelos “monitores” que tinham um vínculo considerado “voluntário”, recebendo um valor considerado como “ajuda de custo”. Essa forma de contratação foi bastante criticada por se caracterizar como precarização do trabalho docente, tendo em vista que os monitores desenvolvem atividades de docência. É um formato que vinha do Programa Escola Aberta e que é utilizado em programas incentivados pela Unesco também em outros países, como o México e Argentina, por exemplo (CASTRO et al., 2018).

Sendo um Programa, havia um limite no número de alunos por escola. Em termos formais, a prioridade era para aqueles que estivessem em defasagem idade/ano e fossem oriundos do Programa Bolsa Família. Seguindo o mesmo discurso das políticas educacionais desse período que visava diminuir as desigualdades sociais. Foram identificadas escolas que diminuíram suas matrículas para manter todos no programa (RODRIGUES et al., 2017).

Além do aumento vertiginoso do número de escolas, a coordenação do Programa Mais Educação ampliou sua proposta que, inicialmente, esteve mais relacionada com vulnerabilidade e passa a abranger, de forma contundente, o campo da política curricular. Essa mudança se reflete na estrutura, quando o Programa inicia na SECAD (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade) e passa para a SEB (Secretaria de Educação Básica), inclusive modificando o nome de uma diretoria do MEC, sendo nomeada Diretoria de Currículo e Educação Integral (DCEI).

No documento do programa estava presente a preocupação com uma mudança na organização curricular, incluindo o respeito às vivências da comunidade escolar. “A organização curricular contempla não só os conteúdos que são desenvolvidos com os alunos, mas todas as intenções educativas da instituição” (BRASIL, MEC/SEB, 2013, p.22).

Além de atividades que eram de acompanhamento pedagógico para as disciplinas (português, matemática, ciências, etc), a novidade trazida pelo Programa era a oferta de atividades diversificadas, distribuídas em “macrocampos”, que foram se modificando (BRASIL, MEC/SEB, 2014, p.06).

Essa forma de pensar a escola foi colocada expressamente nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino de 9 (nove) anos (BRASIL, MEC/SEB, 2010, p.25). A coordenação do Programa criou uma rede de participantes que produziu documentos com conteúdos curriculares com o objetivo de fomentar a formação integral dos estudantes. Além disso, as secretarias de educação participaram de formações que aconteciam nos Comitês, na rede de formação e em eventos promovidos pela coordenação do programa no MEC.

Na nossa análise, identificamos que o ponto nodal dos documentos era a proposta de educação integral em tempo integral. A ideia se refere à “formação integral dos (as) estudantes” e diálogo de saberes, com as famílias e as comunidades (GABRIEL E CAVALIERE, 2012), considerando fundamentais os saberes disciplinares e

O Programa oferecia uma gama de novidades que foram chamadas de “oportunidades” para os estudantes. Os recursos para instrumentos musicais, bandas/fanfarras, material esportivo que, em muitos contextos, representavam novidades. Nessa perspectiva, novos sentidos foram internalizados no inconsciente enquanto encadeamento de significantes na formação de (novos) significados (SILVA, 2016) e (SILVA, 2017). Essa abertura permitiu diversos arranjos nas escolas, passíveis de disputas e debates pelo que seria mais válido para ensinar e integrar ao currículo num contexto de várias opções ofertadas, como apontam Gabriel e Cavaliere (2012, p. 286).

Essa multiplicidade estava inserida em um contexto contraditório que exigia das escolas resultados nas avaliações, que nos faz pensar “os textos curriculares como expressão textual de um complexo processo de negociações que se dá num contexto marcado por relações de poder e constrangimentos” (Lopes e Macedo, 2006, p.262).

Nessa disputa por uma concepção de educação, houve uma preocupação da coordenação do Programa em ampliar as discussões e produzir documentos com orientações curriculares, contando com sujeitos das secretarias e universidades públicas.

Nesse sentido, foi produzido o Caderno Rede de Saberes Mais Educação: Pressupostos para Projetos Pedagógicos de Educação Integral (2009) com sua concepção de currículo, propondo a mandala de saberes, interpretada por Gabriel e Cavaliere (2012, p.288) como princípios de totalidade e integralidade (expressando diferentes leituras dos contextos). Temas como interculturalidade, respeito e diálogo com os saberes populares estiveram presentes nos documentos (BRASIL, MEC/SEB, 2009, p.27). E, nessa mesma linha, foram criados os Cadernos Pedagógicos direcionados aos macrocampos, reforçando essa concepção e com propostas de atividades. Identificamos a proposta de integração do Programa com o currículo escolar por meio do planejamento pedagógico das escolas, resguardando a sua autonomia.

Nesse sentido, os documentos também faziam alusão à concepção de cidade educadora - presente em Paulo Freire, em experiências na Espanha e em Belo Horizonte. Pensar a educação para além dos muros das escolas e com o propósito de “construir um instrumento, entre outros, que dialogasse com a diversidade brasileira e os desafios da escola” (BRASIL, MEC/ SEB, 2009, p.28). Essa multiplicidade de saberes que se traduzia em uma mandala que tentava representar a proposta do Programa.

Fonte: Caderno Rede de Saberes Mais Educação: Pressupostos para Projetos Pedagógicos de Educação Integral (2009, p.34).

Como podemos observar, no centro estava o Projeto de Educação Integral para ser construído, sendo necessário situar os saberes comunitários selecionados pela escola e os saberes que integram o currículo formal (científico). O diálogo de saberes na perspectiva de Albuquerque e Leite (2016, p.07) ao apontarem a família como agentes de participação e “acompanhamento”, mas não a responsabilidade pela tarefa que cabe à escola pública. Não se tratava da proposta do governo atual de “homeschooling” .

Leclerc e Moll (2012) expõem a importância dos conceitos de território e intersetorialidade presentes no Programa que poderiam abrir espaços para resistências e lutas contra dominação cultural hegemônica.

Nesse sentido, possibilitou maior visibilidade que a cultura afro brasileira e suas manifestações culturais, Gonçalves e Pereira (2015) apontam avanços quando programa introduz esse debate à educação nacional.

É muito presente a concepção de interculturalidade nos documentos oficiais do programa, que, segundo Silva e Silva (2013), instrumentalizaria a democratização da escola pública, bem como a inovação do processo pedagógico e a qualidade da educação.

Na visão de Penteado (2014), o debate acerca da política de educação integral não se concretizou de fato no Programa por estar preso às premissas neoliberais e, em vários casos, funcionou como um reforço escolar, o que impedia um aprofundamento do debate dos ideais impressos no texto da política. No modelo proposto também a parceria com organismos privados esteve presente, mesmo em face a essas propostas que buscavam inserir o diálogo com a comunidade.

Em linhas gerais, o Programa Mais Educação, embora tendo limitações e necessidades de aperfeiçoamento, foi o maior programa indutor da política de educação em tempo integral no Brasil. A temática da educação integral e em tempo integral foi incluída na rede de formação do MEC (em parceria com as universidades públicas). Destaca-se sua relevância do Programa apontada no Censo Escolar quando se reconheceu que muito do “avanço na educação em tempo integral se deve ao Programa Mais Educação” (BRASIL, 2014b, p. 20).

Em 2015, o Banco Mundial e Fundação ITAÚ SOCIAL realizaram uma pesquisa, segundo as informações divulgadas, considerou as escolas que estavam no programa no período de 2008 a 2011 comparando com outras que não tinham o programa. O objetivo foi avaliar o impacto Programa Mais Educação3no Brasil nas notas na Prova Brasil. Em declaração, o ministro, acatava os resultados como “certos”, e admitiu rever o Programa e direcionar para aprendizagem de Português e Matemática, sucumbindo à lógica das avaliações padronizadas.

No mesmo ano, a Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ)4 fez uma apresentação no MEC, de uma pesquisa quantitativa de avaliação do Programa Mais Educação no Brasil. A pesquisa mostrava que, embora o programa precisasse avançar em alguns aspectos, como na infraestrutura das escolas, tinha um impacto positivo na vida escolar dos estudantes, oportunizando a ampliação dos seus campos de aprendizagens. Esses resultados foram ignorados pelo ministro.

A pesquisa da Fundaj foi realizada com uma amostra aleatória e representativa do universo de escolas que tinham aderido ao programa em 2013. Foram entrevistados gestores de 1.638 escolas distribuídas em 861 municípios de todos os estados do país.

Naquele momento, ao serem questionados se as escolas públicas devem adotar o ensino em tempo integral, 92,9% dos gestores concordaram com a proposta. E ainda, 97,5% deles perceberam avanços propiciados pelo Programa. Os professores foram questionados se os estudantes no Mais Educação apresentaram melhoria na aprendizagem em Língua Portuguesa, História/Geografia, Matemática e Ciências. A melhoria na aprendizagem de Português foi apontada por 47,3% que “concordaram plenamente”. E 85,3% dos professores afirmaram que aumentou o interesse dos alunos pelos estudos após o Mais Educação.

Além disso, a criação dos Comitês Estaduais teve impacto em várias gestões (municipais e estaduais), algumas iniciaram programas próprios, contando com o apoio dos recursos federais e/ou com recursos próprios. A indução estava ocorrendo em 21,4% das 606 secretarias de educação pesquisadas que possuíam legislação (estadual, municipal ou distrital) com regulamentação a Educação em Tempo Integral em suas redes.

Mesmo diante dos resultados positivos, o ano de 2015 já foi marcado pela crise no governo que atingiu o Programa, com diminuição dos recursos. Com o golpe, em 2016, essa tendência se concretiza com a criação de um programa que foi chamado de “Novo Mais Educação”.

Programa Novo Mais Educação (PNME)

Esse Novo Programa foi criado pela Portaria 1.144/2016 do Ministério da Educação do Brasil e regido pela Resolução nº 5/2017 do Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Iniciou, em 2017, em 7.545 escolas e, em 2018, foi reduzido para 6.905 escolas. Esse número representa cerca de 4% é do total de 181.900 escolas públicas, de acordo com o Censo Escolar de 20185. A título de comparação, o Programa Mais Educação, em 2016, na fase da crise, estava em 38.767 escolas, mas no ano anterior chegou a quase 60 mil (sendo cerca de 32%)6. Essa limitação mostra, como aponta Azevedo (1997) o não estabelecimento de uma política de Estado.

Existe uma afinidade discursiva entre a proposta do “Novo”e os preceitos da carta intitulada “Travessia Social: uma ponte para o futuro”, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de Temer. A referida missiva postulava que era necessário dinamizar a educação brasileira para melhorar a performance nas avaliações internas e externas. O documento estava estritamente ligado aos interesses econômicos. Conforme ressaltam Barbosa e Rodrigues (2017, p.07), está inserida em uma concepção de estado e de sociedade (neoliberal) que desconsidera elementos como o Plano Nacional de Educação (2014).

Nesse diapasão, acaba-se o debate de ideias que esteve presente no Mais Educação e se coloca de forma escancarada a opção pela política dos resultados, das evidências - a performance, como afirma Ball (2002). E ainda, que representa, como afirma Freitas (2014), o empobrecimento do currículo e o domínio dos interesses empresariais (sem espaço para disputas substanciais por se tratar de uma opção política clara).

E assim, o Novo programa trazia a velha lógica das avaliações, restringindo as múltiplas atividades que havia no programa anterior, aumentando o tempo de duração das atividades de português e matemática, priorizando o diálogo com o currículo do ensino regular, nessas duas disciplinas, conforme consta no Caderno de Orientações Pedagógicas, (Brasil, MEC, Cadernos de Orientações Pedagógicas, 2017, p:17). Desse modo, o programa buscava cumprir a agenda internacional da “qualidade” da educação e universalização assumida após Conferência Mundial em Jontiem.

Segundo Hermida (2008), desde a referida Conferência, financiada por organismos internacionais (como o Banco Mundial e OCDE), a educação dos países que assumiram o compromisso de dar as devidas respostas.

Assim, o Novo Programa destruiu a concepção de integração dos saberes. De acordo com o Documento Orientador (2016), buscava atender aos interesses da lógica empresarial de uma suposta “modernização” e de busca de resultados “eficazes” e “eficientes”, cobrando dos sujeitos participantes a cultura da performatividade, como aponta Ball (2012, p.23).

Essa cultura da performatividade tem sido um dos elementos principais para a indução de políticas educacionais no mundo e no Brasil. Segundo Lopes (2006, p.46), “a performatividade se instaura como uma cultura, na medida que é uma tecnologia e um modo de regulação dos sujeitos”.

Nesse programa, observamos essa cultura confirmada nas orientações do planejamento pedagógico do acompanhamento obrigatório de português e matemática que tem o objetivo de fomentar certo “sucesso escolar” dos (as) estudantes. Essa “sucesso” era medido e monitorado por avaliações específicas, que eram realizadas com eles (as) no início e no final do programa. Essas avaliações eram feitas na plataforma do CAED/UFJF que, por coincidência, o seu coordenador tinha ocupado cargo no MEC, na gestão anterior. O CAED é um dos responsáveis por difundir nos estados essa lógica de resultados.

E ainda previa metas e punições, conforme consta no Caderno de Orientações Pedagógicas (BRASIL, MEC/SEB, 2017, p.34):

Na mesma direção a resolução CD/FNDE nº 5/2016 estabeleceu que o Ministério da educação- MEC, por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB), pactuará metas de aprendizagem a serem alcançadas pelas escolas e pelas secretarias estaduais, municipais e distrital de educação, para balizar a avaliação dos resultados do Programa e possivelmente condicionar a participação no Programa em exercícios seguintes. (grifos nossos)

Ou seja, os (as) estudantes tinha seus resultados avaliados, bem como o próprio programa era avaliado, sendo assim, todos precisavam ter êxito na sua execução, desde as secretarias de educação até os agentes envolvidos na escola, pois, se não atingisse as metas “pactuadas” corriam o risco de não seguir no programa nas próximas edições.

Assim, está patente a cultura da performatividade seguindo a lógica do mercado financeiro (LOPES, 2006) e “se inspira tanto em teorias econômicas recentes como em diversas práticas industriais que vinculam a organização e o desempenho das escolas a seus ambientes institucionais” (Ball, 2004, p.1107).

E ainda têm levado escolas (incluindo gestores, professores e alunos) a correrem atrás do sucesso que Ball (2002) chama de “eu triunfante”, precarizando o trabalho pedagógico e as relações sociais por restringir suas possibilidades e criatividade.

Esse Programa foi implantado de modo que não deixou espaço para múltiplas aprendizagens nas poucas atividades diversificadas que ainda restaram nele, como artes, esporte e lazer, mesmo porque sua oferta era em menor tempo curricular, segundo consta no Caderno das Orientações Pedagógicas Novo Mais Educação (2017). Assim, incutiu em muitos sujeitos que trabalhavam na escola, a crença de que era toda sua a responsabilidade de melhorar os índices, como apontam os resultados de uma pesquisa (BARBOSA, RODRIGUES, 2020).

Não encontramos uma concepção de formação integral nessa política. Compreendemos a concepção de formação integral, que permite aos estudantes desenvolverem aspectos relacionados à dimensão afetiva, política, social, física, cognitiva e da cultura.

Moll (2012, p.135) ressalta que os princípios de uma educação integral e seu currículo, permite um trabalho integrado que tem o objetivo de formar o estudante nas diversas áreas necessárias à vida numa sociedade democrática e justa.

A finalidade está explícita no documento Programa Novo Mais Educação: Caderno de Orientações Pedagógicas, (BRASIL, MEC/SEB, 2017, p.05) com os seguintes princípios:

  1. alfabetização, ampliação do letramento e melhoria do desempenho em Língua Portuguesa e Matemática das crianças e dos adolescentes, por meio de acompanhamento pedagógico específico;

  2. redução do abandono, da reprovação, da distorção idade/ano, mediante a implementação de ações pedagógicas para melhoria do rendimento e desempenho escolar;

  3. melhoria dos resultados de aprendizagem do ensino fundamental, nos anos iniciais e finais; e,

  4. ampliação do período de permanência dos alunos na escola.

Entre tantos aspectos de exclusão nessa política, um ficava pontualmente marcado, quando se tratava da seleção dos estudantes que poderiam participar do programa, sendo prioritariamente aqueles com baixo desempenho escolar, repetentes, em vulnerabilidade nutricional, conforme consta no mesmo documento citado acima.

A escola pública e outros espaços educativos deixavam de ser lócus que oportunizam aprendizagens à todos que neles se encontravam. Pois, o mais importante era “salvar” a instituição de ensino e o governo dos baixos resultados nas avaliações externas, e para tanto investiu em práticas pedagógicas perseguidoras dos resultados. Ball et al. (2012, p.24) ressalta que “essa versão da eficácia funciona dentro de uma infraestrutura disciplinar de metas, de referências, de tabelas de classificação, e médias e de inspeções que trabalham para oprimir ou deslocar valores e princípios e para subverter as relações”.

Por isso, refletimos acerca desse Programa, compreendendo que esse “novo” poderia estar sendo posto apenas, como reforço à lógica dos resultados, distanciando-se do sentido da formação integral proposta anteriormente.

O vazio do governo atual

Se a situação com o Novo Mais Educação era criticável, se mesmo o Programa Mais Educação também tinha problemas, o que assistimos é a ausência do debate da educação em tempo integral, mais ainda, a propositada destruição do estado de direito. Por não ter se tornado uma política de Estado, o tempo integral está hoje restrito ao ensino médio porque está previsto na reforma empresarial (FREITAS, 2018) de 2016.

Depois da destruição das políticas até então existentes, sobraram apenas as ações do FNDE (2020)7 que garantem o mínimo (como é o caso da merenda, do transporte). Assistimos à uma junção de neoconservadorismo (falso moralista) que tenta esconder o neoliberalismo com caráter patrimonialista, com ganhos particulares8.

Considerações Finais

Ao final da análise a principal consideração é que a indução do tempo integral no ensino fundamental ainda é política de governo e não conseguiu alçar o patamar de política de estado. Mesmo a meta estipulada no último Plano Nacional de Educação visava atingir metade das escolas, nas disputas políticas foi o máximo obtido pelo grupo de defesa da proposta.

E, no contexto atual, de destruição do Estado foi totalmente abandonada. A ampliação da jornada não é reconhecida como inerente aos deveres do Estado, como muitos dos direitos sociais. Esse processo de destruição nos remete à hegemonia do neoliberalismo, de um capitalismo destruidor que enseja a visão de educação de qualidade como um privilégio das elites, como já havia denunciado Anísio Teixeira (1989), no século passado. A lógica é intrínseca à forma como o capitalismo se apresenta em países da América Latina, além das contradições que lhe são inerentes, mantém a grande maioria da população em situação de extrema pobreza e com a negação dos direitos sociais.

5O Censo Escolar 2018 está disponível em http://portal.inep.gov.br/web/guest/resultados-e-resumos Acesso em 03 de setembro de 2020.

6Os dados do PME e PNME no Portal brasileiro de dados abertos estão disponíveis em http://dados.gov.br/dataset/mec-pme/resource/27608aa8-f115-43ca-b31e-8dad40bc404d Acesso em 03 de setembro de 2020.

7Informações disponíveis em: https://www.fnde.gov.br/ Acesso em 14 de setembro de 2020.

8Sobre esse assunto foi publicado a seguinte matéria:Planos para a educação devem enfraquecer professores e beneficiar negócios de Guedes. Disponível em:https://apublica.org/2018/12/planos-para- a-educacao-devem-enfraquecer-professores-e-beneficiar-negocios-de-guedes/ Acesso em 15 de setembro de 2020.

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Recebido: de 2020; Aceito: de 2020; Publicado: de 2020

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