Introdução
Este artigo objetiva apresentar e analisar os ordenamentos normativos que regulamenta(va)m a obrigatoriedade e a gratuidade da educação no âmbito do Brasil, do Chile e do Uruguai nos últimos 30 anos. Destacamos que este estudo é resultado parcial de pesquisa2 de Doutorado, em andamento na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Ao levarmos em conta a organização do Estado de Direito, compreendemos que a educação precisa ser, necessariamente, normatizada através do arcabouço legal de cada país. Entendemos, contudo, que os ordenamentos normativos, por si só, não garantem a efetivação do direito à Educação (Unesco, 2013). Nesse cenário, organismos internacionais, em especial aqueles vinculados à Organização das Nações Unidas3 (ONU), através de suas declarações e convenções, exercem um papel importante e decisivo. A própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura4 (Unesco), agência da ONU, aponta que o direito à educação está imbricado na ideia e na necessidade de se garantir a universalização do acesso à escola, por meio de normatizações que delimitem a escolaridade obrigatória, para que assim possam, através de políticas públicas, garanti-lo (Unesco, 2013).
De tal modo, os tratados internacionais se consolidam como referências obrigatórias no âmbito do sistema de direitos internacionais. Além disso, o crescente processo de internacionalização dos direitos está diretamente relacionado à pungente necessidade de se construir soluções para problemas que não se restringem mais à ordem de um Estado, mas afetam, de maneira profunda e crucial, a esfera regional e/ou global (SOUZA, 2017).
Tal constatação aponta que os Estados signatários desses ordenamentos devem assumir a responsabilidade de promover (e garantir) tais direitos aos seus cidadãos. Ao pensarmos nesse processo, é fundamental compreender que os organismos internacionais passam a ter papel fundamental na dinâmica do escopo legal de cada país, ainda que, em alguns casos, decisões não sejam necessariamente internalizadas no direito doméstico de cada nação, tendo, portanto, papel de sugerir políticas e práticas aos países signatários e que ratificaram tais normas internacionais.
Nesse contexto, a educação ganha um papel de destaque no âmbito da América Latina, uma vez que, em consonância com orientações da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe5 (Cepal), é evocada como um elemento que contribui para os processos de integração e de desenvolvimento da região (CEPAL, 1994). De tal modo, tanto as orientações específicas para as políticas educacionais como aquelas direcionadas a outras áreas relacionadas ao desenvolvimento, como a economia, apontavam a educação como vetor fundamental para o crescimento – econômico – dos países.
Para a realização deste estudo, utilizamos a pesquisa documental, considerando que os documentos serão a fonte primária dessa pesquisa e que foram produzidos “num determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto” (LÜDKE; ANDRÉ, 2013, p. 45). Realizamos uma pesquisa bibliográfica de modo a buscar por diferentes estudos e produções científicas acerca do objeto do estudo (OLIVEIRA, 2007). A abordagem comparativa se justifica uma vez que contribui para o desvelamento de uma política em realidades distintas (CORRÊA, 2011, p. 267), bem como para a “quebra de fronteiras no campo da produção do conhecimento” (NÓVOA, 2009, p. 26).
O artigo está organizado em três seções, afora esta introdução: na primeira, analisamos documentos editados pela ONU sobre o direito à educação; na segunda, analisamos os ordenamentos normativos do Brasil, do Chile e do Uruguai em relação à obrigatoriedade e a gratuidade da educação; por fim, as considerações finais resgatam as principais reflexões e análises do estudo, e suas implicações para os ditos países.
A escolaridade obrigatória e gratuita no contexto de documentos internacionais
O crescente processo de internacionalização dos direitos está diretamente relacionado à pungente necessidade de se construir soluções para problemas que não se restringem mais à ordem de um Estado, mas afetam, de maneira profunda e crucial, a esfera regional e/ou global (SOUZA, 2017). Nesse sentido, a consolidação de ordenamentos no âmbito do direito internacional atua como estratégia para mitigação desses problemas. Entretanto, enfrenta desafios relacionados aos seus limites – particularmente no que diz respeito à soberania dos Estados-Nação e de suas possibilidades de materializar e internalizar tais direitos em políticas para os cidadãos.
No escopo desses problemas, está a educação, que, de acordo com Cury (2002) tem a sua compreensão como um direito relacionado à própria evolução da humanidade e, sob os princípios da Revolução Francesa, deveria estar, indistintamente, ao alcance dos cidadãos. Autores como Machado e Oliveira (2001) e Dias (2007) caracterizam a educação como um direito, mas também como um elemento que constitui os sujeitos, uma vez que se estabelece como um pré-requisito para o alcance dos demais, vinculados às questões de ordem social e política. A necessidade de sua regulação e sua garantia está diretamente relacionada ao seu reconhecimento como aspecto fundamental para a promoção da dignidade humana (BENEVIDES, 2007).
A necessidade e existência de um direito está necessariamente atrelada ao âmbito de um sistema normativo (BOBBIO, 1992), no qual “a figura do direito tem como correlato a figura da” (p. 80). Nesse sentido, o acesso aos conhecimentos social e historicamente selecionados, garantido através da permanência na escola, consolida-se com elemento fundamental para que os sujeitos possam ampliar suas possibilidades de participação e transformação social (CURY, 2002).
No que tange à educação, o direito internacional desempenha o importante papel de determinar aos países os princípios básicos e as garantias em relação a esse direito social, de modo que estes estabelecem ordenamentos normativos domésticos, em consonância com as determinações internacionais, para regulamentarem suas políticas. Historicamente, podemos destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ONU, 1948) que sinalizou para a necessidade de todos os países se mobilizarem no sentido de implementar medidas e políticas com foco na promoção do direito à educação, considerando-a como estratégia para o desenvolvimento social, devendo, portanto, ser garantida no ordenamento normativo interno de cada nação. A declaração estabeleceu que “[...] a educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório” (ONU, 1948, Art. 26). O dispositivo da obrigatoriedade, determinado pelo documento, traz a responsabilidade de o Estado criar, implementar e garantir políticas públicas que venham ao encontro de tal prescrição.
Mais à frente, o Fundo das Nações Unidas para a Infância6 (UNICEF), editou a Declaração Universal dos Direitos das Crianças (UNICEF, 1959), que estabeleceu dez princípios sob os quais deveriam se consolidar o desenvolvimento da criança. O sétimo, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, determinava que a criança tem direito ao acesso à educação escolar gratuita e obrigatória, ao menos nas etapas elementares. Tal movimento, avançou no sentido de ampliar as perspectivas sob as quais essa educação deveria se consolidar ao apontar que “dar-se-á à criança uma educação que favoreça sua cultura geral e lhe permita desenvolver suas aptidões e sua individualidade, seu senso de responsabilidade social e moral” (UNICEF, 1959).
Os preceitos da garantia do acesso à educação foram reafirmados no Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais (ONU, 1966). Para Souza (2017), os artigos 13 e 14 do Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais (ONU, 1966) apontaram para o papel fundamental da educação como elemento base para o desenvolvimento humano e da sociedade. Destacamos ainda o caráter normativo do artigo 14, ao determinar aos Estados signatários do pacto a obrigatoriedade da garantia – em caráter gratuito – da educação primária.
Constatamos, em relação aos três ordenamentos apresentados até o momento (ONU, 1948; UNICEF, 1959 e ONU, 1966), dois elementos que foram reiterados: a oferta da educação primária e a gratuidade desse atendimento. Nesse sentido, observamos que tanto a oferta, como a gratuidade se consolidavam como elementos a serem amplamente difundidos e garantidos.
No ano de 1990, foi realizada a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, na Tailândia, que resultou na “Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem”. Para Gomide (2007), a declaração, além de proclamar a educação básica como o principal vetor de garantia do acesso à aprendizagem, consolidou-se também como um elemento que reforçou a necessidade de sua garantia a todos, de forma gratuita, na perspectiva da igualdade do acesso e da equidade no tratamento. Podemos, assim, destacar que a declaração inaugurou, no âmbito dos ordenamentos internacionais, a perspectiva do tratamento dos sujeitos a partir de suas diferenças e necessidades, sob a égide do princípio da equidade.
De tal modo, tal princípio vai ao encontro da lógica impulsionada na década de 1990 da implementação de políticas educacionais “fundadas na equidade” (CARNOY, 2003, p. 65). Essa perspectiva, presente na “Declaração Mundial de Educação para Todos” e amplamente divulgada por diversos organismos internacionais, como os bancos regionais de desenvolvimento e o Banco Mundial, foi alicerçada na perspectiva de que o investimento em políticas de equidade, em especial a inclusão das camadas mais pobres na escola, aprimorariam a retórica da educação como instrumento de mobilidade social (CARNOY, 2003).
Cabe destacar ainda que na década de 1990, organismos internacionais como o Banco Mundial e a Unesco passaram a ampliar orientações, expressas através de documentos, que apontavam para a necessidade de ser implementar reformas educacionais na América Latina, de modo a irem ao encontro da crise estrutural do capitalismo (MOTA JÚNIOR; MAUÉS, 2014). Especificamente sobre as orientações do Banco Mundial, Mota Júnior e Maués (2014) apontam que a agenda das políticas foi deslocada das reformas econômicas de ajustes cambiais para reformas no Estado e na suavização da pobreza como estratégia de coesão social.
No ano 2000, outro tratado internacional buscou renovar os compromissos com a educação, a “Declaração de Dakar: Educação para todos”, resultante da Cúpula Mundial de Educação realizada em Dakar, no Senegal, no ano 2000. O documento considerou que “a educação, como um direito humano fundamental, é um aspecto propulsor para o desenvolvimento sustentável, assim como para assegurar a paz e a estabilidade entre os países” (SOUZA, 2017, p. 71).
Para Bauer (2008), o texto, além de reforçar as perspectivas relacionadas ao acesso gratuito à educação básica, sustentado no princípio da equidade, deu maior ênfase à preocupação com a qualidade do ensino. Em seu texto, o documento enfatiza que “a educação primária deve ser gratuita, obrigatória e de boa qualidade assumida pelo Estado” (UNESCO, 2000, p. 3), porém esse papel pode ser complementado através de “parceiras ousadas e abrangentes em todos os níveis da sociedade” (UNESCO, 2000, p. 3). Assim, podemos compreender que o papel do Estado não está, necessariamente, relacionado à oferta da Educação Básica no sistema público, mas que as parcerias com a sociedade podem se estabelecer como estratégia para a garantia do direito à escolarização, de modo a garantir tal acesso, inclusive no sistema privado, desde que subvencionado pelo Estado.
A “Declaração de Dakar: Educação para todos”, segue a tendência amplamente divulgada, incentivada e financiada por organismos internacionais, no sentido de o Estado compartilhar suas responsabilidades com a sociedade, através de parcerias e pactos. Destacamos que essa estratégia abre espaço para a maior inserção da lógica da iniciativa privada nas questões educacionais, bem como a ampliação do processo de terceirização do seu compromisso, por parte do Estado, contribuindo assim com a sua diminuição, conforme amplamente defendido na década de 1990 na região.
Para Rabelo et al. (2009), as conferências realizadas pela Unesco na década de 1990 e no ano 2000 apresentam um elemento em comum. Além de pautarem o tema da educação, trazem à cena a significativa participação de organizações não governamentais (ONGs) no processo de discussão dos rumos das políticas educacionais. Nessa articulação, prazos e metas foram definidos, nos quais os países signatários, por meio dos compromissos firmados, assumiram a responsabilidade no seu alcance.
De maneira comparada, a Declaração de Jomtien (UNESCO, 1990) estabeleceu a busca pela equidade, enfatizando a necessidade de melhoria nas condições de aprendizagem dos estudantes; enquanto a Declaração de Dakar (2000) recomendou a focalização de esforços para promover uma educação de qualidade e a melhoria das condições dos estabelecimentos de ensino (SOUZA, 2017). Destacamos ainda que tanto a Declaração de Dakar (2000) quanto o Fórum Mundial de Educação (2015) inserem-se em um contexto mais amplo de objetivos da ONU; no primeiro caso, nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e, no segundo, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030.
As metas e os prazos estipulados na Declaração de Dakar (UNESCO, 2000) foram discutidos e avaliados no “Fórum Mundial de Educação”, realizado pela Unesco na Coreia do Sul. O evento estabeleceu ainda princípios e diretrizes para os próximos 15 anos, de 2016 a 2030, no que tange às políticas educacionais. Para Souza (2017), os compromissos firmados pelos países estão relacionados à garantia da educação básica ser financiada por recursos públicos, o enfretamento aos problemas de marginalização e desigualdades, e o compromisso efetivo com a qualidade da educação.
Destacamos que os documentos aqui analisados não determinam que a oferta da escolaridade obrigatória se dê, necessariamente, nos sistemas públicos de educação, mas que o Estado possa garantir esse direito – gratuidade para a população –, inclusive através de articulação com o setor privado, desde que garantida a gratuidade à população. Compreendemos que tal fator oportuniza que sejam colocadas em prática, políticas de voucher – a exemplo do que ocorre no Chile – no qual o Estado repassa recurso para escolas particulares parcerias, denominadas subvencionadas, para o atendimento aos estudantes e cumprir o que está disposto na legislação sobre a obrigatoriedade e a gratuidade da educação (BELLEI, 2005).
Normatização da escolaridade obrigatória e gratuita no Brasil, no Chile e no Uruguai nos últimos 30 anos.
Destacamos que os sistemas educacionais em todo o mundo variam significativamente em termos de estrutura, conteúdo curricular e ainda, em decorrência dos processos de constituição dos Estados-Nações e de suas formas de organização de Estado, o que pode dificultar a comparação e as análises. Cabe apontar que a análise das constituições nacionais é delicada e pode apresentar algumas limitações, uma vez que existem diversas formas de organização do Estado na região.
O Quadro 1 possibilita identificar as mudanças no que diz respeito à escolaridade obrigatória e à gratuidade em ordenamentos normativos nacionais no período anterior à década de 1990, seguido das alterações ocorridas na referida década e como se encontra tal regulamentação até o ano de 2020. Resumidamente podemos observar que a década de 1990 foi um período de elaboração de novas leis gerais de educação nos países analisados, com exceção do Uruguai, os quais mantiveram a obrigatoriedade e gratuidade vinculadas à etapa já observada na década anterior. Constatamos que os anos 2000 se configuraram como marco na ampliação da educação nos referidos países, ao ponto que, no ano de 2013, todos já ofertavam 14 anos de escolaridade obrigatória e gratuita.
País | Anterior à década de 1990 | Década de 1990 | Após década de 1990 (atual) | ||||
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Obrigatoriedade | Gratuidade | Obrigatoriedade | Gratuidade | Obrigatoriedade | Gratuidade | ||
Brasil | Regulamentação | Artigo 208 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988 (BRASIL, 1988) | Artigo 208 de Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988 (BRASIL, 1988) | Artigo 208 da Constituição da República Federativa do Brasil, a partir da Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996 (BRASIL, 1996a) | Artigo 208 da Constituição da República Federativa do Brasil, a partir da Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009) | ||
Artigo 4 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) | |||||||
Cobertura | Sete (7) a catorze (14) anos (BRASIL, 1971, Art. 47) | Sete (7) a catorze (14) anos (BRASIL, 1996, Art. 4; Art. 5º; Art. 87) | Seis (6) a catorze (14) anos (BRASIL, 2006, Art. 3 – altera o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) | ||||
Ensino Fundamental (7 a 14 anos) (BRASIL, 1988, Art. 1988) | Quatro (4) a dezessete (17) anos (BRASIL, 2009) | ||||||
Chile | Regulamentação | Artigo 19 da Constitución Política da la República de Chile, de 11 de setembro de 1980 (CHILE, 1980) | -* | Artigo 3º da Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza, nº 18.962, de 07 de março de 1990 (CHILE, 1990). | Artigo 19 da Constitución Política da la República de Chile, alterado pela Reforma Constitucional nº 19.876 de 07 de maio de 2003 (CHILE, 2003) | ||
Artigo 19 da Constitución Política da la República de Chile, alterado pela Reforma Constitucional nº 20.710 de 25 de novembro de 2013 (CHILE, 2013) | |||||||
Cobertura | Seis (06) a treze (13) anos | Seis (06) a treze (13) anos (CHILE, 1990, Art. 4º; Art. 5º) | Seis (06) a dezessete (17) anos (CHILE, 2003) | ||||
Quatro (04) a dezessete (17) anos (CHILE, 2013) | |||||||
Uruguai | Regulamentação | Artigo 70 da Constitución de la Republica Oriental del Uruguay, de 15 de fevereiro de 1967 (URUGUAI, 1967) | Artigo 71 da Constitución de la Republica Oriental del Uruguay, de 15 de fevereiro de 1967 (URUGUAI, 1967) | _* | _* | Artigo 7º da Ley General de Educación, nº 18.437, de 12 de dezembro de 2008 (URUGUAI, 2008) | Artigos 15 e 16 da Ley General de Educación, nº 18.437, de 12 de dezembro de 2008 (URUGUAI, 2008) |
Cobertura | Seis (6) a catorze (14) anos (URUGUAI, 1985) | _* | _* | Quatro (04) a dezessete (17) anos (URUGUAI, 2008) |
Fonte: Elaboração própria com base em Brasil (1971, 1988, 1996, 1996a, 2006, 2009), Chile (1980, 1990, 2003, 2013) e Uruguai (1967, 1985, 2008). * Na década de 1990 permaneceu o texto da década anterior
No que diz respeito ao Brasil, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) determinava o ensino fundamental como etapa obrigatória e de oferta gratuita pelo Estado. A Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), que fixou diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, determinava que tal etapa era constituída por oito anos de escolaridade. A constituição brasileira, em seu texto original, determinava que o ensino fundamental era de caráter obrigatório e gratuito, deveria contemplar aquelas pessoas que não o concluíram em idade própria (BRASIL, 1988).
Ne década de 1990 foi aprovada e sancionada uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 10 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) que, efetivamente, não alterou as normatizações referentes à escolaridade obrigatória. Ainda no referido ano, a Emenda Constitucional nº 14/1996 (BRASIL, 1996) reiterou a oferta gratuita e obrigatória do ensino fundamental, determinando a gratuidade àqueles que não o concluíram em idade escolar.
Posteriormente, no ano de 2006, a Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006 (BRASIL, 2006) ampliou o ensino fundamental para nove anos, devendo atender a crianças de 06 a 14 anos. No ano de 2009, a Emenda Constitucional nº 59/2009 (BRASIL, 2009) vinculou a obrigatoriedade e a gratuidade da educação básica7 à idade, determinando a sua oferta gratuita.
Em relação ao Chile, a Constituição do país determina que: “La educación básica e obligatoria, debiendo el Estado financiar un sistema gratuito con tal objeto, destinado a asegurar el acceso a ellas de toda la población” (CHILE, 1980, Art. 19). A educación básica8 era composta por oito anos de escolaridade, de modo a atender sujeitos dos seis aos 13 anos. Na década de 1990, o Artigo 3º da Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza, nº 18.962, de 07 de março de 1990 (CHILE, 1990), reiterou a gratuidade e a obrigatoriedade da educação básica.
Posteriormente, no ano de 2003, a Reforma Constitucional nº 19.876 de 07 de maio de 2003 (CHILE, 2003) alterou o Artigo 19 da Constitución Política da la República de Chile (CHILE, 1980) de modo a ampliar a obrigatoriedade à educación media, sendo assim, a escolaridade obrigatória passou a ser compreendida por sujeitos com idade de seis a dezessete anos. No sentido dessa ampliação, a Reforma Constitucional nº 20.710 de 25 de novembro de 2003 (CHILE, 2013), alterou o Artigo 19 da Constituição chilena, passando a abarcar também os dois últimos anos de educación parvularia. De tal modo, o país passou a ofertar 14 anos de escolaridade obrigatória, abrangendo a educación parvularia, a educación básica e a educación media.
Assim como nos países já apresentados, a educação9 no Uruguai tem seu princípio de gratuidade regulamentado pela constituição: “Declárase de utilidad social la gratuidad de la enseñanza oficial primaria, media, superior, industrial y artística y de la educación física […]” (URUGUAI, 1967, Art. 71).
A obrigatoriedade também está determinada no texto constitucional que registra “son obligatorias la enseñanza primaria y la enseñanza media, agraria o industrial. El Estado propenderá al desarrollo de la investigación científica y de la enseñanza técnica (…)” (URUGUAI, 1967, Art. 70). No ano de 1985, a Ley de emergencia para la enseñanza nº 15.739, de 29 de março (URUGUAI, 1985) determinou que a escolaridade obrigatória estava vinculada ao atendimento dos estudantes dos seis aos catorze anos na Educación Primaria.
Na década de 1990, o país não editou ordenamento que tratasse de alterar as questões relacionadas à obrigatoriedade e à gratuidade da educação. Destacamos, contudo, que, no ano de 2008, a lei geral da educação (URUGUAI, 2008), em consonância com a constituição do país, reitera o caráter gratuito da educação pública, nos artigos 15 e 16.
Quanto à obrigatoriedade, o texto da lei máxima da educação do país determina que a obrigatoriedade e a gratuidade do atendimento aos sujeitos de quatro a dezessete anos (URUGUAI, 2008), atendendo assim a educación inicial, a educación primaria e a educación média básica e superior. “(...) Es obligatoria la educación inicial para los niños y niñas de cuatro y cinco años de edad, la educación primaria y la educación media básica y superior” (URUGUAI, 2008, Art. 7).
A análise da regulamentação da escolaridade obrigatória e gratuidade nesses países nos possibilita observar que no período anterior à década de 1990 e mesmo durante esse decênio, a priorização em uma determinada etapa da educação. Tal fato pode ser constatado no caso brasileiro, em relação ao ensino fundamental; no caso chileno, a educación básica; e, no caso uruguaio, a educación primária e secundaria. Esse movimento está alinhando às políticas de focalização, apontadas por Carnoy (2003), presentes no contexto das reformas educativas colocadas em curso na América Latina na década de 1990.
A priorização em uma etapa contribui para acentuar as desigualdades educacionais, em especial aquelas vinculadas ao acesso e à permanência dos estudantes que estejam matriculados ou em idade escolar para as etapas não obrigatórias. Conforme apontado por Krawczuk e Vieira (2008), diante disso, o Estado passa a concentrar recursos em determinada etapa (obrigatória) em detrimento de outras (não obrigatórias)
Conforme evidenciado no Quadro 1, os anos 2000 foram marcados pela ampliação da escolaridade obrigatória e gratuita. Destacamos que tal ampliação foi ao encontro de apontamentos expressos dos documentos internacionais, a exemplo da Declaração de Cochabamba10 (PROMEDLAC, 1996) que, já no final da década de 1990, apontava para a necessidade da ampliação do tempo de escolarização dos estudantes.
De tal modo, podemos observar que os países analisados, avançaram em relação à maior abrangência da obrigatoriedade e da gratuidade, uma vez que esta se dá a partir dos quatro anos, período no qual a criança está inserida na Educação Infantil/Educacion Parvularia/Educación Primária se estendendo até a Ensino Médio/Educación Media/ Educación Secundaria Superior.
Sinalizamos que a regulamentação da obrigatoriedade e da gratuidade são fatores importantes para o âmbito do direito à educação, entretanto não pode ser considerada como única ação, uma vez que as leis, por si só, não garantem o acesso e permanência dos estudantes na escola. O Quadro 2 nos possibilita apresentar dados sobre a cobertura de matrículas na educação primária e secundária dos países analisados. A partir de dados do ano de 2019 coletados na base Unesco Institute for Statistics (UIS), foi possível observar que a educação primária está próxima da universalização do seu atendimento nos países da região. Entretanto, no que tange à educação secundária, os dados apontam que sua cobertura precisa ser ampliada, para abarcar toda a população em idade escolar para essa etapa.
País | taxa de crianças fora da escola - educação primária | taxa de adolescentes fora da escola - educação secundária |
---|---|---|
Brasil | 0,39 | 18,59 |
Chile | 2,27* | 5,15* |
Uruguai | ** | 19,23 |
Fonte: Elaboração própria com base em Unesco Institute for Statistics. * O UIS não apresenta dados do ano de 2019, de tal modo utilizamos os últimos dados, referentes ao ano de 2017. ** Magnitude nula ou insuficiente
Sinalizamos que a educação primária está regulamentada, como obrigatória e gratuita, mesmo antes da década de 1990, conforme evidenciado no Quadro 1. De tal maneira, compreendemos que este fator pode ter contribuído para a sua quase universalização nos países analisados. Podemos considerar que a existência de tais ordenamentos tenha levado à efetivação de políticas educacionais com vistas à sua garantia, bem como a compreensão da sociedade de que este acesso se constitui como um direito das crianças.
Entretanto, o mesmo cenário não pode ser observado em relação à cobertura da educação secundária. Conforme evidenciado no Quadro 2, a referida etapa ainda não cobre toda a demanda, o que se constitui como um desafio a ser superado pelos países em análise. O que reforça a constatação de que os ordenamentos normativos – apesar de sua fundamental importância – não são a garantia do direito à educação a todos os sujeitos em idade escolar. Em referência ao quadro, podemos constatar que a regulamentação da obrigatoriedade desta etapa (ou de sua ampliação) é um processo mais recente, o que pode contribuir para os dados aqui observados.
Destacamos o inegável avanço em relação à normatização para a escolaridade obrigatória e sua gratuidade no contexto dos países analisados. Porém, considerando a ideia de que os ordenamentos normativos, por si só, não garantem a efetivação do direito à Educação (UNESCO, 2013), se faz necessário que os países assumam seu(s) compromisso(s) através de investimentos para a garantia desse direito.
À guisa da conclusão
A necessidade e existência de um direito está necessariamente atrelada ao âmbito de um sistema normativo (Bobbio, 1992), no qual “a figura do direito tem como correlato a figura da obrigação” (p. 80). Nesse sentido, o acesso aos conhecimentos social e historicamente selecionados, garantido através da permanência na escola, consolida-se como elemento fundamental para que os sujeitos possam ampliar suas possibilidades de participação e transformação social (CURY, 2002).
Observamos, que os ordenamentos editados por organismos internacionais, a exemplo das declarações desdobradas de conferências internacionais, se consolidaram como elementos fundamentais para a normatização da escolaridade obrigatória nos países signatários. No âmbito dos países analisados, estes documentos se somaram à compreensão de que a educação se configura como elemento chave para o desenvolvimento, para a integração da região e para o enfretamento da crise.
Destacamos ainda que a presença de tais ordenamentos e orientações não são garantia para a efetividade do acesso à escolaridade obrigatória de todos aqueles que se encontram na faixa etária e/ou da etapa prevista nas legislações de cada país. A elaboração de ordenamentos normativos nacionais é parte importante no processo de garantia desse direito, entretanto ela deve ser acompanhada de políticas públicas que efetivem o acesso e que garantam a permanência dos estudantes nas escolas.