1 Introdução
“O que aconteceu com o ensino no Brasil nas últimas décadas? Democratizou-se o ensino!”
(Discurso do presidente Jair Bolsonaro em 05/09/2019 durante o lançamento do Programa de Nacional de escolas cívico-militares).
A fala em epígrafe é sintomática do retrocesso que a educação pública vem sofrendo durante o governo atual, que, em menos de um ano, já demonstrou que tem um projeto robusto de privatização e de repressão do pensamento crítico nas escolas e universidades do país. Não foi suficiente um ministro que não tinha capacidade para implementá-lo, como foi o caso do ministro Velez Rodrigues. Sua substituição acabou acelerando as medidas de desmonte da educação pública pretendida pelo governo, sob os auspícios do mercado financeiro e do empresariado educacional.
Mesmo com a substituição de Velez Rodrigues, representante da ala “olavista”3 do MEC, por um titular ligado ao setor financeiro, a pauta ideológica permanece hegemônica na pasta. O projeto de militarização das escolas públicas, anunciado pelo governo Bolsonaro como solução para o problema da “democratização” do ensino no Brasil, responsável, na visão do presidente, pela falta de qualidade da escola pública, reedita o discurso do movimento “Escola sem partido”, travestida de ordem e disciplina que, supostamente, a gestão militar traria para as escolas públicas. Afinal, no evento de lançamento do programa, outros slogans enunciados nos discursos das autoridades presentes, - o ministro A. Weintraub afirmou: “nossa bandeira jamais será vermelha”! – demonstram que essa medida tem como objetivo, também, o controle e a vigilância ideológica nas escolas.
Apesar de o presidente não compreender o conceito de democracia, pois o reduz a falta de disciplina, a anarquia e a “licenciosidade”, o que se resolveria com medidas autoritárias no sentido de restituir a ordem, isso diz muito das leituras equivocadas e enviesadas sobre tal conceito que circulam entre o grande público e de grande parte do eleitorado do presidente, legitimando sua forma de condução do país. Se a democracia “não está funcionando”, não há nada mais lógico do que “suspender” a democracia para que se restabeleça a “ordem democrática”4.
Portanto, não há que se ter esperanças acerca de um processo de recuperação da frágil democracia brasileira durante o atual governo, conforme já demonstrado pelos atos de indicações, sem o aval da sociedade e seus segmentos representativos – como no caso do procurador geral da república e dos reitores de universidades e institutos federais – como também de intervenções nas nomeações de membros da PF e da tentativa de indicação do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, ao topo da diplomacia nos EUA, desprovida de qualquer critério técnico ou democrático.
Apegado à prerrogativa do cargo, o presidente simplesmente ignora as vozes da sociedade, governando em favor de interesses do seu grupo político e familiar. Não entende, de fato, o princípio básico de que na democracia o poder emana do povo, e que, portanto, não pode ser identificado à figura do governante, sendo apenas a ele delegado e exercido em observância aos demais princípios democráticos (CHAUÍ, 2001).
Com relação à educação superior pública, o novo governo inicia uma investida ideológica, a despeito de combater a “ideologização” das universidades e de buscar “resultados”, que, na verdade, serviu como argumento para dar sequência ao seu projeto de desmonte das universidades públicas. A princípio, o contingenciamento de 30% dos recursos discricionários das IFES5 atingiriam, mais fortemente, aquelas que se dedicam a fazer “balbúrdia” em vez de produzir resultados. E, pela lógica enviesada do governo, a UFF, a UnB e a UFBA, que seriam as mais atingidas pelos cortes, são algumas das maiores e mais produtivas universidades do país.
O projeto de desmonte não visa apenas às universidades, mas a todo o sistema de ciência e tecnologia do país, que, além das universidades, engloba ainda as agências públicas de fomento, responsáveis pelo financiamento de quase 90% da produção científica do país, aprofundando o processo de dependência científica e tecnológica que já se esboça há alguns anos (LEHER, 2018).
O Future-se, programa de autonomia financeira de universidades e institutos federais, é a mais nova peça dessa engrenagem. O Programa, lançado em 17 de julho de 2019, visa a “promover maior autonomia financeira nas universidades e institutos federais por meio de incentivo à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo”, a ser desenvolvido em “parceria com organizações sociais”. Qualificado pelo MEC como “inédito e inovador”, o Future-se “propõe uma mudança de cultura nas instituições públicas de ensino superior: maior autonomia financeira a universidades e institutos federais”6.
No presente artigo, pretendemos analisar, em linhas gerais, alguns aspectos do referido programa no que tange à democratização da educação superior no Brasil, que, durante um breve intervalo, experimentou um momento significativo de expansão, e que, embora limitado, foi uma iniciativa progressista nesse campo quanto à perspectiva de democratização do acesso a esse nível de ensino. Trata-se de um estudo de caráter exploratório, cuja perspectiva analítica está baseada no materialismo histórico. A metodologia utilizada foi a análise documental, cuja fonte principal foi a minuta do PL divulgada pelo MEC em julho de 2019 e disponibilizada à consulta pública. Também foram realizadas pesquisas no próprio sítio eletrônico do MEC, de onde foram extraídas informações mais sucintas sobre o Programa, assim como algumas declarações do órgão. Ainda foram examinadas análises disponibilizadas pela Assessoria Jurídica do ANDES (ANDES, 2019), em agosto de 2019, e análises preliminares de estudiosos do tema.
2 O Programa Future-se: linhas gerais
Apresentado com grande expectativa, o “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se” foi recebido, ao mesmo tempo, com perplexidade e entusiasmo de setores distintos da sociedade. Enquanto setores ligados à academia, como reitores, docentes e alunos, criticaram o Programa, setores alinhados ao segmento empresarial e à lógica reformista viram com bons olhos a iniciativa do MEC. O presidente do SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Instituições de Ensino Superior), Hermes Ferreira Figueiredo, vê o Programa com bons olhos: “[...] a avaliação inicial é que ele é positivo e ousado, ao focar a questão de governança, gestão e empreendedorismo das universidades, aspectos que sempre foram defendidos pelo setor do ensino superior privado” (ENTENDA O PLANO, 2019, sem paginação.). Já a ANDIFES vê o Programa com preocupação, sobretudo no que tange à questão do financiamento público e da autonomia das IFES, além da imprecisão com que são tratados alguns temas (ANDIFES, 2019).
O objetivo do Future-se, segundo o projeto apresentado pela Secretaria de Educação Superior (SESu/MEC), é fortalecer a autonomia financeira das IFES por meio de parcerias com organizações sociais (OS)7 e do fomento à captação de recursos próprios para a composição de seus orçamentos. A participação das Universidades no Programa será através de adesão voluntária, por prazo indeterminado.
O Future-se é estruturado em três eixos principais, sobre os quais deverão incidir suas ações. O próprio site do Ministério da Educação revela os objetivos do Programa em cada um de seus eixos, os quais reproduzimos abaixo8:
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Eixo Gestão, Governança e Empreendedorismo
promover a sustentabilidade financeira, ao estabelecer limite de gasto com pessoal nas universidades e institutos – hoje, em média, 85% do orçamento das instituições são destinados para isso. Para a administração pública, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece percentual máximo de 60% (itálicos nossos);
estabelecer requisitos de transparência, auditoria externa e compliance9;
criar ranking das instituições com prêmio para as mais eficientes nos gastos (itálicos nossos);
gestão imobiliária: estimular o uso de imóveis da União e arrecadar por meio de contratos de cessão de uso, concessão, fundo de investimento e parcerias público- privadas (PPPs) (itálicos nossos);
propiciar os meios para que os departamentos de universidades/institutos arrecadem recursos próprios, com estímulo à competição entre as unidades (itálicos nossos);
autorizar naming rights (ter o nome de empresas/patrocinadores e patronos) nos campi e em edifícios, o que possibilitaria a modernização e manutenção dos equipamentos com ajuda do setor privado (itálicos nossos).
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Eixo Pesquisa e inovação
instalar centros de pesquisa e inovação, bem como parques tecnológicos;
assegurar ambiente de negócios favorável à criação e consolidação de startups, ou seja, de empresas com base tecnológica (itálicos nossos);
aproximar as instituições das empresas, para facilitar o acesso a recursos privados de quem tiver ideias de pesquisa e desenvolvimento (itálicos nossos);
premiar os principais projetos inovadores, com destaque para universidades de pequeno porte (itálicos nossos).
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Eixo Internacionalização
estimular intercâmbio de estudantes e professores, com foco na pesquisa aplicada (itálicos nossos);
revalidação de títulos e diplomas estrangeiros por instituições públicas e privadas com alto desempenho, de acordo com os critérios do MEC (itálicos nossos);
facilitar o acesso e a promoção de disciplinas em plataformas online (itálicos nossos);
firmar parcerias com instituições privadas para promover publicações de periódicos fora do País;
possibilitar bolsas para estudantes atletas brasileiros em instituições estrangeiras.
Como se percebe em cada um dos seus eixos, materializa-se o caráter privatista e a desresponsabilização do Estado quanto ao financiamento público das IFES, por meio da indução de mecanismos de controle de gastos – sobretudo com relação ao pessoal, que, na concepção do Programa, deve ser contratado pelas OSs, sem vínculo com o órgão público – assim como pelo estabelecimento de indicadores de desempenho e adoção de políticas de governança que induzam a racionalização dos custos, seguindo a lógica do setor privado.
Além disso, o Future-se entende a relação com o setor produtivo de forma dissociada dos objetivos institucionais das IFES, que, pelo que se depreende do texto, ao captar os recursos, devem se adequar às demandas das empresas quanto à pesquisa e à inovação. Deste modo, o governo pré-estabelece o que seria a pesquisa de relevância social a ser desenvolvida pelas IFES, ou seja, aquelas que possuem aplicação direta e que atendam aos interesses do mercado.
Em função disso, o governo elege um tipo especifico de instituição como sendo o modelo preferencial a ser fomentado por meio do Future-se: as universidades empreendedoras e inovadoras, o que limita o desenho institucional e anula a diversidade do sistema. Conforme afirma João Carlos Salles, presidente da ANDIFES:
O Future-se parece preferir um tipo de universidade ou olhar unilateralmente para a universidade. Lembre-se de que é um programa de universidades inovadoras e empreendedoras, não é um programa para universidades. Ele qualifica que tipo de universidade se sentiria mais à vontade com esse programa: a que tem uma relação preferencial com o mercado, com pesquisas mais aplicadas, com a possibilidade de criar novas patentes e assim por diante (MEC, 2019).
Com isso, o cumprimento da função social da universidade em sua totalidade fica comprometido, entendendo-se que não apenas a produção de conhecimentos imediatamente aplicáveis, mas a transmissão e a preservação do patrimônio cultural, artístico e científico também estão entre as funções da universidade.
Conforme o Projeto apresentado pelo MEC, o Future-se será financiado por um fundo de investimentos, de direito privado, ou seja, administrado por uma instituição privada, e funcionará sob o regime de cotas. As universidades e institutos que aderirem ao Programa poderão captar recursos do fundo para financiarem seus projetos, que serão geridos pelas organizações sociais. O MEC anunciou, durante o lançamento do Programa, um aporte inicial de R$ 50 bilhões em patrimônio da União para o Fundo Future-se, podendo chegar a R$ 102,6 bi oriundos de incentivos fiscais, transferências patrimoniais e de fundos constitucionais.
O governo garante que continuará financiando o ensino superior federal e que não há risco de privatização das universidades e institutos federais com o Future-se. Entretanto, com os patamares cada vez mais baixos de recursos públicos destinados às instituições federais, que apresentam decréscimo desde 2014 (ANDIFES, 2017), acreditamos que aquelas que não aderirem ao Future-se, terão sua capacidade de funcionamento bastante limitada.
Ademais, questionamos o alcance das demais formas de financiamento privado como proposto no Programa, tendo em vista que, historicamente, os recursos públicos são a principal fonte de financiamento da universidade pública. Nesse caso, o movimento é contrário, pois o setor privado sempre se utilizou das verbas públicas, direta ou indiretamente, para financiar sua expansão. Nesse quesito “[...] parece excessivamente otimista a expectativa de que o setor privado aumente significativamente sua participação, seja em atividades conjuntas de pesquisa e inovação tecnológica, seja em doações filantrópicas [...]” (SCHWARTZMAN et al., 2019). Além disso, o setor produtivo, historicamente, não investe em pesquisa e desenvolvimento, com exceção de algumas poucas áreas, como a do petróleo e a agropecuária, que demandam pesquisa e desenvolvimento das próprias universidades em vez de manter departamentos próprios. Portanto, o Future-se institucionaliza e amplia essa prática.
Ainda de acordo com o MEC, a operacionalização do Future-se ocorrerá por meio de contratos de gestão10, firmados pela União e pela instituição de ensino com organizações sociais cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à cultura e estejam relacionadas às finalidades do Programa, com organizações já qualificadas pelo MEC e outros ministérios, “sem necessidade de chamamento público” (art. 3º.) As fundações de apoio, que já funcionam em grande parte das IFES, poderão ser qualificadas como organizações sociais, embora o texto seja lacônico em relação às fundações de apoio. A instituição de ensino pode viabilizar a instalação física da OS em suas dependências e ceder servidores de seu quadro efetivo para as OSs.
O Contrato de gestão firmado para a execução do Future-se deverá conter um Plano de Ação com vigência de quatro anos, contendo metas de desempenho, indicadores, prazos, sistemática de acompanhamento e avaliação de resultados, indicadores de qualidade e produtividade. Os parâmetros para tais indicadores não estão detalhados na proposta do Programa: “Ato do Ministro de Estado da Educação irá estabelecer metas e indicadores de governança para as IFES” (Art. 11).
Cabe ressaltar que, as organizações sociais serão responsáveis pela execução das políticas de ensino, pesquisa, extensão e gestão das IFES, além das atividades vinculadas aos eixos do Programa, assim como pela gestão dos recursos captados. Perguntamos em que nível ficará a já rebaixada autonomia das universidades quanto ao estabelecimento dessas políticas. Deste modo, depreendemos que o conceito de autonomia, implícito no Programa, se restringe à possibilidade de captação de recursos próprios, que serão gerenciados por instituições privadas e consiste, única e exclusivamente, em desresponsabilizar o Estado de garantir o efetivo financiamento das IFES e de transferir recursos públicos para a iniciativa privada.
Para justificar o modelo no qual se baseia o Programa, o MEC cita três experiências que considera como casos de sucesso na implementação de modelos semelhantes ao Future-se: a Universidade Federal de Lavras (Ufla), a Universidade Federal de Campina Grande e o Instituto Federal do Sul de Minas, que desenvolveram projetos próprios ou com parcerias com o setor privado, promovendo a geração de recursos próprios e a redução de custos11.
Não desconsiderando essas experiências de sucesso apresentadas, questionamos por que o governo não avaliou também as inúmeras experiências exitosas que ocorrem em todas as instituições federais que são financiadas pelo fundo público e geridas pelas próprias universidades e institutos, que geram retorno para a sociedade sob forma de conhecimentos, técnicas, produtos e serviços prestados à população e que se constituem patrimônio público.
Além disso, a minuta do programa apresentada pelo MEC propõe uma série de alterações no ordenamento jurídico brasileiro12 com vistas a viabilizar a proposta, tais como: a inclusão das entidades participantes do Future-se à Lei no. 10.973/2004, que dispõe sobre incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica em ambiente produtivo; a alteração da Lei no. 9.637/1998, que regula a atuação das OS, permitindo remuneração de seus conselheiros e diretores e a cessão de servidores públicos ao Future-se com ônus ao concessionário; Lei 9.394/1996, pelo rebaixamento dos critérios para o reconhecimento de “notório saber” a título de exigência para o exercício do magistério superior e pela flexibilização do processo de revalidação de diplomas por instituições privadas; alteração da lei no. 12.772/2016, que trata da carreira do magistério superior, passando a prever retribuição pecuniária para docentes com dedicação exclusiva oriunda de atividade científica desenvolvida por ele, numa quebra da isonomia funcional; isenções de impostos e contribuições para as organizações participantes do Future-se e deduções fiscais quanto a doações a projetos desenvolvidos no âmbito do Future-se, dentre outras alterações.
De acordo com Roberto Leher (2019), a abrangência das alterações no ordenamento jurídico proposto pelo Future-se “confirma que está em curso uma mudança substantiva no marco legal da educação superior” e que o conteúdo abrangente das alterações contrasta com a forma pela qual foi proposto, de forma unilateral pelo MEC, à revelia da discussão com as instituições envolvidas e suas representações, com a comunidade científica e com as organizações vinculadas à pesquisa e ao desenvolvimento no país.
3 O que há de novo no Future-se?
Como o próprio nome sugere, o Programa Future-se parece acenar com a ideia de ruptura com o passado, de integração das universidades e institutos a um futuro auspicioso, demarcado pela adesão à lógica empresarial, tornando sua gestão mais eficiente, moderna, produzindo conhecimentos e inovações, tornando-as empreendedoras. Nada mais nostálgico!
Há mais de duas décadas, o ideário neoliberal reafirma essas ideias. Na ótica dos reformadores atuais, o grande problema das instituições públicas reside na ineficiência de gestão. A questão não é a carência de recursos, o que falta para as IES é romper com as estruturas burocráticas arcaicas, com uma lógica protecionista que não favorece a competitividade nem a autonomia e não incentiva o mérito e a iniciativa individuais.
Muito das ideias constantes no PL também não são novidades, tal como se pode evidenciar no Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (1995) ou da EC no. 19/1998, que trata de modernizar as estruturas do Estado por meio de uma reforma administrativa que admite a privatização da gestão do público – através do conceito de publicização ou público não estatal13 - e introduz vários mecanismos presentes no arcabouço do PL.
Dentre estes mecanismos, destaca-se a figura do contrato de gestão, a ser celebrado com instituições que integram o núcleo não-exclusivo do Estado (como as Universidades e instituições de cunho científico) e instituições privadas que exercem atividades de interesse público (OSs), assim como as parcerias entre o setor empresarial e o setor público para a execução de políticas de natureza pública, ou seja, as políticas sociais.
A redução do entendimento acerca da autonomia universitária como autonomia financeira e não de gestão financeira, patrimonial, didática e científica, conforme se depreende do art. 207 da Constituição Federal de 1988, também não é novo e reedita o entendimento contido na PEC 370/1996, apresentada no governo Fernando Henrique Cardoso, já rechaçado anteriormente. Segundo Leher (2019), “O deslocamento ‘autonomia de gestão financeira’, previsto na CF, pela autonomia financeira, é inconstitucional e pretende refuncionalizar as universidades, substituindo o dever do Estado no desenvolvimento institucional de suas autarquias e fundações públicas”.
A tentativa de constituir as universidades em organizações (CHAUÍ, 2001), à imagem e semelhança das empresariais, também não é novidade. A própria reforma do aparelho de estado implementada a partir de 1995 induz essa lógica às IFES, que cada vez mais são submetidas a mecanismos de controle externo, alheios à natureza de sua função social, sendo cobradas a produzir resultados quantitativos e se tornarem mais e mais eficientes quanto ao trato com os recursos públicos, sem considerar a complexidade de suas funções, seu necessário caráter público e estatal e sua natureza gratuita e universal.
Entendemos que o espaço público não pode ser hegemonizado por interesses privados, sejam eles corporativos ou individuais, mas deve se guiar pelo interesse público. Muito menos pode se conduzir a partir da ideia de lucro, da geração de receitas pelo exercício de sua atividade. Por isso, defendemos a manutenção do seu financiamento pelo fundo público.
Essa premissa é fundamental para que a universidade possa produzir os conhecimentos necessários em todas as áreas e não apenas naquelas que podem, eventualmente, despertar o interesse empresarial e gerar produtos ou processos de aplicação imediata. Entretanto, conforme assevera Leher (2019), com o Future-se: “A mensagem é clara: afastem-se da pesquisa básica, da interpelação aos problemas lógicos e epistemológicos da ciência, abandonem a pesquisa histórico-social e toda pesquisa no campo artístico e cultural”.
Com o Future-se fica patente o interesse do governo em reduzir o caráter público da universidade e com isso conter seu processo de democratização, uma vez que a minuta do PL não trata de expansão de vagas e nem de condições para a garantia da permanência de estudantes de segmentos sociais vulneráveis, que necessitam de uma política de assistência estudantil sólida e contínua para que tenham chances de sucesso em seus estudos. Embora o governo dê ênfase aos elevados índices de insucesso acadêmico nas IFES, o Programa não faz alusão a formas de enfrentamento dessa questão.
O que sobra no Future-se é a ideia de que não devemos mais formar para o emprego, diante de um mercado de trabalho que se expande, cada vez mais, em direção ao trabalho informal (sem forma), no qual deverão ingressar a maioria dos jovens que adentram a universidade, mas formar empreendedores que, desde a graduação, sejam responsáveis por prover, a suas expensas, a própria sobrevivência, esgarçando qualquer tipo de solidariedade que sustente o pacto social. Do mesmo modo, esta passa a ser a lógica imposta ao trabalho docente na universidade. Para produzir, o pesquisador deve “vender” o seu produto no mercado, para que tenha possibilidades de arcar com o ônus de sua própria atividade. Segundo Roberto Leher (2019), o Future-se pretende profundas alterações na natureza do trabalho docente, pois “Instaura um ethos empreendedor que sinaliza benefícios para os que priorizarem as atividades de P&D e de serviços, indicando que esse é o caminho a seguir, especialmente aos jovens”.
Considerações finais
Sousa (2019), em pesquisa que discute a democratização do ensino superior experimentada durante o período de 2003 a 2012, momento em que o país foi administrado pelo Partido dos Trabalhadores, caracteriza esse processo de “democratização neoliberal”, tendo em vista que, não negando algumas premissas desse ideário para as Universidades, como reestruturação, flexibilização, eficiência, performatividade, dentre outras, conseguiu realizar um movimento significativo de ampliação da rede pública, correspondente a 75% das matrículas e de 40% no quantitativo de instituições (BRASIL, 2012; 2014).
Passados quase cinco anos do término do ciclo expansionista das IFES, que vem se esgotando a partir de 2014, quando se iniciam as sucessivas reduções e contingenciamentos orçamentários dessas instituições, em que já se percebe uma ligeira queda no número de ingressantes (LEHER, 2018), podemos afirmar que tais medidas não foram suficientes para consolidar um movimento de efetiva democratização do acesso ao ensino superior público, que, nas palavras de Silva e Veloso (2013), não contempla apenas o ingresso, mas a permanência e o sucesso, com qualidade.
Entendendo que a efetiva democratização da educação escolar tem como limite a própria organização do processo de trabalho, assim como a totalidade das relações sociais capitalistas, afirma-se que tal processo dificilmente será alcançado nos marcos da democracia liberal, que, no caso brasileiro, adquire traços de uma democracia restrita, “[...] visto que, em razão da lógica e dinâmica do sistema, os eventuais avanços na distribuição dos bens sociais serão sempre restringidos para quem não detém o capital” (SILVA; VELOSO, 2013, p. 732).
Contudo, é inegável admitir que alguns avanços democratizantes obtidos na última década no que se refere à expansão do acesso à educação superior contribuíram para a reconfiguração da correlação de forças em função dos interesses da maioria da população, mesmo que limitados pelas determinações materiais que se projetam sobre a educação, forjando a precarização e a hierarquização da oferta. Não obstante, quando comparados ao quadro geral de exclusão educacional da sociedade brasileira, esses tímidos avanços, tanto em termos quantitativos, quanto em termos de representatividade, se tornam, sem dúvida, significativos, ainda que insuficientes14.
A democratização refere-se aos avanços sociais que podem engendrar mudanças em direção à democracia em sentido pleno (SILVA; VELOSO, 2013). No entanto, podemos afirmar que, com todas as limitações na forma e no conteúdo, as políticas de expansão do acesso ao ensino superior implementadas nas duas últimas décadas contribuíram para expandir a universidade pública, ampliando o acesso a esse direito fundamental do cidadão e promovendo bases para o desenvolvimento regional e nacional mais autônomo.
Os ataques iminentes contidos no Future-se colocam no horizonte o desmonte das universidades públicas e do aparato de ciência e tecnologia brasileiro por meio de uma proposta privatista que reduz a função social da universidade e não compreende a especificidade do seu fazer, limitando toda a discussão aos custos e aos resultados imediatos que esta pode entregar à sociedade, buscando equipará-la às instituições privadas.
Não por acaso, tal proposta tem sido rechaçada pela maioria das IFES que realizaram consultas internas às suas respectivas comunidades em relação à adesão ao projeto, considerando-o mais negativo que positivo15, assim como o sindicato nacional dos docentes do ensino superior – ANDES-SN16 – que produziu parecer alertando sobre os riscos de adesão à proposta devido às suas inúmeras inconsistências e incertezas com relação a temas fundamentais contidos no PL (ANDES, 2019).
No presente contexto, desde a ascensão política da extrema direita, com a ruptura institucional de 2016, houve um estreitamento no que se refere ao alcance da democracia e uma série de direitos tem sido negligenciados, assim como um alargamento da perspectiva gerencialista no que se refere à gestão pública, que se reduz ao cálculo da eficiência e eficácia com o uso do dinheiro do contribuinte.
É certo que, em se tratando dos mecanismos da democracia liberal, seus efeitos sobre a democratização da sociedade serão sempre limitados, tendo em vista seu caráter formal e devido a sua vinculação com o modo de produção global da existência. Todavia, a restituição da democracia formal, seriamente abalada no contexto atual, é condição fundamental para que se construa uma democracia real17. Somente desta forma é possível pensar algum Futuro que, de fato inclua todos e preserve o direito à educação desta e das futuras gerações.