Introdução:
Este artigo foi produzido a partir dos resultados da investigação, realizada junto ao Grupo de Pesquisa: Relações entre o Público e o Privado na Educação (GPRPPE/UFRGS), que buscou caracterizar a atuação das principais entidades empresariais na educação pública na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela, no contexto mais recente.
Para a definição da amostra a ser analisada, ou seja, a escolha das organizações estudadas, tomou-se como referência o conjunto de investigações que vêm sendo realizadas pelo grupo de pesquisa e pesquisadores (as) parceiros (as) nos países supracitados. A partir desta identificação, procedeu-se à análise de documentos e publicações nos sítios eletrônicos das referidas organizações.
O pressuposto que rege o presente exame é que as relações entre o público e o privado se dão na esfera da ação no e do Estado, aqui entendido no seu sentido ampliado conforme a compreensão gramsciana, ou seja, a combinação da sociedade política (ou governo, em sentido estrito) que é o espaço da coerção e dominação e a sociedade civil, onde operam os aparelhos privados de hegemonia, por meio da direção e busca do consenso. (GRAMSCI, 2006).
Destarte, entendemos o processo de privatização não só como propriedade ou venda de serviços, mas, também como a ação de disputa do conteúdo das propostas e projetos, por parte do setor mercantil e a incorporação da lógica privada no interior do espaço estatal.
Trata-se, portanto, de um processo mais complexo e intrincado que envolve múltiplas formas de expressão e abarca não só aspectos do funcionamento, regulamentação e financiamento do setor privado, mas especialmente, a naturalização da diluição de limites entre interesses públicos e privados e a crescente entronização do mercado como referência universal de eficiência e qualidade.
Conforme descreve Ball, em artigo de 2004:
Nesta relação binária Estado/instituições privadas estão começando a se dissolver as fronteiras entre os campos sociais e econômicos, as quais se tornam cada vez mais porosas. [...] Existe uma multiplicação e uma efervescência do discurso sobre o “privado” e os “negócios” no setor público, articulado em especial por meio de noções como a de “parceria”. Hoje em dia, o governo quer estabelecer um “guichê único” (onestop shop), imparcial para negociar vínculos de patrocínio de vários milhões de libras inglesas, nos moldes americanos, entre grandes empresas e escolas Ainley (1999) chamou de “política da aprendizagem”, tornou-se o princípio motor e integrador (BALL, 2004, p. 1111).
Esta nova modalidade de gestão das políticas públicas passou a ser fortemente defendida pela chamada Terceira Via e pelos teóricos do neoliberalismo, como uma alternativa à suposta crise do Estado, postulando o mercado como parâmetro de qualidade e competência. (PERONI, 2016). Assim,
a antinomia público/privado foi substituída por um continuum de articulações e de parcerias comandadas segundo o chamado espírito empreendedor, anunciado como capaz de combater a burocracia, de reinventar o governo da coisa pública através da introdução de lógicas de mercado, da contratação, da competição entre fornecedores, da medição da performance, da escolha do consumidor, entre outras dimensões do chamado governo indireto. (LIMA, 2018, p.130)
No campo da educação, Ball e Youdell (2008) identificam a emergência de duas formas de privatização: a privatização exógena, quando os governos abrem o setor público para a participação do setor privado com a finalidade de exploração comercial e obtenção de lucro e a privatização endógena que consiste na importação de ideias e práticas do setor mercantil.
No caso da América Latina, o fenômeno da destinação de recursos públicos para a iniciativa privada remonta “às caravelas”, como nos lembra José Marcelino Pinto (2016), pois tanto no Brasil, como em boa parte da América espanhola, ocorreu a exploração do ensino pelas ordens religiosas, com subsídio estatal ou renúncia fiscal.
Contudo, mais recentemente, a atuação do setor empresarial passa a se destacar. Este setor educacional mercantil que, inicialmente, atuava majoritariamente como prestador de serviços a determinadas parcelas da elite que podem arcar com os custos das mensalidades escolares, vem gradativamente ampliando suas áreas de atuação, através das chamadas parcerias público-privadas.
Várias pesquisas têm apontado que a influência do setor privado na educação pública, nos países da região, tem ocorrido tanto do ponto de vista da execução, através da venda de serviços ou da gestão de escolas estatais, quanto através da direção - buscando influenciar os conteúdos da política educacional, dos projetos pedagógicos e também, da elaboração de leis e regulamentações (BORDOLLI; CONDE, 2020; CALDAS, 2019; MARTINIS, 2020; MARTINS, 2014; ORELLANA, 2018; PERONI, 2016, 2018; PERONI; CAETANO, 2015; PERONI; LIMA, 2020; VERGER; MOSCHETTI; FONTDEVILA, 2017; VIOR; RODRIGUEZ, 2012; VIOR, 2018).
Tem sido particularmente decisiva a atuação de institutos e fundações empresariais com enfoque na educação, seja a nível nacional, seja no âmbito regional (BERNARDI; ROSSI; UCZAK, 2014; CAETANO; RUIZ; SANTOS, 2020; CALDAS, 2016; CARA; 2019; FELDEBER; PUIGGROS; ROBERTSON; DUHALDE, 2018; FERRETI; RIBEIRO, 2017; MENDES; PERONI; 2020; PERONI; CAETANO, 2019; PERONI; OLIVEIRA, 2019).
Entendemos que ainda que existam as organizações ou fundações que atuem mais especificamente em uma esfera ou outra - na execução ou na disputa de direção- a combinação dos dois modos operativos compõe o arcabouço material da disputa de hegemonia do capital sobre os rumos da educação estatal.
A disputa de influência na educação pública
Vera Peroni (2018) sublinha que “as redefinições no papel do Estado reorganizam as fronteiras entre o público e o privado, materializando-se das mais diferentes formas na educação básica pública, com consequências para o processo de democratização para a educação.” (p.93)
Estas alterações nos papéis e funções do Estado respondem à correlação de forças estabelecida na contraposição de interesses de classe, que ocorre no terreno da estrutura material, conforme a compreensão marxiana:
Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. (MARX, 1977, p.9).
O Estado, como parte desta superestrutura, atua na mediação desta correlação de forças, da mesma forma como é afetado por esta disputa. Sendo assim, tanto a sociedade política como a sociedade civil são atravessadas por distintos projetos e interesses que buscarão alterar ou tensionar as estruturas de poder.
É no espaço da sociedade civil que os chamados aparelhos privados de hegemonia irão atuar buscando a direção política dentro e fora do Estado, conforme nos explica Gramsci:
Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. Estas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político (GRAMSCI, 2006, vol. 2, p. 20 e 21).
Um dos terrenos importantes deste embate tem sido, historicamente, a educação em geral e a escola pública em particular. E como nos alerta Rikowski:
A privatização na educação não é essencialmente sobre educação. Trata-se do desenvolvimento do capitalismo e do aprofundamento do domínio do capital em instituições específicas (escolas, faculdades, universidades etc.) na sociedade contemporânea (RIKOWSKI, 2017, p. 395).
A partir das investigações realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado na Educação (GPRPPE/UFRGS) foi possível destacar as organizações empresariais (institutos e fundações) com maior incidência na educação pública dos países investigados.
Nossa análise buscou identificar os temas e pautas defendidos por estes sujeitos coletivos na atuação junto à educação pública de cada país. Os dados foram obtidos diretamente dos sites/sítios eletrônicos das referidas entidades.
1. ARGENTINA:
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
Fundación Varkey | Organização sem fins lucrativos, sediada em Londres. | Melhoria dos resultados educacionais dos menos favorecidos, premiação docente, gestão da aprendizagem, inovação educacional, liderança e gestão. |
Enseña por Argentina | Organização sem fins lucrativos. Faz parte da rede Teach for All. | Inovação educacional, equidade, liderança, qualidade educacional em contextos de vulnerabilidade social, empreendedorismo, formação docente. |
Educar 2050 | Organização sem fins lucrativos. Integrante da REDUCA | Gestão de aprendizagem; formação de supervisores e diretores; liderança, melhoria de resultados educacionais (em linguagem e matemática). |
Observatorio Argentinos por la educación | Fundação de empresários nacionais e estrangeiros | Avaliação científica da política educacional, monitoramento de resultados. |
2. BOLIVIA:
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
Fundación Milenio | Entidade privada sem fins lucrativos. | Produção e disseminação do conhecimento nas áreas sociais; Tecnologia educacional; educação virtual. |
Fundación Emprender Futuro | Fundação associada às câmaras do comércio, indústria e de exportação. | Empreendedorismo, Tecnologia Educacional, Rede de empreendedores, Liderança, Gênero. |
Fundación Bolivia Digna | Organização não governamental sem fins lucrativos. Parceria com Escola La Salle. | Direitos das Crianças e Adolescentes, Apoio educativo. |
Enseña por Bolivia | Organização não governamental sem fins lucrativos. Faz parte da rede Teach for All. | Inovação educacional, equidade, liderança, qualidade educacional em contextos de vulnerabilidade social, empreendedorismo, formação docente. |
3. BRASIL:
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
Fundação Lemann | Instituto sem fins lucrativos/ Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). | Base Nacional Comum Curricular; Gestão Escolar; Gestão para a aprendizagem; Gestão de pessoas; Formação de gestores; Formação de lideranças. |
Instituto Positivo | Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) | Regimes de Colaboração; Arranjos de Desenvolvimento da Educação, Gestão educacional. |
Todos Pela Educação | Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Integrante da REDUCA. | Avaliação e diagnóstico da educação, Base Nacional Comum Curricular. Formação de professores, Alfabetização até oito anos de idade, ensino médio, gestão de redes. |
Instituto Ayrton Senna | Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) | Competências socioemocionais, educação integral, gestão educacional, avaliação. |
Instituto Unibanco | Fundação/Instituto empresarial | Gestão educacional, ensino médio, gestão de aprendizagem e avaliação educacional. |
4. CHILE:
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
Enseña Chile | Organização sem fins lucrativos. Rede de fundações empresariais. Faz parte da rede Teach for All. | Melhoria educacional em contexto de vulnerabilidade, formação de lideranças, formação de professores, gestão da aprendizagem. |
Elige Educar | Organização não governamental | Estimular estudantes de ensino médio a cursarem licenciaturas, valorização da imagem docente, inovação pedagógica. |
Educhile | Fundação sem fins lucrativos com subsídio público | Fortalecer as práticas pedagógicas; inovação pedagógica; avaliação por competências; habilidades socioemocionais, gestão educacional. |
Educación 2020 | Organização da sociedade civil. Integrante da REDUCA | Projetos de inovação educativa, Observatório de Política Pública, Articulação de redes. |
5. URUGUAI
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
ReachingU | Fundação empresarial sediada nos EUA. Integrante da REDUCA. | Fortalecimento de aprendizagens; formação de diretores e professores; gestão privada dos liceus públicos; educação socioemocional e empreendedorismo social, premiação docente. |
EDUY21: Cambio Educativo e Educación para el cambio | Associação civil sem fins lucrativos. | Empreendedorismo; autonomia organizacional; liderança e responsabilidade política, mudança de paradigmas educativos, curriculares, pedagógicos e docentes, gestão e avaliação de recursos humanos e centros educativos, desenvolvimento de sistemas de monitoramento e avaliação, vinculação do financiamento às novas estratégias educativas. |
6. VENEZUELA:
NOME | CARACTERIZAÇÃO | PAUTAS |
---|---|---|
Fundación Eugenio Mendoza | Instituição Privada sem fins lucrativos. | Educação financeira, empreendedorismo, desenvolvimento social, inovação educacional, educação ambiental. |
Fundación Bigot | Fundação empresarial | Melhorias das escolas, formação de docentes e estudantes na área cultural. |
CICE: Centro de Investigaciones culturales y educativas | Associação privada sem fins lucrativos | Pesquisa e assessoria a escolas públicas e privadas em projetos de melhoria escolar, inovação educacional, educação para a leitura, formação de diretores e professores, metodologia de planejamento e avaliação. |
Venezuela sin Límites | Instituição privada sem fins lucrativos. Atua em conjunto com a Fundação Fe y Alegria. Fundadora da Unidos en Red. | Fortalecer a rede de organizações não governamentais através de alianças estratégicas com o setor privado e foco no empreendedorismo |
Na análise dos quadros acima é possível perceber que, embora atuando em contextos e formas de organização educacional distintos, prevalece uma constância das justificativas declaradas pelas organizações em seus portais e sítios eletrônicos bem como, a coincidência de temas, pautas e propostas, com ênfase nas propostas focadas no empreendedorismo, nas habilidades socioemocionais, na gestão da aprendizagem e inovação educacional, no uso de tecnologias educacionais, na formação de gestores e docentes e na avaliação de resultados.
Estas temáticas operam o deslocamento da pauta da defesa da educação, como processo social e coletivo para a defesa da aprendizagem, entendida como processo individual e com foco nos indivíduos e na sua motivação.
Nas palavras de Daniel Cara (2019):
De forma hábil, esse campo de instituições e pessoas opera uma clara redução do direito à educação restringindo-o à aprendizagem. E essa é uma operação estratégica porque tanto o mantém inscrito na gramática dos direitos como também faz com que ele reivindique para si próprio a primazia (ou exclusividade) na realização de um objetivo primordial da educação: o aprendizado dos alunos. Porém, é preciso dizer que se trata de um aprendizado reduzido, despreocupado em formar integralmente mulheres e homens para serem sujeitos de sua própria história - como exige o campo do direito à educação. Ocorre que essa formação (ou bildung) é considerada “onerosa” para o mundo empresarial. Ela exige condições de oferta do ensino e profissionais da educação bem-remunerados, além de um currículo condizente. Ela é arriscada, pois demanda escolas e sistemas públicos de educação geridos democraticamente - e isso pode ser incontrolável. Dito de modo direto, a narrativa do direito à aprendizagem é uma forma alegórica de justificar uma posição aparentemente amena e altruísta na disputa pelo fundo público (CARA, 2019, p. 83).
Além da ação específica das organizações empresariais em cada país, observa-se também a articulação de redes com atuação transnacional. A principal delas é a REDUCA- Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil para a Educação, formada por organizações sociais/fundações empresariais com atuação na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e República Dominicana.
Segundo a apresentação, em sua página eletrônica:
A Reduca - Rede Latino-americana de Organizações da Sociedade Civil para a Educação - é formada por organizações sociais de 14 países latino-americanos que mantém o compromisso público e comum de participar ativamente e contribuir com seus governos para que toda e cada criança e jovem da região possa exercer plenamente o seu direito humano a uma educação inclusiva e de qualidade. Nossa visão é de que todas as crianças e jovens da América Latina e do Caribe devem ter acesso a uma educação que possibilite o pleno desenvolvimento de cada pessoa e de sua participação livre e construtiva na sociedade. A rede foi lançada com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Brasília, Brasil, no dia 16 de setembro de 2011, quando os países participantes assinaram a Declaração de Brasília, que estabeleceu a rede e seus objetivos. [...] A rede é um exercício livre e voluntário entre os seus membros para troca de experiências, para o desenvolvimento de projetos em conjunto e para a construção de uma voz de mobilização regional e de incidência em políticas públicas buscando propor soluções para os principais desafios educacionais de cada país (REDUCA, 2020, np.).
Outra rede que aparece com destaque em alguns países é a “Teach for All”, com ramificações na Argentina, no Chile e mais recentemente, na Bolívia. No Brasil, há registro de algumas experiências vinculadas a secretarias estaduais de educação (MOURA; NAJJAR; CARNEIRO, 2019, p. 450).
Trata-se de uma organização não governamental sediada nos Estados Unidos, fundada em 2007, pela mesma criadora do “Teach for América”, programa que tem como objetivo atrair egressos das melhores universidades para atuar nas escolas de regiões empobrecidas, de forma voluntária e temporária. A rede é assim descrita na página de uma de suas entidades associadas, na Bolívia:
‘Enseña por Bolivia’ faz parte da rede ' Teach For All ', uma organização global cuja visão é que “até 2040, comunidades em todas as partes do mundo garantirão acesso à educação para todos os seus filhos, apoiando e dando-lhes oportunidades que forjam um futuro melhor para eles e para todos nós. Essas comunidades estão inspirando e informando um movimento mundial para alcançar isso em todas as partes do planeta. " Hoje, 57 países fazem parte dessa rede e, por meio dela, mais de 90.000 líderes em todo o mundo trabalharam para transformar a educação de seus países e os sistemas que os sustentam (ENSEÑA POR BOLIVIA, 2020, np).
Coexistem, também, arranjos e articulações entre organizações empresariais diversas, seja por identificação de pautas comuns, seja por estratégia operacional.
É o caso do Todos pela Educação, no Brasil, que congrega 32 organizações empresariais. Estas organizações, em alguns momentos, atuam de forma conjunta e em outros possuem iniciativas específicas. Além disto, o Todos pela Educação é cofundador da REDUCA, rede latino-americana já mencionada.
Na Venezuela, a Fundación Venezuela sin Límites, depois de 13 anos de atuação no país, resolveu articular uma rede de iniciativas e organizações criando a “Unidos em Red”.
No Uruguai, a ReachingU, que também integra a REDUCA, foi criada por um grupo de empresários uruguaios que moram nos EUA. A organização se autodenomina, em seu sítio eletrônico: “a foundation for Uruguay”.
Na Argentina, o Observatorio Argentinos por la Educacion foi criado, em 2017, como uma fundação constituída de altos executivos de grandes empresas nacionais e estrangeiras com o objetivo de “promover ela evalución cientifica de la política educativa y el monitoreo de los compromissos assumidos por la gestiones actuales y futuras.” (FELDFEBER; PUIGGROS; ROBERTSON; DUHALDE, 2018, p.44).
E finalmente, a Fundación Varkey, que atua na Argentina, foi fundada em Londres e atua em diversos países e continentes. É vinculada à GEMS Education, uma empresa internacional de educação, que opera escolas e atua na área de consultoria em gestão educacional em diversos países e continentes. E com a criação do Global Teacher Prize - que é descrito no site da fundação como “um prêmio de US $ 1 milhão em dólares, apresentado anualmente a um professor excepcional que fez uma excelente contribuição para a profissão” - a área de atuação e abrangência ampliou para mais de 20 países.
Os dados descritos e analisados até aqui permitem identificar a materialidade da atuação empresarial junto ao Estado e à educação pública, definindo pautas, articulando projetos, disputando financiamento e especialmente, agregando influência política e teórica com impacto para o desenho das políticas educacionais e os projetos educativos.
A trajetória da atuação privada na educação pública e o impacto nas/das políticas públicas
Um estudo recente realizado na Universidade Autônoma de Barcelona, com apoio da Internacional de Educação, traçou uma importante cartografia das trajetórias e tendências das políticas de privatização educativa na América Latina.
Através da análise das taxas de escolarização, participação do setor público e privado e investimento na educação em cada país bem como, da revisão da literatura sobre os processos de privatização no contexto continental, que incluiu o exame de artigos acadêmicos e publicações da imprensa, além de informes de “atores chave”, os pesquisadores identificam as trajetórias diferenciais, no contexto histórico da região, a partir do exame de diferentes países. (VERGER; MOSCHETT; FONTDEVILA, 2017)
O caso mais destacado, seguramente, é o do Chile, em que a privatização aconteceu como parte de uma reforma estrutural do Estado mais profunda e com resultados relativamente permanentes. O país inicia a adoção de medidas de financiamento per capita, vouchers e descentralização administrativa, já nos 80, a partir do receituário das ideias neoliberais de Milton Friedman, sendo frequentemente citado como exemplo e “laboratório” das políticas privatizantes (COX, 2003; ORELLANA,2018).
Em outros lugares, prevalecem alianças público- privadas históricas, especialmente com os setores religiosos, com a emergência de outros setores privados não confessionais.
Na Argentina, foi ainda nos anos 40, durante o governo Perón, que ocorreu regulamentação do financiamento da educação dirigida a subsidiar as escolas religiosas, notadamente as ligadas à Igreja Católica, estatuto este que é mantido até os dias atuais (VIOR; RODRIGUEZ, 2012).
Já a Bolívia, que sempre contou com um sistema híbrido - onde coexistem escolas privadas, escolas conveniadas e escolas estatais, no período recente, apresentou um retrocesso na cobertura privada da educação, entre os anos 2000 e 2014, o que pode sinalizar uma trajetória de contenção da privatização, como decorrência provável do aumento do investimento público na educação (VERGER; MOSCHETT; FONTDEVILA, 2017, p.57).
Na Venezuela, embora não citada no referido estudo, as relações entre o Estado e a Igreja também matizaram, desde há muito tempo, históricas disputas em torno da regulação e do financiamento da educação nacional.
Dentre estes grupos, os setores católicos, agrupados na Associação Venezuela Cristiana (AVEC), mantiveram forte influência na oferta da educação privada e especialmente, a partir dos anos 80, passam a dividir o protagonismo com as instituições privadas seculares, conforme assinalam Ruiz e Socorro (2018):
El Estado se convierte en financista de la educacion privada oferecida por la instituciones vinculadas a la Iglesia agrupadas em la AVEC, bajo la coartada de la acción social de la Iglesia a través de la red de centros educativos “Fe Y Alegria”. [...] Em este período cobra fuerza la presencia em el ambito educativo de las instituciones escolares seglares, que entran em competência com la tradicion de los colegios privados confesionales (RUIZ; SOCORRO, 2018, p,73).
A pesquisa assinala ainda que no Brasil os processos de privatização recentes resultaram de mudanças mais graduais - comparativamente ao Chile, por exemplo- com um destaque importante para as ações em nível subnacional, que acabam por produzir mudanças cumulativas no sistema de “governança” da educação pública, a partir de arranjos de estados e municípios com os agentes privados. (PERONI, 2013; OLIVEIRA; 2015).
De outro lado, o sistema de financiamento da educação nacional permite, também, subsídios às escolas comunitárias, filantrópicas e sem fins lucrativos e mais recentemente, passou permitir o repasse de recursos públicos a instituições privadas lucrativas, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego -PRONATEC, instituído em 2011. (PINTO, 2016)
Dos países estudados, o Uruguai é onde, historicamente, o setor privado teve menor penetração. Ademais, tem uma larga tradição de laicidade. No entanto, nas últimas décadas, tem sido observado uma progressiva penetração do discurso em favor da agenda privatizadora, como forma de supostamente suprir ou corrigir a ação do Estado, especialmente aquela dirigida aos jovens de regiões mais empobrecidas. (VERGER; MOSCHETT; FONTDEVILA, 2017; MARTINIS, 2020).
É importante registrar que esta apologia do discurso pró-mercado coincide com a aprovação das chamadas “Donaciones Especiales”, no ano de 2007, inaugurando e incentivando um modelo de educação pública de gestão privada, conforme analisa Martinis (2020):
Esta modalidad habilita a empresas privadas a realizar donaciones a instituciones educativas, descontando hasta el 81,25% de lo donado a través de renúncias fiscales del Estado uruguayo. [...]Si bien, como ya se ha señalado, esta modalidad de financiamiento educativo involucra montos que son marginales dentro del conjunto de los recursos destinados a la educación en Uruguay, su relevancia ha sido fundamental para permitir el desarrollo de experiencias educativas organizadas por actores privados que se han propuesto poner en discusión la hegemonía de la educación pública. Particularmente, estas experiencias se han posicionado como alternativas frente a lo que se define como el fracaso de la educación en contextos de pobreza en nuestro país (MARTINIS, 2020, p.5).
Esta relação entre a atuação do setor privado e alteração dos marcos regulatórios da educação pública seguramente não é uma situação isolada, e demonstra concretamente como se desenrola a ação hegemônica dos grupos privados sobre e no interior do Estado, criando e modulando novas formas organizacionais e institucionais. A dialética entre estrutura e superestrutura ganha, aqui, contornos de nitidez e evidência.
Os limites deste artigo não permitem um aprofundamento das alterações normativas ocorridas em cada país e a relação com a emergência da ação das organizações empresariais no campo da educação pública, contudo, o gráfico e o quadro abaixo permitem visualizar a incidência temporal desta atuação na região analisada.
![](/img/revistas/jpe/v15//1981-1969-jpe-15-e80030-gf01.jpg)
Fonte: Elaboração de Iran Silva, a partir dos dados disponibilizados nos sítios eletrônicos das organizações.
Gráfico 1 Distribuição temporal da atuação das principais organizações empresariais na educação pública na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela.
Quadro 1 Data de início da atuação das principais organizações empresariais com atuação na educação pública na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela.
País | 0rganização | Início da atuação no país | |
---|---|---|---|
A 1 | Argentina | Educar 2050 | 2007 |
A 2 | Argentina | Enseña por Argentina | 2009 |
A 3 | Argentina | Fundación Varkey | 2016 |
A 4 | Argentina | Observatorio argentinos por la educación | 2017 |
B 1 | Bolívia | Fundación Milenio | 1990 |
B 2 | Bolívia | Fundación Empreender Futuro | 2013 |
B 3 | Bolívia | Fundación Bolivia Digna | 2014 |
B 4 | Bolívia | Enseña por Bolivia | 2020 |
BR1 | Brasil | Instituto Unibanco | 1982 |
BR2 | Brasil | Instituto Ayrton Senna | 1994 |
BR3 | Brasil | Fundação Lemann | 2002 |
BR 4 | Brasil | Todos pela Educação | 2006 |
BR5 | Brasil | Instituto Positivo | 2012 |
CH1 | Chile | Enseña Chile | 2007 |
CH2 | Chile | Educación 2020 | 2008 |
CH3 | Chile | Elige Educar | 2010 |
CH4 | Chile | Educhile | 2017 |
U 1 | Uruguai | ReachingU | 2001 |
U 2 | Uruguai | EDUY 21 | 2016 |
V 1 | Venezuela | Fundación Eugenio Mendoza | 1951 |
V 2 | Venezuela | Fundación Bigot | 1981 |
V 3 | Venezuela | CICE | 1986 |
V 4 | Venezuela | Venezuela sin limites | 1999 |
Fonte: Elaboração da autora, a partir dos dados disponibilizados nos sítios eletrônicos das organizações.
Como é possível observar, há dois períodos que concentram a maior parte do surgimento ou início da atuação das organizações estudadas, nos diversos países.
O primeiro no final dos anos 80 e início dos 90, que corresponde aos movimentos de reformas influenciadas pelas ideias neoliberais, com forte incentivo de organizações internacionais, especialmente, o Banco Mundial. É também o período da transição democrática, após o ciclo de ditaduras civil-militares na região, que contou com governos que, de modo geral, buscaram atender às demandas pela ampliação da escolarização da população.
O segundo que pode, eventualmente, ser subdividido em dois subperíodos, que inicia nos primeiros anos do século e se acentua na década seguinte. É também neste último ciclo que ocorre a articulação consistente das redes transnacionais. Temos aqui alguns marcos importantes e, mutuamente contraditórios, representados pela ascensão de governos progressistas, em um período marcado por crescimento econômico e imediatamente sucedido pela crise global de 2008.
Faz-se necessário examinar a especificidade de cada contexto local para que seja possível indicar conclusões mais precisas, inclusive com o cotejamento das mudanças nas políticas educacionais e no arcabouço normativo do Estado e das relações com os entes privados.
De toda forma, acredito que temos aqui um conjunto de dados que sinalizam possíveis movimentos e trajetórias da relação público-privado no campo educacional, neste período mais recente, e que ensejam novos estudos e aprofundamentos.
Considerações (quase) finais
Ainda que a participação do setor privado na área da educação não seja um evento novo, a privatização da educação e das políticas públicas constitui um fenômeno internacional de importância crescente, com uma forte incidência nos países da América Latina.
As últimas décadas foram marcadas pela proliferação de organizações ligadas ao campo privado mercantil, que buscam incidir na direção das políticas educacionais e na disputa do fundo público.
As propostas derivadas deste campo enfatizam a necessidade de alterações na gestão da política educacional, bem como na alteração do seu conteúdo das práticas pedagógicas, com ênfase nas propostas focadas no empreendedorismo, nas habilidades socioemocionais, na gestão da aprendizagem e inovação educacional, no uso de tecnologias educacionais, na formação de gestores e docentes e na avaliação de resultados.
Estas temáticas operam o deslocamento da pauta da defesa da educação, como processo social e coletivo para a defesa da aprendizagem, entendida como processo individual e com foco nos indivíduos e na sua motivação.
Por outro lado, é exatamente nos fundamentos mais gerais da concepção de sociedade e Estado que esta reorientação de formas e conteúdos defendida pelo campo empresarial se nutre, ainda que insistentemente seja apresentada como neutra e técnica.
O processo de reprodução do capitalismo torna necessária a formação para o exercício laboral (reprodução da força de trabalho) e a inculcação ideológica de valores de disciplinamento social.
Isto significa compreender que cada fase da acumulação capitalista ensejará um projeto educacional distinto, ligado à etapa de desenvolvimento histórico correspondente.
O auge do desenvolvimento das forças produtivas provocou a necessidade de ampliação da escolarização e formação técnica em algum nível para atender às demandas da industrialização e da urbanização.
De outro lado, as crises nos processos de acumulação irão paulatinamente reduzir a necessidade de formação de mão de obra, hipertrofiando a função de disciplinamento e conformidade social exercida pelo aparelho escolar, como forma de normalização da crise e internalização do sentimento de responsabilidade individual e resignação.
Compreender como se dá a atuação dos segmentos ligados ao mercado no campo educacional, portanto, torna-se fundamental para identificar como operam os processos de disputa material da hegemonia em torno de projetos de sociedade distintos, com consequências para a democratização da educação.