Introdução
Sonhos são inerentes aos seres humanos, mas transformá-los em planos ou projetos de vida já é outra história. Para Silva (2016), um dos fatores que pode impedir o jovem de transformar sonhos em planos de vida, em uma sociedade desigual, são suas condições socioeconômicas. Entretanto, há casos de jovens em situação de vulnerabilidade social que foram bem-sucedidos, conseguiram converter sonhos em planos de vida. Essa conversão é chamada de experiência-sonho-plano, ou seja, projeto de vida, no sentido de perspectiva, visto que as experiências de vida de um jovem são fontes de realização de sonhos, as quais não podem ser desprezadas ou descartadas (SILVA, 2016).
A escolaridade exerce grande influência nesta trajetória, uma vez que as pessoas sem o ensino médio estão mais suscetíveis ao desemprego (OCDE, 2020). Este cenário pode afetar as expectativas em relação à realização de planos para o futuro. A passagem pela escolarização e as experiências de vida até chegarem ao mundo do trabalho são fenômenos típicos da fase juvenil. O modo como tudo isso transcorre, tendo que conciliar trabalho e estudo se entrelaça nas relações com a escola, a família e o trabalho, carregando um significado importante para sua posição social na vida adulta (GUIMARÃES, 2018).
A relação educação e trabalho é indissociável, uma vez que a educação promove o conhecimento do ser integral, enquanto o trabalho é destacado por Saviani (2007) como parte da essência do homem, num processo histórico. A essência humana é um processo educativo, produzida pelo próprio indivíduo, à medida que aprende e produz a sua existência, por meio de sua história, da relação com os outros e o ambiente que o cerca. O autor salienta que trabalho e educação é uma relação de identidade. É por meio desta inter-relação que o sujeito se constrói, se forma, cria, recria, sonha, faz planos (SAVIANI, 2007). Quando os jovens expressam suas histórias, vêm à tona suas representações do passado e do presente, evidenciando a construção de uma identidade e a projeção seus objetivos para o futuro (JOVCHELOVITCH, 2008).
Muitos jovens, quando finalizam o Ensino Médio, relatam a falta de direcionamento e a sensação de se sentirem presos a uma vida que está fora do seu controle (DAMON, 2009). De acordo com a cultura freiriana, os jovens esperam ter reconhecimento como sujeitos participantes do processo de transformação do mundo (FREIRE, 1967). Mas só há sentido quando outros sujeitos participam, com as suas crenças e identidades, tendo como resultado o empoderamento político-social (OSOWSKY, 2019). Como sujeitos desejosos de transformar o mundo, há um encurtamento dos sonhos quando os jovens precisam interromper os estudos para trabalhar e sustentar a família ou perdem o interesse pela escola.
Assim, Silva (2016) afirma que os jovens de classes mais favorecidas, comparados aos jovens de classes menos favorecidas, têm mais condições de se inserirem no mercado de trabalho. Ressalva que as condições precárias dos jovens menos favorecidos têm como características sociais a baixa escolaridade, a falta de experiência e qualificação, como também a dificuldade de conciliar trabalho e estudo (MANDELLI et al, 2011).
Enquanto os jovens de classes menos favorecidas estão preparando-se para a inserção no mercado de trabalho depois da conclusão do ensino médio ou até mesmo sem essa formação básica, os jovens de classes mais favorecidas preparam-se para um curso universitário, realizando uma escolha que favorece a continuação de seu processo educativo formal em longo prazo, visando a sua inserção no mundo do trabalho com maior chance de desenvolver uma carreira (MANDELLI et al, 2011, p. 50).
Outro ponto relevante é a ausência e inadequação de políticas públicas de incentivo para melhor inserção dos jovens no mercado de trabalho, como também a falta de condições da família em manter o jovem sem a necessidade de trabalhar. São realidades que fazem o jovem permanecer desempregado (SILVA, 2015). Diante deste cenário, o autor salienta que esta geração, por ser a mais afetada pelas transformações no mundo do trabalho, necessita de políticas públicas para apoiar a inserção do jovem no mercado de trabalho.
Conforme dados da OCDE (2020), obtidos a partir de uma pesquisa online, realizada entre 7 e 20 de abril de 2020, com a participação de 90 organizações lideradas por jovens de 48 países, incluindo o Brasil, 31% dos jovens entre 18 e 24 anos nem estudavam nem trabalhavam, constituindo a chamada “geração nem-nem”. A razão disso fica evidenciada pelo fato de que esta geração é representada por jovens que realizam outros tipos de atividades produtivas e que continuam buscando o emprego formal. O nem estudar e nem trabalhar constituem obstáculos para que possam estudar, conseguir uma colocação no mercado de trabalho e ter planos para o futuro. Em outras palavras, não se pode atribuir a culpa ao próprio jovem por permanecer nessa condição (URT; ALMEIDA, 2020). Longe de estereótipos, muitos se dedicam a trabalhos domésticos, como cuidar da família ou dos negócios de suas famílias, estando ativos em suas funções, enquanto outros apresentam deficiências e estão impossibilitados de trabalhar e estudar (NOVELLA et al, 2018). Contribuem também para o dilema entre trabalhar ou estudar, a falta de acesso à educação, a impermanência na escola, o nível socioeconômico e outros pontos como paternidade precoce e ambiente familiar (NOVELLA et al, 2018).
Portanto, ter um projeto de vida é um direito de todos os jovens, sem distinção, não pode ser uma prerrogativa apenas para os jovens que estão mais preparados por terem condições de vida melhores. O projeto de vida para jovens em situação de vulnerabilidade social pode contribuir para a organização da própria vida, dá um direcionamento às ações diárias, dá energia para ir adiante, mesmo que leve um tempo maior para alcançar o que deseja, possibilita aprendizado por meio de diversos saberes, aumenta a autoestima, promove o empoderamento e dá significado à vida (DAMON, 2009).
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2020), em 2019 eram 47,2 milhões de jovens de 15 a 29 anos, representando 28% da população ativa acima de 15 anos. Em 2020, com a pandemia, houve um aumento de jovens desalentados por conta da escassez de oportunidades no mercado de trabalho. Um em cada seis jovens deixou de trabalhar desde o início da pandemia, o número de jovens desempregados chegou a 67,9 milhões. O desemprego foi um imperativo entre 2020 e 2021, o que gerou uma comoção mundial, afetando a estrutura socioemocional, familiar e econômica principalmente no que tange ao desemprego juvenil.
Reflexões sobre Representações Sociais
As representações sociais (RS) são construções coletivas e socialmente compartilhadas. Elas vinculam-se a processos sociais que envolvem mudanças na sociedade (MOSCOVICI, 2015). Conforme a literatura da área (MOSCOVICI, 2012; JODELET, 2001; SÁ, 1998), um fenômeno novo ou estranho - não familiar, na linguagem usual das representações sociais - gera conflitos, divergências e negociações, que aparecem devido à necessidade de apropriação do que é “novo” pelos grupos sociais.
As representações sociais são essencialmente uma teoria do senso comum, consensuado em um grupo. A veracidade desse conhecimento de senso comum é baseada em evidências plausíveis, pragmáticas, familiares e imediatamente assimiláveis.
Nesse sentido, as RS são compostas de informações, crenças, valores, atitudes de um grupo, organizadas em direção a um objeto social (um trabalho, um evento, um símbolo, uma ideia). Assim, as Representações Sociais são sempre de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito). No que diz respeito a esta pesquisa, o projeto de vida é o objeto representacional do grupo de estudantes.
Apesar de consensuadas no grupo, as RS não são nem estáticas, nem uniformes. Sendo um conhecimento de caráter prático, que circula na comunicação, elas são dinâmicas e evoluem em função das contínuas trocas sociais no grupo. Também não são uniformes, no sentido de se imporem de forma absoluta ao grupo. Há modulações nos conteúdos (crenças, atitudes etc.) e na sua organização que permitem alguma latitude aos membros do grupo. Há um substrato comum, que permite a comunicação sobre o objeto de representação, e um quadro geral no qual a dispersão de opiniões faz sentido.
As RS, de um modo geral, são guias para a ação. Elas limitam o universo de possibilidades dos membros do grupo.
Quando grupos específicos compartilham uma representação social, não significa que eles compartilham os conteúdos de significados daquela representação na sua íntegra e nem os concebe de maneira idêntica (MARKOVÁ, 2006).
Na apreensão de um objeto novo ou não familiar, as RS podem se organizar na forma de antinomias ou por oposição de thêmata (MOSCOVICI; VIGNAUX, 1994).
Os thêmata (forma plural de thêma) são grandes temas, ideias-força ou ideias-raiz, consideradas como categorias fundamentais do pensamento. A dinâmica dos thêmata vem de sua organização em oposições binárias (thêma - anti-thêma), como masculino/feminino ou teoria/prática. A operação por oposição é típica da forma de pensar: só pensamos em liberdade por oposição à ausência de liberdade.
Essas noções gerais vão organizando grandes temas ou categorias que servem como base para construções específicas de sentido. Isso evolui para objetos exemplares ou típicos, que vão construir o senso comum. Donde a utilidade do conceito de thêmata para estudar as RS.
De fato, como veremos na análise dos resultados, foi possível inferir, a partir das respostas dos estudantes, dois thêmata que parecem organizar as representações sociais sobre o objeto “projeto de vida”.
Uma teoria do senso comum
O conceito de representações sociais só pode ser compreendido a partir do conhecimento do senso comum. Os sujeitos já nascem em ambientes ricos em fenômenos simbólicos e culturais, aos quais são expostos por meio de suas experiências individuais. Esses fenômenos acontecem transversalmente acompanhados de nossas vivências, desde o nascimento, pelo pensamento social, as cerimônias coletivas, as práticas sociais e a linguagem, na propagação de informações passadas de geração em geração (MARKOVÁ, 2006).
O senso comum, como forma de conhecimento, está arraigado em nossas mentes de tal modo que naturalizamos esse conhecimento e deixamos de analisá-lo. Esse conhecimento é aceito como certeza, não havendo espaços para dúvidas. Moscovici (2015) complementa que o senso comum é um senso social, em outros termos, ele é socialmente estabelecido, é um fenômeno que se desenvolve com a circulação do conhecimento dentro da sociedade. Há aqui um processo de comunicação, um intercâmbio entre emissor e receptor no qual circulam o conhecimento oriundo do senso comum, as linguagens e a conversação falada (MOSCOVICI, 2015).
A tríade dialógica
Não existe o Eu, Ego, sem o Outro, Alter. De acordo com Marková (2006), o Ego e o Alter são gerados mutuamente pela comunicação simbólica, são interdependentes e, nesta ação, um complementa o outro com os seus próprios conhecimentos adquiridos ao longo de suas histórias de vida. Há nesta relação a existência de tensão, só há comunicação quando os envolvidos se juntam pela tensão, surgindo uma tríade dialógica conforme mostra a Figura 1 (MOSCOVICI, 2015).
Moscovici (2015) define essa tensão como uma força da mudança dialógica que é inerente na relação Alter-Ego, faz parte da natureza humana. Nessa relação dialógica há uma dinâmica onde perpassam diferentes conhecimentos sociais, os mais antigos são substituídos pelos novos conhecimentos. Nesse sentido, podemos fazer a relação sobre como o grupo influencia o sujeito e como este sujeito pensa e se comunica no mundo social e quais são os contextos em que estão inseridos.
Assim, podemos dizer que a tríade expressada por Moscovici na Figura 1 representa o Objeto que é o Projeto de Vida, o jovem enquanto ser individual e o jovem na sua relação com o outro e o contexto em que está inserido.
Metodologia e Coleta de Dados
O universo investigativo contou com a participação de 90 jovens oriundos de um programa de capacitação e inserção no mercado de trabalho, na faixa etária entre 18 e 24 anos, estudantes ou concluintes do ensino médio de instituições públicas. Foi utilizado como instrumento de coleta de dados um questionário elaborado por meio do serviço gratuito para criação de formulários online Google Forms. Este questionário era composto de perguntas fechadas relacionadas à trajetória de vida, inserção profissional e experiência com o primeiro emprego, e perguntas abertas relacionadas a projeto de vida: significado, importância e impactos causados pela pandemia em relação aos planos para o presente e o futuro. Foi criado um link do questionário, enviado através do aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas Whatsapp, que ficou disponível por 25 dias em ambiente virtual. Foram enviados 115 formulários, com adesão de 90 participantes.
Optou-se pelo questionário pela facilidade de acesso aos estudantes em momento de pandemia e pela possibilidade de identificar tendências comuns em populações maiores.
Os dados foram organizados com o auxílio do editor de planilhas Microsoft Excel. As perguntas fechadas geraram tabelas para as análises quantitativas; já as respostas abertas foram analisadas qualitativamente, seguindo três etapas: a primeira partiu da leitura direta pelos pesquisadores e análise das respostas; a segunda da frequência de frases e palavras identificadas nas respostas; e, na terceira fase, elaborou-se uma categorização das respostas conforme os temas desenvolvidos neste estudo, seguindo assim a metodologia de análise de conteúdo proposta por Bardin (2016). Para a interpretação dos dados obtidos, utilizou-se a Teoria das Representações Sociais de Moscovici (2015 [1961]) como referencial teórico.
Resultados da Pesquisa Quantitativa e Qualitativa
Os resultados da pesquisa quantitativa foram analisados e apresentados em duas tabelas. Já as análises qualitativas foram feitas por meio da categorização das respostas abertas, a partir da leitura direta pelos pesquisadores, e apresentadas em três tabelas. A interpretação dos dados obtidos foi feita utilizando-se a Teoria das Representações Sociais como referencial teórico, o que possibilitou, a partir dos discursos dos sujeitos, reflexões e análises sobre suas percepções, crenças e experiências. Como destaca Marková (2006, p. 204), “A tarefa do pesquisador é a de extrair as representações sociais destes discursos, práticas e conhecimentos do senso comum, usando procedimentos analíticos e conceitos teóricos.”
Análises Quantitativas
O que falam sobre Trajetória de Vida?
A Tabela 1 apresenta as respostas dos estudantes às questões sobre trajetória de vida e os atores que influenciam nessa trajetória.
Sim | Não | Tenho uma ideia, mas tenho medo de dar errado | Nunca pensei sobre isso | |
---|---|---|---|---|
1. Você sabe o que quer da vida? | 65,6% | 1% | 33,3% | 0 |
Família | Amigos | Escola, os professores | Trabalho, o(a) gestor(a) | |
2. Quem mais o influencia em suas decisões pessoais/profissionais? | 83,1% | 21,3% | 13,5% | 14,6% |
Ela me apoia e eu posso contar com ela. | Ela me apoia, mas eu não posso contar com ela | Ela não me apoia porque não sabe como fazer | Ela não me apoia porque não quer apoiar. | |
3. A família tem um significado importante na sua vida? | 78,9% | 15,6% | 4,4% | 1% |
Eles me apoiam e eu posso contar com eles | Eles me apoiam, mas eu não posso contar com eles | Eles não me apoiam porque não sabem como fazer. | Eles não me apoiam porque não querem apoiar. | |
4. Os amigos têm um significado importante na sua vida? | 64,4% | 32,2% | 2,2% | 1% |
A escola é a minha referência de vida. | A escola é um local que vou apenas para estudar. | A escola é um local que vou para encontrar amigos e estudar. | A escola não tem significado para a minha vida. | |
5. A escola tem um significado na sua vida? | 42,7% | 20,2% | 33,7% | 3,4% |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
No primeiro item, sobre “o que o jovem quer da vida”, 65,6% afirmam que já se decidiram e sabem o que querem, enquanto apenas 1% não sabe ainda o que deseja. Note-se que um terço dos jovens já têm uma ideia do que quer, mas se preocupam (“têm medo”) de o resultado dar errado. Embora o contexto do questionário refira-se fundamentalmente a um futuro profissional, as respostas apontam para uma construção avançada de saberes sobre si mesmo e sobre o mundo em que se está situado (JOVCHELOVITCH, 2008).
O segundo item investiga as influências dos “outros significativos” - no sentido de Mead (MIRANDA; PLACCO; REZENDE, 2018), e mais de uma resposta foi admitida. A família está em primeiro lugar no que se refere à influência nas decisões pessoais e profissionais, os amigos vêm em seguida, os gestores no ambiente de trabalho estão em terceiro lugar e, por último, os professores. Como será visto mais adiante no questionário, os estudantes afirmam que a escola tem grande significado em suas vidas, mas a influência direta em decisões pessoais/profissionais aparece muito diminuída, na percepção dos estudantes. Não há, necessariamente, contradição aqui. Na visão dos estudantes, o significado da escola pode ter um caráter mais amplo e difuso, de formação de base, sem obrigatoriamente influenciar de forma direta em suas escolhas.
No terceiro item, sobre o significado da família para o jovem, 78,9% recebem apoio da família, enquanto 15,6% dizem que a família apoia, mas não pode contar com ela; 4,4% entendem que a família não apoia por não saber como fazer. Essa é uma constatação importante. Embora, em muitas circunstâncias, a rebeldia apareça como marca típica da adolescência - contra a família, a escola, o “sistema” - as respostas apresentadas apontam no sentido contrário.
As respostas, neste caso, devem ser entendidas no sentido dos projetos de vida e perspectivas futuras. Isso porque é necessário considerar o chamado “efeito halo” produzido pelo questionário, ou seja, a possibilidade de que a avaliação de um item possa influenciar a concepção do respondente na análise das demais questões (VIZZOTTO; MACKEDANZ, 2020). Assim, as explicações iniciais e as primeiras perguntas informam os sujeitos sobre os objetivos do questionário, orientando as respostas para o tema proposto. É com essa perspectiva que os sujeitos consideram significativo o apoio familiar. Esse mesmo viés deve ser considerado nas respostas aos itens seguintes.
No quarto item, o apoio dos amigos é considerado um fator relevante: 64,4% afirmam que os amigos apoiam e pode-se contar com eles, ainda que perto de um terço dos sujeitos afirmem que os amigos apoiam, mas não se pode contar com eles. Família e amigos, para a temática em questão, exercem grande influência no público jovem e representam fontes de apoio e alento.
A percepção do significado da escola compõe o quinto item. Para 42,7% dos entrevistados ela é referência de vida. Para 33,7% é um local de encontro com os amigos e para estudar. Cerca de um quinto dos jovens (20,2%) percebe a escola como um local apenas para estudar e 3,4% não veem nela significado nenhum.
A escola, como espaço sociocultural, tem uma dupla dimensão. Ao mesmo tempo em que é instituída por um conjunto de normas e regras é, também, uma complexa trama de relações sociais onde os sujeitos estabelecem alianças, impõem estratégias individuais e coletivas, criam conflitos e acordos em um processo de apropriação dos espaços e pertencimento nos grupos e na busca de identidades (DAYRELL, 2009). É um espaço privilegiado de socialização secundária (BERGER; LUCKMANN, 2003) e, assim, guarda grande potencial de influência sobre os jovens.
Análises Quantitativas
O que falam sobre Inserção Profissional?
O Ensino médio é uma fase que intensifica o percurso de inserção profissional, principalmente a forma como os jovens lidam com o trabalho e o futuro, a experiência do primeiro emprego e o posicionamento diante das exigências do mercado de trabalho. Dib e Castro (2010) advertem que tensões, dúvidas, inquietações e questionamentos perpassam essa experiência e colidem com o início da vida profissional.
O desemprego, as dificuldades no acesso ao mercado de trabalho e, especialmente, ao primeiro emprego, vão atingir todos os jovens, de formas e intensidades diferentes, acarretando variadas modalidades de exclusão e vulnerabilidade, conforme as diferenças que os sujeitos apresentem quanto a gênero, raça, nível de instrução, localização geográfica e classe social (DIB; CASTRO, 2010, p. 4-5).
Os jovens de estratos mais pobres são os mais afetados pela situação de desemprego e pelas transformações no mercado de trabalho, principalmente com o advento da pandemia. Os impactos gerados no que se refere à educação e ao trabalho têm afetado principalmente os jovens de baixa renda, com baixa qualificação, para inserção no mercado de trabalho (PEDROSO, 2020).
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020) mostram que a taxa de desemprego dos jovens de 14 a 17 anos atingiu 47,7%, enquanto na faixa etária entre 18 e 24 anos foi de 29,8%. De acordo com essas informações, a falta de experiência é um dos fatores que impede os jovens a ocuparem uma vaga no mercado de trabalho.
A Tabela 2 mostra o quanto é significativo para os jovens a entrada no mercado de trabalho. O primeiro emprego é visto como forma de aprendizado e desenvolvimento por mais de dois terços dos jovens (68,9%), 21,1% acreditam que ele contribuiu para aquisição de maturidade e 7,8% veem o primeiro emprego como orientação para o futuro e para o que desejam da vida. Apenas 2% tiveram, no primeiro emprego, uma experiência frustrante.
O primeiro emprego me deu a oportunidade de aprender bastante. | O primeiro emprego foi uma experiência que não acrescentou em nada. | O primeiro emprego me despertou para o que eu queria da vida. | O primeiro emprego me ajudou a ter mais maturidade. | |
---|---|---|---|---|
1. O primeiro emprego teve significado em sua vida? | 68,9% | 2% | 7,8% | 21,1% |
Mostrou que é possível seguir a carreira que pretendo escolher. | Ajudou a saber o que eu quero da vida. | Aumentou as minhas chances de conseguir um emprego melhor. | Não influenciou na minha decisão sobre o que eu quero da vida. | |
2. O Programa de Capacitação melhorou a sua vida? | 32,2% | 31,1% | 13,5% | 14,6% |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Essa forte identificação com o primeiro emprego, como experiência marcante de vida e de aprendizado (inclusive para aqueles que com ele se frustraram), aponta para elementos de uma construção identitária e representacional sobre o trabalho e a profissão. O primeiro emprego vai representar a primeira transição, que a tradição do interacionismo simbólico chama de “passagem através do espelho”. É o momento da imersão na cultura profissional. Passa-se a conhecer “de dentro” a natureza das tarefas e as possibilidades e perspectivas da carreira (DUBAR, 2005; OLIVEIRA, 2006).
Quanto ao programa de capacitação, os sujeitos o identificaram como uma fonte de orientação para a inserção profissional, além de contribuir na tomada de decisão sobre o que se deseja da vida. A opção “Possibilidade de seguir na carreira de escolha” foi selecionada por um terço dos jovens, enquanto uma fração praticamente equivalente - 31,1% - percebeu o programa de capacitação como um auxílio na definição do futuro (“saber o que deseja da vida”). Para 13,5% dos jovens, o programa ampliou as chances de conseguir um emprego, o que é a característica e o objetivo básicos do programa. Finalmente, 14,6% dos sujeitos indicaram que o programa de capacitação não influenciou na decisão sobre o que eles querem da vida.
É interessante notar que a maior parte dos sujeitos se referiu ao programa de capacitação não por seu objetivo fundamental - capacitar para o trabalho -, mas por sua orientação na profissão futura. O programa de capacitação denota uma visão idealizada de que a educação vai permitir uma melhoria futura de ascensão social e perspectiva de um futuro melhor (SOUZA, 2018). A “Possibilidade de seguir na carreira de escolha” expressa o pensamento em relação ao futuro, reforça a ideia de realizar o sonho com o intuito de trazer estabilidade profissional em um campo de possibilidades.
Com base nos dados apresentados, pode-se afirmar que os jovens de baixa renda, no contexto pandêmico, enfrentam desafios relacionados tanto no campo da educação como no trabalho. O direito à educação ficou demasiadamente distante em relação aos grupos mais vulneráveis durante a Covid-19 devido à desigualdade de oportunidades. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2021), a falta de conectividade e equipamentos foi um fator importante para que o jovem abdicasse das aulas remotas, do mesmo modo que houve a necessidade de trabalhar para o sustento da família. Dessa forma, a falta de empregos diminuiu a possibilidade de o jovem se inserir no mercado de trabalho e se qualificar profissionalmente.
Análises Qualitativas
O que falam sobre Projetos de Vida?
As análises qualitativas foram feitas com base em três perguntas abertas, apresentadas em tabelas por meio de codificações A/B/C (um código para cada pergunta). Suas respectivas respostas foram categorizadas em temas específicos e a frequência com que apareceram no questionário é apresentada também em forma de percentual.
Chamaremos essas categorizações de temas. Esses temas identificados correspondem a elementos da representação social do projeto de vida dos jovens, sugerindo também as dimensões nas quais se organiza essa RS.
Para a primeira questão aberta - sobre a definição do projeto de vida - foram identificadas 122 citações, conforme apresentado na Tabela 3.
Codificações | Quant. | % |
---|---|---|
Planos/Escolhas para o futuro | 47 | 39% |
Planejar/Atingir metas | 27 | 22% |
Sonhos para alcançar | 17 | 14% |
Realização pessoal e profissional (trabalho, família) | 15 | 12% |
Objetivo de vida | 9 | 7% |
Essencial/Importante | 5 | 4% |
Guerra diária | 1 | 1% |
Responsabilidade | 1 | 1% |
Total de Citações | 122 | 100% |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Os temas mais frequentes foram “planos e escolhas para o futuro”, que apareceu 47 vezes, e “planejar e atingir metas”, com uma frequência de 27 vezes, correspondendo esses dois temas a mais de 60% das menções para esse quesito.
A ideia de projeto de vida remete, portanto, a “planos e escolhas para o futuro” e a “planejar e atingir metas”, ou seja, em realizar algo na vida. Abre possibilidades para realizações no campo pessoal e profissional, ainda que tudo vá depender do contexto em que este jovem está inserido, e de suas condições socioeconômicas. A dimensão temporal está fortemente presente.
[...] o projeto possui uma dinâmica própria, transformando-se na medida do amadurecimento dos próprios jovens e/ou mudanças no seu campo de possibilidades. Eles nascem e ganham consistência em relação às situações presentes, mas implicando, de alguma forma, uma relação com o passado e o futuro (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p.1072).
De fato, ao definirem projeto de vida, os jovens referem-se a uma determinada relação com o tempo, em especial ao futuro e às formas como encaram essa realidade. Ao se trabalhar com a memória do sujeito, busca-se construir um olhar no tempo e sobre o tempo, referente ao presente, passado e futuro. Memória do sujeito narrador, a qual permite reflexão e autorreflexão sobre as experiências vividas tais como: lugares, pessoas, família, escola e outras (SOUZA, 2006).
Subsidiariamente, os jovens também relacionam o projeto a “sonhos para alcançar”, “objetivo de vida”, “essencial/importante”. O tempo futuro diante das incertezas, transformado em sonhos, algo distante, porém essencial e importante para a vida. Apesar de muito pouco mencionada (apenas 1% das menções), os projetos de vida aparecem elaborados através da metáfora “guerra diária”, expressão arraigada ao senso comum.
Essa “guerra diária” pode estar relacionada às dificuldades que os jovens enfrentam em seu meio social, em razão de muitos precisarem ingressar precocemente no mercado de trabalho para o sustento da família, ou devido à necessidade de conciliar trabalho e estudo, ou ao surgimento de uma gravidez indesejada, que se apresentam e impedem que trilhem o seu percurso profissional (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011). Esses aspectos da “guerra diária” estão colocados nos vários tópicos apontados pelos sujeitos. De fato, a realização de projetos futuros nunca é concebida como dada, mas como algo pelo qual se trabalha. A Tabela 4, analisada a seguir, reforça essa conclusão, assim como a análise das dificuldades impostas pela pandemia apresentadas mais adiante na Tabela 5.
Na Tabela 4, sobre a importância de construir projetos de vida, foram identificadas 109 citações. A construção de projetos de vida ganha importância na medida em que dá “direcionamento para a jornada da vida”, permite “planejar/atingir metas e ter controle sobre a vida” e auxilia a “organizar/executar planos”. Esses três temas correspondem a 60% das respostas.
Codificações | Quant. | % |
---|---|---|
Direcionamento para jornada da vida | 23 | 21% |
Planejar/Atingir metas e ter maior controle da vida | 23 | 21% |
Organização/Execução dos planos | 20 | 18% |
Buscar/Lutar por um futuro melhor | 16 | 15% |
Objetivo/Decisão de vida | 12 | 11% |
Realização pessoal e profissional (trabalho, família) | 4 | 4% |
Sonhos para alcançar | 4 | 4% |
Essencial/Importante | 3 | 3% |
Maturidade/Ser melhor/Motivador | 2 | 2% |
Frustação | 2 | 2% |
Total de Citações | 109 | 100% |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
Aqui também a dimensão temporal se apresenta. Relaciona-se, nos três temas, ao futuro, mas com amplitudes distintas. O “direcionamento para a jornada da vida” sugere um horizonte mais distante, enquanto os dois outros temas parecem temporalmente mais próximos.
Um segundo ponto que emerge das respostas é a questão do “controle da vida”, ao qual pode ser associado o tema “decisão de vida”, ainda que menos mencionado. Por oposição, aparecem os temas “sonhos para alcançar” e “realização pessoal e profissional”, mesmo que com baixa presença numérica (4% cada tema). Uma tensão essencial emancipação/controle parece se mostrar aqui. Ainda que o polo controle se mostre numericamente predominante, a questão do sonho, do devir, da realização - polo que chamamos de emancipação - se manifesta por oposição e cria uma tensão que pode estar na raiz da organização da representação social do projeto de vida. Essa tensão dialógica pode ser resultado da situação em que o jovem se depara, quando deve escolher entre alternativas conflitantes ou entre seus objetivos/sonhos e os obstáculos apresentados pelo ambiente (MARKOVÁ, 2006). Tem-se, então, aqui representada a tríade dialógica, proposta por Moscovici (2015), onde o jovem (Ego) se vê diante do seu Objeto de representação (Projeto de Vida), enfrentando os obstáculos do contexto onde está inserido (Alter).
Os demais temas presentes nessa codificação complementam essas duas ideias. “Lutar por um futuro melhor”, “ser melhor”, expressões usuais do senso comum, revelam no jovem a necessidade de ter uma qualidade de vida melhor e oferecer melhores condições aos seus familiares, já que estes têm um grande significado em suas vidas e exercem influência positiva em suas decisões de futuro, conforme constatam Leão, Dayrell e Reis (2011). A “frustração” se apresenta como uma barreira a ser contornada na concretização dos sonhos, que remete a respostas como “medo de dar errado”, encontradas nas questões fechadas do questionário.
Assim, constata-se o esforço desses jovens em elaborar planos para lidar com as suas incertezas, e com os limites que se apresentam em suas vidas pelas desigualdades sociais existentes (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011).
Finalmente, a Tabela 5 apresenta os resultados sobre os desafios que a pandemia trouxe na realização dos sonhos. Os depoimentos destes jovens indicaram que o momento da Covid-19 trouxe a “adaptação à nova realidade” e o “atraso na aprendizagem/estudo”, com os maiores percentuais 26% e 21% respectivamente.
Codificações | Quant. | % |
---|---|---|
Adaptação à nova realidade | 30 | 26% |
Atraso no processo de aprendizagem/estudo | 24 | 21% |
Frustação profissional/pessoal/emocional | 21 | 18% |
Motivação de crescer/estudar/aprender | 16 | 14% |
Sem alteração de planos/sonhos | 15 | 13% |
Problema de empregabilidade | 5 | 4% |
Dificuldade financeira | 2 | 2% |
Execução do planejado/ Não execução de projetos novos | 1 | 1% |
Total de Citações | 114 | 100% |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2022).
O longo período pandêmico, afetou o jovem no que diz respeito à sua carreira profissional. Este foi excluído do mercado de trabalho, e com isto, teve perdas significativas em relação à educação e à qualificação profissional. De acordo com a OCDE (2020), durante a Covid-19, os jovens se defrontaram com uma variedade de adversidades, que levaram ao surgimento de uma Lockdown Generation (Geração do Isolamento, em tradução livre), ou seja, houve o risco de os jovens serem prejudicados ao longo de sua vida profissional e desperdiçarem os talentos que possuem, devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho. Por serem grupos desproporcionalmente vulneráveis, esta situação agravou as desigualdades existentes (OCDE, 2020).
O cenário frágil e incerto da pandemia revelou e nos faz repensar sobre como o conhecimento e a aprendizagem são imprescindíveis na formação dos sujeitos, principalmente quando se trata da educação e do trabalho juvenil no contexto da pobreza e exclusão social. Dessa forma, é necessário rever as políticas sociais existentes no Brasil, para a diminuição das desigualdades sociais (UNESCO, 2020).
Diante deste contexto de incertezas, surgem as antinomias. Por exemplo, ao perceberem o objeto “projeto de vida” os jovens captam como plano de fundo outros temas como “frustração/motivação”, execução do planejado/não execução do planejado”. Eis aqui os dois Thêmata que parecem organizar as representações sociais sobre o objeto “projeto de vida”. Para Marková (2006), a capacidade de fazer distinções é fundamental para o pensamento e para a comunicação por meio dos processos de perceber, pensar, saber, sentir e expressar significados.
Considerações finais
Ao analisarmos as representações sociais de projeto de vida, elaboradas por jovens em formação profissional, foi possível perceber que a entrada para o mercado de trabalho possibilitou aprendizado, desenvolvimento, maturidade, orientação para o futuro e realização de vida. Apesar dessa experiência marcante na vida dos jovens, ser uma experiência frustrante, nessa primeira transição se busca uma construção identitária e representacional do trabalho.
Quanto ao programa de capacitação, os jovens identificam como uma fonte de orientação para a inserção profissional, como uma possibilidade de seguir na carreira de escolha, como um auxílio na definição do futuro. Já para alguns, o programa de capacitação não influenciou na decisão sobre o que querem da vida.
O significado de projetos de vida apresenta-se como uma dimensão temporal, remetendo-se ao futuro, como o direcionamento para a jornada da vida, o qual sugere um horizonte mais distante. Temas como lutar por um futuro melhor, ser melhor, expressões usuais do senso comum, revelam a necessidade de ter uma vida melhor para si e seus familiares. A busca da concretização dos sonhos pode não dar certo e isso se apresenta como uma frustração, uma barreira a ser contornada.
Em um contexto repleto de incertezas, surgem as antinomias frustração/motivação, execução do planejado/não execução do planejado, dois Thêmata que parecem organizar as representações sociais sobre o objeto “projeto de vida. Distinções fundamentais para os processos de perceber, pensar, saber, sentir e expressar significados.
Por fim, os projetos de vida foram adiados devido ao momento da Covid-19, afetou o jovem no que diz respeito à sua carreira profissional, sendo excluído do mercado de trabalho, e com isto, teve perdas significativas em relação à educação e à qualificação profissional. Assim, houve uma mudança de perspectiva, adaptação à nova realidade, transformações que provocaram um atraso na aprendizagem e nos estudos. Este cenário nos faz refletir sobre a importância do conhecimento e da aprendizagem na formação dos sujeitos enquanto cidadãos.
No contexto das políticas públicas destinadas à juventude, apesar do investimento e da expansão, há muito o que se fazer, é necessário revigorar as que já existem, criar novas políticas para que o jovem se emancipe, tenha seus direitos garantidos de acordo com as suas necessidades básicas. É preciso também reintegrá-lo ao processo educacional e profissional para que possa melhorar sua condição de vida e perspectiva de futuro.