Introdução
Este artigo é fruto de pesquisa1 que buscou investigar as articulações discursivas produzidas por variados sujeitos que disputam hegemonia em torno da formação docente na definição das políticas curriculares para a Educação Infantil. O recorte temporal da pesquisa focalizou o período compreendido entre 2009 e 2019, circunscrevendo respectivamente o contexto de produção das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI e da Base Nacional Comum Curricular - BNCC/EI.
A partir de aportes teóricos estratégicos da Teoria Política do Discurso, do filósofo argentino Ernesto Laclau e da cientista política Chantal Mouffe, no presente artigo, operamos com os jogos de linguagem que disputaram os sentidos de profissionalidade docente construídos nas lutas políticas em torno da DCNEI e da BNCC/EI.
Os debates acerca das formas de profissionalidade da professora de Educação Infantil e do caráter de sua formação profissional intensificaram-se no Brasil a partir de sua inclusão como primeira etapa da Educação Básica com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), aprovada em 1996. Dessa forma, as instituições encarregadas da educação e do cuidado dessa infância passaram a ser objeto de maiores atenções e regulações por parte do Estado, bem como o tipo de pedagogia e a formação dessas profissionais tornaram-se alvo de disputas por grupos de especialistas e organismos que lutam por ampliar sua influência nas definições oficiais acerca dessas questões.
Na medida em que a profissionalidade da professora de Educação Infantil tem estado predominantemente associada pelos debates do campo a um (ou alguns) dos significados que implicam os termos cuidadora, professora, professora-cuidadora, as políticas produzidas para regular essa docência estabelecem uma norma, uma trajetória desejável, uma série de condições que caracterizam a profissional docente de creche e pré-escola. Assim, uma dispersão de discursos, práticas, trajetórias, experiências disputam uma perspectiva de formação.
Ainda que os processos de fixidez identitária pareçam postos desde sempre, eles são construções enunciativas que estabelecem sentidos. É justamente nessa tentativa de estabilização de sentidos que a política opera. Conforme Mouffe (1996), a política engloba dimensões do antagonismo político imanente a toda sociedade humana e é construída por relações de múltiplos contextos. Por essas lentes, as políticas de currículo não são vistas como produções de uma hierarquia verticalizada, mas como relações de forças que produzem sentidos ambivalentes, à medida que circulam inúmeros discursos e textos que são ressignificados em diferentes contextos.
Assumindo a radicalidade e a heterogeneidade social, conforme a teoria laclauniana-mouffeana, afirmamos o caráter indeterminado, precário e contingencial dos processos hegemônicos. Partindo disso, argumentamos que não existe fundamento absoluto que sustente qualquer identidade para a profissional de Educação Infantil. Os processos de subjetivação que a constituem são traduções operadas por disputas de sentidos através de atos de poder, os quais não são absolutos. Ao contrário, são sempre afetados por outras possibilidades, antagonismos, que assumem certas configurações e se apresentam para fixar determinados sentidos.
O foco deste estudo está nos processos de identificação/subjetivação sobre os modos de ser e de fazer a docência de Educação Infantil. Investigamos como certas noções que integram a tradição do campo da Educação Infantil e da formação de professores, e que tensionam as formações discursivas, reconfiguram-se para facilitar ou dificultar/bloquear determinados discursos na disputa por sentidos dessa docência. Para nós, essa é a condição política das articulações discursivas, não existindo quaisquer atos de significação que sejam necessários em si mesmos, pois são sempre marcados pela contingência (LACLAU, 1990, 2011). Assim, privilegiamos as articulações discursivas produzidas pela comunidade epistêmica que disputa hegemonia em torno da formação docente para a Educação Infantil. Fazemos esse movimento analisando os textos da DCNEI e da BNCC/EI, ambas entendidas como representações de uma política que tenta regular e normatizar o currículo da Educação Infantil, agregando demandas curriculares distintas em torno da formação docente para atuar nessa etapa educacional.
A análise das demandas curriculares que disputam a formação dessas professoras considerou também a comunidade epistêmica constituída por produtores de documentos que analisam a situação educacional da infância de 0 a 5 anos e a formação da profissional que trabalha com essa faixa etária. São pesquisadores do campo da Educação Infantil e movimentos compostos por docentes e instituições que atuam nessa etapa educacional. Integraram o corpus de análise publicações do Banco Mundial (BM), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), do Fórum Nacional dos Diretores de Faculdades, dos Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (FORUMDIR), do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), do Todos pela Educação e da Rede Nacional da Primeira Infância.
Manejando formações discursivas
No discurso da profissionalidade docente, associado às políticas curriculares para a Educação Infantil, há uma forte tendência ao fortalecimento de sentidos com viés utilitarista e pragmatista, e uma tendência à essencialização do trabalho dessa profissional. Essa essencialização é uma construção que tem efeitos no social e está bastante naturalizada. Esses efeitos exteriorizam-se nas práticas discursivas que dizem como é ou como deveria ser a professora de bebês e crianças pequenas: delicada, sensível, atenciosa, reflexiva, observadora, mediadora em um espaço de interação complementar ao da família, etc. (BRASIL, 2009, 2018).
Essas construções discursivas se antagonizam com a ideia de uma docência leiga, tia, cuidadora, etc. Bloqueiam e afirmam aspectos da disputa por hegemonia em torno de um projeto de formação profissional. No entanto, essa mobilização também faz circular demandas variadas, demonstrando que nenhuma identificação é permanente. Para se afirmar, uma identidade sempre vai negociar com outras situações, “funções”, “atribuições” não conciliáveis, que extrapolam a ambiguidade.
Embora haja certo acordo de que as trabalhadoras das instituições de Educação Infantil sejam identificadas como “professora” e não como “cuidadora”, são variadas as enunciações que possibilitam sua afirmação como profissional docente que educa e cuida de crianças de 0 a 5 anos, numa representação que aqui chamamos de “professora-cuidadora”. Reiteramos que uma representação é sempre precária, nebulosa e equívoca, sendo apenas mais uma forma de significação, dentre tantas outras (LACLAU, 2000).
No texto da BNCC/EI, o argumento identitário para a professora de Educação Infantil não se apresenta tão explícito como acontece no texto da DCNEI, mas ambos guardam similaridades em seus modos de disputa de sentidos dessa profissionalidade. Nas Diretrizes, a representação da professora de Educação Infantil está atrelada à ideia de gestora dos espaços-tempos educativos, cujo papel vai além da sala de aula (envolve relações ambientais, familiares, etc.), numa perspectiva de consolidar um dado projeto de nação (que se pretende democrático). No que se refere à Base, a identificação da professora de Educação Infantil está mais na sua atuação em sala, sendo aquela que conhece os aspectos relacionados ao desenvolvimento infantil e sabe aplicar seus conhecimentos na prática. Disso decorre o investimento atual em treinamentos, capacitações baseadas em evidências científicas (objetivismo).
A DCNEI assume a perspectiva da criança como “centro do planejamento escolar” (BRASIL, 2009a, p. 1). Essa centralidade na criança incorpora marcas de uma pedagogia que desde o início do século XX problematiza o fenômeno da aprendizagem tendo na criança o fundamento, e marcas também da Sociologia da Infância, que vem acentuando sua defesa em favor da especificidade das crianças. As articulações discursivas desta última procuram estabilizar outro sentido para infância, deslocando-a de um lugar que a restringia a uma fase de preparação para a vida adulta para outro que considera a criança em sua alteridade, como sujeito situado no tempo e no espaço, nem cópia nem o oposto do adulto, apenas diferente deste.
É possível interpretar que, nos textos da BNCC/EI, a psicologia do desenvolvimento aparece como regime discursivo dominante. A versão homologada demonstra que seus formuladores permanecem confiando em uma compreensão de criança unificada e essencializada para proporcionar um relato “verdadeiro” da infância e uma base para a política e para a prática pedagógica.
A fixação de objetivos por faixa etária, na BNCC/EI - bebês (de 0 a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas (de 1 e 7 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (de 4 a 5 anos e 11 meses) - sugere uma perspectiva cronológica de progresso e de evolução linear dos sujeitos por meio de etapas sequenciais com padrões predefinidos para cada idade, como se o desenvolvimento humano fosse algo previsível e objetivo. Todavia, cabe destacar que a utilização dos termos “bebês”, “crianças bem pequenas”, “crianças pequenas” e “crianças maiores” vincula-se a um movimento dentro da comunidade de Educação Infantil (BARBOSA, 2009) que passou a utilizar uma nomenclatura diferenciada para destacar as especificidades da faixa etária de 0 a 3 anos, visto que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera as pessoas de até 12 anos como crianças, de forma genérica. Estudos como os de Santos (2009), Secanechia (2011), Barbosa e Gobbato, (2017), Borges e Garcia (2019) problematizam a invisibilidade do bebê e da criança bem pequena na formação inicial de pedagogas, as quais saem do curso com pouco conhecimento da creche, uma vez que não dispõem (ou dispõem de pouquíssimas) vivências acadêmicas com foco no atendimento da criança de 0 a 3 anos.
Desse modo, o que questionamos aqui não é a nomenclatura, até porque consideramos esse movimento feito em defesa das particularidades da primeiríssima infância como uma entre tantas outras práticas discursivas que disputam sentidos nas políticas de currículo para a Educação Infantil. Queremos, pois, colocar em questão, a tentativa de normatização e controle como um argumento central na BNCC, que pautada por um discurso da necessidade de eficiência do sistema educacional, legitima perspectivas de padronização do desenvolvimento infantil e constrange (contingencialmente) as múltiplas possibilidades de ser criança e professora, tornando algo que é particular em universal.
Entretanto, essa tentativa de produzir fechamentos na significação não é capaz de cessar o movimento das diferenças (LACLAU, 2011), da produção de outras significações no campo da discursividade. Outra demanda da comunidade de pesquisadores da Educação Infantil também é posta em circulação: a “ampliação do conceito de infância para além de um recorte etário”, em um processo de identificação das crianças “como inventoras de novas formas de se ter determinada idade, questionadoras das finalidades das idades da infância e propositivas na construção de uma pedagogia anti-idadista e interetária” (PRADO, 2012, p. 160).
A tradição moderna que agrupa, divide, segrega, isola as crianças em termos de suas aptidões e capacidades cognitivas específicas é tensionada por outros campos de saber como a Sociologia e a Antropologia, articulados, por exemplo, às produções italianas no campo da Educação Infantil (EDWARDS, GANDIN, FORMAN, 2016). Ressaltamos que as demandas associadas a esses discursos são bastante diferenciadas. Reivindicam considerar a criança em seu contexto, com suas manifestações e expressões culturais. Salientam a capacidade de transgressão, de sociabilidade, de invenção e criação das crianças, visto que elas nos desafiam, nos surpreendem, propondo o inusitado, num espaço previsto, planejado e organizado, mostrando que não detemos o controle sobre seus pensamentos e atitudes como ousamos supor (PRADO, 2012).
Não obstante, além de uma perspectiva desenvolvimentista, negociações de sentidos trazidos do campo da Sociologia também marcam o texto da BNCC/EI. Ao citar um trecho da DCNEI referente às interações e brincadeiras como os eixos estruturantes da Educação Infantil, o texto da Base conserva a concepção de criança como sujeito de direitos e descreve “seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento, para que as crianças tenham condições de aprender e se desenvolver: Conviver, Brincar, Participar, Explorar, Expressar e Conhecer-se” (BRASIL, 2018, p. 25).
Nas Diretrizes, a criança é o sujeito que “brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2010, p. 12). Essa concepção de criança foi posta em circulação pela literatura do campo da Pedagogia da Infância, que defende a criança e seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, culturais, intelectuais, criativos, estéticos, expressivos e emocionais (ROCHA, 2001). Nessas inscrições, articulam-se projeções para a profissional a ser formada para trabalhar com essa criança.
A seguir realizamos um exercício de análise envolvendo a identificação de tentativas de representação da professora de Educação Infantil, entendendo que essas tentativas fazem parte do processo de disputa por constituir como hegemônico determinado modo de interpretar o que significa ser professora de creche e pré-escola. Revolvemos sentidos tensionados por representações da professora de Educação Infantil como: especialista em bebês e crianças pequenas; profissional com competências e habilidades complementares às da família; agente comprometida com a diversidade e a justiça social; e como a intelectual polivalente, que produz saberes docentes.
A professora-cuidadora de bebês e crianças pequenas
Realizando uma interpretação das demandas e articulação da comunidade epistêmica que se hegemonizam nas DCNEI, destacamos uma primeira representação como a de profissional com formação específica para educar e cuidar de crianças de 0 a 5 anos.
As creches e pré-escolas se constituem, portanto, em estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de zero a cinco anos de idade por meio de profissionais com a formação específica legalmente determinada, a habilitação para o magistério superior ou médio, refutando assim funções de caráter meramente assistencialista, embora mantenha a obrigação de assistir às necessidades básicas de todas as crianças (BRASIL, 2009, p. 4).
Uma cuidadora seria aquela que limpa, alimenta, troca fralda, cuida para as crianças não se machucarem. Já uma professora seria aquela capaz de oferecer às crianças os conhecimentos acumulados pela humanidade. No entanto, ser considerada uma profissional que cuida e educa indissociavelmente, ou seja, uma “professora-cuidadora”, em certa medida, promove uma articulação em torno da projeção de uma profissional capaz de desenvolver um trabalho integrado que promova o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social das crianças.
Nesse sentido, o antagonismo que estabiliza o discurso da formação específica envolve a rejeição à formação generalista, no mesmo movimento em que afirma a polivalência e o carácter multifuncional dessa docência. Consideramos que esse é um discurso hegemônico, tendo em vista o expressivo número de autores e grupos que defendem a ideia de uma formação pedagógica específica para Educação Infantil (CAMPOS, 1999; KISHIMOTO, 2005; KIEHN, 2007; ALMEIDA, 2009; FARIA, 2014; BARBOSA, RICHTER, 2013; BARBOSA, CANCIAN, WESCHENFELDER, 2019; BORGES, 2019).
Vale destacar que o curso de Pedagogia continua sendo considerado como o local para formar essa profissional. O que vem sendo enfatizado é que o curso de Pedagogia, nas mais variadas instituições, necessita de uma formação que contemple a especificidade da área de Educação Infantil. Nisso se intensificam os embates e os intentos em delimitar o que é específico da formação docente para a pequena infância (MIEIB, 2009; RNPI, 2010; MPD, 2019).
Essa articulação em torno de uma formação específica sugere um processo de reiteração da formação da pedagoga especialista (BRASIL, 1969), mas não significa um retorno às habilitações extintas pela DCNP (BRASIL, 2006). O que está colocado em pauta é a representação de uma profissional que possui habilidades e conhecimentos especiais “das formas como as crianças, nesse momento de suas vidas, vivenciam o mundo, constroem conhecimentos, expressam-se, interagem e manifestam desejos e curiosidades de modo bastante peculiares” (DCNEI, 2009, p. 5).
A representação de “professora-cuidadora de bebês e crianças pequenas”, como um dos processos de subjetivação/identificação que operam via políticas curriculares, afirma-se a partir de um exterior que a interpela o tempo todo - figuras escolarizantes e assistenciais - que ameaça sua existência e, ao mesmo tempo, funciona como condição para que a singularidade se apresente (LACLAU, 2011). Esse processo de identificação subverte o sentido da profissionalidade docente de Educação Infantil numa relação de parcialidade que estabelece com “outro” sujeito: a professora de Ensino Fundamental, a assistente social e a babá.
A profissional com competências e habilidades complementares às da família
Investigações na literatura especializada do campo da Educação Infantil (BARBOSA, RICHTER, 2013; BUJES, 2001; PINAZZA, 2003; ONGARI, MOLINA 2003) apontam que, principalmente no caso das educadoras que trabalham com bebês, a especificidade da formação em relação a crianças de tão pouca idade demanda a realização de funções de take-care análogas àquelas realizadas dentro da família.
Pesquisas que investigam o cotidiano da Educação Infantil (ONGARI, MOLINA, 2003; NASCIMENTO, 2003; GARCIA, 2005) indicam que a coexistência de posições profissionais e familiares mostra-se particularmente complexa, visto que a função da educadora nos primeiros anos de vida envolve compartilhar com os responsáveis aspectos de cuidado, atendimento e apoio ao crescimento da criança. Nesse sentido, forma-se uma cadeia que articula referenciais domésticos e profissionais em um processo de identificação que combina habilidades e saberes do trabalho pedagógico, do trabalho doméstico e da maternagem.
A ideia de “mãe substituta” ou “tia” - de uma parente postiça como disse Freire (1997) - sofreu deslocamentos a partir do adensamento de políticas educacionais e de legislações do final dos anos 1990. As DCNEI e a BNCC/EI, no decorrer dos anos 2000, demarcam esse deslocamento, dando ênfase na complementariedade das ações de cuidado e educação realizadas na família e na Educação Infantil.
A família constitui o primeiro contexto de educação e cuidado do bebê. Nela ele recebe os cuidados materiais, afetivos e cognitivos necessários a seu bem-estar, e constrói suas primeiras formas de significar o mundo. Quando a criança passa a frequentar a Educação Infantil, é preciso refletir sobre a especificidade de cada contexto no desenvolvimento da criança e a forma de integrar as ações e projetos educacionais das famílias e das instituições. Essa integração com a família necessita ser mantida e desenvolvida ao longo da permanência da criança na creche e pré-escola, exigência inescapável frente às características das crianças de zero a cinco anos de idade, o que cria a necessidade de diálogo para que as práticas junto às crianças não se fragmentem (BRASIL, 2009, p. 13).
[...] as creches e pré-escolas, ao acolher as vivências e os conhecimentos construídos pelas crianças no ambiente da família e no contexto de sua comunidade, e articulá-los em suas propostas pedagógicas, têm o objetivo de ampliar o universo de experiências, conhecimentos e habilidades dessas crianças, diversificando e consolidando novas aprendizagens, atuando de maneira complementar à educação familiar - especialmente quando se trata da educação dos bebês e das crianças bem pequenas, que envolve aprendizagens muito próximas aos dois contextos (familiar e escolar), como a socialização, a autonomia e a comunicação (BRASIL, 2018, p. 36).
Assinalamos essa identificação de “profissional com competências e habilidades complementares às da família” como uma regularidade na dispersão, ou seja, como um conjunto de posições diferenciais que ganham o significado de uma totalidade sob certos contextos de exterioridade (LACLAU, MOUFFE, 2015). Embora haja uma contraposição à ideia de maternagem no percurso de construção da profissão, o discurso da experiência feminina, principalmente relacionada à maternidade, circunscreve saberes e fazeres dessa profissional.
Nesta via, opera-se com reinscrições da pedagogia froebeliana, que considerava a mulher, sobretudo a mãe, como a pessoa indicada para desenvolver o trabalho com bebês e crianças pequenas. A pedagogia de Froebel repercutia uma concepção de mulher e de mãe que vinha sendo fortemente difundida no século XIX: de esposa e mãe dedicada e dotada do dom divino de educar - a educadora nata. Contudo, esses rastros de sentidos se deslocam de modo que o significante “educadora” se insere em posições diferentes das atuações domésticas. Apesar disso, a diferenciação entre os tipos de cuidados oferecidos pela professora de Educação Infantil e pela mãe não é óbvia (BAHIA, 2008; LIRA, 2017).
Nos textos da DCNEI e da BNCC/EI, a diferenciação mais explícita é a intencionalidade educativa.
Essa intencionalidade consiste na organização e proposição, pelo educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica, que se traduzem nas práticas de cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas (BRASIL, 2018, p. 39).
Nessa perspectiva, as professoras e professores compreendem que, embora compartilhem a educação das crianças com os membros da família, exercem funções diferentes destes. Cada família pode ver na professora ou professor alguém que lhe ajuda a pensar sobre seu próprio filho e trocar opiniões sobre como a experiência na unidade de Educação Infantil se liga a este plano (BRASIL, 2009a, p. 13).
Em ambas as enunciações a centralidade está na habilidade profissional de colocar os saberes em ação com intencionalidade (diferente de um processo mais espontâneo como acontece nas relações familiares), ou seja, na sua capacidade de “planejar” as ações pedagogicamente. Quanto a isso há uma expressiva diferença entre o discurso representado na DCNEI e o representado na BNCC/EI. Nas Diretrizes, o planejamento da professora de Educação Infantil aparece como algo que se baseia nas relações com as crianças. Na Base, entretanto, como algo fundamentado em critérios pedagógicos pré-definidos, com uma ênfase que parece lembrar um modelo análogo ao da escola de Ensino Fundamental.
A profissional comprometida com a diversidade e a justiça social
A ampliação das discussões multiculturais também vem disputando espaço no campo do currículo da Educação Infantil (MOTA, LIMA, 2012; ALMEIDA, HENRIQUES, 2018). A inserção da temática da diversidade das culturas que formam o espaço da creche e da pré-escola, a pluralidade das relações familiares e comunitárias, passa a entrar no rol das demandas curriculares para a formação inicial da professora de Educação Infantil (SOARES, 2009; PAVAN, 2010).
Na formação de pequenos cidadãos compromissada com uma visão plural de mundo, é necessário criar condições para o estabelecimento de uma relação positiva e uma apropriação das contribuições histórico-culturais dos povos indígenas, afrodescendentes, asiáticos, europeus e de outros países da América, reconhecendo, valorizando, respeitando e possibilitando o contato das crianças com as histórias e as culturas desses povos (BRASIL, 2009, p. 10).
Forjadas em um terreno de desigualdades sociais, as demandas registradas como da população do campo, dos povos da floresta e dos rios, dos indígenas, quilombolas e afrodescendentes são articuladas no texto da DCNEI como defesa da luta democrática. No Parecer de revisão das Diretrizes é mencionado que as professoras de Educação Infantil “geralmente não possuem formação para o trabalho com essas populações, o que caracteriza uma flagrante ineficácia no cumprimento da política de igualdade em relação ao acesso e permanência na Educação Infantil e uma violação do direito à educação dessas crianças” (BRASIL, 2009, p. 12).
Para discorrer sobre esse aspecto, consideramos pertinente mencionar a argumentação que Macedo (2006) realiza a partir da análise de produções sobre o currículo no Brasil. Conforme a autora, tanto nas perspectivas tradicionais quanto nas críticas e pós-críticas, a discussão sobre a cultura permanece como objeto de ensino, como um “repertório de sentidos partilhados, produzidos em espaços externos à escola” (MACEDO, 2006, p. 101). A autora menciona tensionamentos dessa perspectiva que remeteram maior centralidade aos processos cotidianos, realizados no ambiente escolar. Fazendo uma ponte com esses apontamentos da autora, interpretamos que há um empreendimento no campo da Educação Infantil, que foi incorporado pelas DCNEI, no sentido de conceber a produção da cultura como algo que se desdobra nas/pelas interações cotidianas entre professoras e crianças.
Uma política que promova com qualidade a Educação Infantil nos próprios territórios rurais instiga a construção de uma pedagogia dos povos do campo - construída na relação intrínseca com os saberes, as realidades e temporalidades das crianças e de suas comunidades - e requer a necessária formação do professor nessa pedagogia (BRASIL, 2009, p. 12).
Nessa identificação da professora de Educação Infantil como profissional com formação para diferentes infâncias, expressa-se um alargamento no sentido de que a profissionalidade dessa docência não se restringe à sala de aula. Inscreve-a no projeto de sociedade democrática, como agente social comprometida com a construção “de uma sociedade livre, justa, solidária e socioambientalmente orientada” (BRASIL, 2009, p. 5).
Na interpretação que realizamos dos textos da DCNEI e da BNCC/EI, destacamos enunciações associadas aos significantes de diversidade, igualdade e equidade, que circunscrevem esse espaço de representação da professora de Educação Infantil e “entram nesse jogo político disputando a significação da luta política democrática” (LOPES, MOREIRA, 2020).
DCNEI | BNCC | |
---|---|---|
Diversidade | - Ser comprometida com as diversidades, considerando a origem urbana das creches e pré-escolas e sua extensão em territórios não urbanos (p. 11); Ser comprometida com a diversidade cultural e étnico-racial (p. 10); - Ser comprometida com o olhar acolhedor de diversidades às crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras (p. 10); - Ser comprometida com o olhar acolhedor de diversidades também às crianças com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (p. 11). | Ser comprometida com as culturas plurais, dialogando com a diversidade cultural das famílias e da comunidade (p. 37). |
Igualdade | - Ser comprometida com o acesso de todas as crianças aos produtos culturais (livros de literatura, brinquedos, objetos e outros materiais), a manifestações artísticas e a elementos da natureza (p. 12). | - Ser comprometida com a reorganização dos tempos, espaços e situações que garantam os direitos de aprendizagem de todas as crianças (p. 39). |
Equidade | - Ser comprometida com a equidade de oportunidades educacionais entre as crianças de diferentes classes sociais no que se refere ao acesso a bens culturais e às possibilidades de vivência da infância (p. 5). | - Ser comprometida com a equidade no planejamento, reconhecendo que as necessidades das crianças são diferentes (p. 15). |
Fonte: Adaptado de Brasil (2009, 2010, 2018).
Garantir o direito de aprendizagem de certos conhecimentos e, dessa forma, envolver as crianças e as famílias que são identificadas como “diferentes da norma”, parece ser um projeto previsto na BNCC/EI. Os termos “nacional” e “comum”, que integram a sigla BNCC, constituem-se como marcadores de um discurso que permeia as políticas curriculares, cujo esforço é aplacar/homogeneizar as diferenças, para alcançar igualdade, equidade e justiça social. Diferentemente do texto da DCNEI, que nomeia as diferenças (infâncias urbanas e rurais, relações étnico-raciais, socioculturais e necessidades educacionais específicas), o texto da BNCC/EI expressa certo apagamento dessas diferenças em nome de um universal igual para todos.
Tanto a DCNEI quanto a BNCC/EI são textos que tentam responder de alguma forma aos anseios sociais por uma sociedade mais justa. Expressam que essa mudança requer compromisso docente e, nesse sentido, implica-se a produção de um projeto formativo que caminhe em direção à diminuição de desigualdades. Como já discutiram Lopes e Borges (2015, p. 502), “a afirmação da promessa utópica - formação docente para mudar o mundo - pode ser lida como uma tentativa de reificação de uma política da harmonia, que busca uma sociedade reconciliada consigo mesma”. Articulando-nos às autoras, defendemos que podemos permanecer com o projeto de mudar o mundo, no caso desta pesquisa, por meio da formação de professoras de Educação Infantil, contudo “não há certeza nem sobre o que é o mundo, nem sobre a mudança pretendida. Na agenda pós-fundacional, esse movimento inventa espaços-tempos além da fantasia da utopia e possibilita deslocamentos no terreno (opaco) da democracia” (LOPES, BORGES, 2015, p. 503).
As enunciações indicadas no quadro 1 são algumas dentre tantas outras presentes nos textos das políticas curriculares, que produzem subjetivações docentes. E, como qualquer enunciação, sempre remete à tradução. Em nossa leitura, interpretamos que por mais que se tente produzir um projeto de formação inicial para a docência de Educação Infantil que contemple todas as formas de diversidade, esse projeto será sempre contingente. Impossível de ser perfeito e de solucionar os problemas sociais de uma vez por todas. Em articulação com as autoras, e junto a Mouffe (1996), preferimos pensar que a democracia se faz pela multiplicação de espaços de disputa, pelos conflitos, e não pelos consensos.
A intelectual com formação polivalente
A representação da professora de Educação Infantil como agente de transformação social articula-se por práticas discursivas que circulam na ANFOPE, FORUMDIR, MIEIB, dentre outras entidades. Esses movimentos trazem fortes traços da ideia de docentes como intelectuais “orgânicos”, que sabem relacionar elementos pedagógicos a práticas e teorias culturais, ambientais, políticas, artísticas, tecnológicas e científicas. Nas palavras da ANFOPE (2014, p. 39), corresponderia à “dimensão política [da formação] - organizada por um corpo de conhecimentos que permitisse uma visão globalizante das relações entre educação-sociedade e do papel do educador na superação das desigualdades existentes”.
Essa abordagem assumida pelo movimento de educadores, em algum sentido, marca também os textos da DCNEI e da BNCC/EI:
O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico. Tais práticas são efetivadas por meio de relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de suas identidades (BRASIL, 2009, p. 6).
Parte do trabalho do educador é refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças (BRASIL, 2018, p. 39).
Pensando na formação e na atuação da professora de Educação Infantil, parece estar em operação nos textos da DCNEI e da BNCC/EI traços de várias perspectivas, que se articulam em torno de um projeto de formação de uma intelectual que produz saberes sobre a docência de bebês e crianças pequenas e que também é uma agente social, investigadora e animadora cultural, que deve estar apta para trabalhar com a inclusão e a diversidade cultural, identificando e promovendo as necessidades específicas das crianças de 0 a 5 anos e de suas diferentes infâncias (GARCIA, 2019). Para isso tudo, institui-se a lógica da polivalência, da multifuncionalidade, cujo sentido produzido para a profissionalidade de Educação Infantil centra-se na representação da professora como intelectual que sabe das demandas infantis e como profissional capaz de dar conta de todas elas.
Essa forma de representação já foi bem detalhada no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil - RCNEI, tal como expressa o excerto a seguir:
Ser polivalente significa que ao professor cabe trabalhar com conteúdos de naturezas diversas que abrangem desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos específicos provenientes das diversas áreas do conhecimento. Este caráter polivalente demanda, por sua vez, uma formação bastante ampla do profissional [...] (BRASIL, 1998, p. 41).
A partir da leitura que realizamos desses trechos contidos nesses documentos curriculares da Educação Infantil (RCNEI, DCNEI e BNCC/EI), interpretamos que a concepção de polivalência é diferente da que é trazida nas Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia (BRASIL, 2006). A formação da professora de Educação Infantil no curso de Pedagogia disputa espaço num currículo generalista que tenta abarcar a docência para faixas etárias distintas (bebês, crianças, jovens e adultos) nas diversas áreas do conhecimento e em diferentes espaços de trabalho (escolares e não escolares), além da formação para atuar na gestão educacional.
Sendo assim, argumentamos que o processo de identificação da pedagoga polivalente se estende nas diferentes interpretações como um traço espectral nas políticas curriculares da Educação Infantil, mas não bloqueia outras formas de significação. O significante “polivalente” remete sentidos a outras representações, tais como: “intelectual orgânica”, “especialista nas diferentes infâncias”, “professora-cuidadora”. Ao retornar a uma citação do RCNEI (considerado por muitos do campo da Educação Infantil como “superado” pela DCNEI), destacamos que, apesar de haver nuances diferentes (por exemplo, a DCNEI não utiliza o termo “áreas de conhecimento”, mas “eixos ou campos de experiências”), há certas marcas no processo de identificação docente que continuam parecendo “necessárias” para a garantia de um projeto social mais amplo.
Esse processo de representação da professora de Educação Infantil como “intelectual com formação polivalente” produz a sensação de unificar as diferenças de forma que complexidades e especificidades possam estar articuladas em seu projeto formativo. Relembramos aqui que a lógica da diferença e a lógica da equivalência, defendidas por Laclau e Mouffe (2015), atuam concomitantemente na constituição discursiva. No caso desta investigação, a primeira age nas demandas dispersas em torno dos tipos de formação, cada qual com suas particularidades (específica ou generalista). Os processos hegemônicos reorganizam essas demandas, criando uma ilusão de unidade (precária e contingente) e uma sensação impossível de completude (MACEDO, 2014). Essa ilusão é produzida por meio da segunda lógica, que provisoriamente agrupa as diferenças e as torna equivalentes em relação àquilo que a ameaça, a não profissional, a leiga, a não especialista.
A professora delicada, sensível, atenciosa, reflexiva, observadora, mediadora...
No registro da perspectiva discursiva com a qual operamos, trabalha-se com jogos de linguagem que, contingencialmente, instituem os processos de estabilização de certos discursos. Assim, é através de tentativas de fixação de sentidos permeadas pela linguagem que a construção da profissionalidade docente de Educação Infantil está sendo composta. Trata-se de uma produção precária que acontece sempre por meio das lutas políticas pela significação. Sendo assim, todo sentido é sempre contextualizado, nunca fixo e imutável.
Por esse motivo, é uma impossibilidade o fechamento último da significação de como a professora de Educação Infantil deve ser e de como se deve formá-la. Os processos de significação são dinâmicos, por isso novos sentidos estão sempre sendo gerados e novas reestruturações sendo feitas. Essa asserção nos permite assinalar que, por meio dos rastros/traços/espectros se conjectura uma subjetividade do “eu” docente de Educação Infantil, um sujeito que se constitui na tradução da política curricular.
É importante frisar que a produção de um discurso que busca fixação de um sentido de profissionalidade é fruto de articulações atravessadas por relações de poder. É por esse viés que considero que a DCNEI e a BNCC/EI são representações não só de uma política de centralização curricular da Educação Infantil como também da formação dessas professoras, visto que, nesses textos, constam indicações de como a docente deve ser para constituir-se professora de crianças pequenas.
Educar de modo indissociado do cuidar é dar condições para as crianças explorarem o ambiente de diferentes maneiras (manipulando materiais da natureza ou objetos, observando, nomeando objetos, pessoas ou situações, fazendo perguntas, etc.) e construírem sentidos pessoais e significados coletivos, à medida que vão se constituindo como sujeitos e se apropriando de um modo singular das formas culturais de agir, sentir e pensar. Isso requer do professor ter sensibilidade e delicadeza no trato de cada criança, e assegurar atenção especial conforme as necessidades que identifica nas crianças. [grifos nossos] (BRASIL, 2009, p. 10).
Nessa enunciação, há condutas que são consideradas corretas para a professora de crianças de até cinco anos de idade, tais como: estar sempre disposta e disponível ao acolhimento, ao aconchego; desenvolver a postura de comprometimento e disponibilidade física e afetiva; manter uma ação observadora e sensível, dando sustentação às iniciativas dos bebês e das crianças.
Na BNCC/EI, a professora de Educação Infantil é descrita como reflexiva e organizada, que planeja, medeia e monitora as práticas e interações cotidianas. Para isso, a professora precisa “acompanhar tanto essas práticas quanto as aprendizagens das crianças, realizando a observação da trajetória de cada criança e de todo o grupo - suas conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens” (BRASIL, 2018, p. 39).
Assim, além das representações abordadas até aqui, a profissional de Educação Infantil também aparece como “professora delicada, sensível, atenciosa, reflexiva, observadora, mediadora...”. Fazemos uso desse tipo de pontuação (as reticências) para indicar uma sequência que continua, que não se esgota nessa lista. A professora é representada como sujeito de amorosidade e de emoção, que deve agir sempre pensando nas crianças e que deve pensar sobre as suas ações com profissionalismo.
“Por meio de diversos registros, feitos em diferentes momentos tanto pelos professores quanto pelas crianças (como relatórios, portfólios, fotografias, desenhos e textos), é possível evidenciar a progressão ocorrida durante o período observado” (BRASIL, 2018, p. 39). Essas formas de acompanhamento são descritas na BNCC/EI como estratégias para a professora avaliar a progressão das aprendizagens das crianças, sem a pretensão de classificá-las, mas como forma “de reunir elementos para reorganizar tempos, espaços e situações que garantam os direitos de aprendizagem de todas as crianças” (BRASIL, 2018, p. 39). Em outras palavras, trata-se de uma estratégia de avaliação do próprio trabalho, através da qual ela deve ser capaz de analisar, reconduzir e transformar a sua própria prática, mas acima de tudo, a si própria enquanto docente que educa e cuida de crianças pequenas.
Esse tema da reflexividade ou da autoavaliação, como trabalho e exercício racional, atravessa o discurso sobre a profissionalidade docente de Educação Infantil. Essas (auto)reflexões podem ser vistas como exames de consciência que a professora realiza enquanto uma prática de cuidado de si. Ao problematizar tal aspecto, alinhamos a discussão à advertência feita por Larrosa (1994), quando analisa a produção da experiência de si no interior das práticas pedagógicas. Segundo o autor, a autorreflexão é uma estratégia através da qual se pretende que os sujeitos problematizem, explicitem e, eventualmente, modifiquem a forma como construíram sua identidade pessoal em relação a seu trabalho profissional. Através da reflexividade, a professora é levada a dar-se conta do que precisa mudar em si (valores, atitudes, afetos, posturas, etc.) para transformar “sua própria maneira de ser em relação a seu trabalho. Por isso, a questão prática está duplicada por uma questão quase existencial e a transformação da prática está duplicada pela transformação pessoal da professora” (LARROSA, 1994, p. 50).
Tendo em vista essas interpretações, reiteramos que a profissional de Educação Infantil, a professora, a professora-cuidadora de bebês e de crianças pequenas (seja qual for a representação que se possa dar) são posições de sujeito fixadas sempre por atos de identificação e suscetíveis a serem afetadas e abaladas por variados processos de subjetivação. Por isso, defendemos a tese de que um projeto formativo específico (unificado) é um projeto identitário impossível. A constituição de identidades plenas é uma impossibilidade. Por mais que nos esforcemos com projeções de identidades para a profissional de Educação Infantil, com tentativas de estabilização de um sentido para sua profissionalidade e com processos que visam garantir sua formação, essas identidades ainda assim nos escapam.
Cuidadora? Professora? Professora-cuidadora?
Procuramos anteriormente discutir que nenhuma dessas identidades define isoladamente quem a professora de bebês e crianças pequenas deve ser e como precisa agir no exercício do seu trabalho. Esses significantes não esgotam as possibilidades e as contingências do exercício da docência na Educação Infantil e evocam múltiplas referências e articulações discursivas que se estratificam nos discursos, espectros de demandas que historicamente e em tempos atuais disputam os sentidos a serem atribuídos à profissionalidade docente na Educação Infantil.
Considerando as aproximações e distanciamentos entre os regimes enunciativos em torno da DCNEI e da BNCC/EI quanto ao currículo a ser privilegiado para a Educação Infantil, ambos os textos são assombrados ou tensionados por formulações e perspectivas que disputam essa docência como promotora da igualdade, da equidade, da diversidade, em resposta às lutas e aos anseios por uma sociedade democrática, ainda que a recorrência desses termos e enunciados seja mais frequente e detalhada no caso das DCNEI.
Disputa-se a subjetividade/identidade dessa docência enquanto uma profissional especialista na educação dos bebês e das crianças pequenas, que exerce um papel complementar ao da família, conciliando as atividades de cuidado e educação numa única atuação. A demanda por formação especializada para o exercício dessa docência é que unifica essas posições na luta política, tendo como exterior constitutivo a figura de uma professora leiga e não especializada.
Assombram ainda esses discursos a reivindicação por uma professora delicada, sensível, atenciosa, reflexiva, observadora, mediadora, que exalta as qualidades do estabelecimento de relações afetivas e cognitivas mais produtivas e amorosas no trato com as crianças e com o desenvolvimento do processo pedagógico. Seja este entendido preferencialmente como o processo instrutivo entre a professora e as crianças em sala, como no caso da BNCC/EI, ou abarque relações que extrapolam esse espaço, como na DCNEI.
Ao fazer esse exercício de reativar rastros que se apresentam nas formações discursivas em torno da profissionalidade das professoras de Educação Infantil e problematizar essas associações, esperamos contribuir com enunciações de outras possibilidades. Desestabilizar discursos que pretendem formar uma professora “preparada”, “treinada”, “pronta” para lidar com as diferentes demandas infantis pode contribuir com um vislumbre de formação docente que abarque tempos e espaços de múltiplas discussões. Seguimos apostando na descentralização dos sujeitos, considerando que crianças e professoras de Educação Infantil existem através das relações que estabelecem entre si, sempre em um contexto particular (específico do tempo e do lugar). Não existe algo como “a” criança e “a” professora, como um estado essencial a ser descoberto, definido e entendido, de modo que se diga “o que” a docência de crianças de 0 a 5 anos “realmente é”. As identificações são construídas e reconstruídas em contextos específicos, mutáveis e nos quais o significado do que as professoras de Educação Infantil são, podem e devem ser, não é definitivo. Constituem-se em processos híbridos e justapostos, construídos de maneira dinâmica e fluida.