Introdução
Vivemos num mundo e em sociedades que se caraterizam pela incerteza, pelas mudanças, pela complexidade e pela indeterminação. Um mundo onde estamos sujeitos “ao imprevisto e ao inesperado” (MORAES, 2015, p. 13), o que nos obriga, entre coisas, a reconhecer a contradição existente entre a necessidade de responder à complexidade dos desafios pessoais e profissionais para os quais, hoje, somos convocados e os projetos de formação que no Ensino Universitário, e não só, continuam a organizar-se em função de “gaiolas epistemológicas” que tendem a constituir-se como obstáculos à construção de “novas estruturas de pensamento, novas ferramentas intelectuais que nos ajudem a pensar bem e melhor, a problematizar o real, a tecnologia, o mundo e a realidade; a perceber a interdependência dos processos para melhor dialogar com a vida” (idem, p. 18).
Não sendo este o único desafio que enfrentamos no âmbito dos projetos de formação que têm lugar no Ensino Superior, importa reconhecer que este é um desafio suficientemente significativo para justificar a reflexão que apresento e partilho neste texto, por meio do qual pretendo discutir até que ponto faz sentido manter uma organização curricular assente em planos de estudos que correspondem à divulgação das problemáticas, dos debates estruturantes, dos sistemas concetuais e das respostas específicas que se propõem a partir de cada uma das disciplinas estanques que integram esses planos de estudos? Até que ponto é que a justaposição dessas problemáticas, desses debates, desses sistemas concetuais e dessas respostas não poderão ser vistas como um obstáculo que nos impede de compreender os desafios e de construir respostas mais capazes face à complexidade dos problemas que quotidianamente enfrentamos?
É partindo desta preocupação que me questiono se não estamos perante uma contradição existente entre a vida num mundo marcado por tensões, dilemas e desafios pessoais, sociais, culturais e tecnológicos inéditos e complexos, os quais implicam, entre outras coisas, uma abordagem sistémica da realidade, e projetos de formação que, ao contrário, tendem a espartilhar esta mesma realidade a partir dos quadros concetuais insulares, gerados a partir das mais diferentes áreas de saber. É uma tal contradição que não poderemos continuar a ignorar, já que a mesma implica iludir a complexidade, no sentido que Morin (2000) lhe atribui, como propriedade estruturante dos quotidianos das sociedades em que vivemos.
De acordo com esta perspetiva, o que se começa por recusar é a racionalidade cartesiana que presidiu à emergência da ciência moderna (SANTOS, 1990), em função da qual a possibilidade de conhecer o mundo implica, entre outras coisas, que atomizemos os fenómenos e as abordagens que se criaram para realizar uma tal operação. Na perspetiva de Morin, uma tal atomização, quer dos objetos de estudo quer das disciplinas que estudam estes objetos, nos conduz à construção de um tipo de conhecimento que não é capaz de conferir visibilidade ao facto dos conhecimentos, nas mais diversas áreas, serem como que “um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo” (MORIN, 2000, p. 38), o qual, por isso, não poderá ser dissociado em componentes autónomas que se estudam como fenómenos singulares cujas relações são, eventualmente, estabelecidas a posteriori. Uma abordagem sistémica dos objetos do conhecimento carateriza-se, pelo contrário, por não compartimentar os objetos para os estudar, abordando-os, antes, de forma global e, sobretudo, concentrando-se “no jogo das interações entre os seus elementos” (ROSNAY, 1977, p. 11), já que é através da dinâmica desse jogo que aqueles objetos adquirem sentido e significado.
São as implicações curriculares da abordagem sistémica dos objetos de estudo que constituem, então, a temática nuclear desta reflexão, a qual será empreendida a partir da reflexão sobre a área de Psicologia da Educação no contexto específico dos cursos de formação de professores, de mediadores socioeducativos, de educadores sociais, de animadores socioculturais ou, entre outros, de pedagogos sociais. Trata-se de uma opção que tem mais a ver com a relação familiar que mantenho com esta área, enquanto docente da disciplina, em cursos congéneres com aqueles que acabei de enumerar, do que com o facto daquela área e daqueles cursos serem os únicos que justificam a reflexão que aqui se propõe.
Neste sentido, o problema que suscita a reflexão anunciada poderá ser identificado através da questão que se passa a enunciar: Deveremos prosseguir o trabalho de formação de professores, mediadores socioeducativos, educadores sociais, animadores socioculturais ou, entre outros, pedagogos sociais em torno das problemáticas específicas que tradicionalmente balizam o universo da Psicologia da Educação ou deveremos, antes, propor um conjunto de problemáticas pertinentes que, tendo como referência a reflexão concetual e praxeológica produzida no âmbito desse universo, acabam por o transcender, ao ponto de estarem na origem de um processo de transfertilização de saberes que poderá envolver, igualmente, os contributos provenientes de outras áreas científicas?
Projetos de formação de profissionais na área da educação formal e não formal: Organizar os cursos em função de áreas de saber ou de problemáticas estruturantes?
A resposta à questão que se acabou de colocar só faz sentido no contexto de cursos de formação de professores, de mediadores socioeducativos, de educadores sociais, de animadores socioculturais e, entre outros, de pedagogos sociais, já que é neste âmbito que se pode perguntar se a Psicologia da Educação deve continuar a assumir-se como disciplina insular face à complexidade e à amplitude do que poderão ser as temáticas e as problemáticas nucleares com que aqueles profissionais se confrontam ou como disciplina de referência que conjuntamente com outras disciplinas, relacionadas com outros campos do saber, contribui para definir e sustentar a reflexão a partir de problemáticas estruturantes cuja pertinência formativa justifique a sua seleção para integrar os planos de estudos dos cursos atrás referidos.
Tomando por exemplo uma das temáticas emblemáticas da Psicologia da Educação, a abordagem dos processos de aprendizagem e das modalidades de ensino, verifica-se que, independentemente do inestimável contributo desta disciplina, deixou de ser possível confinar a temática em causa ao contributo da Psicologia da Educação. É que, a insistir-se na privatização do tema, aprisionando-o nas fronteiras de uma única disciplina, contribui-se para limitar a reflexão e o próprio processo de construção e aprofundamento do saber acerca da referida temática. É, pois, o reconhecimento desta dinâmica epistemológica empobrecedora mas também a amplitude, a complexidade e a pertinência social e educativa das temáticas, bem como a pluralidade de olhares que se debruçam sobre as mesmas que se justifica a possibilidade dos projetos de formação atrás enumerados deixarem de ser pensados e estruturados em função de disciplinas insulares que correspondem a áreas tradicionais de saber previamente configuradas. Se o esforço das abordagens de carácter interdisciplinar parecem poder constituir uma resposta capaz de superar o espartilho a que as disciplinas submetem as problemáticas, contribuindo para a manutenção do estatuto destas mesmas disciplinas, como eixos propulsores da reflexão no campo da educação, o que é certo é que as leituras que visam promover as abordagens de natureza interdisciplinar não passam, muitas vezes, de mosaicos de justaposição disciplinar e, quando não o são, constituem a expressão da possibilidade de as problemáticas, e já não as disciplinas, constituírem os objetos da preocupação prioritária da reflexão que ocorre no âmbito dos cursos atrás referidos, de forma a construírem-se quadros mais capazes de conferir um tipo de inteligibilidade que permite abordar e construir o Real sem o fragmentar e iludir a complexidade sistémica do mesmo.
De acordo com esta perspetiva, é a opção pela valorização das problemáticas e das temáticas estruturantes que poderá permitir que a reflexão no campo da educação formal ou não-formal se possa libertar dos espartilhos disciplinares que a aprisionam, os quais, muitas vezes, acabam por se constituir no fim último ao qual esses estudos se submetem. Trata-se de uma opção que, afinal, tanto pode exprimir o peso das corporações académicas, como pode constituir a afirmação dos resquícios da racionalidade cartesiana na configuração dos nossos modos de pensar e agir, como pode, ainda, corresponder a uma manifestação de desperdício que acaba por obstaculizar o processo de construção e aprofundamento dos saberes na área da educação.
Assim, e tendo em conta o conjunto de problemáticas que se desenvolveram inspiradas na investigação que a disciplina de Psicologia da Educação tem vindo a patrocinar, tendo em conta, também, a sua pertinência, amplitude e atualidade educativas, pode definir-se a existência de três campos de reflexão principais, os quais ainda que se articulem entre si, identificam três problemáticas suficientemente importantes para serem abordadas como campos de reflexão como um certo grau de autonomia. São eles: (i) o campo de reflexão que se constrói em torno da problemática da influência educativa; (ii) o campo da reflexão que a problemática da relação educativa demarca e (iii) o campo da reflexão que se configura em torno da problemática a partir da qual se aborda o contributo da educação no âmbito do processo de construção quer das identidades pessoais, quer das identidades profissionais dos diferentes tipos de sujeitos que se envolvem em ações de natureza educativa. É a partir da configuração de tais problemáticas que se torna possível compreender os momentos e as oportunidades de transfertilização disciplinar que elas permitem suscitar.
A discussão sobre a dinâmica do processo de influência educativa nos mais diversos contextos educativos, por exemplo, é uma problemática que permite beneficiar um conjunto de contributos provenientes dos mais diversos campos disciplinares, a partir dos quais se possam desenvolver os referidos processos de transfertilização que poderão adquirir forma e conteúdo1 em torno:
das abordagens que permitem concetualizar os modelos de ensino e discutir as suas implicações, do ponto de vista da aprendizagem e do processo de desenvolvimento pessoal e social daqueles que são o objeto de qualquer processo de influência educativa, entendendo este processo como algo que, apesar da importância do ato de ensinar, está muito longe de poder ser circunscrito a este mesmo ato;
das propostas de reflexão que a Psicologia do Desenvolvimento tem vindo a construir, articulada com alguns dos contributos mais significativos do que hoje, constitui o campo da Sociologia da Infância e da Juventude (SARMENTO e CERISARA, 2004; FERREIRA, 2000; PAIS, 1993) ou da própria Antropologia (ITURRA, 1996; ITURRA, 1998), os quais permitem que, no campo da educação, se possa discutir os atos educativos a partir de uma perspetiva que tende a valorizar uma abordagem compreensiva sobre os indivíduos e as circunstâncias pessoais, sociais e culturais que contribuem para a sua afirmação como pessoas. Neste caso, em vez de se tentar identificar o percurso educativo mais adequado, pretende contribuir-se quer para a reflexão acerca da natureza, dos sentidos e das possibilidades do ato de educar, quer para a reflexão acerca das opções de que dispomos para que se possa participar na construção desse mesmo ato;
da reflexão sobre a relação dos indivíduos com o saber que é uma temática central quer das abordagens que, de um modo geral, a epistemologia inspira, quer, concomitantemente, das abordagens que se desenvolvem no domínio das didáticas (VERGNAUD, 2000; CHEVALLARD, 1991; DEVELAY, 1995; CHARPAK, 1996; GLAESER, 1999; GÓMEZ-GRANELL, 1997; MARTINS e NIZA, 1998; NIZA, 2002; POZO e CRESPO, 2009), quer das reflexões que se têm vindo a desenvolver na área da Sociologia da Educação (PERRENOUD, 1995; BERNSTEIN, 1997; BERNSTEIN, 1998; CHARLOT, 2000). Sendo uma temática que se configura em torno de uma preocupação particular, não deixa de ser uma temática cujo contributo é decisivo para se refletir sobre as aprendizagens dos indivíduos, permitindo ampliar o espaço de reflexão sobre os processos de aprendizagem;
dos contributos dos estudos relacionados com a História da Educação e a Pedagogia (FERNANDES, 1978; 1979; 1994; Ó, 2003; NÓVOA, 2005; TRINDADE, 2013) que permitem apreciar as perspetivas e o debate sobre os desafios do ensinar e do aprender, do ponto de vista de uma perspetiva diacrónica, em função da qual se possa compreender os elementos principais desse debate, os impasses do mesmo e os momentos de transição que permitiram a emergência de novas soluções, a sua complexificação ou até a sua ocorrência a partir de novos termos.
A problemática da relação educativa é a segunda temática estruturante dos planos de estudo dos cursos de formação atrás enunciados. Sendo uma temática a que a Psicologia da Educação conferiu uma maior visibilidade, não pode, no entanto, ser o objeto de uma reflexão estritamente disciplinar (POSTIC, 1989; RIBEIRO, 1990). É que a relação educativa, como objeto teórico, para além de não poder ser dissociada da problemática da influência educativa, pode beneficiar, igualmente, quer da reflexão da Psicossociologia (LAPASSADE, 1996; BLUMER, 1982) quer, ainda, do que poderá ser designado por abordagem sociológica da Escola (VINCENT; LAHIRE; THIN, 1994; CANÁRIO, 2005), em função da qual se pode evidenciar o modo como a “forma escolar” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 1994; CANÁRIO, 1999) constitui um fator decisivo a ter em conta quando se aborda, se discute e se tenta compreender a relação pedagógica. A reflexão sobre o fenómeno da indisciplina escolar (AMADO, 2000; ESTRELA, 1992; CARITA; FERNANDES; 1997) não pode deixar de ser considerada, também como um contributo importante para abordar aquela relação.
O campo da reflexão que se construiu para esclarecer o contributo da educação no âmbito do processo de construção das identidades é o terceiro núcleo de temáticas que poderá integrar o plano de estudos de um programa de formação alternativo, no âmbito do qual a Psicologia da Educação deixe de ser entendida como uma área insular. Com o propósito de superar, também neste âmbito, as lógicas de pendor disciplinar, propõe-se, antes, a identificação de temáticas estruturantes que, podendo manter algumas afinidades com aquela disciplina, permitam ampliar, diversificar e complexificar os quadros de leitura a partir dos quais se confere inteligibilidade aos fenómenos educativos. Como tenho vindo a defender os programas de estudo tradicionais, assentes em disciplinas insulares, constituem um obstáculo a uma abordagem sistémica e complexa das realidades a estudar, já que tendem a promover um olhar excessivamente circunscrito e linear acerca da educação e da ação educativa.
A problemática da construção das identidades pode ser entendida, de acordo com esta perspetiva, como um núcleo estruturante do já referido plano de estudos alternativo. Sendo uma problemática que emergiu a partir do campo da Psicologia, importa reconhecer que não é uma problemática exclusiva desta disciplina. Mais uma vez, interessa compreender a articulação entre a problemática em causa e as outras duas temáticas atrás referidas, a da influência e a da relação educativa. É que não se pode discutir, por exemplo, o processo de influência educativa sem equacionar o modo como este contribui para a construção das identidades, do mesmo modo que a reflexão sobre a relação educativa não se pode alhear do modo como a qualidade dessa relação pode ser configurada, também, em função da construção da identidade psicossocial como uma preocupação educativa prioritária. O contributo da reflexão que a Psicologia do Desenvolvimento nos propõe não pode ser, igualmente, desvalorizado, neste âmbito, pelo modo como contribui para legitimar essa finalidade e conferir-lhe visibilidade. A problemática da construção das identidades, no entanto, não se esgota aqui, já que, nos domínios que temos vindo a abordar, nos confrontamos com a construção das identidades profissionais como dimensão relacionada com a construção e o exercício das profissões relacionadas com a educação, tanto seja em contextos educativos formais como em contextos educativos não formais. Esta é, aliás, uma problemática que propicia o desenvolvimento de olhares amplos e interdisciplinares sobre si própria, como é o caso, por exemplo, das obras que Claude Dubar, enquanto sociólogo, dedica à problemática da construção das identidades, “A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais” (DUBAR, 1997) e “La crise des identités: L’interprétation d’une mutation” (DUBAR, 2000).
Em conclusão, este é um texto onde, a partir da identificação das finalidades, dos equívocos e dos paradoxos que permitem interpelar o estatuto da Psicologia da Educação no campo da formação, se defende a possibilidade desta disciplina não aparecer como uma disciplina autónoma nos diversos planos de estudos dos cursos a que atrás nos referimos. Não se trata de desvalorizar as temáticas a que a referida disciplina conferiu visibilidade, mas de afirmar que algumas destas temáticas é que deveriam constituir-se como as problemáticas estruturantes do referido campo. É que, por mais importante que seja a articulação a qual se estabelece entre uma disciplina e uma problemática, importa reconhecer que qualquer problemática nunca poderá ser circunscrita à reflexão de uma única disciplina, sob pena de se empobrecer artificialmente o debate que essa mesma problemática suscita. Sendo necessário compreender que, do ponto de vista histórico, o campo das Ciências da Educação se construiu e afirmou em torno de disciplinas nucleares. É necessário reconhecer, também, que o desenvolvimento deste campo foi se autonomizando face a essas disciplinas, para ocorrer em torno ou de novas disciplinas cujas referências epistemológicas e conceptuais se encontram e se foram construindo no interior daquele campo, a exemplo da Teoria e Desenvolvimento Curricular, ou de temáticas estruturantes cuja relevância e amplitude permitem abordá-la como temáticas relativamente autónomas face a qualquer disciplina científica tradicional, tal como é o caso, entre outras, das temáticas da Avaliação Educacional, da Educação Multicultural ou da Animação Sociocultural. Há ainda um conjunto de disciplinas que mantêm vínculos diversos com áreas exteriores às das Ciências da Educação, como é o caso da Administração Educacional.
Ainda que as disciplinas tradicionais não tenham desaparecido do campo da formação de professores e dos restantes especialistas em educação que temos vindo a nos referir, é tempo de compreender que as transformações a que este campo tem sido sujeito conduzem estas disciplinas a deixarem de ser entendidas como espaços insulares, de forma que passam a assumir, apenas e sobretudo, um outro estatuto, o de disciplinas de referência dos processos de interpelação, reflexão e ação que têm lugar naquele campo, deixando de determinar, assim, a promoção das reflexões particulares que contribuem mais para o crescimento de tais disciplinas do que para a elucidação das problemáticas educativas com as quais nos confrontamos. É, então, a recusa desta perspetiva que explica, assim, a possibilidade de se valorizarem as temáticas estruturantes, em vez da configuração dos planos de estudos em torno de disciplinas insulares, como expressão de uma outra lógica de organização curricular distinta que responda à necessidade de desenvolvimento quer de um tipo de reflexão e de investigação, quer de projetos de formação, que se organizem em função do que Marilda Behrens (2015), inspirada em Morin, designa por paradigma da complexidade, o qual permite que se transite da visão espartilhada da realidade que o cartesianismo consagrou para uma abordagem congruente, com os pressupostos de uma perspetiva sistémica dessa mesma realidade.
De acordo com estes pressupostos, é plausível defender que a disciplina de Psicologia da Educação deveria desaparecer para dar origem a um outro tipo de unidades curriculares como, por exemplo, “Estudos sobre Aprendizagem”, “Organização e Gestão do Trabalho Pedagógico” ou “Relação Educativa”, as quais são designações que deixam de se encontrar circunscritas àquelas que permitem identificar as áreas disciplinares de referência tradicionais dos cursos de formação de professores, educadores e animadores e que, por isso, respondem de forma mais adequada aos pressupostos da reflexão epistemológica que propusemos neste trabalho.
Considerações finais
A importância que atribuímos à necessidade de se organizar os planos de estudos em torno de problemáticas estruturantes não significa que desvalorizemos, como condição das transformações relacionadas com os projetos de formação que têm lugar no Ensino Universitário, os debates relacionados com o protagonismo dos alunos ou o estatuto dos professores, no âmbito do desenvolvimento de projetos de formação que entendam a complexidade epistemológica dos objetos de conhecimento como referência e objetivo de tais projetos.
É que não é a organização dos planos de estudos em torno de problemáticas estruturantes que garante, por si só, a possibilidade de se construírem projetos de formação mais capazes de capacitar os nossos estudantes para lidarem de forma proativa com um Real que se organiza como uma entidade complexa.
Se até este momento consideramos que a organização de planos de estudos em disciplinas estanques decorre, quer da prevalência da racionalidade científica que o cartesianismo consagrou, quer do peso das corporações que se relacionam com cada uma das áreas do saber, importa, agora, valorizar o facto de que estaríamos perante um investimento curricular com pouco significado se os estudantes não forem valorizados como protagonistas das aprendizagens que lhes dizem respeito. Uma problemática que, por sua vez, obriga a pensar no contributo dos professores para catalisarem o protagonismo docente.
Num trabalho de pesquisa que realizei (TRINDADE, 2014) sobre o papel dos professores no Ensino Superior, a partir da análise de 37 artigos publicados, entre 2000 e 2010, em revistas generalistas dedicadas ao Ensino Superior e indexadas no Journal Citation Reports de 2010 da ISI Web of Knowledge, relacionados com a Aprendizagem Baseada na Resolução de Problemas (Problem-Based Learning) - ABRP - em contextos educacionais relacionados com o Ensino Superior, constatei que só seis desses textos recorriam à designação professor e um a instrutor. Dos restantes, em treze textos optou-se pela palavra “tutor”, em quatro por “staff”, em dois por “facilitadores” e há, ainda, um conjunto de três textos em que a designação escolhida foi, respetivamente, “educadores”, “profissionais” ou “palestrantes”. Por fim, há sete textos em que a única referência que se faz é aos estudantes2.
Estes são dados que assumem um significado pedagógico que a análise dos textos permitiu corroborar quando nos mostra que estamos perante uma representação dos estudantes que os identifica como seres culturalmente autossuficientes, no momento em que se identifica a ABRP com um projeto no âmbito do qual “os estudantes formulam os problemas, identificam as suas necessidades de formação, procuram o conhecimento, estudam e aplicam este conhecimento” (SILÉN, 2006, p. 374). Perante uma tal definição de ABRP e, sabendo-se que nem sempre os estudantes se encontram em condições de colocar os problemas que poderão ser os mais pertinentes para suscitar as suas aprendizagens, ou que a possibilidade de formular um problema pressupõe, desde logo, um nível de conhecimentos sobre o assunto que seria suposto ser construído em função das aprendizagens suscitadas pelo próprio problema, que importa reconhecer que uma tal definição tende a invisibilizar as vicissitudes do processo de relação que os estudantes estabelecem com o saber, relacionadas com o facto de se ignorar as tensões epistemológicas que ocorrem no âmbito de um tal processo.
É de acordo com o reconhecimento de que o ato de aprender pode implicar confrontos concetuais e epistemológicos diversos, decorrentes do envolvimento do sujeito num processo pessoal de construção de saberes, que, por um lado, o protagonismo dos estudantes não poderá ser identificado como a expressão da sua autossuficiência cultural e pedagógica e, por outro, que o papel do professor, de acordo com uma tal abordagem, não possa ser circunscrito ao papel de facilitador. Uma tal leitura não nos conduz, no entanto, a retomar os pressupostos do “paradigma pedagógico da instrução” (TRINDADE & COSME, 2010, p. 28), no âmbito do qual a ação formativa dos professores se constrói em função da necessidade de libertar os alunos da sua incompetência e ignorância. O que se propõe é, antes, definir quer o protagonismo dos estudantes quer, subsequentemente, o papel dos professores em função de outros pressupostos, os quais correspondem a uma abordagem do processo de formação que, de um modo geral, se configura como um processo através do qual os primeiros enfrentam e resolvem as tensões epistemológicas inerentes aos desafios formativos com os quais são confrontados, cabendo aos segundos conferir uma intencionalidade formadora a tais desafios e contribuir para que um tal confronto seja, em termos formativos, uma ocorrência tão pertinente quanto exequível.
Neste texto foram, sobretudo, os desafios curriculares com que os alunos são confrontados quotidianamente no Ensino Universitário que constituíram o seu objeto de eleição, na medida em que, sem refletir sobre a natureza epistemológica dos mesmos, se afeta a reflexão sobre os desafios contíguos a estes, nomeadamente aqueles que têm a ver com a necessidade de promover o protagonismo e a autonomia intelectual dos estudantes no âmbito do projeto de formação que lhes diz respeito e, consequentemente, sobre o papel dos professores como atores educativos influentes quanto ao modo como contribuem para conceber, implementar e desenvolver aquele projeto.
Foi por levar em conta um tal pressuposto que valorizamos algo que nem sempre merece a visibilidade e, neste trabalho, se confere aos desafios curriculares como desafios epistemológicos, particularmente quanto às implicações formativas destes desafios serem vistos como desafios os quais transcendem as fronteiras das áreas do saber, configurando-se, antes, como desafios em torno de problemáticas pertinentes e significativas e que, por isso, envolvam processos de transfertilização de problemáticas, quadros concetuais e respostas as quais permitam o desenvolvimento de projetos de formação capazes de responder à complexidade da vida nas sociedades contemporâneas.