Introdução
Este artigo traz reflexões resultantes das pesquisas “Outras Epistemologias no Processo Formativo de Educação Ambiental” (GUIMARÃES, 2013) e da Dissertação “Experiências de ComVivência Pedagógica a Partir de Outras Epistemologias em Processos Formativos de Educadores Ambientais” (GRANIER, 2017)1. Pesquisas que se imbricam num esforço comum de criar subsídios para a formação de educadores ambientais, em tempos de uma grave crise socioambiental em escala planetária.
Procuramos investigar as potencialidades das experiências de “ComVivência Pedagógica”2 entre educadores ambientais em formação, em espaços revelados formativos, notadamente com comunidades indígenas, com vistas a estudar novas possibilidades metodológicas e epistemológicas para os processos formativos de educadores ambientais. Para o seu desenvolvimento, foram realizadas imersões com os povos Guarani Mbyá (RJ) e Krahô (Tocantins) em suas aldeias, assim como uma imersão com um representante do povo Quéchua (Andes), em um sítio na região serrana do Rio de Janeiro.
Partindo da constatação de que o afastamento do indivíduo moderno do meio natural, contribui para sua dificuldade em entender a complexidade e processos deste contexto, a pesquisa “Outras Epistemologias no Processo Formativo de Educação Ambiental”, ressalta a relevância pedagógica de se resgatar o sentido de integralidade com o natural. Propõe o estímulo ao diálogo entre diferentes visões de mundo por meio de experiências vivenciais com outras epistemologias, notadamente nas cosmovisões indígenas, onde, centralmente, o sentido de integração do ser humano, coletividade e natureza estejam presentes, como forma de oportunizar ao educador ambiental em formação a vivência de práticas individuais e coletivas baseadas em outros padrões relacionais. Os processos formativos nesses ambientes, apoiados por um referencial teórico crítico e plural (CAPRA, GUIMARÃES, FREIRE, LEFF, MORIN, SANTOS), buscam proporcionar o rompimento com o padrão de pensamento dicotômico dos indivíduos modernos, por meio de experiências de diversidade de formas de ler, compreender e estar no mundo, assim como subsidiar a práxis dos educadores ambientais.
Identificamos nas experiências de “ComVivência Pedagógica” em contextos interculturais, uma possibilidade formativa capaz de oferecer ao sujeito alternativas para um reencontro com o natural, da mesma forma que oportuniza a construção de conhecimentos empíricos, através das observações e interações no espaço proposto. Acreditamos revelar-se como importante contribuição para a construção epistemológica do campo da Educação Ambiental (EA), e especificamente no que concerne a formação de educadores ambientais.
O grupo de educadores ambientais em formação participantes deste projeto, esteve constituído por docentes e discentes dos Grupos de Pesquisa: GEPEADS/PPGEduc/UFRRJ; GEOPOVOS/IM/UFRRJ e GEAsur/PPGEdu/UNIRIO. Neste coletivo, as relações foram propositalmente estabelecidas de forma não hierárquicas durante o processo. Intencionalmente dialógica, esta abordagem proporcionou maior aproximação e espontaneidade entre os participantes, facilitando interações e trocas de saberes.
Esta pesquisa qualitativa se utilizou de metodologias participativas de uma “Pesquisa Formação” (SANTOS, 2005), tendo produzido dados pela observação participante, por meio de registros de caderno de campo, entrevistas e a realização de grupo focal.
O reencontro com o natural3
A gravidade e urgência da crise socioambiental da atualidade, amplamente reconhecida no mundo acadêmico, preconiza uma EA que seja capaz de contribuir no processo de transformação desta realidade. Tal crise, acreditamos ser reflexo da crise do modelo civilizatório da sociedade moderna e, portanto, de seus paradigmas, denominados por Morin (2007) de Paradigma da Disjunção e de Redução. Uma de suas graves consequências é a desconexão entre seres humanos, sociedade e natureza, que provoca a degradação de todos.
Defendemos que a fragilidade pedagógica que predomina ainda hoje nas ações de EA, tem como uma de suas principais causas a “armadilha paradigmática”4, a que os educadores estão sujeitos. Uma das possibilidades de ruptura e superação desta armadilha, passa pela radicalidade da formação do educador ambiental. Radicalidade que se dá para além da hegemonia da formação tradicional cognitivista, centrada na primazia da razão; comportamentalista, focada na atitude individual e descontextualizada da realidade local; ação educativa referenciada pelo paradigma disjuntivo e simplificador da modernidade.
Aprendemos e ensinamos, separando. Entre tantas outras disjunções separamos a razão do sentimento, o sujeito e o objeto, o social e o natural, o indivíduo e o coletivo [...] a problemática ambiental que hoje enfrentamos nos remete a pensarmos, no mínimo, sobre uma realidade que é social e ambiental (ao mesmo tempo); que não pode ser pautada na separação do sujeito (ser humano que conhece e explora) e objeto (natureza conhecida e explorada); que necessita mobilizar razão (conhecimento) e sentimentos (amor, respeito pela natureza). Esta breve análise [...] nos ajuda a perceber o quanto precisamos avançar para além de um paradigma que reduz e simplifica [...] (VIEGAS e GUIMARÃES, 2004, p. 59).
Observamos neste estudo que duas perspectivas essenciais, inerentes à racionalidade urbano-industrial, têm profundo impacto na forma como o ser humano concebe a realidade. A visão dicotômica, que separa o que está naturalmente unido, e a ótica antropocêntrica de mundo. A primeira provoca a fatídica disjunção ser humano e natureza. E a segunda coloca hierarquicamente o ser humano acima, numa posição utilitarista e de direitos sobre a natureza. Com forte poder de hegemonização, este sistema consolidou uma visão de mundo ditada como “caminho único” (GUIMARÃES, 2011, p. 31), onde grande parte da população mundial, absorvida pelos processos produtivo/especulativos e pelos sedutores objetos de consumo, aliena-se progressivamente da natureza.
Considerando a intensa atividade humana sobre (e não com) o meio natural, este afastamento desemboca em consequências de diferentes dimensões. Pesquisas recentes revelam que a carência de contato direto com a natureza pode acarretar uma interferência ao equilíbrio físico e emocional do ser humano. O “transtorno de déficit de natureza”, termo cunhado por Richard Louv (2005 apud GALLI, 2014, p. 22) para caracterizar este distanciamento, vem sendo relacionado a “prejuízos cognitivos e sensoriais e a maiores níveis de adoecimento físico e emocional, que podem ser observados em indivíduos, famílias e comunidades”. Por outro lado, o afastamento do ser humano de sua essência de Ser Natural, fatalmente afetará o espaço físico, pois essa desconexão diminui seu sentimento de pertencimento ao meio natural, comprometendo sua capacidade inata de perceber os movimentos da natureza e agir de forma coerente com seus processos. Nesta lógica, Tiriba e Profice (2014, p. 64) ressaltam que tal desconexão, “pode contribuir para a formação de gerações pouco comprometidas com os problemas ambientais, pois existe uma relação estreita entre sentir-se parte do mundo natural e protegê-lo”.
Partindo destas constatações, a perspectiva do “reencontro com o natural” no processo formativo de educadores ambientais, insere-se num movimento de desconstrução das configurações impressas na dinâmica do mundo moderno, com vistas a uma reconstrução de sentidos, onde esteja presente a introjeção da importância vital desta conexão. Busca evidenciar a unicidade ser humano e natureza, fazendo emergir um processo de reconexão, onde, rompendo a dicotomia e as amarras do antropocentrismo hierarquizante, o ser humano assume ser parte da natureza, percebendo-se como um dos tantos elementos, que compõem a rede interdependente da vida na Terra e no universo.
O saber racional é insuficiente para captar a multidimensionalidade da natureza, conforme salienta Boff, afirmando que para isso importa “desenvolver uma atitude atenta de escuta, um sentimento profundo de identificação com a natureza, com suas mudanças e estabilidades. O ser humano precisa sentir-se natureza” (BOFF, 1999, p. 116). É um reencontro do ser humano consigo mesmo e com o meio ao qual naturalmente é parte. Trata-se de reassumir uma identidade, e o compromisso que ela convoca. De uma “re-união”, capaz de gerar uma certa simbiose, por onde o ser humano moderno redescobre sua capacidade de desenvolver uma relação saudável com a natureza.
Neste sentido, práticas simples realizadas com amorosidade, podem ser incorporadas no cotidiano, proporcionando diferentes formas de interação, experimentando novas relações e contribuindo para a construção de valores menos materialistas e mais orgânicos com o ambiente. A infinidade de detalhes que se expressam na criatividade da natureza impressiona, quando nos mantemos receptivos para enxergar (não só olhar) e ouvir suas manifestações, receptivos à sensação conectiva de experiências amorosas de uma práxis com seu entorno. Entender estes sinais é um dos grandes desafios atuais da humanidade.
O “reencontro com o natural” é a possibilidade de restituição ao ser humano do seu ambiente vital, de sua capacidade ancestral de sentir-se em comunhão com o todo, e com isso, naturalmente “ouvir” a natureza; de se reencantar pela força conectiva da amorosidade com outros seres e elementos com quem coabitamos no planeta; de sacralização da vida (incluindo a morte) como um bem maior. É uma proposta otimista, que evoca uma libertação, tanto para si como para a Terra, das ameaças representadas pelos incessantes equívocos e descontrolada ganância, que vêm caracterizando as atividades humanas no planeta, priorizando os interesses econômicos acima de tudo.
A aposta do “reencontro com o natural” nos processos formativos de educadores ambientais, desponta como potencial vetor para a desconstrução das referências hegemônicas nas relações sociedade e natureza. Pode desencadear no sujeito reflexões críticas acerca dos efeitos inconscientes que o modo de vida da sociedade moderna exerce sobre sua maneira de conceber a realidade, estimulando-o a encontrar recursos internos, para a desconstrução dos padrões que interferem em suas possibilidades inatas de conectividade com a natureza.
A interculturalidade no reencontro com o natural
O diálogo intercultural emerge como um rico campo de inspiração e aprendizado, ao proporcionar a vivência com outras formas de ver e viver o mundo. Sob a perspectiva da interculturalidade crítica, que tem no centro de suas preocupações o histórico de “exclusão, negação e subalternação ontológica e epistêmica-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados” (WALSH, 2012, p. 66, tradução nossa), este diálogo permite dar visibilidade a conhecimentos ancestrais, que vêm sendo sistematicamente invizibilizados pela hierarquização do conhecimento, imposta pelos padrões hegemônicos.
A vivência de saberes ancestrais em seus contextos propicia que o reencontro com o natural aconteça espontaneamente, pois a natureza, normalmente farta, ocupa um papel central nos sentidos vividos em atividades cotidianas das comunidades. O entendimento, em coparticipação dos movimentos da natureza e de conexão com o todo, são bastante presentes nestes contextos. Da mesma forma que o sentimento de pertencimento à natureza lhes é frequentemente inerente, em especial nas culturas indígenas, seus modos de organização social normalmente são calcados no sentimento de coletividade e solidariedade.
O prisma da interculturalidade crítica, adotado na organização das experiências de vivência, nos ajuda a pensar formas de desconstrução dos padrões colonialistas implicados nas construções do ser e do saber ocidentais. Sustentadas por este referencial crítico, estas vivências interculturais buscam proporcionar interações baseadas na horizontalidade das relações, na receptividade mútua para outras formas de ver/viver o mundo, no total respeito ao contexto e seus atores. São naturalmente pedagógicas para os dois grupos, pois ambos interagem num sentido de troca, e não como dominação, com outras visões de mundo na formação de um novo sujeito.
O “reencontro com o natural” oportuniza ao educador ambiental em formação a experiência de reconexão nos universos interno e externo, contextualizadas em cotidianos onde a natureza permeia, objetiva e subjetivamente, integralmente as relações. Nestas vivências, ele tem a oportunidade de perceber a dimensão complexa da dependência, em relações antagônicas, concorrentes e complementares, que o ser humano tem com a natureza. O sentido do cuidar, a importância de respeitar e a necessidade de se conectar, para melhor compreender e viver a natureza em equilíbrio com ela e, consequentemente, consigo mesmo.
A ausência de integração leva ao não enraizamento e ao descompromisso com o todo, o que dificulta o desenvolvimento do sentido coletivo, de relações solidárias e de cuidado, entre os habitantes e destes com o espaço. Fazendo um paralelo entre ajustamento, acomodação e integração, Freire (1967, p. 74) ressalta que no ajustamento “o homem não dialoga, não participa. Pelo contrário, se acomoda a determinações que se superpõe a ele”. Já a integração, diferentemente da acomodação, “exige um máximo de razão e consciência”.
O exemplo em escala micro ajuda-nos a pensar em escala macro. A falta do sentimento de pertencimento à natureza, e consequentemente ao meio ambiente, repercute na ausência do sentido de integração do ser humano com o Planeta Terra. Esta deficiência fundamental, em qualquer escala, acaba afetando o ambiente. Isto pode ser percebido pelo descaso generalizado, frente às agressões de todos os tipos que o atingem. Grande parte dos seres humanos, absorvidos pela engrenagem do mundo moderno e sua racionalidade, desenvolveu uma noção de ambiente separado de si. O ambiente, por estar alheio, muitas vezes não entra em seu círculo de afeição e, consequentemente, de cuidado.
A dimensão afetiva pode representar um potencial vetor para o desenvolvimento de melhores relações com a natureza, conforme salientam alguns autores. Gutierrez e Prado (2008, p. 44) ressaltam que “não podemos continuar excluindo, como até agora, toda retroalimentação ao sentimento, à emoção e a intuição como fundamento da relação entre os seres humanos e a natureza”. Para Serres (1991, p. 62), “devemos aprender e ensinar à nossa volta o amor pelo mundo ou pela nossa Terra, que agora podemos contemplar por inteiro.”
Estas constatações levam-nos a inferir que os esforços educacionais para a construção de relações mais saudáveis com a natureza, devem levar em consideração que o ser humano terá que encontrar formas de abrir um espaço receptivo em seu interior, para o acolhimento afetivo da Terra, externando em ações propositivas de novas relações conectivas. Para lograr estabelecer uma ligação amorosa, de empatia e união fraternal com ela, enquanto fonte geradora de toda a vida existente. A construção de espaços afetivos que contribuam para o despertar da “com-paixão”, da vontade, e compromisso de cuidado para com o outro, humano-natureza. Corroborando, Boff diz que o cuidado pede uma relação centralizada mais pelo sentimento do que pela razão:
Cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar lhes o ritmo e afinar-se com ele. [...] Este modo de ser-no-mundo, na forma de cuidado, permite ao ser humano viver a experiência fundamental do valor, daquilo que tem importância e definitivamente conta. [...] A partir desse valor substantivo emerge a dimensão de alteridade, de respeito, de sacralidade, de reciprocidade e de complementaridade (BOFF, 1999, p. 96).
A dimensão sentimental nas relações com a Terra não nos é totalmente estranha, já que pela natural indissociabilidade, possuímos registros acumulados ao longo do nosso processo evolutivo, marcados por configurações relacionais repletas de sentido. Podemos observar com frequência esta característica ainda viva em populações que não se afastaram da natureza, como povos indígenas. Na cultura andina, a Terra é Pachamama, a Grande e generosa Mãe. De fato, a relação maternal com a Terra comporta grande coerência, uma vez que é ela quem, originalmente, gera a vida e provê o necessário para sua manutenção. A vida dos povos antigos, conforme observam Gutierrez e Prado (2008, p. 121), “é um claro testemunho da consciência planetária: sua vida cotidiana, seu trabalho, suas celebrações, sua visão da divindade e da morte, e sua produção artística e científica assim demonstram”.
A conexão com nossa essência de Ser Natural contribui para a conexão com a Terra, nossa “casa”, compartilhada com a imensa sociobiodiversidade com a qual coabitamos. Perceber que fazemos parte de uma complexa rede de interdependência, ou seja, de “dependência mútua de todos os processos vitais dos organismos” (CAPRA, 1996, p. 231), é perceber a “alma” da Terra. Se precisamos desenvolver outros padrões relacionais nesta enorme comunidade planetária, no sentido de estabelecer um equilíbrio para o benefício do planeta em sua integralidade, é vital reconhecermos o pertencimento à “Teia da Vida” (p. 174), e a responsabilidade que nos toca na construção do novo paradigma.
Percebemos que, pelo viés do resgate de valores capazes de firmar uma aura menos materialista, mais orgânica e humana, nas relações entre humanos e destes com a natureza, o reencontro com o natural e o desenvolvimento do sentido de pertença à Terra, imprimem, de certa forma, uma dimensão espiritual a esta conexão. Assumir o nosso pertencimento primordial, concebendo a Terra como um organismo vivo, que pulsa em sintonia com um todo de dimensões infinitas, é “uma experiência mística que modifica em profundidade nossas relações com a Terra” (CAPRA, 1994 apud GUTIERREZ e PRADO, 2008, p. 99).
Desta forma, os processos formativos podem proporcionar ao educador ambiental, a apreensão de que “reencontrar o natural” é também admitir a integralidade do ser humano, enquanto ser racional, sensitivo, espiritual. Que as diferentes dimensões do ser nos constituem naturalmente diversos, múltiplos, plurais, no entanto, unificados por uma “identidade terrena” (MORIN, 2007, p. 63). O “reencontro com o natural” pode contribuir para despertar esta planetariedade, quando, ao olhar para um céu estrelado, lembrarmos e sentirmos que nossa origem também é cósmica. Tendo em mente e coração que, sem a nossa “nave Terra” nada somos, pois nela estamos embarcados, sem nenhuma reserva exterior. Portanto, “Somos obrigados a obedecer às leis de bordo [...]” (SERRES, 1991, p. 55). O sentimento de pertencimento, no “reencontro com o natural”, nos dá a oportunidade de reconhecer as limitações humanas essenciais, mas também sua inerente capacidade de transcendência.
Assim, desenvolver o sentimento de pertencimento à natureza do Planeta Terra, é uma perspectiva que pede a mobilização de uma dimensão sensitiva. Esta contribui para que o educando perceba que, no esforço de cuidar da natureza, toda a “teia” deve ser considerada, pois o equilíbrio do planeta está intimamente vinculado às interações que nela acontecem, e interagir nesta rede em relações sustentáveis. Desta forma, este cuidar requer atenção especial às relações entre todos os seres, que igualmente pertencem a essa “casa comum”, a Terra. Capra (1996, p. 29, grifo do autor) diz: “se temos a percepção, ou a experiência, ecológica profunda de sermos parte da teia da vida, então estaremos (em oposição a deveríamos estar) inclinados a cuidar de toda natureza viva”.
O Ser Mais Ambiental
A engrenagem do mundo moderno provoca o afastamento do ser humano de seu Ser Natural, consolidando o estabelecimento de relações com a natureza, mediadas pela técnica. Ajustado, adaptado e acomodado a esta racionalidade, e sua trama consumista propositalmente sedutora, o ser humano foi adquirindo bens, valores e comportamentos adequados aos ditames hegemônicos, e progressivamente embotando seu Ser Natural, tolhendo-lhe espaço e liberdade. Pela ótica freireana, nesta situação o ser humano estaria apenas no mundo e não com ele. Um ser acrítico, não integrado, somente ajustado e acomodado e, portanto, desumanizado, numa alienação que o oprime como um Ser Menos, em uma dimensão ontológica.
Esta desconexão essencial coloca o ser humano numa situação de vulnerabilidade, pois diminui suas potencialidades naturais de entendimento da natureza, pelo esvaziamento do senso de pertença, que consequentemente interfere na percepção da dimensão da problemática ambiental em sua complexidade. Este ser humano, impotente e cego, “oprimido, reprimido e deprimido” (LEFF, 2016, p. 379) por uma crise ambiental de dimensões civilizatórias, vê-se na urgência de encontrar recursos internos para libertar-se da jaula da racionalidade moderna.
Freire ressalta que o ser humano alienado, “coisificado”, autômato, estaria negando seu direito e “sua ontológica vocação de Ser Mais” (FREIRE, 2016, p. 85 e 112). A luta pela humanização, que impõe a superação da alienação (FREIRE, 1967), é uma aptidão essencialmente humana (FREIRE, 2016), decorrente do constante movimento pela busca de Ser Mais (Ibidem). Entretanto, esta busca “não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires” (FREIRE, 2016, p. 105). O Ser Mais se expressa como ser sujeito, que se sabe no mundo numa presença ativa. Presença “que se pensa a si mesma [...] que intervém, transforma, [...] valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética, e se impõe a responsabilidade” (FREIRE, 1996, p. 18). É o décimo primeiro eixo formativo em Guimarães (2011, p. 174): “Estimular a coragem da renúncia ao que está estabelecido, ao que nos dá segurança, e a ousadia para inovar”.
Na corrente de se pensar a noção de sujeito, numa perspectiva diferente da individualista, construída pela Modernidade, Leff ressalta que a crise ambiental solicita a desconstrução deste marco epistemológico nesta edificação: “a repensar as categorias de análise sociológica do ‘sujeito social’” (LEFF, 2016, p. 370, grifo do autor). Propondo sua dissolução e uma nova reflexão sobre ele, postula sua “refundição no magma do pensamento ecológico”, na qual o sujeito, para reconstruir-se como um novo sujeito, precisa constituir “um ‘self ecológico’ e o reverdecimento de um eu” (p. 386, grifo do autor). O autor afirma que, para isso, é necessário que o sujeito esteja “disposto e capaz de abandonar a segurança de sua autorreferencialidade, de dissolver a separação do mundo objetivado e de restaurar seus vínculos com a natureza [...] de restaurar-se na trama da vida” (p. 386).
Fazendo um paralelo entre as abordagens aqui expostas, podemos perceber que, expandindo o prisma humanista de Freire, para o sentido do humano como natural, o “reencontro com o natural”, além de contribuir para o desabrochar do Ser Natural, possibilita uma reconfiguração do self, pois redimensiona sua relação com o mundo, sob a ética da Terra. Enquanto que, o processo de reconexão com o Ser Natural proporciona o rompimento com o “caminho único” (GUIMARÃES, 2011, p. 31), revelando um caráter emancipatório, que torna o ser humano “mais”. Agora, “percebendo a reciprocidade entre o Ser Mais e o Ser Natural, através da qual ambos se potencializam e se complementam, vemos emergir aí a possibilidade de um novo sujeito, um Ser Mais Ambiental” (GRANIER, 2017, p. 58).
Na construção do Ser Mais Ambiental, o ser humano oportuniza sua emersão como um sujeito capacitado, no sentido de ter consciência, domínio e decisão de usar suas capacidades naturais de superação - integral - pois sapiente de sua multidimensionalidade. Integrado com o mundo, já que não mais sensível somente consigo, mas com o equilíbrio da teia inteira. Resignado do “ter mais”, para o Ser Mais de uma vida mais simples e, no entanto, mais rica, já em sintonia com as necessidades e limites do planeta, e intensificada por relações mais orgânicas com os outros seres da natureza.
Ainda que o Ser Mais Ambiental represente uma construção, que entendemos ser pertinente ao processo formativo de educadores ambientais, podemos pensar neste sujeito que, com o “self ecológico” (LEFF, 2016, p. 386) constituído, estaria enfim estruturado, para decisivamente enfrentar o movimento de transformação e reconfiguração de sua atuação com o mundo, de acordo com a sustentabilidade da vida no planeta.
Desta forma, entendemos que o Ser Natural, enquanto elo essencial, que evidencia a conectividade inata do ser humano com a teia da natureza, é uma peça central no “quebra-cabeças” da problemática socioambiental que vivenciamos. Apartado pela racionalidade moderna, agora está sendo solicitado a reconstituir a imagem do ser humano, para reintegrá-lo com o mundo. Por sua importância, o Ser Natural, na complementariedade do Ser Mais Ambiental, já não pode mais ficar isolado no esquecimento. Precisa se redescobrir “em casa”, completar-se pelo sentimento de pertencimento, estar com o mundo (FREIRE, 1967) e não apenas nele, comprometendo-se com a existência e o sentido do caminhar humano.
Diálogo de Saberes
O conceito de colonialidade do saber traz um olhar crítico e esclarecedor sobre a hierarquização do conhecimento, provocada pelo processo de colonização. A supervalorização do conhecimento científico ocidental, instituída neste processo, “invisibilizou” conhecimentos populares, leigos, camponeses e indígenas, assim como seus autores. Estes saberes “desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso” (SANTOS, 2007, p. 72-73).
Sintonizamo-nos com a afirmação de Santos em que, “a experiência social em todo mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante” (SANTOS, 2002, p. 238). O saber ambiental, com o propósito de ir além da racionalidade científica e da objetividade do conhecimento (LEFF, 2008), centraliza a revalorização de saberes “outros”, para a construção de uma nova racionalidade,
[...] sustentada por valores (qualidade de vida, identidades culturais, sentidos da existência) que não aspiram alcançar um estatuto de cientificidade. Abre-se aqui um diálogo entre ciência e saber, entre tradição e modernidade. Este encontro de saberes implica processos de hibridação cultural (GARCIA CANCLINI, 1990), onde se revalorizam os conhecimentos indígenas e os saberes populares produzidos por diferentes culturas em sua coevolução com a natureza, e onde estes se amalgamam com formações discursivas, teorias científicas [...]. O saber ambiental levanta a questão da diversidade cultural no conhecimento da realidade, mas também o problema da apropriação de conhecimentos e saberes dentro de diferentes ordens culturais e identidades étnicas (p. 231).
Situando estes conhecimentos tácitos como patrimônio intelectual de seus autores, constituintes essenciais de suas estratégias de sobrevivência, o campo da EA crítica insere-os em seus debates epistemológicos, num esforço de dar-lhes visibilidade e fortalecimento. Na contracorrente da monocultura do saber, ressaltamos sua potencialidade como referenciais para a construção de uma racionalidade contra-hegemônica, que propicie outras leituras de mundo, para subsidiar o estabelecimento de relações menos danosas com a natureza, e de valores que logrem a manutenção sustentável socioambiental. Nesta direção, Walsh ressalta que a contribuição das epistemologias críticas, para o aprofundamento da discussão em torno da política epistêmica da interculturalidade, no campo educativo, permite considerar a construção de novos marcos epistemológicos,
[...] que pluralizam, problematizam e desafiam a noção de um pensamento e conhecimento totalitários, únicos e universais, partindo de uma política e ética que sempre mantêm como presente as relações do poder às quais foram submetidos estes conhecimentos. Assim, alenta novos processos, práticas e estratégias de intervenção intelectual que poderiam incluir, entre outras, a revitalização, revalorização e aplicação dos saberes ancestrais, não como algo ligado a uma localidade e temporalidade do passado, mas como conhecimentos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente (WALSH, 2009, p. 25).
Leff (2008, p. 430) diz que o conhecimento hegemônico, caracterizado pela ciência moderna, “já não representa a realidade”. Nesta lógica, o autor diz que o saber ambiental, além de articular as ciências existentes,
[...] forja novas ideologias e teorias que geram novas solidariedades e sentidos, que mobilizam ações sociais orientadas pelos princípios de racionalidade ambiental. Esta racionalidade não só gera novos conhecimentos, mas produz um diálogo de saberes onde se forjam novas formas de organização social e apropriação subjetiva da realidade [...] o saber ambiental se produz numa relação entre teoria e práxis. O conhecer não se fecha em sua relação objetiva com o mundo, mas se abre à criação de sentidos civilizatórios (LEFF, 2008, p. 235, grifo do autor).
Cabe sinalizar que, entre as construções dos saberes indígenas e das ciências modernas, ocorrem diferenças essenciais, decorrentes dos padrões relacionais estabelecidos com a natureza. As primeiras são comumente elaboradas num ambiente regido por uma visão de mundo, marcada pela percepção da indissociabilidade ser humano e natureza, da interdependência e valorização da diversidade, da solidariedade entre os demais seres no espaço compartilhado. A Terra e seus elementos ganham valores sacralizados, que permeiam os códigos de conduta e, consequentemente, as formas de exploração dos meios de subsistência. Estas características proporcionam relações socioambientais impregnadas de sentido, gerando um saber integrativo, complexo e não fragmentado, ao contrário da perspectiva disjuntiva e antropocêntrica da ciência moderna, cujo alinhamento com a visão hegemônica, tende a situar a natureza como objeto do ser humano.
A “ComVivência Pedagógica” como processo formativo - considerações em construção
O enfoque nos povos indígenas Guarani Mbyá, Krahô e Quéchua, adotado no projeto ao qual se insere este estudo, devem-se à ocorrência de um diálogo já consolidado entre seus coordenadores e lideranças destas comunidades. Mediadas por este relacionamento, as imersões nas aldeias foram organizadas a partir de convites destas comunidades, ao grupo de educadores ambientais em formação. Esta espontaneidade e confiança foram essenciais para o desencadear de relações dialógicas, uma das principais intencionalidades do projeto, entre os participantes das vivências. A dialogicidade viabiliza a construção de relações pautadas na horizontalidade e reciprocidade, onde as experiências convivenciais se desdobram em momentos de reflexão individual e coletiva, proporcionando a práxis.
Uma das propostas centrais da EA crítica é oportunizar uma formação emancipatória, que possa trazer a consciência da “armadilha paradigmática” (GUIMARÃES, 2011, p. 124), para a desconstrução dos padrões hegemônicos e a construção de outros referenciais, que subsidiem uma prática educativa diferenciada em uma reflexão crítica. Entendendo que, para alcançar esta ruptura com os padrões conservadores, a práxis é instrumento essencial.
A perspectiva de compromisso com o mundo, que seguindo a inspiração freireana é intrínseca ao trabalho do educador, se evidencia de forma muito clara na EA. As injustiças socioambientais são o próprio cenário de atuação do educador ambiental, o que demanda um posicionamento ético definido, mobilizado por uma indignação que possa alicerçar suas ações. Para Freire (1996), a dimensão ética é inseparável da prática educativa.
A intencionalidade que se expressa nesta abordagem formativa, complementada pela perspectiva de “sujeito ecológico” (CARVALHO, 2008, p. 65) no exercício da postura dialógica, possui caráter pouco convencional, requerendo a construção de um ambiente educativo propício. Freire nos ajuda a refletir sobre mais este aspecto do trabalho educativo, ao dizer que “o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente ‘lido’, interpretado, ‘escrito’ e ‘reescrito’”. Neste sentido, quanto mais solidariedade entre o educador e os educandos no ‘trato’ deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem” (FREIRE, 1996, p. 89, grifos do autor). Ser solidário em exercício de amorosidade resulta de uma reflexão crítica, de uma indignação ética numa postura dialógica!
Sintonizados com esta orientação freireana, a presente investigação sobre o processo formativo está pautada em experiências de vivências coletivas entre educadores ambientais em formação, em espaços revelados formativos por oportunizarem um reencontro com o natural, e por apresentarem características societárias pouco influenciadas pela lógica hegemônica, como aldeias indígenas. Nesta “ComVivência Pedagógica”, os educadores ambientais em formação puderam vivenciar juntos outras formas de relações em sociedade e desta com a natureza. Estas experiências coletivas nestes ambientes foram consideradas, portanto, significativamente pedagógicas.
A “ComVivência Pedagógica” é uma estratégia metodológica, adotada no presente processo formativo, pela qual o ambiente educativo se constrói na convivência entre educadores ambientais em formação, em uma práxis pedagógica. Propõe-se, pela vivência da dialogicidade, o reconhecimento do outro, a partir de referenciais integrativos de novas relações. A experiência proporciona o aprendizado vivencial de forma coletiva, pela experienciação entre os participantes, na interação com o contexto proposto por essa intencionalidade educativa de formação. Através destas experiências, os educadores ambientais em formação têm a oportunidade de experienciar a ruptura da “armadilha paradigmática” (GUIMARÃES, 2011, p. 124), ao estabelecer, a partir da práxis e na vivência da amorosidade, novas relações com o outro e com o mundo.
Sem a pretensão de pontuar esta perspectiva formativa como um método, mas apenas descrevê-la para sua melhor compreensão, enquanto estratégia utilizada especificamente neste processo formativo, destacamos que a práxis e a amorosidade são elementos essenciais em sua abordagem. Foram os fios destes fundamentos, que teceram nossas experiências de reencontro com o natural e de “ComVivência Pedagógica” com outros referenciais. Percebemos que tais elementos têm a potencialidade de imprimir orientações emancipadoras particularmente relevantes, tanto para a construção da autonomia crítica do educador ambiental, como para sua construção enquanto ser coletivo que é.
Estas considerações se fundamentam no princípio de que a transformação do mundo acontece a partir das relações. Ou seja, é a forma como nos relacionamos com o outro e com o mundo, que irá determinar nossa interferência na realidade e a possibilidade de sua transformação. É um processo que vai além da perspectiva individual, levando em consideração que a transformação individual ocorre no e com o coletivo. Nesta lógica, os coletivos em transformação, ao estabelecerem novas relações e formas de viver fundadas em outros referenciais, fazem uma contraposição à dinâmica hegemônica, desencadeando um movimento de transição paradigmática. A potencialidade desses coletivos em transformação emerge como uma possibilidade de transformação significativa do mundo.
Resgatar esse sentido de integralidade da humanidade com o natural parece colocar-se como uma das prioridades pedagógicas a se propor em processos formativos de professores (as). [...] que passam ontologicamente por uma nova experienciação existencial que poderia se potencializar pedagogicamente, se estimularmos em ambientes educativos novas conexões entre visões de mundo construtoras de epistemologias outras [...] (GUIMARÃES e PRADO, 2014, p. 93).
Assim, o espaço educativo tem especial destaque na organização das experiências de “ComVivência Pedagógica”. Este, precisa contribuir para o desvelamento e a percepção das implicações dos padrões hegemônicos na problemática socioambiental, desencadeando um movimento de desconstrução de sentidos em direção à construção de outros referenciais, para o estabelecimento de relações mais equilibradas entre seres humanos e destes com a natureza, num esforço de romper com o “agir no automático” da “armadilha paradigmática” (GUIMARÃES, 2011, p. 124). Da mesma forma que este contexto vivencial deve oportunizar a experienciação do sentimento coletivo entre os participantes, que construído na amorosidade, promove interações dialógicas e solidárias, que poderão facilitar o estabelecimento de um movimento sinérgico e o desencadear de ações cooperativas em contra hegemonia.
Este ambiente educativo pode ser pensado a partir de diferentes possibilidades, contanto que ele seja formativo. Ou seja, tal ambiente deve propiciar condições materiais e subjetivas necessárias para que estas novas relações se efetivem na vivência. Para que os educadores possam levar consigo esta experiência formativa, como possibilidade de intervenções pessoais e profissionais, considerando que estas dimensões não se dicotomizam.
Vale lembrar que, ao longo deste processo de formação, foram oportunizadas igualmente, vivências fora de contextos indígenas, em ambientes considerados formativos por responderem à abordagem da “ComVivência Pedagógica”. Diferentemente da perspectiva educativa conteudista e cognitivista hegemônica, é uma proposta pedagógica que envolve “um processo sensibilizador do ambiente educativo, em que indivíduos em relação, numa práxis de conscientização individual e coletiva, possam elaborar e realizar novas relações com o outro [...] na germinação de outro modo de organização social”. (GUIMARÃES e PRADO, 2014, p. 94). Assim, ao desvelar resistências ao modo hegemônico de organização social, o processo educativo se potencializa, revelando e possibilitando novos fazeres (Ibidem).
Segundo Granier (2017), os relatos nas entrevistas com educadores ambientais em formação realizadas em seus estudos mostram que a participação nesse processo formativo em “ComVivência Pedagógica”, com outras epistemologias, desencadeou relevantes transformações em suas formas de perceber e estar no mundo. Percebemos, assim, a potencialidade da proposta, para que possam adquirir e difundir um fazer pedagógico criativo, numa perspectiva de sujeitos individuais e coletivos. Constituem-se como dinamizadores de movimentos contra hegemônicos capazes de semear o novo, na emergência de uma transição paradigmática, germinando novas relações sustentáveis de indivíduos com o mundo.
Acreditamos que a radicalidade desta formação, necessária em tempos de crise, se realiza no desenvolvimento de alguns princípios formativos que identificamos nestes estudos: promoção da reflexão crítica; provocação da indignação ética e o exercício de posturas dialógicas; princípios formativos que iremos desenvolver em produções posteriores.