Introdução
Em um contexto totalmente adverso, em tempos sombrios e no espaço da prisão, o historiador Marc Bloch (2001) conclamou os investigadores das coisas passadas a mudarem sua postura diante das fontes. Em suas palavras, “o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54). O ofício do historiador pautado na postura de um ogro revela inclinações ambivalentes, percursos metodológicos distintos, inquietações historiográficas consideravelmente díspares.
Nesse caso, retomo as digressões do velho mestre da apologia aos estudos históricos no intuito de repensar o meu caminhar como historiador, que palmilhou os caminhos de Clio entre as experiências educacionais e as práticas religiosas. Afinal, até que ponto os pressupostos de racionalidade metodológica da investigação histórica, gestada Europa Ocidental, permitem a compreensão de uma sociedade complexa como a nossa, na qual a realidade é traçada pelo místico, a vida entrecortada pelo imaginário, a razão salpicada pelo mágico?
O próprio Bloch (1999) aponta um caminho possível. No seminal livro Os reis taumaturgos, revela uma possibilidade de o historiador buscar vencer as barreiras da racionalidade no processo de apreensão do mágico, do fabuloso, da realidade mística que atravessa a vida de numerosos grupos humanos. O intangível pode ser alvo da atenção do historiador que busca não somente a história do milagre, mas, principalmente, a história da crença no milagre. Como um espelho a crença revela os sujeitos de outrora. Ao clamar para o sobrenatural, o íntimo do humano institui uma visibilidade. O humano mágico, sonhador, perscrutador das coisas imaginárias também pode ser alvo da inteligibilidade histórica.
Esse é o desafio que venho enfrentando ao estudar a trajetória de duas mulheres que, assim como as protagonistas de Nas margens, de Natalie Zemon Davis, não chegaram a se conhecer. Duas mulheres que passaram a juventude em espaços distantes, envoltas em realidades opostas. Uma no sertão pernambucano, em terras cercadas por indígenas, em fazendas circundadas por montanhas que eram consideradas a materialidade da Grande Mãe1. A outra cresceu na margem oposta do Atlântico, no norte da Espanha, na pequena cidade Riós2, entre a mágica cidade de Santiago de Compostela e o majestoso santuário de Bom Jesus de Braga.
Essas mulheres, no ápice da juventude, vivenciaram experiências com o sagrado. Na apoteose dos sentidos, essas mulheres viram, sentiram, ouviram e conversaram com o sagrado, em episódios que podem ser interpretados como aparições marianas no Brasil3. Ainda sob o impacto dos milagres de Fátima4, as jovens teriam se tornado testemunhas das mensagens marianas que traçavam uma leitura sobre o cenário político do Brasil no entre guerras, tecia uma leitura comum de passado, projetava um projeto comum de futuro. Foram episódios complexos, com recepções ambivalentes, instáveis, tracejada entre a edificação de uma visibilidade e a elucidação de um silenciamento com a imersão do tempo lento da clausura. Sim, na experiência das videntes, o tempo se faz espaço. O espaço se faz tempo. A presença do sagrado propicia o retorno ao tempo mítico, assim como o espaço sagrado da aparição perpetua a experiência temporal.
Uma realidade complexa e marcada por diferentes estratégias de recepção torna a experiência das videntes ambígua, escorregadia. Trata-se de um terreno pantanoso, no qual arrisco os primeiros passos, preocupado, de antemão, com as narrativas tecidas acerca das visões. Mais do que uma pesquisa inicial, apresento as primeiras impressões sobre os episódios vivenciados entre 1929 e 1937.
Ao longo dos anos 30, no Brasil, jovens teriam testemunhado aparições miraculosas da Virgem, portadora de mensagens que denunciavam os perigos do comunismo que poderiam afetar o Brasil e “promover o derramamento de sangue”. Com isso, em Campinas, no interior paulista, a Virgem teria aparecido para uma religiosa e se intitulado de Nossa Senhora das Lágrimas de Sangue. Poucos anos depois, em Cimbres, Pernambuco, duas jovens camponesas teriam testemunhado a aparição de Nossa Senhora das Graças com as mãos ensanguentadas. Em ambos os casos as mensagens foram apresentadas como o anúncio da tentativa de implantação do novo regime no Brasil. Nas duas situações emergiam devoções atreladas ao sangue que seria derramado pelo povo brasileiro a partir da ameaça comunista.
Diante disso, emerge a necessidade de promover a análise acerca de tais mensagens presentes nos discursos construídos ao longo da década de 30 do século XX, no intuito de encontrar as proximidades e os distanciamentos nos relatos sobre as contemporâneas aparições marianas. Nesse sentido, torna-se salutar, a partir de uma perspectiva comparativa, compreender as trajetórias das videntes, com ênfase para elementos como classe social, família, idade, vinculação com congregações católicas e receptividade das narrativas pelas autoridades eclesiásticas. Tais elementos auxiliam para elucidar a constituição de um perfil acerca de videntes de aparições marianas ao longo do século XX.
O texto tem como fonte privilegiada, na medida do possível, as vozes das videntes. Em decorrência das duas personagens apresentarem trajetórias vinculadas a congregações católicas, a maior parte dos testemunhos encontra-se articulado no processo de construção da memória oficial acerca das visões miraculosas. Nesse sentido, as falas das videntes partem de um lugar social definido e comum da própria instituição. Além disso, nos dois casos, os principais registros foram produzidos no processo de averiguação das visões, em forma de depoimentos prestados a autoridades religiosas, masculinas, como bispos ou padres designados por elas. O discurso produzido pelas videntes apresenta-se a partir da mediação de sujeitos envoltos na hierarquia católica.
O primeiro caso teve como palco uma nova congregação feminina, o Instituto das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado. Tratava-se de uma congregação criada no dia 3 de maio de 1928, dia da Exaltação da Santa Cruz. A congregação teve como origem a partir de uma associação religiosa, liderada pela devota da Sagrada Paixão de Cristo, Maria Villac. Foi o bispo da Diocese de Campinas, Dom Francisco de Campos Barreto, que convidou Maria Villac para transformar a associação em uma congregação religiosa. Portanto a congregação na qual ocorreu a aparição tinha como fundador o bispo diocesano.
A vidente das aparições marianas foi a irmã Amália Aguirre. Ela nasceu no dia 22 de julho de 1901, em Riós na Espanha, filha de Andres e Emerita Aguirre. Após o final da Primeira Guerra Mundial, em 1919, juntamente aos seus seus pais veio ao Brasil. Oriunda de família religiosa, ela integrou-se ao grupo liderado por Maria Villac e, em 1928, deu início a sua vida religiosa na Casa-Mãe de Campinas, onde o Bispo Dom Francisco de Campos Barreto havia criado a nova congregação. A Irmã Amália Aguirre integrava o grupo das primeiras religiosas que recebeu o hábito de noviciado no dia 11 de maio de 1928. Descrita nos documentos como uma mulher de aparência frágil e com parcos conhecimentos teológicos, ela se tornaria o centro das atenções da congregação nos seus primeiros anos.
As visões sagradas da Irmã Amália Aguirre tiveram início em 1929. Primeiramente teria ocorrido a aparição de Jesus Manietado, uma devoção diretamente associada à nova congregação. A parti desse momento a irmã teria iniciado as suas visões de Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Nos idos de 1931 a religiosa professou os votos perpétuos e adotou o nome religioso de irmã Amália de Jesus Flagelado. Em 1953, transferiu-se para Taubaté, onde fundou uma nova casa. No dia 18 de abril de 1977 faleceu em Taubaté com fama de santa.
O fenômeno das aparições de Campinas teve como vidente apenas a Irmã Amália de Jesus Flagelado. Ela torou-se a única testemunha das mensagens deixadas por Cristo e por Nossa Senhora. Contudo, a experiência da religiosa foi amplamente divulgada na imprensa e testemunhado por religiosos da alta cúpula eclesiástica, jornalistas e médicos. Dessa experiência visionária, emergiu uma nova devoção mariana em terras brasileiras: Nossa Senhora das Lágrimas de Sangue.
No dia 8 de março de 1930, na capela do Instituto das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, a Irmã Amália de Jesus Flagelado testemunhou a aparição de Maria, autoproclamando-se Nossa Senhora das Lágrimas. Nessa aparição a visão expressou os seus pedidos e pediu a difusão de novos objetos e práticas devocionais, como a Medalha das Lágrimas e o Terço das Lágrimas de Sangue. Além disso, na aparição, a Virgem repetiu o pedido que vigorou em outros fenômenos similares ocorridos em outras partes do mundo anteriormente, com os votos por oração, sacrifício e penitência. Esse seria o caminho para salvar o Brasil de uma investida comunista e das ameaças do inferno. O Brasil adentrava no cenário internacional das aparições e da ameaça comunista5.
As visões em Campinas explicitam alguns elementos peculiares, se compararmos com experiências visionárias do mundo contemporâneo. Uma questão relevante foi a da visibilidade do fenômeno no âmbito da imprensa. Com isso, desde as primeiras manifestações, a imprensa tornou-se presente com a descrição dos episódios e a sugestão de se tratar de “circunstâncias sobrenaturais” (CORREIO POPULAR, 1929, p. 1). No dia 14 de novembro de 1929 foi publicada uma matéria com a apresentação dos principais episódios que tinham ocorrido em Campinas.
Uma religiosa, de nacionalidade hespanhola, que adoptou o nome de Amália de Jesus Flagelado, vem soffrendo diariamente em horas diversas, todos os symptomas de uma estygmatização, cahindo após e, profundo extase durante o qual fala com Jesus Christo e prega a mais linda doutrina catholica, expendendo conhecimentos muito superiores aos seus próprios que são “rudimentares”. Hontem, a santa religiosa, como já está sendo chamada nesta cidade, teve uma crise mais forte (CORREIO POPULAR, 1929, p. 1).
A aparição e o fenomeno dos estigmas tornram-se alvo da imprensa com a realização de matérias jornalísticas. O texto publicado no jornal Correio Popular expressa o episódio como isento de questionamento. Pelo contrário, os episódios atinentes à visão da Irmã Amália eram descritos como dignos da fé, sinais tangíveis das virtudes da religiosa e dos prodígios da nova congregação. Desse modo, tanto os jornalistas quanto as autoridades religiosas da Diocese enfatizavam o caráter sagrado das manifestações, circunscritas pela expressão de conhecimentos da doutrina cristã, aparentemente inacessíveis para uma religiosa de conhecimentos “rudimentares”. O periódico campineiro expressou:
Manifestações Místicas de uma religiosa do "Instituto Missionário de Jesus Crucificado" - Em seus Extases, Estigmatizada, Sóror Amélia de Jesus Flagelado prega a mais linda doutrina Católica, revelando conhecimentos superiores aos seus próprios, que são rudimentares. - O Sr. D. Francisco Barreto, bispo diocesano, concede uma entrevista a um jornalista sobre o interessante caso. - A curiosidade popular em torno do fato sobrenatural. - Notas diversas (CORREIO POPULAR, 1929, p. 1).
O milagre era descrito com detalhes. O sinal apresentado como prova inconteste da manifestação sagrada eram os estigmas. O corpo da religiosa tornava-se sinal tangível do poder miraculoso, as feridas na carne expressavam o compartilhamento das dores da Paixão. Nesse caso, os estigmas expressavam mais do que sinais no corpo. Eram fissuras no tempo, que levavam a Irmã Amália para o tempo mítico da Paixão de Cristo. Pelos estigmas a irmã compartilhava a experiência da Paixão em um deslocamento no tempo e no corpo.
No caso de Campinas, as aparições poderiam ser expressas em duas oportunidades: em 1929 com a manifestação do próprio Cristo, da qual emergiria a devoção a Jesus Manietado (amarrado), e em 1930 com a visão de Nossa Senhora das Lágrimas. Na aparição do dia 8 de abril de 1930 Nossa Senhora teria pedido para que fossem produzidas as medalhas devocionais. Confira a Figura 2.
A visão da Virgem em Campinas é o elemento central da experiência miraculosa. Um indício disso é a pouca atenção atribuída à visão de Jesus Manietado nos idos de 1928. Neste ano, a Irmã Amália de Jesus Flagelado teria testemunhado uma visão de Cristo. Essa descrição de uma manifestação anterior, como preparação das visões subsequentes, assemelha-se ao fenômeno de Fátima, na qual as memórias das Irmã Lúcia elucidam que ao longo de 1916 os três pastorinhos teriam visto o “Anjo de Portugal” (SANTOS, 2017). Nos dois casos, tanto as visões do anjo como a de Jesus Manietado teriam sido um prenúncio das visões marianas que ocorreriam no ano seguinte, ou seja, a visão mariana emerge como a centraldiade dos fenômenos.
No texto publicado no Correio Popular, marcado por inúmeros comentários, explicações teológicas e doutrinárias do bispo diocesano Dom Francisco Barreto, a trajetória da Irmã Amália de Jesus Flagelado é apresentada com um viés hagiográfico. Os traços da vida da religiosa são apresentados em âmbito comparativo, em uma estratégia que atrela a vida de Irmã Amália à trajetória de santos reconhecidos pela Igreja Católica. A experiência foi apresentada como algo inexplicável, fora do âmbito da ciência, ou seja, como um sinal divino entre os homens.
Campinas, 13 - Há dias que vêm correndo pela cidade a Notícia de que, no "Instituto Missionário Jesus Crucificado", situado a Rua Dr. Quirino 77, estabelecimento religioso fundado pelo D. Francisco de Campos Barreto, bispo diocesano, um facto inédito, que escapa do poder da ciência médica. Ali se vem passando por circunstâncias sobrenaturais, está preocupando os espíritos mais fortes, tecendo uma lenda de Santidade em torno de uma Irmã de caridade daquele acolhimento (CORREIO POPULAR, 1929, p. 1).
Nesse caso, as visões, as mensagens e os estigmas da religiosa do Instituto Missionário Jesus Crucificado seriam uma reafirmação dos mistérios devocionais difundidos em outras plagas e, possivelmente, o agraciamento divino da nova congregação criada em Campinas pelo Bispo Dom Francisco de Campos Barreto e pela Madre Maria Villac, no dia 3 de maio de 1928, dia da Invenção da Santa Cruz. O jornal apresentou a seguinte narrativa:
No dia 17 de agosto manifestou-se o primeiro estygma, semelhante ao de São Francisco de Assis e o de Gemma Galgani, na Itália, abrindo-lhe feridas gottejantes em ambas as mãos, tanto no dorso, quanto na palma, nos pontos exactos em que as de Jesus foram varadas pelos pregos na cruz [...]. as manifestações de estymatizada se revelam em soro Amalia quase diariamente, sendo a mais suppliciante a da que relembra a coroa de espinhos que flagellou Nosso Senhor. Nesses momentos, da testa muito clara da religiosa aprofundam-se golpes produzidos por espinhos e o sangue jorra abundante. Seu martyrio é inenerrável. Em uma dessas occasiões, foi chamado o dr. Falcão de Miranda, o qual, em attestado, que se acha em poder de d. Barreto, declaro não se tratar de um caso de clínica. Pela primeira vez, hontem, das 7 horas e meia as 10 e meia da manhã, a piedosa irmã soffreu toda a tortura da grande paixão de Jesus, sendo este facto presenciado por s. exc. O sr. Bispo, de todas as irmãs do Instituto e diversas pessoas. Durante essas manifestações Amália de Jesus Flagellado permaneceu num estado que não se pode definir de cataleptico, pois não está nem dormindo, nem sonhando, nem acordada. Não dorme porque responde a todas as perguntas, não sonha porque fala com precisão, não está acordada porque não sente dores physicas, como picadas de alfinetes, fricções, etc. Taes foram as palavras de Dom Francisco de Campos Barreto, que as disse - frisou bem a s. ex. - com as devidas reservas, pois o facto continua a merecer accurado estudo e será a Santa Sé que definirá, esclarecendo-o devidamente (CORREIO POPULAR, 1929, p. 1).
Um elemento incomum nas aparições de Campinas é a tutela do bispo diocesano, que desde o primeiro momento demonstrou apoio e reconhecimento sobre a causa. Prova disso é a autorização imediata do Terço das Lágrimas e da Medalha das Lágrimas para serem disseminados em âmbito diocesano por meio do Imprimitur assinado em 8 de março de 1932.6 Em 1934 ele prefaciou o primeiro livro que discutiu as visões da Irmã Amália de Jesus Flagelado acerca de Cristo Manietado e de Nossa Senhora das Lágrimas, intitulado Glórias e poder de Nossa Senhora das Lágrimas. Tratava-se de uma obra que apresentava as aparições como um fenômeno miraculoso, explicado como uma graça divina. Contudo, apesar do apoio instituído pelo bispo, as mensagens da aparição e a devoção a Nossa Senhora das Lágrimas tornaram-se pouco representativas e ainda não foram aprovadas pela Santa Sé. Apesar de ter ocorrido uma difusão diocesana no primeiro momento, nos anos subsequentes houve um silêncio acerca dos episódios de Campinas, possivelmente, em decorrência da morte do principal entusiasta das visões, Dom Francisco de Campos Barreto, nos idos de 1941.
A segunda aparição ocorreu no Nordeste brasileiro, na vila de Cimbres, município de Pesqueira, em Pernambuco. Esse episódio teve como videntes duas jovens camponesas que saíram pelo matagal no intuito de colher mamonas.7 Eram Maria da Luz Teixeira e Maria da Conceição. As jovens ouviram um grande estrondo e viram “um raio de fogo cortar o céu. Ao se aproximar de um rochedo, as duas meninas teriam visto Nossa Senhora, apresentando-se como Virgem das Graças e que se encontrava com as mãos ensanguentadas” (SANTOS, 2017). De acordo com a narrativa do Padre Kehrle (1941, p. 3):
Foi no ano de 1936, dia 6 de agosto, que Arthur Teixeira mandou que sua filha Maria da Luz, junto com Maria da Conceição fossem ao sítio colher as sementes de Mamona. Obedientes, seguiram as duas, conversando sobre o tempo passado de perseguição e perigo. Em dado momento, Maria da Luz perguntou a sua companheira: “o que você faria se agora mesmo chegasse aqui Lampião?” Imediatamente esta respondeu: Nossa Senhora haveria de dar-nos um jeito para este malvado não nos ofender”. E, olhando em direção à Serra, ficou por um tempo surpreendido. Parecia ver no alto da Serra uma imagem em forma de mulher com uma criança que lhe fazia sinais com a mão. Apontando para a Serra, disse bem alto: “Olha lá uma imagem!” Maria da Luz olhou na direção apontada e também viu a imagem. “Uma mulher bonita, com um menino nos braços”
O registro do Padre José Kehrle (1941), um dos religiosos responsáveis pela averiguação das aparições, elucida a experiência visionária das duas jovens em articulação com contexto marcado pela violência de grupos de jagunços. O medo do deslocamento é o enredo que demarca a saída das jovens. Contudo a visualização da imagem de Nossa Senhora não é descrita como uma visão de temor. Pelo contrário, aparece como um alívio, uma resposta sagrada pelos pedidos de proteção.
O sangue nas mãos da Virgem foi associado à ameaça da expansão do comunismo no Brasil, pois “o sangue que seria derramado no país com a chegada do comunismo” (KEHRLE, 1941, p. 35). Sobre a trajetória de Maria da Conceição quase nada há divulgado. Sabe-se apenas que era de origem humilde e que foi criada pela família de Maria da Luz. De acordo com Ana Lígia Lira (2014, p. 156), ela nasceu em 1920 e faleceu em 1999.
Trata-se de uma trajetória que se aproxima ao de outra mulher brasileira que teve uma experiência religiosa alguns decênios antes. Maria da Conceição apresentava condições sociais similares ao da beata Maria de Araújo, a beata do Milagre da Hóstia no Juazeiro do final do século XIX. Assim como a beata Araújo, Maria da Conceição foi silenciada, impossibilitada de ingressar em uma congregação religiosa e viveu em situação de pobreza com votos de castidade. Trata-se de uma mulher que foi marginalizada, permanecendo fora do âmbito institucional.
Já em relação à trajetória de Maria da Luz existe uma documentação mais consistente, pois ela ingressou em uma congregação católica. Ela entrou na Congregação das Damas em Recife e permaneceu na capital pernambucana até o falecimento em 2013. Uma questão que destoa em relação ao caso anterior é a ausência de uma comissão para o estudo das aparições. Como elucida Dom Rafael Maria Francisco da Silva, “todo o interesse no suposto Santuário se manteve pelas “construções” rentáveis, mas nunca se ouviu falar de uma Comissão Teológica para estudar a veracidade das aparições” (SILVA, 2016, p. 47). A devoção oriunda das visões perpassa por outras inquietações, como o conflito acerca das terras da localidade onde teria ocorrido a aparição, envolvendo os índios Xucuru.
Outro elemento relevante no caso da aparição de Cimbres é a data. O episódio inaugural teria ocorrido no dia 6 de agosto, dia da Festa Litúrgica da Transfiguração de Jesus. O primeiro dia foi marcado por duas aparições: a primeira, pela manhã, foi testemunhada pelas duas meninas, que estavam sozinhas e apenas contemplaram a imagem, sem diálogo. Pela tarde, o pai de Maria da Luz acompanhou as duas meninas para a Serra do Ororubá para ver o que tinha ocorrido. No mesmo local as duas meninas mostravam com entusiasmo a imagem, mas Arthur nada via. Foi nessa ocasião que ocorreu o primeiro diálogo com a mensagem mariana:
Quem é você? Perguntou Maria da Luz, e a imagem respondeu: “Eu sou a Graça”.
Que quer a Senhora aqui? Perguntou Maria da Luz novamente.
Respondeu a aparição: “vim para avisar que hão-de vir três castigos mandados por Deus”. E com pouco continuou: “Digam ao povo que reze e faça penitência” (SILVA, 2016, p. 68).
A primeira mensagem mariana em terras pernambucanas é marcada pela ameaça de castigo divino, um sinal da insatisfação com o destino político do país. O Brasil foi apontado como um espaço ameaçado. O caminho da salvação perpassa pela busca de orações e de penitencias. Era necessário purgar pelos erros cometidos. Mas quais erros? Quais eram os motivos dos castigos?
Essas informações não apareceram nas primeiras mensagens. Até mesmo no inquérito realizado no local das aparições, com a presença das duas videntes acompanhadas pelo padre Manoel Marques e Frei Estévão Roetgger, no dia 10 de setembro de 1936, os dados aparecem imprecisos. De acordo com o Padre João Maria Lombaerde (1939, p. 37), o inquérito apresentou o seguinte diálogo:
Que é necessário fazer para desviar os castigos? - “Penitência e oração”.
Qual a invocação desta aparição? - “Das Graças”.
Que significa o sangue que corre das vossas mãos?
- “O sangue que inundará o Brasil”.
Virá o comunismo a penetrar no Brasil? - “Sim”.
Em todo o País? - “Sim”.
Também no interior? - “Não”.
Os padres e os bispos sofrerão muito? - “Sim”.
Será como na Espanha? - “Quase”.
Quais as devoções que se devem praticar para afastar esses males? - “Ao coração de Jesus e a mim”.
Esta aparição é a repetição de La Salette? - “Sim”.
No livro de Lombarde (1939), os elementos anticomunistas aparecem com maior precisão. A aparição da Virgem seria um sinal dos novos tempos que ameaçavam adentrar no país. O comunismo, o sangue derramado, o exemplo da Guerra Civil Espanhola, foram elementos que aproximaram as aparições da cultura política católica dos anos 30, nas quais o anticomunismo se tornava uma questão nodal.
Nesse sentido, as mensagens marianas divulgadas pelas videntes, ressaltam-se um elemento em comum: a preocupação com a expansão do comunismo pelo mundo. O poderio político soviético o longo da década de 30 do século XX é descrito como uma ameaça ao mundo católico e somente a junção de reza, penitência e sacrifício poderiam inibir a expansão dessas ideias por novos países, como Portugal (momento no qual a Irmã Lúcia escreve o diário com as primeiras referências às ameaças da Rússia comunista) e Brasil.
Como expressa a medalha devocional de Campinas, a dedicação a Jesus Manietado poderia “salvar o mundo do erro que se acha ameaçado”. Isso ocorreu justamente no período no qual Brasil estava vivendo uma importante articulação entre o clero católico e o poder estatal com a difusão de uma cultura política varguista que tentava reinventar a sua identidade nacional, pautada no uso das tradições, no revigoramento do catolicismo e com a ênfase em ruptura política a partir da designação do Estado Novo.
Passado e presente coadunavam na construção de uma cultura política católica anticomunista. As representações da Virgem e do Cristo expressam a dor com as imagens cabisbaixas, de certo modo, constrangidas pelos desvios humanos. O rosário, por sua vez, aparece como o foco de luz que poderia converter o povo e derrubar o “império infernal”. Nas duas iconografias, destacam-se os cenários: a Virgem aparece como se tivesse descido do altar, vestida de roxo, com expressão triste e lacrimosa, para entregar a vidente o seu rosário de lágrimas. Trata-se de uma representação similar ao da Virgem dolorosa.
O Cristo, todavia, aparece em um cenário diferenciado, como se remetesse à antiga Jerusalém. De um lado aparece no horizonte a velha cidade cercada pelas muralhas. Do outro, um jardim. Próximo aos pés do “Manso Cordeiro” aparece o fragmento de uma coluna, como o indício de uma demolição, sinalizando a decadência que ameaça o mundo.
A própria intitulação das duas novas devoções elucida a aproximação entre a tradição católica devocional do país e a emergência de uma cultura visionária moderna. Nossa Senhora das Lágrimas de Sangue remete à Virgem dolorosa, testemunha dos martírios de Cristo. Trata-se de uma devoção recorrente na sociedade brasileira, principalmente, entre os segmentos sociais marginalizados.
O Jesus Manietado, apesar de possuir um título diferenciado das devoções populares, apresentava uma iconografia que dialogava com o repertório devocional das camadas populares por meio da devoção do Bom Jesus. Tratava-se do Cristo amarrado e apresentado ao público, muito similar ao ícone do Ecce Homo, devoção predileta da população do interior paulista em santuários como o de Pirapora do Bom Jesus, Bom Jesus dos Perdões, Bom Jesus do Braz, Bom Jesus de Tremembé e Bom Jesus do Iguape. Além disso, tanto Nossa Senhora das Lágrimas, quanto o Cristo Manietado eram devoções associadas diretamente à Congregação das Irmãs de Jesus Crucificado, criado pelo bispo de Campinas e que tinha como expressão central a difusão das práticas penitenciais em torno do calvário.
Ao contrário da aparição de Campinas, que teve como lastro devoções tradicionais do catolicismo das camadas populares no Brasil, centradas nos episódios da Paixão, o fenômeno de Cimbres teve como respaldo o diálogo com as modernas aparições do mundo Europeu, incluindo a repetição da titulação mariana. A mensagem da Virgem reproduzida pela vidente revela a confirmação da reforma devocional católica, empreendida no país desde o final do século XIX, com o reforço a difusão do culto a Nossa Senhora das Graças e do Sagrado Coração de Jesus.
O processo de reconhecimento das autoridades da Igreja Católica acerca das aparições ocorreu em um momento crucial, um ano após a eclosão da chamada Intentona Comunista. O socialismo e a União Soviética não eram tidos como ameaça distante e desconexa em relação à possibilidade de o Brasil ingressar na seara socialista. Pelo contrário, as autoridades elencavam o medo presente nos anseios sociais e na própria impressa do perigo de ocorrer uma revolução no país.
A Igreja católica, por meio de suas narrativas miraculosas, reafirmava esse medo e propagava uma cultura histórica na qual o comunismo era tido como uma das armas mais ferozes. As mensagens marianas preconizam uma ação mediada pelas orações como forma de reparar os danos provocados pela descrença. Como destacou o padre Lombaerde (1940, p. 61), “as advertências de Nossa Senhora eram reiteradas: pedia sempre e insistia que era preciso rezar; senão seu Filho castigaria severamente o Paiz”. Por outro lado, o medo do comunismo já estava proliferado pelo Brasil. Um indício desse medo está presente na Carta Pastoral da Província Eclesiástica da Bahia, publicada em 1931.
Não há dúvida de que o Brasil atravessa hoje a hora talvez mais grave de sua história. E já começam a aparecer sinais inequívocos de que a onda rubra da Rússia soviética caminha a passos agigantados para o Brasil, trazendo-lhe o cortejo dos horrores sociais que todos hoje conhecemos e que é bom experimentarmos nas lições formidáveis de outros países, para acudir a ruína do nosso (SILVA, 1931, p. 3).
Essa visão do clero difundida em um documento eclesiástico revela como a concepção anticomunista era difundida pelo Brasil dos anos 30 do século XX. Certamente tais ideias eram proliferadas nos sertões, por meio das homilias apresentadas pelos párocos em seus púlpitos e deve ter contribuído para constituir uma leitura de mundo na qual a Rússia era representada como uma experiência espacial do inferno terreno, a porta de entrada das ideias perigosas. Nesse sentido, as mensagens marianas difundidas no país por meio das videntes se coadunavam com os interesses da cúpula da Igreja Católica, reafirmando como a corte celestial temia sobre o futuro do Brasil na condição de nação.
Contudo a perspectiva anticomunista não foi exclusiva do governo brasileiro. Entre 1928 e 1937 a Santa Sé publicou seis documentos para discutir a propagação do comunismo em países como Rússia, México e Espanha e reiterar as ações das nações católicas e da imprensa no processo de resistência e combate aos ideais marxistas. O Vaticano alinhou-se às nações do mundo ocidental, com a difusão de cultura política católica anticomunista, ao publicar documentos nos quais denunciavam as mazelas do comunismo.
Em 19 de março de 1937, dia de São José, patrono da família católica, Pio XI (1937) publicou o documento que elucidava uma postura de maior criticidade e combate ao comunismo, no qual elucidava os riscos das pretensões de propagação dos ideais por todo o mundo. Timidamente o documento consagra a população russa à Igreja Católica, tida como a instituição paternal que reconhecia a condição de escravidão e enganação na qual os russos estariam subjugados.
Tanto Campinas quanto Cimbres explicitaram os desvios da humanidade e o caminho da redenção por meio da oração e da penitência. Todavia, apesar de existir um relativo apoio de algumas autoridades religiosas em ambos os casos, as aparições brasileiras dos anos 30 reverberaram apenas no decênio posterior a visão. Com a morte dos seus defensores, os processos foram esquecidos e as devoções paulatinamente silenciadas com o retorno da prudência. Em Campinas, após a morte de Dom Francisco de Campos Barreto, em 1941, a devoção a Nossa Senhora das Lágrimas foi transplantada para os bastidores. A capela onde teria ocorrido a aparição foi fechada para o acesso público, tornando-se acessível apenas para as Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado. A imagem devocional da Virgem das Lágrimas, exposta no altar da catedral, foi retirada e levada para a capela conventual. De modo similar, o livro Glórias e Poder de Nossa Senhora das Lágrimas desapareceu do acervo das bibliotecas católicas.
No caso de Cimbres a situação foi ainda mais complexa. O padre Kehrle foi afastado da paróquia de Pesqueira e o silêncio sobre as aparições perpassaram as trajetórias da Irmã Adélia e de Maria da Conceição. Com a morte do padre Kehrle, de Frei Estêvão Rottiger e da vidente, a documentação foi fragmentada, dificultando a reabertura do processo. Além disso, a localização do santuário das aparições em terras dos índios Xucurus dificultou o acesso dos devotos, em decorrência dos inúmeros conflitos envolvendo fazendeiros e índios disputando a posse das terras. Contudo, apesar do reconhecimento das especificidades nas duas experiências visionárias, torna-se salutar entender como a tradição católica devocional a Nossa Senhora tornou-se o lastro para a divulgação de diferentes propostas de culturas políticas, respaldadas nos usos do passado e na edificação de um futuro guiado pelas mensagens. A crença nos milagres tornou-se um elemento importante na reconciliação entre a Igreja Católica e o Estado na edificação de um projeto de nação no Brasil.