Introdução
Esta pesquisa está inserida na temática de biografia de mulheres, com foco na formação educativa e atuação profissional de professoras, mais especificamente daquelas que galgaram alto nível de formação educativa, superando paradigmas que relegaram a mulher ao analfabetismo ou à escolarização elementar. Vale ressaltar que a escrita da história das mulheres, na perspectiva da história cultural, é recente, datando da década de 1980 (PERROT, 2017). Embora a biografia tenha sido desacreditada por séculos, ela emerge como possibilidade de fomentar um tipo de estudo científico que permite ensejar visibilidade a sujeitos e contextos microssociais invisibilizados na história oficial (BURKE, 1992), especialmente no caso de mulheres, com vidas singulares, sobre as quais ainda há muito o que se estudar, debater e conhecer, tendo em vista a existência de preconceitos e diferenças de gênero, resquícios de uma sociedade patriarcal, que ablegou a mulher a segundo plano de importância na história (FIALHO; FREIRE, 2018).
Com relação à sociedade machista, segundo Scott (1995), as mulheres são hierarquicamente subordinadas aos homens, patriarcas da comunidade. Desse modo, o histórico patriarcalismo é caracterizado pela superioridade masculina em detrimento da valorização feminina, restando às mulheres brasileiras, durante séculos, a centralidade na procriação e nos cuidados domésticos (MENDES; FIALHO; MACHADO, 2019).
Mesmo com todas as transformações sociais e culturais no decorrer dos anos, o sistema patriarcal sobreviveu, reproduzindo paradigmas que situam as mulheres em um patamar de inferioridade e submissão aos homens, apresentando-se de forma mais sutil do que outrora, mas ainda presente no âmbito familiar, profissional e social como um todo, por meio das desigualdades observadas entre os gêneros (FIALHO; QUEIROZ, 2018). A esse sistema patriarcal atual, que preserva os mesmos predicados de subalternização da mulher, com outros formatos, Machado (2000) denomina de “patriarcado contemporâneo”. Somando-se a este, à mulher negra recai outro preconceito, o étnico-racial, pois desde a colonização europeia se destina à negra uma percepção negativa e de inferioridade (OLIVEIRA; ARAGÃO, 2018).
Importa, pois, lançar visibilidade às mulheres que conseguiram se empoderar e lutar contra os padrões consolidados, lançando reflexão sobre oportunidades e obstáculos referentes ao contexto educativo e profissional feminino. Nesse sentido, para a realização deste trabalho, a mulher escolhida para ser biografada foi Maria Zelma de Araújo Madeira, uma mulher negra, professora universitária, nascida em 1967 no interior do Piauí, em um município chamado Aroazes. Zelma Madeira, diferentemente da maior parte das meninas negras, pobres e interioranas do Nordeste, conseguiu alto nível de escolarização e, na condição de docente, alcançou determinada visibilidade dentro do meio acadêmico, devido ao seu engajamento nas lutas políticas e sociais, trabalhando com a temática racial e buscando minimizar as desigualdades por meio da educação, da conscientização e do conhecimento.
Dessa maneira, uma inquietação se destacou como a problemática central da pesquisa: como uma educadora negra, oriunda da classe trabalhadora, conseguiu entrar na universidade, ganhar reconhecimento e exercer influência acadêmica e social? Para responder a essa inquietação, desenvolveu-se uma pesquisa biográfica de Maria Zelma de Araújo Madeira, menina pobre e negra que se tornou docente universitária, a qual, inspirada na superação do preconceito racial, fomentou uma educação crítica voltada para a cidadania e justiça social.
O objetivo deste estudo foi compreender como uma jovem negra e interiorana, de classe econômica baixa, conseguiu escolarizar-se, em tempos de maior exclusão educacional, para tornar-se professora universitária e militante feminista negra respeitada no estado do Ceará. Acredita-se que o estudo pode contribuir não apenas para preservar a história e memória da docente Zelma Madeira, o que já seria interessante, mas possibilitar refletir sobre a educação e profissionalização feminina destinada a meninas pobres e interioranas no Ceará, bem como sobre o lugar da mulher negra na sociedade.
Metodologia
Desenvolveu-se um estudo do tipo biográfico (DOSSE, 2015), pautado nos pressupostos teóricos da micro-história (LORIGA, 2011) e da história cultural (BURKE, 1992; CERTEAU, 1982), na perspectiva da história do presente (FERREIRA; AMADO, 2006), amparado metodologicamente na história oral (ALBERTI, 2005).
A biografia possui natureza qualitativa, pois procura compreender aquilo que não poderia ser quantificado, como atitudes, crenças e valores (MINAYO; GOMES, 2011). Utilizou-se o estudo biográfico de Zelma Madeira visando entender as singularidades de uma vida atrelada a um contexto mais amplo, ou seja, relacionar a vida da biografada com o contexto social (DOSSE, 2015). Nessa perspectiva, Leite (1984, p. 12) afirma que “[...] são significativas as biografias que, ao conseguir delinear as características individuais do biografado, apresentam uma relação dialética entre o contexto social e a atuação de aproximação ou distanciamento do indivíduo desse contexto”.
A micro-história, ao permitir reduzir a lente de análise, com foco em sujeitos e contextos específicos, possibilita lançar luz a nuances e singularidades não captadas em pesquisas macro-históricas (LORIGA, 2011). Nesse viés, o estudo caracteriza-se por ser essencialmente historiográfico, situado na história da educação, dando enfoque às subjetividades do sujeito protagonista, Zelma Madeira, para situar e contextualizar as problemáticas do campo educacional e social. Burke (1992, p. 135), sobre pesquisas que envolvem o contexto social, explica que:
Seu trabalho tem sempre se centralizado na busca de uma descrição mais realista do comportamento humano, empregando um modelo de ação e conflito do comportamento do homem no mundo que reconhece sua - relativa - liberdade além, mas não fora, das limitações dos sistemas normativos prescritivos e opressivos. Assim, toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais.
Nesse sentido, é valido salientar que o indivíduo é sujeito de escolhas, mas também sofre influências dos padrões que já estão postos na sociedade. Logo, os caminhos percorridos são frutos de uma relação indissociável entre anseios pessoais e possibilidades contextuais diante de uma sociedade previamente já organizada e normatizada (FIALHO; VASCONCELOS, 2019).
O estudo fundamenta-se na história cultural, sob o viés da terceira fase dos Annales, que apresentou maior maturidade analítica e trouxe a fragmentação e a valorização das narrativas históricas, desconsiderando a possibilidade de uma história única e universal contada pelos donos do poder (DOSSE, 2015). A pesquisa possibilita uma história do cotidiano, que não mais se deterá às hagiografias ou aos heróis, mas a qualquer sujeito: mulheres, homossexuais, negros etc. (BURKE, 1992). Essa geração dos Annales ampara um alargamento das fontes históricas, passando a levar em consideração todo vestígio que conta a história da pessoa: cartas, bilhetes, utensílios, documentos pessoais, diários, depoimentos etc. (CERTEAU, 1982). Um novo paradigma é estabelecido a partir de então, passando a memória pessoal a ter um significado cada vez maior para a memória coletiva, isto é, uma análise da vida individual imbricada na coletividade (FIALHO; LIMA; QUEIROZ, 2019). Para Halbwachs (2004, p. 85), “[...] toda memória é coletiva, e como tal, ela constitui um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros”.
Zelma Madeira é professora efetiva do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e possui um e-mail institucional publicizado. O contato inicial foi realizado por meio de mensagem eletrônica, sondando-a acerca da sua receptividade ante o interesse em biografá-la. Ela aceitou de imediato e se prontificou a contribuir com a pesquisa, viabilizando o agendamento da entrevista presencial.
Por se tratar de pesquisa envolvendo seres humanos, submeteu-se o projeto do estudo ao Comitê de Ética em Pesquisa, que recebeu parecer favorável de número 2.585.705, em 06 de abril de 2018. Posteriormente, foi realizada uma entrevista livre em história oral com Zelma Madeira, após a sua assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, que explicava o objetivo da pesquisa, bem como a metodologia, forma de participação da entrevistada, possíveis riscos, liberdade de recusa, participação voluntária, publicização das oralidades em trabalhos científicos, dentre outros aspectos éticos. As entrevistas foram gravadas, transcritas, textualizadas e validadas pela biografada mediante a técnica de estrutura do discurso (FLICK, 2009), efetivada pela leitura e análise do texto pela informante, que teve a oportunidade de realizar acréscimos e retiradas, incorporando outras subjetividades e confirmando as informações transcritas1.
É importante destacar que a entrevista ocorreu de forma livre, sem a utilização de roteiro, permitindo que a entrevistada narrasse sua história de vida de acordo com a relevância que ela atribuía às suas recordações. Apenas quando surgia alguma dúvida por parte das entrevistadoras, ou necessidade de maior esclarecimento para melhor compreensão de informações, era realizada intervenção para perguntar a respeito das inquietações. A entrevista foi desenvolvida na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Ceppir)2, local escolhido por Zelma Madeira, por ser onde ela estava atuando como gestora desde 2015, em uma sala reservada, com duração de aproximadamente 50 minutos. A gravação em dispositivo móvel não apresentou intercorrências e não houve acréscimos ou retiradas na validação.
Formação e atuação profissional de Maria Zelma de Araújo Madeira
Maria Zelma de Araújo Madeira, filha de Gilberto Alberto Madeira e Rosária Firmino de Araújo Madeira, nasceu em 22 de dezembro de 1967, na cidade de Aroazes, que se localiza na microrregião de Valença do Piauí, mesorregião do Centro-Norte piauiense. Ela é a mais nova de três irmãos, sendo o mais velho Acilino Alberto Madeira Neto e a irmã do meio Maria Zélia de Araújo Madeira.
Em Aroazes, nas décadas de 1960-1970, não tão diferente de tantas outras cidades do interior do Nordeste, o acesso à educação formal pelo público feminino era diminuto, pois difundia-se o entendimento de que as mulheres poderiam ser instruídas no próprio lar, seguindo o exemplo das mães, já que não precisavam de níveis elevados de escolarização para galgar um bom casamento e atuar na condição de donas de casa (MAGALHÃES JUNIOR, 2003).
Gilberto e Rosária mudaram-se com sua família para Teresina, capital do estado do Piauí, no início da década de 1970, quando Zelma tinha entre 3 e 4 anos de idade. O êxodo rural foi em decorrência da busca por melhores condições de vida na capital, que envolviam dois principais fatores: maior facilidade em arranjar trabalho em Teresina, haja vista que seu pai era um trabalhador da construção civil e sua mãe costureira; e maiores oportunidades para propiciar uma boa escolarização para os filhos, dado que, de acordo com a biografada, seus pais “[...] apostavam, como a maioria das famílias negras, que nós só iríamos ter a ascensão e uma mobilidade social se nós tivéssemos um processo de escolarização concluído” (MADEIRA, 2019).
Durante a infância, Zelma tinha muita resistência para estudar, uma vez que era vítima de racismo dentro da escola. A esse respeito, ela afirmou: “Eu me intranquilizava muito com o que as pessoas chamam hoje de bullying e eu chamo de racismo. Então eu era ‘nega burra’, ‘nega feia’. Aquela coisa muito truculenta e violenta para mim foi o espaço de escolarização, a escola” (MADEIRA, 2019). Por esse motivo, ela envolvia-se em muitos conflitos, já que revidava as agressões verbais e físicas que recebia.
“O bullying define-se como o comportamento agressivo entre pares, intencional e continuado. O bullying na escola registra-se em diferentes tipos, tais como o físico, verbal e indirecto, e em diferentes espaços” (PEREIRA; SILVA; NUNES, 2009, p. 455). Segundo Abramovay (2006), o bullying é o construto que nomeia as diversas violências que existem há muito tempo nas escolas, referente à intimidação do outro e à sua ridicularização, por meio do constrangimento e coação. Zelma Madeira sofria de racismo, já que tal ridicularização era direcionada à negritude, logo não se tratava apenas de bullying, mas de crime de racismo. Este, durante muito tempo, foi ignorado “[...] em nosso país por acreditar-se na existência de uma democracia racial. Mas essa democracia racial é ilusória, e vários dados indicam como os negros ocupam posições inferiores em nosso país” (BATISTA, 2013, p. 320).
No Brasil, devido à colonização europeia e à condição de escravidão do negro, criou-se uma cultura de valorização da raça branca em detrimento da negra, associando a esta última uma percepção negativa, que era fomentada, inclusive, pelos livros didáticos ao valorizar imagens que traziam o fenótipo branco com distinção e uma história eurocêntrica (OLIVEIRA; ARAGÃO, 2018). Nesse cenário, as crianças, imersas em uma cultura preconceituosa, desde cedo aprendiam a desvalorizar o negro, dificultando as possibilidades do fomento a uma educação justa, igualitária, democrática e libertária (VASCONCELOS; FIALHO; LOPES, 2018).
De acordo com Zelma, ela nunca foi uma criança de suportar tudo o que acontecia no espaço escolar e constantemente se envolvia em brigas, pois, na visão dela como criança, a agressão física era a arma que ela tinha para lutar e se defender, já que, para sua mãe, os argumentos que ela apresentava para não ir à escola não eram levados em consideração:
Não dava para vir com essas linhas argumentativas para a minha mãe, porque ela disse assim: ‘Eu vou lhe mostrar como você vai para a escola!’. Então ela não tinha todo esse trato psicológico, se eu estava sofrendo, se eu não estava, de que forma eu ia enfrentar isso [...]. Ela queria porque queria que eu fosse, que eu passasse de ano, que eu me formasse, que eu fosse para a universidade. (MADEIRA, 2019).
A biografada explica que sua mãe traçou um projeto de vida para conseguir fazer com que os três filhos ingressassem na universidade, por isso nunca desistiu do processo de escolarização e lutou para que a filha caçula não se evadisse da escola, e assim aconteceu: Zelma continuou frequentando a instituição mesmo com todas as dores, conflitos e confusões. Inclusive, relembrava e repetia o que sua mãe dizia: “[...] permanecer na escola era a saída para quem é pobre e negro” (MADEIRA, 2019). Em contraponto a essa situação de sofrer preconceito e ser obrigada a enfrentá-lo, Zelma inferiu que, no ambiente familiar em que ela vivia, era muito amada e considerada bonita e inteligente, ou seja, seus pais cuidavam da sua autoestima e sempre tentavam valorizá-la.
Importa lembrar que, no Brasil, o método criado por Paulo Freire para alfabetizar teve destaque nas décadas de 1960 e 1970, pois este visava combater o analfabetismo, mas em decorrência da ditadura, ele foi interpretado como um elemento de subversão da ordem estabelecida e proibido. Houve o projeto “[...] Mobral, que pretendeu erradicar o analfabetismo, a baixo custo, no período da ditadura militar e que foi um retumbante fracasso” (BRASIL, 2001). Logo, possuir pais analfabetos e com baixa escolarização não era algo incomum, inclusive, na década de 1070, quando Zelma foi alfabetizada, 33,7% da população com mais de 15 anos era analfabeta, ou seja, mais de 16 milhões de pessoas sequer sabiam ler e escrever um bilhete simples (BRASIL, 2001).
Apesar de dona Rosária ter baixa escolarização, ser semianalfabeta, pois só sabia escrever seu nome, ela tinha o entendimento de que o ensino superior era o único caminho que poderia mudar a condição social e econômica de seus filhos. Rosária foi criada pela avó, que trabalhava como lavadeira na casa de uma família rica, em que os filhos estudavam Direito em uma faculdade em Recife. Essa situação despertou em Rosária a vontade de cursar uma faculdade, estimulada por sua madrinha, que era professora em Teresina e tinha interesse em levá-la para a capital para estudar, entretanto, a avó que a criava não permitiu e o desejo foi repassado para os filhos.
Mas ela se espelhou nessa realidade que não era dela, mas ela achou que essa realidade poderia ser dada não a ela, mas os filhos dela poderiam ser naquela perspectiva. Então, ela tem todo orgulho. Mamãe, mesmo só alfabetizada, ela sabe o que é uma graduação, o que é uma pós-graduação, o que é um mestrado, o que é um doutorado, o que é um pós-doutorado. Nesse negócio de faculdade ela sempre foi vidrada, em universidade. Então, minha mãe é de uma sabedoria muito grande. Então, ela tem mais sabedoria do que meu pai. Meu pai estudou até o 5º ano, mas ele não tinha essa visão ao longe. Ela tem essa visão de projeto, ela projeta ao longe até hoje. (MADEIRA, 2019).
O pai, como pedreiro, preocupava-se mais com o sustento da família. Ele construiu uma razoável casa para a família, com muito esforço e sacrifício, em um bairro de Teresina chamado Lourival Parente. Zelma sempre morou com os pais e irmãos nessa casa e, assim como seus irmãos, estudou até a 8ª série (atual 9º ano) em escola pública do bairro, depois cursaram o ensino médio em instituição privada, por intermédio de bolsas de estudo que a mãe havia conseguido com políticos ou professores que conhecia, pois acreditava que na escola pública o ensino era mais profissionalizante e não era voltado para o vestibular. Como o sonho de Rosária era ter seus filhos formados no ensino superior, ela buscava todas as articulações possíveis para propiciar boa escolarização aos filhos.
Importa destacar que, no Brasil, houve uma dualidade no sistema educacional que afetou diretamente o ensino secundário, atual ensino médio (SAVIANI, 1997), apoiado nas leis 5540 (BRASIL, 1968) e 5692 (BRASIL, 1971), que reformaram, respectivamente, o ensino superior e o ensino de 1º e 2º graus, com dois objetivos implícitos:
O primeiro era de assegurar a ampliação da oferta do ensino fundamental para garantir a formação e qualificação mínima à inserção de amplos setores das classes trabalhadoras em um processo produtivo ainda pouco exigente. O segundo, o de criar as condições para a formação de uma mão de obra qualificada para os escalões mais altos da administração pública e da indústria e que viesse a favorecer o processo de importação tecnológica e de modernização que se pretendia para o país. (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002, p. 31).
Essa dualidade era caracterizada pela escolarização propedêutica para os mais abastados, que prosseguiam nos estudos para ocupar cargos de prestígio, e pela educação voltada ao trabalho, para os mais pobres; sendo a primeira desenvolvida nas escolas particulares e a segunda nas escolas públicas ou nos cursos profissionalizantes. Mediante este cenário, a mãe de Zelma Madeira procurou inserir seus filhos na escola privada para cursar o ensino secundário, já que acreditava que nestas instituições eles estariam mais bem preparados para os níveis mais elevados de educação.
A biografada relembra ainda um fator que facilitou muito sua vida educacional, o fato de nunca ter sido obrigada a trabalhar, mesmo com o contexto de vulnerabilidade vivenciado, marcado pela pobreza de sua família.
Então, a gente estudava. Nossa função sempre foi tida para estudar. Então, isso facilitou muito. Eu não tive que entrar no mercado de trabalho logo, eles bancavam, com muita dificuldade. Ter que pagar transporte coletivo para ir para a escola, comprar os livros, comprar as coisas [...], mas eles fizeram de tudo, todo esforço, eles dois. Ele como da construção civil, pedreiro, mestre de obra, e ela como costureira. Então, eles bancaram toda a nossa vida escolar para que a gente só trabalhasse, só começasse a receber uma grana quando estivesse nos estágios, dentro da universidade. (MADEIRA, 2019).
Zelma conseguiu entrar na universidade, como sonhava sua mãe, mesmo em tempos em que não existia a política afirmativa de cotas3, para compensar grupos socialmente vulneráveis facilitando a entrada de negros no ensino superior, em virtude da escolarização frequentada em instituição privada, por intermédio da concessão de bolsa de estudos. Cursou Serviço Social na Universidade Federal do Piauí (UFPI), ingressando em 1986, aos 18 anos de idade.
O ensino superior, na década de 1990, foi marcado por uma flexibilização asseverada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2013), ao possibilitar o credenciamento de várias universidades, faculdades, institutos e centros de educação. Com efeito, as reformas exerciam pressão sobre as instituições públicas para expansão de matrícula e criação de cursos noturnos ante um cenário de congelamento de salário dos docentes, proibição de contratação de novos docentes, estimulação de aposentadorias precoces. Esse cenário culminou em greves e inúmeros movimentos de docentes por melhores condições de trabalho (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002).
O contexto político brasileiro era de efervescência, pois vivia-se o final da ditadura militar e início da Nova República e cresciam os movimentos sociais e populares na busca de uma nova constituinte para a instauração de direitos sociais, econômicos e culturais na futura Constituição Federal de 1988 (MAGALHÃES JUNIOR, 2003). O cenário em Teresina, no Piauí, era semelhante ao vivido nacionalmente, e a universidade era um ambiente propício para o envolvimento com grupos militantes políticos. Na graduação de Zelma Madeira, além dos conhecimentos discutidos em sala de aula, ela pôde participar de muitas passeatas e atos públicos que deram início à sua formação como pesquisadora da mulher negra e sua inserção na política, sempre com foco nas questões sociais.
Zelma afirmava que escolheu o curso de Serviço Social porque sempre foi uma pessoa ligada à associação de moradores do bairro e lidava com as questões comunitárias, fomentando a organização popular. Contudo, desde criança revelava ter paixão e admiração pela docência.
Desde criança queria brincar sempre de escola, mas exigia ser a professora, embora minhas amigas estivessem num grau maior que o meu, mas eu exigia, eu era autoritária e chantageava de não brincar se eu não fosse a professora. Eu achava bonito a pessoa ser professora, essa profissão. Como criança, eu achava que tinha um poder, tinha uma autoridade ser professora. [...]. Eu sempre atribuí um poder, um poder mágico, eu atribuía à professora. Eu achava professora uma profissão grande. E aí eu fui crescendo com isso. (MADEIRA, 2019).
Zelma Madeira concluiu a graduação em 1991, após vivenciar algumas greves na universidade. E, ainda no início dos anos 1990, casou-se e logo foi morar em Fortaleza, pois seu companheiro trabalhava na capital do Ceará. Em 1992, começou uma pós-graduação em Ciência Política e, em 1995, foi aprovada no mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), já que na capital havia esse nível de escolarização e tinha sido educada por sua mãe para nunca parar de estudar.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n.º 9.394 (BRASIL, 1996) foi aprovada quando Zelma cursava Ciência Política, sem considerar todos os esforços, pesquisas e estudos realizados pela classe de educadores e demais sujeitos comprometidos com uma medida que compreendia a mudança qualitativa da Educação (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003). Como resultado, a educação passou a assumir um novo papel, o qual era valorado “[...] não mais em razão de sua função social e cultural de caráter universal, mas da particularidade das demandas do mercado” (FRIGOTTO, 2011, p. 247). E este mercado impulsionava a corrida dos docentes de cursos superiores para a pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, já que determinava exigência dessas titulações para pelo menos 30% dos docentes (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002).
Zelma concluiu o mestrado em 1998 e, nesse mesmo período, exerceu a docência na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), atuando com a formação dos professores leigos ou daqueles que não tinham escolaridade superior com os cursos de Pedagogia em regime especial, com contratos temporários. Também passou a ser professora substituta na UECE, onde exerceu o magistério por sete anos, vivenciando relações de trabalho precarizadas.
Mesmo diante das condições adversas e que me deixaram em situação de vulnerabilidade por não ser efetiva do quadro docente da UECE, posso dizer de minha felicidade em abraçar esta profissão desde a infância, tendo um lugar de muita estima na minha vida. Isso não sem propósito: considero a experiência de ensino fascinante, ministrar aula, construir as disciplinas num processo ensino-aprendizagem, na relação dialógica entre professor e aluno, orientar projetos de pesquisa, trabalhos de conclusão de curso, monitoria, iniciação científica, projeto de extensão universitária, em síntese, são tantas com as quais me identifico neste percurso acadêmico. (MADEIRA, 2019).
Bosi (2007, p. 1518), ao realizar um estudo sobre a precarização do trabalho docente nas instituições de ensino superior do Brasil, aponta que os docentes são submetidos ao produtivismo e que “[...] a produtividade (recompensada monetária e simbolicamente) representa a perda da autonomia intelectual, a perda do controle sobre o processo de trabalho, a forma atual da subsunção do trabalho intelectual à lógica do capital”. No entanto, mesmo inserida em condições precárias de trabalho, sobrecarregada de disciplinas e em situação de maior vulnerabilidade por ser substituta e não possuir estabilidade, Zelma Madeira conseguiu manter-se engajada com as questões comunitárias, inter-relacionando os conhecimentos teóricos do mestrado, sua atuação em sala e os projetos sociais com foco no empoderamento feminino negro.
Em 2002, Zelma Madeira foi aprovada no concurso para professor efetivo da UECE. Entretanto, foi convocada apenas em junho de 2004, mesmo ano em que ingressou no doutorado. Sobre esse ingresso, ela explicava:
Para quem se propõe a seguir a carreira acadêmica, cursar um doutoramento é fundamental; resolvi investir tempo e muito estudo na construção de dois projetos de pesquisa a serem inscritos nos programas de pós-graduação com os quais me identificava na UFC: Sociologia e Educação. (MADEIRA, 2019).
Zelma Madeira foi aprovada nos dois cursos e optou pela Sociologia. Mesmo imersa em uma rotina cansativa, atuando como professora universitária efetiva e cursando doutorado, pois não havia tido direito ao afastamento, já que precisava cumprir o período de três anos do estágio probatório, ela estava muito feliz.
Eu gosto de ser professora. Eu gosto da relação na sala de aula com os alunos. Eu gosto dessa construção, de estudar junto, de ajudar, de ver assim no olho dos alunos e das alunas o brilho do encantamento da aprendizagem, de estar ouvindo a minha aula: eu falo alto, eu me empolgo, eu me realizo na sala de aula, eu gosto de construção do conhecimento, de ler, de discutir, de ouvir, de debater, de perceber a juventude, a necessidade de aprender. (MADEIRA, 2019).
A identificação com a docência tornava a tripla jornada - esposa, professora e estudante - mais aprazível. Restando oito meses para concluir seu doutorado, ela conseguiu o afastamento. A defesa da sua tese foi em 27 de fevereiro de 2009. Desde então, Zelma Madeira pôde dedicar-se ainda mais à sua trajetória profissional, pois, além da docência, envolveu-se em várias atividades, tais como projetos de extensão universitária, grupos de pesquisa, laboratórios, dentre outras. Essa participação em diversos âmbitos da universidade ampliou seu contato com alunos de diferentes cursos, com a comunidade, com professores pesquisadores, o que contribuiu para seu constante processo de ensino-aprendizagem contextualizado, bem como para alargar sua visibilidade social. Vasconcellos e Oliveira (2013, p. 134) realizaram um estudo no qual observaram:
[...] o quanto é difícil a tarefa de se fazer valer na prática a teoria presente nos livros. Em se tratando de um curso de formação de professores, e especialmente do curso de Pedagogia, essa contradição se evidenciou ainda mais preocupante, visto que os discursos pedagógicos podem se tornar cada vez mais vazios quando não são acompanhados de práticas correspondentes.
Ao contrário do constatado por Vasconcellos e Oliveira (2013), Zelma conseguia uma atuação docente dialógica, que articulava os conhecimentos teóricos com os problemas sociais. Sua atuação docente foi reconhecida pela Reitoria da UECE, que a convidou para participar como representante no Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial, em 2008. Foi eleita coordenadora executiva desse fórum em 2009 e, no ano seguinte, fundou o Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros de Gênero e Família (Nuafro). Sua militância em defesa da igualdade de gênero étnico-racial estava presente em suas aulas, pesquisas e atividades de gestão, o que lhe possibilitava adotar a perspectiva da complexidade.
[...] o professor precisa adotar um novo paradigma da complexidade (MORIN, 2000, 2001, 2009), no qual o processo educativo e metodológico exige a postura proativa no sentido de investir em seu desenvolvimento profissional contínuo, em especial, os relacionados às práticas pedagógicas, usando os recursos tecnológicos em benefício de uma ação docente mediadora e colaborativa, consolidando seu papel de professor transformador, construtor e agente de mudanças. (FERREIRA; CARPIM; BEHRENS, 2013, p. 70).
Essa postura imbuída na complexidade, com característica proativa em busca de mudar a realidade de injustiça social, especialmente em relação à condição da mulher e do negro, foi reconhecida pelo atual governador do estado do Ceará, Camilo Santana, que a convidou, em 2015, para assumir a Ceppir. O reconhecimento do seu trabalho foi expresso tanto na recondução ao cargo de coordenadora da Ceppir, em 2018, como em reportagens e homenagens, por exemplo: a capa da Revista Galeria, o prêmio Rio Mar Mulher etc.
A Galeria é uma revista que publica reportagens de pessoas de destaque no cenário político e econômico do estado do Ceará, bem como eventos sociais, moda, viagens e entretenimento. Tal impresso dedicou a capa de uma edição e 10 páginas para retratar a formação e atuação profissional de Zelma Madeira, o que demonstra sua visibilidade social.
De modo não diferente, o Prêmio Mulher do Ano, concedido mediante entrega do troféu Rio Mar Mulher, também faz homenagem a mulheres que se destacam no contexto social do estado.
Zelma Madeira - menina pobre, negra e interiorana -, filha de pai pedreiro e mãe costureira, alcançou alto nível de educação formal, superando obstáculos territoriais, financeiros e étnico-raciais, quem, na condição de professora universitária, destaca-se por exercer forte militância em defesa da justiça social e igualdade étnico-racial. Ainda que tenha conquistado importante cargo na gestão estadual, preferia ser identificada como professora, como explicava: “Hoje eu estou gestora, mas eu sei que eu sou é professora mesmo” (MADEIRA, 2019), não deixando a vaidade ofuscar sua origem ou silenciar seus ideais.
As memórias de formação e resistência da professora universitária negra Zelma Madeira permitiram refletir que a história de vida de uma educadora está indissociada da sua atuação profissional. Logo, compreender trajetórias formativas implica desvelar singularidades relegadas a segundo plano de importância na história macrossocial e elitista, que, por séculos, priorizou a história política e biografia de supostos heróis, invisibilizando paradigmas preconceituosos do cotidiano. Ademais, a biografia em narrativa permitiu lançar luz a relatos obscurecidos, ampliando a compreensão acerca da história da educação, ao trazer à tona discussões sobre história da educação das mulheres, o lugar destinado a elas na sociedade, as desigualdades e dualidades no processo de escolarização das zonas rurais e urbanas e das redes públicas e privadas de ensino, o preconceito racial, dentre outras nuances que perpassaram, por vezes silenciadas, pela vida de muitas educadoras mulheres que conseguiram ingressar como docentes no ensino superior no final do século XX.
Considerações finais
O estudo em questão discorreu sobre a biografia de Maria Zelma de Araújo Madeira, uma mulher negra, de origem simples, nascida no interior do Piauí, que conseguiu tornar-se professora doutora no ensino superior. Nosso objetivo foi compreender como uma jovem negra e interiorana, de classe econômica baixa, conseguiu concluir escolarização, em tempos de exclusão educacional, para tornar-se professora universitária e militante feminista negra respeitada no estado do Ceará.
Os resultados permitem observar que Zelma foi vítima de racismo na infância dentro da escola e que, por esse motivo, apresentou resistência para frequentar essa instituição. Os pais, mesmo possuindo pouca instrução educacional, investiram na escolarização dos filhos, sobretudo a mãe, que traçou como objetivo para seus filhos o ingresso no ensino superior e jamais permitiu a evasão escolar deles. Inclusive, mudou-se com a família para a capital do Piauí em 1970, pensando na educação para os filhos em Teresina, por essa cidade ser um pouco mais desenvolvida que Aroazes, cidade natal.
Com o apoio dos pais, que se sacrificaram para prover a educação como única atividade dos filhos, em tempos que os jovens do meio rural cedo se inseriam nas atividades da casa e na agricultura, Zelma Madeira conseguiu estudar em escolas públicas e galgou educação secundária em instituição privada mediante bolsa de estudos. Com base no entendimento de sua mãe de que negro só poderia mudar sua situação de inferioridade através da educação, Zelma Madeira foi estimulada a prosseguir nos estudos e conseguiu ingressar na educação superior pública, concluindo o curso de Serviço Social em 1990, com o objetivo de atuar como assistente social com foco na inclusão cidadã das mulheres negras e pobres.
Casou-se com um fortalezense e o matrimônio possibilitou o prosseguimento nos estudos em Fortaleza-Ceará, única cidade do estado onde se podia realizar pós-graduação. Especializou-se em Ciência Política (1992), cursou mestrado (1995) e doutorado em Sociologia (2008) e iniciou a atuação como docente no ensino superior em 1997, como substituta, sendo efetivada após sete anos. Como docente e pesquisadora das relações de gênero, raça e etnia e como gestora pública, Zelma desenvolveu identidade consoante o feminismo negro, militando na defesa de um projeto societário mais justo e igualitário.
A docência universitária de Zelma foi marcada por práticas pedagógicas contextualizadas, dialogadas, que articulavam os conteúdos do Curso de Serviço Social com a realidade vivenciada pelos cearenses. Articulando ensino, pesquisa e extensão, buscava conhecer a realidade dos alunos e mediar o desenvolvimento de uma consciência crítica que possibilitasse práticas interventivas na busca por justiça social. Problematizava as desigualdades socioeconômicas e combatia toda forma de preconceito, especialmente, o racismo. Em suas aulas, ela levava os alunos a se inquietarem ante as injustiças e os impulsionavam para que se engajassem na promoção da garantia de direitos constitucionalmente assegurados legalmente, especialmente, com foco na população mais carente.
Foi indicada pela Reitoria da UECE como representante no Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial e eleita coordenadora executiva (2009), fundou o Nuafro (2010) e foi convidada pelo governador Camilo Santana (2015) para assumir a Ceppir (2018), local este que lhe possibilitou maior visibilidade social.
A biografia permitiu vir à tona, por meio da entrevista em história oral, memórias de resistência de uma mulher negra e a compreensão das dificuldades por ela enfrentadas para a superação das barreiras financeiras, territoriais, de gênero e étnico-raciais para o ingresso como docente universitária no ensino superior. Lançou luz a um contexto histórico educacional segregacionista e excludente e rompeu silenciamentos que não abarcam apenas um indivíduo, mas uma coletividade de mulheres negras, possibilitando perceber que a trajetória de Zelma Madeira é uma exceção, visto que muitas negras interioranas não tiveram condições socioeconômicas e emocionais de romper preconceitos que as subjugavam à inferioridade e permaneceram relegadas ao analfabetismo e à invisibilidade social.
Cabe explicitar que esta pesquisa, por se tratar de um estudo biográfico, tem como limitação a impossibilidade de ser generalizada, haja vista que possui particularidades próprias do sujeito em questão, que não representa a maioria das meninas pobres, negras e interioranas. Em contrapartida, tem importância no processo de compreensão e valorização da/na história da educação, mais especificamente da educação feminina negra, pois expõe para a reflexão dificuldades e silenciamentos historicamente silenciados.