Introdução
A participação de Eudésia Vieira no cenário político e cultural do estado da Paraíba, nas primeiras décadas de século XX, foi intensa e multifacetada. A personagem foi professora, escritora, médica, historiadora e jornalista. Este texto tem como objetivo tecer os fios da sua formação educacional e mapear suas redes de sociabilidade intelectual. Contudo, tal decisão não tem o efeito de meticulosamente desmembrar o sujeito da sua experiência total. As diversas faces de Eudésia Vieira interagem entre si e, na em medida em que essas intersecções forem aparecendo, recorreremos às outras dimensões da sua vida, buscando coser essas ligações (BOURDIEU, 1998).
Desse modo, buscamos evidenciar três aspectos da atuação intelectual de Eudésia Vieira: 1) as experiências educacionais; 2) a interação entre o sujeito e o contexto social, observando a geração de mulheres a que pertenceu; 3) a composição das redes de sociabilidade e os interesses individuais e coletivos desses grupos (BOURDIEU, 1998; SIRINELLI, 2003). Nossa intenção é enfatizar episódios significativos desse processo que nos auxiliem a entendê-la no decorrer do percurso que a levou se tornar uma defensora da causa feminina no espaço público.
Para tanto, o texto está dividido em três seções. Na primeira seção discorremos sobre a estreita relação entre escrita feminina e o gênero literário da biografia e (auto)biografia, discutindo a pertinência desses textos como fonte para compreender a História das Mulheres. Na segunda seção nos debruçamos sobre a formação escolar da personagem e a importância da religião católica na conformação do papel feminino. Na terceira seção procuramos entender a inserção de Eudésia Vieira nas redes de sociabilidade intelectual, buscando identificar quais projetos coletivos pautavam o debate público no período. Por fim, apresentamos algumas considerações sobre a pesquisa empreendida. Em seguida discutimos a pertinência das fontes (auto)biográficas.
(Auto)biografia: uma fonte fecunda para História das Mulheres
Neste estudo utilizamos três tipos de escritos como fonte. O primeiro tipo são textos que objetivaram registrar a importância da atuação de Eudésia Vieira como escritora e educadora paraibana1: O segundo tipo são dicionários biográficos que se dedicaram a mapear pequenos traços dos sujeitos que se fizeram presentes nas letras e da medicina do estado2. Por último, o terceiro tipo são textos publicados em periódicos e escritos autobiográficos3 da autoria de Eudésia Vieira.
Atualmente, a literatura especializada tem tratado o tema como o retorno da biografia, submetendo o método biográfico a críticas como: a escolha de personagens ilustres, o elogio, a linearidade, o psicologismo, a singularidade, entre outros (BORGES, 2006; AVELAR, 2007). Nessa esteira, a categoria de gênero, cunhada pelas feministas acadêmicas das décadas de 1960 e 1970 do século XX (SCOTT, 1995), também se torna um elemento importante da crítica biográfica e autobiográfica, pois auxilia a compreender de que modo as relações de poder atravessaram a vida das mulheres nas sociedades passadas (GONÇALVES, 2006; GALVÍNCIO, 2017).
Conforme Louro (2014, p. 27) é preciso entender a categoria mencionada de modo plural, pois “[...] as concepções de gênero diferem não apenas entre sociedades ou momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem”. Na acepção assumida para este estudo, as biografias e autobiografias sobre Eudésia Vieira estão sendo utilizadas como fontes para uma nova escrita biográfica.
Para tanto, temos a intenção de, por um lado, problematizar as (auto)biografias sobre Eudésia Vieira e, por outro lado, procurar, a partir desse retorno, desenvolver uma narrativa que leve em consideração outros lances da sua atuação. Portanto, levamos em consideração as posições assumidas por ela, as estratégias utilizadas para se legitimar socialmente, assim como as concepções que elaborou sobre si.
Ainda sobre a pertinência do gênero biográfico e autobiográfico nos dias atuais, Gonçalves (2006) destaca como sendo uma fonte importante para escrita da História das Mulheres. Nesses termos, a autora explica que as produções biográficas cumpriam a função de exaltar as mulheres célebres e pode auxiliar o/a pesquisador/a a problematizar as intenções dessas produções, estas que tiveram como objetivo “[...] nem sempre formulado explicitamente, de enaltecer a participação das mulheres na História, mas, em geral realçando aquelas situações em que essas ocupavam papéis tradicionalmente associados aos modelos e valores masculinos” (GONÇALVES, 2006, p. 90).
O exercício autobiográfico das mulheres foi um recurso muito utilizado na transição do século XIX para o século XX, podendo ser encontrado em diversos textos como diários, cartas, romances, jornais, poemas, etc. Sobre o assunto, Gonçalves (2006) esclarece que esses escritos constituíram uma prática comum entre os homens e mulheres de letras dos séculos XIX e XX, desejosos/as de participarem do universo de destaque literário e político. A autora ainda elenca dois episódios emblemáticos da narrativa autobiográfica, que se consagraram na História das Mulheres.
O primeiro foi o caso da romancista sueca, Victória Benedictson, que escreveu sua autobiografia entre 1870 e 1880, a qual ficou mais conhecida do que suas demais produções. O segundo corresponde à querela entre Virginia Woolf e Falcão Afável, em 1920, na revista New Statesman, acontecimento que consagrou Woolf no debate feminista da época (GONÇALVES, 2006).
Gonçalves (2006) ressalta a íntima relação entre a escrita de si das mulheres letradas no Brasil com a formação educacional existente no período. Os relatos que podem emergir dessas fontes são elementos fecundos para compreender como pensavam e agiam as mulheres no passado, suas ligações com os contextos educacionais e culturais no período. No entanto, é preciso averiguar com cuidado como esses textos foram produzidos e qual era a intenção explicitada pelas autoras para não incorrer na generalização ou padronização da escrita feminina.
Para Perrot (2016), a escrita das mulheres pode ser encontrada por meio de três gêneros literários pessoais: autobiografia, diário e correspondência. Sendo essas, de modo geral, ligadas à escrita privada. Nesses termos, observa que: “O olhar voltado para si, numa fase de mudanças ou ao final de uma vida, mais frequente em pessoas públicas que querem fazer o balanço de sua existência e marcar sua trajetória, é uma atitude pouco feminina” (PERROT, 2016, p. 28). Portanto, para a autora as autobiografias femininas justificavam a presença dos grandes homens que essas mulheres escritoras tiveram a oportunidade de conhecer.
Contudo, tratando-se das fontes autobiográficas de Eudésia Vieira é possível fazer uma observação no sentido contrário dos argumentos apresentados por Perrot (2016), pois sua escrita não tinha a pretensão de ser privada. Além disso, a figura central da sua narrativa era ela mesma. Vieira (1951) buscou tecer os fios da sua memória, em que justificava sua personalidade como sendo uma mulher pública, mas de fortes preceitos religiosos. Nesse sentido, os textos de inspiração autobiográfica não tratam, apenas, da experiência isolada de indivíduos, mas abrem janelas para que se possa observar o ambiente social em que viveram e as percepções de mundo que engendram suas escritas.
Na esteira dessas percepções, também trataremos a poesia eudesiana como uma escrita de inspiração autobiográfica, pois as mesmas também nos remetem a vários dilemas enfrentados pela autora. Sendo assim, sua poesia como fonte se soma aos outros textos apresentados, nos auxiliando a compreendê-la, mas com o cuidado de não nos posicionar, apenas, como o/a outro/a que descreve a sucessão de episódios de uma vida, mas trazendo à baila também sua percepção de si como elemento importante para interpretar sua trajetória intelectual. Por fim, também apresentaremos alguns textos que ela escreveu nos periódicos da época. Nesses escritos Eudésia Vieira justificava tanto sua posição pública e política no cenário cultural, quanto indicava o modelo feminino a ser seguido.
Nesses termos, essas fontes nos indicam as afiliações entre a personagem com outras da mesma geração, independente do contato direto entre elas. O ambiente educacional e cultural que esses textos foram produzidos, além de indicar as particularidades da trajetória do indivíduo, também descortina um contexto histórico particular para entender a História das Mulheres (BOURDIEU, 1998; SIRINELLI, 2003).
Para tanto, tomamos de empréstimos as explicações de Bourdieu (1998), em que o autor sugere a aproximação da biografia com romance moderno, pois encontramos nessa inspiração literária o modo mais adequado de narrar a trajetória de um indivíduo, sem perder de vista a complexidade das diversas facetas que marcaram a sua vida e a intencionalidade de quem escreveu. Portanto, a íntima relação entre literatura e biografia se estabelece de modo que a estrutura não linear do romance moderno pode ajudar na elaboração da biografia de um sujeito, além de explicitar que a narrativa carrega as intencionalidades e escolhas de quem escreve (BOURDIEU, 1998).
Nesse sentido, Bourdieu (1988) argumenta em torno da necessidade de flagrar os acontecimentos biográficos nas “[...] colocações e deslocamentos nos espaços sociais, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado” (BOURDIEU, 1998, p. 190). Desse modo, é possível problematizar a constante tensão entre indivíduo concreto - o sujeito real - e o indivíduo construído - o sujeito narrado. Para tanto, apresentamos, na próxima seção, o período de formação educacional de Eudésia Vieira.
Eudésia Vieira: a mulher pública e a mulher de virtude
O cenário educacional nos ajuda a lançar luz sobre a trajetória das mulheres que viveram na transição do século XIX para o século XX no Brasil. Nesse sentido, pensar na formação educacional de Eudésia Vieira e a ascensão que teve no contexto desfavorável à presença feminina permite ampliar a compreensão para o caso em particular, mas também entender que sua trajetória estava inserida no processo histórico, social e cultural de lutas e embates pela ampliação do papel da mulher na sociedade. Na Paraíba, assim como em toda parte do Brasil, a educação feminina ocupava um lugar precário. Irineu Pinto (1910), historiador do IHGP, recuperou registros históricos que apontam três iniciativas para educação feminina, do período colonial até os primeiros anos da República.
A primeira foi a criação da cadeira de primeiras letras no ano de 1828, pois “Até então a mulher parahybana estava riscada de receber a instrucção pública e talvez demorasse muito em disputal-a, se não fosse a valiosa indicação do conselheiro Padre Joaquim Antonio Leitão [...]” (PINTO, 1910, p. 318). A segunda foi a instalação do Colégio Nossa Senhora das Neves, criado em 1858, por Henrique de Beaurepaire Rohan e dirigido por D. Rosalina Tertuliano de Almeida. Mas que teve vida efêmera, sendo fechado em 1961. A terceira foi a fundação da Escola Normal, que passou a funcionar no ano de 1885, sendo predominantemente frequentada pelo público feminino.
Pinto (1910) criticava as políticas educacionais para mulher, corroborando a desqualificação do período imperial e enaltecendo o regime republicano como sendo o momento de investimento na educação desse segmento. Para tanto, teceu elogios à presença feminina que se conformava como maior público da Escola Normal, ressaltando que esse feito estava imbuído no ideário republicando de educação das mulheres.
Nesse sentido, é possível dizer que Eudésia Vieira viveu o período de transição anunciado por Pinto (1910). A personagem nasceu em 08 de abril de 1894, no povoamento de Livramento no município de Santa Rita, na Paraíba. Era filha de Pedro Celestino Vieira e Rita Filomena de Carvalho Vieira. No poema Eudesinha (VIEIRA, 1952, p. 155), se descreve da seguinte maneira:
Mimosa florzinha agreste
Das plagas do Livramento
Que a vida não te moleste,
Mas te dê vigor e alento.
Robusta assim pequenina
Com tanta graça e meiguice,
Fazes lembrar a bonina
Fugindo ao sol com denguice.
A personagem Vieira aos sete anos de idade foi mandada à capital para estudar na escola dirigida por D. Isabel Cavalcanti Monteiro. Conforme Medeiros (2017), a pequena Eudesinha fazia o percurso de casa, da cidade de Santa Rita, até a escola, na atual João Pessoa, de barco conduzido por um canoeiro. Araújo (2010) registra, mediante informações extraídas do Jornal da Parahyba, que a professora D. Isabel foi aluna da Escola Normal no ano de 1892. Nessa época, Pinheiro (2002) diz que o aumento de professoras atuando nas escolas do estado foi significativo.
Sobre a referido período, Eudésia Vieira (1951), em A Minha Conversão, mencionou que teve duas professoras dos anos iniciais, mas não registrou o nome de ambas. A primeira relembrou:
[...] aos seis anos iniciei os meus estudos com uma professora protestante. A partir das enfadonhas lições da cartilha ia aprendendo a doutrina luterana num catecismo - ‘Leite para Criança’ - como se não bastasse, acompanhava a mestra à escola dominical, com permissão dos meus pais (VIEIRA, 1951, p. 7).
Perrot (2016) explica que a Reforma protestante foi, particularmente, benéfica para instrução da mulher. Nos países europeus, nos quais predominavam o protestantismo, a partir do acesso livre à Bíblia, suponha-se que as meninas também soubessem ler. Além disso, o modelo feminino reformado previa a mulher como ajudante do marido no exercício de seu ministério.
Sobre a segunda professora, Vieira (1951) disse: “Para fazer exame primário tomara uma outra, diplomada, católica esclarecida, mas que se não dava ao trabalho de catequese” (VIEIRA, 1951, p. 8). A referência ao diploma, cujo título era emitido pela Escola Normal, nos leva a pensar que se tratava da professora D. Isabel Cavalcante Monteiro.
Eudésia Vieira também se matriculou na escola Santa Júlia para realizar o curso secundário. Segundo Xavier (2015), o referido estabelecimento funcionou na cidade desde 1907 e se caracterizava por ser uma escola particular não-confessional, destinada às meninas da elite e dirigida pela professora Júlia Freire.
Xavier (2015) sugere que o nome da escola Santa Júlia evocava a referência à santa, pois, nesse período, existia a forte tradição fornecida pelo modelo cristão feminino do “ser de virtude”, em que se alinhavam o nome da santa com o nome da professora que dirigia o estabelecimento. Vieira (1951) comentou sobre o cotidiano da escola Santa Júlia, especificamente a festa da padroeira da escola. Esta comemoração, como registrou Xavier (2015), acontecia anualmente no mês de maio. Sobre a referida ocasião, à época ainda seguidora da religião protestante, Eudésia Vieira (1951, p. 8) retratou a persuasão da tradição católica no ensino da cidade e na sua própria formação:
Em vinte um de maio se efetuava uma festa religiosa-escolar, em homenagem à padroeira daquele educandário. Era a inauguração da capelinha anexa ao colégio.
Como fosse obrigada a comparecer, por tomar parte nas representações, fui retardatária, muito de propósito, faltando a primeira parte do programa.
Após a festa, os cumprimentos por bem me ter havido no palco. Dentre os que me cercavam, logo se destacou o cônego Vicente Pimentel, que os elogios juntavam gracejos sobre minha crença. Eu a lhe retorquir delicadamente e êle a me afirmar que não findaria protestante.
Outro sacerdote, cônego Matias Freire, também um dos convives, me levou diante o altar de Sta. Júlia.
- Veja, d. Edésia, Sta. Júlia! Estás nos céus a pedir por nós.
- “Só há um único mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem” diz S. Paulo.
Mediante a minha convicção, achou fôra de propósito estabelecer um diálogo.
Eudésia Vieira escreveu sobre esse episódio para esclarecer as influências da religião católica na sua formação educacional, justificando sua conversão ao catolicismo anos depois. Para nós, o registro também ajuda a compreender as escolhas e os deslocamentos da personagem, pois a personificação da educadora de virtude seria o modelo feminino veiculado por Eudésia Vieira.
Em 1922, na Revista Era Nova, escreveu o texto A Mulher em que defendia que Deus concebeu a mulher para que fosse uma vida mais fecunda e promissora que o homem, pois seu nascimento engrandecia os primeiros dias na Terra e a obra divina se completava ao mesmo tempo em que complementava a vida do homem. Essa harmonia justificava o ideal de igualdade presente na narrativa da autora, pois homem e mulher não se sobrepunham um ao outro: “[...] era o homem que festejando os longos cabellos da companheira os adornava com ramalhetes de baunilha; alli era a mulher quem trazia ao esposo cachos de jambos [...]. O amor era reciprocamente partilhado” (VIEIRA, 1922, p. 9).
A adoção desse repertório tem uma íntima relação com a formação católica e cristã que permeou a ambiência educacional de muitas mulheres no período estudado. O elemento do catolicismo na trajetória intelectual de Eudésia Vieira, particularmente, é uma chave de leitura para entender a constituição das suas redes de sociabilidade e das ideias que defendia sobre o papel feminino na sociedade moderna.
O ideal da educadora santa foi um modelo disseminado nos estabelecimentos de ensino para mulher, sendo considerado um parâmetro a ser seguido pela geração de professoras na transição do século XIX para o século XX. Essas mulheres, mesmo tomando a posição de enfretamento da sua condição de submissão social, assimilaram que a mulher não poderia desviar do padrão estabelecido pela tradição da Igreja, do Estado e da Ciência, que as representavam como “santas do lar” (ALMEIDA, 2006; LOURO, 2011; XAVIER, 2015).
Outro elemento que ora destacamos, deve-se ao enfretamento de Eudésia Vieira ao ter sido indagada pelos cônegos Vicente Pimentel e Matias Freire. Sendo assim, compreendemos que a personagem buscou na rememoração da juventude episódios que justificassem sua postura de insubmissão às personalidades masculinas, enfrentando até mesmo homens ilustres para fazer valer seu ideal.
Eudésia Vieira se formou na Escola Normal oficial, em 1911, com 17 anos de idade. Na ocasião, em referência ao mérito de aluna exemplar, foi escolhida para ser oradora da turma. Esse episódio foi mencionado por seus/suas biógrafos/as para justificar sua vocação para o universo literário e científico que, anos depois, se afirmaria na sua atuação como professora e médica (PEREIRA, 2007; SALES, SILVA, 2008; BARBOSA, 2009; MEDEIROS, 2014).
Não desconsideramos que o destaque dado a Eudésia Vieira é um fator importante para o lugar que almejava ocupar na sociedade. Se assim o fizéssemos, estaríamos ocultando as estratégias que utilizou para se legitimar no cenário paraibano. Dessa forma, preferimos adotar a compreensão de que as suas escolhas corresponderam ao projeto intelectual que realizou durante sua trajetória educacional, procurando ser sempre uma personagem de destaque nos ambientes que frequentava.
Sobre a sua passagem na Escola Normal, Vieira (1951) destacou o debate ocorrido entre ela e um professor. Na época, tinha 15 anos e cursava o terceiro ano colegial:
Um dia, como faltasse o lente de História Natural, veio substituí-lo um outro, que chegará havia a pouco, reconhecido como materialista. Dissertando sobre a origem do homem, seguia as teorias de Darwin; o terceiro ano silencioso o escutava, quando protestei resolutamente apresentando os argumentos que estavam ao meu alcance. Meu proceder foi agradável às colegas, que em breve o divulgaram até mesmo entre pessoas alheias do estabelecimento. Assim foi D. Ulrico Sanntang sabedor do que se passará. Logo, o venerável beneditino pediu a uma normalista, uma conhecida sua, para me levar ao mosteiro; queria me cumprimentar (VIEIRA, 1951, p. 10).
Diante disso, podemos desenhar o cenário do ocorrido: o professor estrangeiro com suas ideias pautadas na teoria de Darwin, que na época circulavam entre o meio intelectual; o estranhamento das normalistas e da própria Eudésia Vieira com as explicações baseadas nas concepções darwinianas, o que indica a aproximação da religião com formação moral dessas mulheres, mencionado anteriormente. Nesse relato autobiográfico, cujo objetivo era justificar a conversão ao catolicismo, Eudésia Vieira trouxe mais uma vez à tona a sua trajetória educacional e a autoridade dos preceitos religiosos, defendendo-os em seus escritos na imprensa.
Com isso, buscava, de um lado, demonstrar que sempre embasou suas ideias na doutrina cristã, colocando-se como uma jovem de fé convicta. Do outro lado, não se deixava intimidar pela autoridade masculina, polemizando o debate, característica dos intelectuais daquele período. Esta última representação de si foi reforçada pelos seus/suas biógrafos/a que a descrevem como uma mulher revolucionária, pois não pensava nem agia como as demais, lutando pelas suas ideias e superando as expectativas do cenário cultural daquele período (PEREIRA, 2007; SALES, SILVA, 2008).
Outro ponto importante no ocorrido, descrito por Eudésia Vieira (1951), foi a repercussão que o episódio teve na sociedade paraibana, extrapolando os muros da Escola Normal e chegando a outros personagens do cotidiano da cidade como D. Ulrico Sanntang, sujeito importante das atividades religiosas desenvolvidas naquele período no estado. Na ocasião, D. Ulrico pediu a outra normalista que levasse Eudésia Vieira até o convento para que pudessem se conhecer. Vieira (1951) enfatizou que a visita ao religioso foi um elemento fundamental para sua mudança de religião. D. Ulrico havia lhe presenteado com um livro, fazendo uma abordagem menos enfática, diferentemente da realizada pelos cônegos Vicente Pimentel e Matias Freire.
Ainda sobre isso, Vieira (1951) mencionou o alvoroço que foi o falecimento desse religioso na cidade, no ano de 1912, se descrevendo, mais uma vez, como uma jovem de ideias e atitudes independentes. Para ocasião escreveu o poema Uma Lágrima, para ser declamado no enterro de D. Ulrico. Por causa do ocorrido, foi repudiada entre seus companheiros de fé protestante, o que não a fez retrair.
Ainda em A Minha Conversão, Vieira (1951) trouxe uma outra personagem decisiva para abandonar a religião protestante, a professora de francês, Irma Marie Léontius, com quem teve aulas particulares e a quem dedicou o referido texto. Sobre essa questão, duas referências são importantes. A primeira foi o registro que a autora fez em relação aos seus anseios por expandir seus conhecimentos, colocando-a como uma jovem que buscava, cada vez mais, se inteirar dos bens culturais disponíveis para sua distinção social. O encontro com a professora mencionada aconteceu logo após sua formação na Escola Normal:
Aos dezesseis anos, como terminasse os meus estudos na Escola Normal, tomei professores particulares, para melhor estudar algumas matérias. Tinha um sincero desejo de conhecer mais seriamente a língua francesa, sobretudo o francês prático. Assim, recebi com muita satisfação, a notícia da chegada de uma professora parisiense ao Colégio de N. S. das Neves. Receber-me ia? Fui apresentada pela esposa do desembargador Cândido Pinho e por uma de suas filhas - Amasile, minha amiga, desde alguns meses. Fui aceita (VIEIRA, 1951, p. 14).
A segunda referência importante é como Eudésia Vieira (1951, p. 14) descreveu a professora: “Benévola, risonha, afetuosa e comedida, a Irmã Marie Léontius, saturava de fé o ambiente de sua ação e como a violeta que escondia embalsamo, comunicava as suas virtudes insensivelmente, progressivamente”.
Nesse sentido, o ideal apresentado por Vieira (1951) do feminino correspondia às características da professora: uma mulher inteligente, mas que não abria mão dos preceitos da fé, as quais foram propagadas em outros escritos. É importante notar que esses dois modelos - a mulher pública e mulher de virtude - apesar da aparente contradição, correspondiam ao discurso catalizador da personalidade feminina desejável, se agregando para legitimar a importância da mulher bem educada e moderna que acumulava essas funções sociais (ALMEIDA, 2006).
Eudésia Vieira, depois de se formar na Escola Normal, exerceu a profissão docente dando aulas particulares até 1915, quando passou em concurso público para professora do estado, em 1917. Na ocasião, obteve maior nota e foi designada para lecionar no interior do estado, na cidade de Serraria (PEREIRA, 2007; SALES, SILVA, 2008; BARBOSA, 2009; MEDEIROS, 2014). Sobre sua estadia nessa cidade, localizada na região do brejo paraibano, aproximadamente a 140 km da capital, conhecida como região montanhosa de engenhos de cana de açúcar, escreveu-lhe um poema na ocasião do seu aniversário de cinquenta anos, Serraria em Festa, em que exaltou seus montes azuis e campos fartos (VIEIRA, 1952).
A estreita ligação entre o exercício intelectual e a docência é enfatizada por Almeida, sendo um fator geracional importante (2006, p. 81-82):
O magistério era o trabalho intelectual e assalariado sem conotação pejorativa; tinha o poder de conceder uma palavra mais abalizada num meio ignorante; conferia mobilidade social, maior liberdade e respeito entre as classes trabalhadoras e possibilitava bem-estar econômico. Isso era muito mais do que tinham tido até então.
As pesquisas sinalizam para uma mudança de sensibilidade em relação ao trabalho docente e a identificação dos atributos femininos. No decorrer do século XIX e ao longo do século XX foi se conformando a ideia de que as mulheres, dotadas de atributos naturais como: a sensibilidade, o amor e a vigilância, estariam mais aptas para a educação das crianças. No entanto, esse pensamento não pode ser compreendido como hegemônico. Louro (2011) ressalta que as aproximações entre a psicologia feminina e infantil, eram utilizadas para justificar a falta de capacidade intelectual das mulheres. Dessa forma, as mulheres não poderiam educar as crianças, apesar da sua relação natural com a maternidade. Com isso, também se pretendia explicar que as mulheres não teriam talento para vida pública, para ciência e para as questões políticas.
Portanto, foi no bojo dessas contradições que a feminização do magistério primário se tornou um processo conflituoso e paradoxal que, de um lado, entendia a mulher com restrições intelectuais e autonomia política e, de outro lado, as dotava de autoridade e capacidade. Ainda conforme Louro (2011), é preciso levar em conta três facetas desse processo. O primeiro é o abandono do magistério pelos homens, possivelmente atrelado às ampliações de oportunidade de trabalho com a urbanização e industrialização. O segundo corresponde à defesa da docência como extensão da maternidade e, por último, é necessário considerar a maior intervenção do Estado na formação do professorado. Desse modo, perceber o movimento histórico específico de cada sociedade é fundamental, apreendendo as tendências e as demandas que se faziam presentes. Por isso, procuramos atentar para o contexto paraibano de modo particular, mas também entendendo que esse processo dialoga com as demandas nacionais em curso e que a circulação das ideias foi um fator impulsionador para sua consolidação.
Nessa época, a Escola Normal paraibana, como tantas outras espalhadas no território nacional, já havia se efetivado como lugar de sociabilidade feminina e conquistado prestígio social, consistindo em porta de entrada para as mulheres desejosas de participar do mundo das letras. Apesar do controle e da disciplina escolar aos quais essas mulheres eram submetidas, especialmente destinados à formação da professora-mãe, o ingresso nesse nível de ensino as permitiu adentrar nos espaços públicos e de escrita da Paraíba, não apenas para exercerem o magistério primário e as atribuições de uma maternidade racional, mas também para se colocarem como defensoras das causas femininas e da educação (ALMEIDA, 2006; LOURO, 2011; XAVIER, 2015).
Sendo assim, o horizonte se abria para as mulheres e aquele momento também permitiu que as mesmas ultrapassassem as salas de aulas e se tornassem uma elite pensante. Nesse sentido, foram as normalistas, formadas àquela época, que ocuparam a cena pública do estado da Paraíba para atuarem como professoras e como intelectuais na grande imprensa, sendo o caso de Eudésia Vieira, Catharina Moura, Analice Caldas, Olivina Oliva, entre outras (PINTO, 1910).
A experiência educacional oriunda do exercício do magistério fez com que Eudésia Vieira se inserisse também no mercado editorial do livro didático. Como autora de livros escolares, sua produção foi sobre história da pátria local e nacional, escrevendo Pontos de História do Brasil (1921) e, posteriormente, Terras Tabajaras (1955), ambos adotados nas escolas primárias oficiais da Paraíba (PEREIRA, 2007; SALES, SILVA, 2008; BARBOSA, 2009; MEDEIROS, 2014).
A produção de livros destinada ao público infantil em fase escolar estava em ascensão no período, recebendo críticas severas de intelectuais como Silvio Romero, José Veríssimo e Rui Barbosa, devido à escassez de autores nacionais. Eudésia Vieira mencionou em poesia o forte sentimento de realização profissional e pessoal que a autoria de livros lhe conferia.
Para Vieira (1952), ser escritora possibilitava ultrapassar as barreiras de uma vida apenas dedicada aos afazeres domésticos para tomar parte do empreendimento que era a vida pública, possibilitando legitimar a mulher diante de um universo que só aos homens era permitido. A poesia intitulada, Meus filhos e o livro, encontrada em Cerne Contorcido (1952, p.76), nos sugere as aspirações desse feito:
Tal como a abelha que suga
Em desprovido netário,
Eu mais o livro lutamos
Num ambiente refratário.
Trazendo o livro ao meu lado.
Soberano êle compensa
As negações do meu fado
Nesses termos, interpretamos que ao utilizar o adjetivo refratário4 para caracterizar o ambiente que ela e o livro lutaram, significava que mesmo com as adversidades, Eudésia Vieira não se mostrava submissa às leis e as autoridades. Desse modo, explicitou como era ser autora de livros num ambiente desfavorável a sua condição feminina. O livro também significava a possibilidade de as mulheres acessarem o saber, contrariando as leis vigentes que as desqualificavam como sujeito que produz conhecimento (LOURO, 2014; PERROT, 2016). Nesse sentido, Vieira (1952, p. 77-78) concluiu:
O livro faz-me heroína
Nos instantes mais sombrios.
Dá-me luz, amor e vida,
Enche os espaços vazios...
[...]
Quando um dia me encontrarem
Sem lápis, livro ou jornal,
Podem dizer: - com certeza
A mamãe está muito mal.
[...]
Pois bem, quando a morte amiga
Abater-me o coração,
Meu crucifixo e meus livros
Quero-os dentro, em meu caixão.
Nessa última parte, Vieira (1952) enfatizou o recado aos filhos(as), o que, do nosso ponto de vista, sugere a conciliação do papéis femininos que defendia. O livro e o crucifixo são dois objetos que possuem valor cultural: o primeiro simboliza os preceitos da igreja católica e o segundo o saber, os quais levariam consigo até a morte. O saber representado pelo livro era considerado a antítese da feminilidade, como foi o caso de George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, que precisou enfrentar os mais severos preconceitos da época. Sua escrita foi comparada, por seus pares literatos, pela substituição do seu clitóris pelo pênis (PERROT, 2016).
Nesses termos, Perrot (2016) ainda registra que o saber, para muitas mulheres que viveram nesse período, pode ser comparado ao desejo secreto que se tinha por um amante. Clarice Lispector (1988, p. 12) em seu conto, Felicidade Clandestina, faz analogia semelhante à defendida por Perrot (2016) e diz:
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. [...] Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. [...] Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com o livro; era uma mulher com o seu amante.
Ou seja, a vontade pelo conhecimento atravessou gerações de mulheres que tiveram que romper com as mais diversas barreiras, entre essas as da própria igreja católica a qual Eudésia Vieira era filiada. Ainda segundo Perrot (2016, p. 95) “A igreja medieval substituiu o livro pela imagem sábia e meditativa da Virgem”. No Brasil, o culto à virgem Maria foi incorporado no imaginário social brasileiro republicano, no qual se apoiaram os positivistas para insistir na representação feminina da humanidade, buscando substituir Maria por Clotilde. O culto mariano foi estimulado também pelos bispos, em especial, mediante a figura de Nossa Senhora Aparecida, consagrada em 1930 pelo Pio IX como padroeira do Brasil (CARVALHO, 2011).
Xavier (2015) observou os desdobramentos do culto mariano na educação das meninas na Paraíba em igual período retratado por Carvalho (2011). Portanto, o aparente paradoxo apresentado por Eudésia Vieira é, justamente, a conciliação entre o catolicismo e a emancipação feminina mediante o conhecimento. Para Vieira, fazer parte da vida pública, escrevendo na impressa da época, participando de associações, exercendo a docência e a medicina não anulavam a doutrina da vida religiosa, pois ambas tiveram a mesma importância na sua trajetória intelectual, como podemos observar no poema citado e na narrativa autobiográfica que apresentamos nesta seção.
Ainda sobre o mesmo assunto, pode-se dizer que a doutrina cristã fez parte do contexto social de muitas outras mulheres. Segundo Perrot (2016), na Europa, por exemplo, as religiões são “[...] ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres” (PERROT, 2016, p. 85). Nesse sentido, a religião enquanto instrumento de poder sobre as mulheres está na base dos fundamentos das religiões monoteístas, as quais fizeram das diferenças dos sexos a supremacia do masculino sobre o feminino.
A religião como espaço de poder das mulheres pode ser compreendida a partir do momento em que as mulheres, mesmo excluídas do exercício do culto, utilizaram seu lugar de subordinação, como as preces, os conventos e a santidade, o substrato para exercer um contra poder e fomentar espaços de sociabilidades (PERROT, 2016). Na seção seguinte percorremos os lugares de sociabilidade intelectual, frequentados por Eudésia Vieira e por algumas mulheres paraibanas, que se destacaram na cena pública do estado.
Eudésia Vieira e os espaços de sociabilidade intelectual das mulheres na Paraíba
Sobre os lugares de sociabilidade na Paraíba, Martins (1978, p. 175) os denominou de “associações culturais”, explicando que sua finalidade era promover a “[...] tertúlia, conferências, festas de caráter cultural e cívico”. Uma característica desses estabelecimentos, ainda segundo Martins (1978) e Cunha (1946), foram os periódicos produzidos para divulgação de suas ideias e suas festas cívicas, além da fundação de bibliotecas.
Cunha (1946) tratou da participação das mulheres nos espaços de sociabilidade intelectual no estado, verificando a atuação das mulheres desde a fundação do Clube Benjamin Constant, em 1899, até a criação da Associação Paraibana pelo Progresso Feminino, no ano de 1933, espaço restrito às mulheres. Com isso, a autora alertou que a colaboração feminina nas associações no século XIX não se deu mediante o ingresso como sócias, sendo, portanto, difícil localizar suas ações. Entretanto, as funções desempenhadas por elas eram de divulgar e propagar seus ideais através das passeatas cívicas, cantarolando hinos da República e da Independência do Brasil, como também na contribuição permanente em seus periódicos.
A imersão na vida cultural da Paraíba com a produção de diversos gêneros textuais possibilitou que Eudésia Vieira transitasse nesses espaços de sociabilidade, especialmente no século XX. Sendo, muitas vezes, pioneira em alguns desses locais, como foi o caso da sua admissão ao Instituto Histórico Geográfico da Paraíba (IHGP), ingressando no estabelecimento em 03 de julho de 1922, e na Faculdade de Medicina do Recife-PE, concluindo o curso no ano de 1934.
O IHGP foi fundado em 7 de setembro de 1905. Na ocasião foi realizada uma reunião solene no Liceu Paraibano, com comissão presidida por Álvaro Lopes Machado, então presidente do estado da Paraíba, conjuntamente com intelectuais importantes como parte das comemorações da Independência do Brasil. Sendo a instituição cultural mais antiga do estado em funcionamento até os dias atuais, em sua fase inicial tornou-se a “Casa da Memória da Paraíba” sob a presidência de Flávio Maroja, que dirigiu o instituto nas duas primeiras décadas do século XX (1907/1908 e 1909/1931) (GUIMARÃES, 1998; PINHEIRO, 2002).
O estabelecimento estimulava a pesquisa histórica entre seus/suas sócios/as para que fosse propagado na sociedade o sentimento de paraibanidade (GUIMARÃES, 1998; PINEHIRO, 2002). As atividades historiográficas do IHGP estavam alinhadas com as demais instituições fundadas nos estados brasileiros, cuja matriz é o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) (PINHEIRO, 2002, GOMES, 2009). Gomes (2009, p. 12), reforçando esse elemento, destaca o papel do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) “[...] na construção de uma escrita da história e de uma cultura cívica republicana [...]”.
Diante disso, também foi possível relacionar a escrita de livros didáticos sobre a história local e nacional com as atribuições que se destinavam a instituição. Sobre o assunto, Pinheiro (2002) explica que com o advento do regime republicano e os preceitos nacionalistas difundidos na educação, os gestores paraibanos, especialmente Castro Pinto, estimularam a produção de livros escolares de história para ensinar às crianças em fase escolar. Nesse sentido, os primeiros autores desse gênero no estado, foram também membros do IHGP.
O primeiro livro didático de história de autor paraibano foi o Epitome de História da Paraíba de Manuel Tavares Cavalcante, publicado em 1914, para uso nas escolas primárias e distribuídos nas escolas públicas do estado (PINHEIRO, 2002). Em seguida, em 1921, foi a vez do livro Pontos de História do Brasil, em 1955, Terras Tabajaras, ambos de Eudésia Vieira.
Eudésia Vieira exerceu o cargo de suplente de 1ª secretária, no período de 1925 a 1926. A participação das mulheres em cargos de prestígio não se restringiu a sua contribuição, pois, nos anos de 1944 e 1945 Analice Caldas assumiu a Tesouraria do instituto, sendo substituída após sua morte por Olivina Oliva (GUIMARÃES, 1998; BARBOSA, 2009).
Outro espaço de sociabilidade intelectual na Paraíba era o jornal A União. Este periódico foi criado para atender às necessidades do partido republicano no estado, circulando a primeira vez no dia 2 de fevereiro de 1893, contando apenas com um administrador para gráfica e um redator-chefe para o jornal, subordinado diretamente ao secretário do Palácio do Governo. A partir de 1910 passou a servir como órgão oficial do governo e, em 1913, Carlos D. Fernandes assumiu sua direção (MARTINS, 1978).
Dias Fernandes e Eudésia Vieira foram admitidos no mesmo ano como sócios do IHGP, além de ser possível identificar um posicionamento comum em relação ao papel feminino que ambos defendiam. Essas aproximações também são encontradas entre Dias Fernandes e Catharina Moura, esta última proferiu a conferência O Direito da Mulher, em 1913. Essas afinidades nos sugerem que houve, além da geração intelectual feminina na Paraíba, um grupo de intelectuais homens, que tendo um lugar de destaque na vida cultural no estado, também advogaram pela causa feminina (GALVÍNCIO, ESPÍNDOLA, COSTA, 2018).
Na esteira desse argumento, pesquisas anteriores indicaram que o jornal A União encabeçou discussões referentes à condição feminina na sociedade, mediante os temas sobre: a educação física da mulher, educação feminina, higiene, maternidade, moda e feminismo. Esse suporte também veiculou a Página Feminina, seção dedicada às atividades da Associação Paraibana Pelo Progresso Feminino (MACHADO, NUNES, MENDES, 2013).
Eudésia Vieira também se integrou em outras redes de sociabilidade intelectual no estado, participando da Associação dos Professores Primários da Paraíba, na qual desempenhou a função de oradora da comissão organizadora e como secretária. Nos periódicos educacionais também colaborou com o jornal O Educador, esse que fazia parte da Associação dos Professores Primários, bem como na Revista do Ensino que era uma importante interlocutora das ideias da Escola Nova na Paraíba, fundada por José Batista de Melo, e sendo nessa importante interlocutora das ideias da Escola Nova na Paraíba.
Além desses espaços de sociabilidade, escreveu nos jornais, A Imprensa e A Ordem, ambos de matrizes católicas. O primeiro jornal mencionado tinha sua sede nas dependências do palacete da Confederação Católica, na Praça do Carmo, na capital paraibana (MARTINS, 1978). Machado, Nunes e Mendes (2013) também mencionam que o referido periódico, de administração religiosa e católica, fez parte dos debates feministas em curso com a recepção da conferência de Catharina Moura em 1913.
No dia 10 de março de 1933, A Imprensa publicou a palestra de Eudésia Vieira (1933a) cuja finalidade era explicar para sociedade, em especial, para as mulheres, a importância da participação política feminina daquele momento em diante. A ocasião foi presidida por Dr. Lauro Wanderley, presidente da Liga Eleitoral Católica (LEC) paraibana que, nesse momento, se encontrava disseminada em diversas partes do país. A LEC tinha como objetivo incentivar que seus seguidores depositassem o voto com consciência cristã. Isto é, buscava persuadi-los com o seu programa que, apesar de não partidário, tinha como ponto central a ênfase no deveria ser a representação dos valores de uma nação: a família, a escola e as Forças Armadas (COSTA, 2007).
Sobre A Ordem, encontramos um texto da personagem do ano de 1948. Nessa época, já formada em medicina e também gozando de prestígio social, defendeu a maternidade cristã e patriótica como a função principal das mulheres na sociedade. Seu argumento corroborava com as ideias propagadas pelo movimento das intelectuais católicas e pelo movimento das noelistas5 do qual fez parte (COSTA, 2007).
Em 1934, apesar da tripla jornada que levava como mãe, professora e estudante da faculdade de Medicina do Recife-PE, foi reconhecida como a primeira mulher, neste estabelecimento ensino, a defender uma tese de doutoramento intitulada Syndrome de Schickelê que abordava o: “[...] conjunto de alterações da dinâmica uterina que podem ocorrer durante o parto, afetando seu processo natural” (MEDEIRO, 2017, p.16). Após sua formatura passou a se dedicar a saúde das mulheres e das crianças atendendo no endereço R. Duque de Caxias n. 516, na capital paraibana, onde também era sua residência.
Algumas das biografias escritas sobre sua atuação no estado da Paraíba registraram a insatisfação do marido em relação a sua formatura em medicina, o que não a fez recuar em seu projeto de emancipação intelectual (SALES, SILVA, 2008; PEREIRA, 2007; MEDEIROS, 2017). Esse fato também corrobora a cristalização da imagem da mulher não submissa as autoridades masculinas que Vieira (1951) buscou se identificar desde juventude.
Ainda sobre o período que estudou na Faculdade de Medicina, Eudésia Vieira participou da solenidade de um ano de falecimento do político João Pessoa no IHGP, se integrando a comissão de oradores, em que figurava como a única mulher ao lado de intelectuais homens (GUIMARÃES, 1998). Em 1934, ano da conclusão do seu curso, participou do Segundo Congresso de Médicos, que ocorreu na Maternidade na cidade de Recife, apresentando o trabalho de igual título da sua tese.
Sobre sua atuação como médica nesse período, também é importante destacar que esse deslocamento realizado por Vieira, da docência à medicina, corrobora com o ideal da mulher cuidadora (ALMEIDA, 2006; LOURO, 2011, 2014; XAVIER, 2015). Nesse sentido, ambas as profissões ratificavam o papal feminino que Eudésia Vieira defendia no espaço público: da mulher pública e de virtude. O estereótipo do cuidado, por um lado, cristalizava a identidade feminina relacionando-as a determinados papéis socialmente aceitos, mas, por outro lado, pode ser entendido como uma estratégia possível utilizada para ocupar posições de destaque no período desfavorável a sua ascensão social.
Eudésia Vieira ainda colaborou com as revistas, Era Nova e Flor de Liz. Em relação à revista Era Nova, a participação de Eudésia Vieira foi registrada por diversos estudos anteriores que tiveram como foco a construção do feminino no impresso mencionado. nesse mundo impresso (ABRANTES, 2010). Segundo Abrantes (2010), a revista, pela ausência de uma imprensa feminina local, cumpriu esse papel, podendo ser percebida também pela sua materialidade. A revista Flor de Liz foi fundada por mulheres na cidade de Cajazeiras-PB e circulou entre entre os anos de 1926 e 1937, tendo como principais escritoras: Rosa M. Tavares, Maria Lustosa Honorina Tavares, Aline Rolim, Fortunata Assis, Adalgisa Reis, Cyntia Matos, Vitória Bezzera e Isabel Salles Cartaxo (SALES, 2005). Esse periódico tinha como finalidade promover a educação a e participação da mulher na imprensa, sua materialidade se aproximava com a da revista Era Nova, como constatou Sales (2005, p. 138): “[...] apesar das dificuldades da época com transportes, material de impressão, meios de comunicação etc., o nível das matérias da revista, sempre de cunho literário ou educativo, era excelente [...]”.
A participação de Eudésia Vieira nos espaços públicos extrapolou o cenário cultural e educacional da Paraíba. Em 1974, recebeu o convite para ocupar a cadeira 20 da Academia Fluminense de Letras, tendo como patrono Alberto Torres, mas, por motivos de saúde não aceitou. Ainda, na década de 1970, foi homenageada com o título de cidadã benemérita da Paraíba e uma rua da capital recebeu seu nome, localizada no Bairro dos Estados, bairro da capital paraibana (PEREIRA, 2007; SALES, SILVA, 2008).
Eudésia Vieira faleceu em 16 de julho de 1981. No entanto, continuou sendo lembrada como mulher das letras no estado e recebeu diversas homenagens. No dia 16 de agosto de 1985, no I Círculo de Estudos Literários sobre Autores da Paraíba, a professora, Anice Brito Lira de Oliveira, realizou palestra destacando sua obra poética. Na fundação da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba, em 27 de maio de 2004, foi homenageada como patrona da cadeira 05 (SALES, SILVA, 2008).
Em 2005, a professora da Universidade Federal da Paraíba, Ana Maria Coutinho, foi convidada para a comemoração do Dia Internacional da Mulher, onde palestrou sobre a vida e obra de Eudésia Vieira. Em 2008, Vieira foi homenageada pelo Núcleo de Apoio à Criança e Adolescente com câncer da Paraíba, onde se encontra seu retrato (SALES, SILVA, 2008).
Atualmente, recebeu atenção da editora Pattmos e compôs a galeria de ilustres paraibanos/as, tendo a sua versão biográfica narrada em quadrinhos (MEDEIROS, 2017). Algumas produções no âmbito da história das mulheres paraibanas também enfatizam a atuação de Eudésia Vieira, como a tese de doutorado de Galvíncio (2019), intitulada Trajetória Intelectual de Eudésia Vieira: Educação, feminismos e história pátria (1921-1955). Portanto, Eudésia Vieira continua sendo uma referência importante em diversos trabalhos que enfatizam sua obra e a sua atuação como mulher intelectual da causa feminina.
Considerações finais
Diante do exposto neste texto, é possível indicar três elementos fundamentais que se fizeram presentes na formação educacional e nas redes de sociabilidade de Eudésia Vieira. O primeiro elemento diz respeito à forte contribuição da religião católica na experiência escolar das mulheres do período, em que a personagem justificava seus deslocamentos na cena pública e os repertórios adotados.
O segundo elemento corresponde à autoimagem criada por ela em seus escritos (auto)biográficos. Eudésia Vieira rememorou a juventude para explicar sua conversão ao catolicismo bem como a personalidade de não submissão, utilizando os espaços públicos para promover o embate de ideias com figuras masculinas importantes no cenário cultural.
O terceiro elemento, como desdobramento dos mencionados anteriormente, diz respeito aos projetos coletivos partilhados nos espaços de sociabilidade intelectual nos quais esteve presente. Eudésia Vieira, por meio da sua atuação pública, buscava conciliar o ideal da mulher moderna com a tradicional. Os preceitos religiosos debatidos e defendidos por ela não se opunham à ascensão da mulher na sociedade moderna, pelo contrário, foi nesse universo de aparentes contradições que a personagem legitimou sua ascensão e fez sua voz ser ouvida no cenário cultural no qual as mulheres ocupavam papel secundário.