Introdução
Na universidade a gente não está para apertar parafuso. A gente está ali lidando com seres humanos, com pessoas. As pessoas sentem, as pessoas se emocionam. Então, uma palavra que eu diga ou não diga pode impactar alguém, né? Eu estou ali formando gente. (Profa. Flor de Lis, 2017)
Devido à conjuntura de complexidade em que se situa a prática educativa na atualidade, atravessada pelas diversidades linguísticas, éticas, de gênero, entre outras, a relação entre professores e estudantes tem sido motivo de preocupações.
No contexto universitário, Silva, Dias e Pacheco (2012) ressaltaram, após pesquisa com estudantes de Pedagogia, que a dimensão afetiva se sobressaiu à dimensão do conhecimento, a qual tem sido destacada no processo ensino-aprendizagem. Nessa mesma linha, o estudo de Murgo, Alves e Francisco (2016), igualmente com estudantes de Pedagogia, concluiu que a afetividade pode contribuir de maneira favorável ou negativa para o êxito dos estudantes no processo de ensino e aprendizagem.
Outrossim, o estudo de Uleanya (2019), realizado em duas universidades de base rural na África do Sul e Nigéria, evidencia que a relação professor-aluno influencia as habilidades de aprendizagem dos estudantes e, consequentemente, afeta o desempenho acadêmico desses sujeitos.
A pesquisa de Soares, Gomes, Maia, Gomes e Monteiro (2016), efetuada com graduandos em Psicologia, também comprova que os estudantes consideram difícil lidar com as relações interpessoais, de modo a alterar o convívio e a aceitação entre as pessoas e obstar a comunicação na universidade.
Apesar das dificuldades, o resultado da pesquisa de Espinosa (2016) demonstra que relações afetivas positivas favorecem o diálogo, a proximidade e um ambiente de ensino-aprendizagem prazeroso. Esses aspectos vão repercutir favoravelmente no interesse dos estudantes pelos conteúdos estudados, no aumento da autoestima e em suas aprendizagens. Com efeito, a demanda afetiva do estudante não se reduz à compreensão do conteúdo, mas se estende, conforme Espinosa (2016), à possibilidade de diálogo com o docente na busca de apoio afetivo para vencer o isolamento vivido na situação de aprendiz.
Para Safotso (2018), na República de Camarões, a implementação do Bacharelado, Mestrado e Doutorado, com a ajuda das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), mudou drasticamente a natureza das relações entre professores e estudantes, na medida em que reduziu consideravelmente a distância que existia entre eles, tornando essas relações cada vez mais positivas.
Posto isso, Espinosa (2016) intercede pela busca do verdadeiro sentido da educação, qual seja, a formação do ser social integral, o que implica tanto a dimensão intelectual quanto a afetiva. De igual modo, Medeiros (2017) conclui que a afetividade contribui para a construção de valores essenciais em se tratando da boa convivência em sociedade.
Ao pesquisar sobre a prática pedagógica de professores que marcaram a vida de estudantes da pós-graduação, Arruda (2018) evidenciou que, além da racionalidade, as práticas que se destacaram na experiência de formação foram aquelas caracterizadas pela amorosidade; essa atitude, segundo a autora, apresenta uma perspectiva de mudança da docência.
Ao observarem a prática educativa de dois docentes bem avaliados, Quadros e Mortimer (2016) ampliam a nossa compreensão sobre afetividade. Esses docentes valorizam os alunos, buscam tratá-los pelos próprios nomes, estimulá-los a resolver problemas, a pensar e a falar, mesmo que não estejam acertando as questões. São considerados afetivos porque, além de passarem tarefas adequadas às possibilidades dos estudantes, dão atenção às suas dificuldades, auxiliando-os sempre que necessário.
Evidentemente, a dimensão afetiva exige saberes específicos, raramente contemplados nos cursos de pós-graduação stricto sensu onde são formados os professores da Educação Superior. No entanto, são esses docentes que, muitas vezes, servem de modelos aos graduandos que se licenciam na universidade para atuar na escola básica.
Apesar dessa lacuna formativa, fica evidente nos estudos analisados anteriormente que a dimensão afetiva é importante para a aprendizagem dos acadêmicos. Com efeito, o estudo de Cosso, Franco e Fernandes (2018) aponta que o elemento respeito constitui o núcleo central das representações sociais de professores e alunos do Ensino Superior do curso de Administração de Empresas investigado sobre a relação professor aluno. Enquanto os professores destacam o elemento “aprender”, nas representações dos alunos desponta o elemento “amizade”. As autoras concluem que a construção do conhecimento ocorre a partir de uma relação interpessoal entre professor-aluno, na qual o professor mostra-se como a figura central na mediação dos conteúdos abordados, discutidos e apreendidos pelos integrantes desse processo interacional.
Apresentando resultados similares, a pesquisa de Pereira e Oliveira (2020), realizada com cento e trinta e três professores e estudantes de diferentes cursos de uma universidade pública, aponta que as representações sociais desses sujeitos têm como núcleo central os termos respeito, compreensão, amizade e apoio, sugerindo apreço pelas questões que ultrapassam a cognição.
Corroborando o que vimos discutindo, além do conhecimento do conteúdo e do conhecimento didático do conteúdo, Marcelo García (1999) destaca a necessidade de conhecimento do professor sobre o contexto, enfatizando o conhecimento sobre os alunos e a sua realidade social e cultural.
O estudo de Barros (2017) também evidencia que a docência exige o domínio de inúmeros saberes, dentre os quais ele destaca o saber pedagógico, que possibilita ao professor desenvolver estratégias de ensino adequadas à construção de aprendizagens pelos estudantes. No que se refere aos saberes pedagógicos, a autora enfatiza aqueles relativos à comunicação com os discentes, ao diálogo e à relação afetuosa.
Os resultados da pesquisa de Souza (2016) vão além, apontam que a afetividade na relação educativa está vinculada à ideia de prazer na docência, às atitudes do professor em relação aos estudantes e às qualidades pessoais desse profissional. De tal modo, o professor afetivo é próximo, solidário, acolhedor, preocupa-se com as necessidades formativas dos discentes, respeita suas diferenças culturais, dedica-se à profissão, é amigo, tem bom senso, sensibilidade, flexibilidade e humanidade ao tratar das dificuldades cognitivas e afetivas dos acadêmicos.
Para lidar com tantos saberes pessoais e profissionais, Barros (2017) e Souza (2016) defendem o desenvolvimento profissional dos docentes da Educação Superior, acenando com a possibilidade de as atividades formativas estimularem a reflexão sobre suas próprias práticas, o que pode ocorrer mediante programas institucionais e com a participação dos seus pares.
Apesar dessa necessidade formativa, de acordo com Espinosa (2016), Osti e Noronha (2017), pesquisadores reconhecem a existência da afetividade ou afetos na relação professor-aluno. Entretanto, eles exploram pouco este campo em suas pesquisas.
Diante desse vazio, resolvemos desenvolver uma investigação cujo objetivo geral foi compreender a influência da relação afetiva entre professores e estudantes do Curso de Educação Física de uma universidade pública da Bahia, no processo de formação acadêmica.
Neste artigo, discutimos os sentidos da afetividade na relação educativa concebidos pelos professores e estudantes que participaram da referida pesquisa. Evidenciamos que, após expormos o método, apresentaremos os resultados estabelecendo um diálogo entre os sujeitos da pesquisa e os autores que dão sustentação ao estudo. Por fim, discutimos tais resultados.
Método
A pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, contou com a participação de sete estudantes: Ana, Anísio, Bianca, Carlos, Helder, Paloma e Washington e quatro professores da área de Educação Física: Fênix, Flor de Lis, Krot e Esporte. Os nomes adotados são fictícios e foram escolhidos pelos próprios participantes, por questões éticas, com o intuito de preservar as identidades.
A produção de dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas, do tipo questões estímulo, as quais possibilitaram aos sujeitos rememorar o vivido com narrativas da vida real. As entrevistas ocorreram nos horários combinados com os participantes, em locais reservados e tranquilos, nas dependências do Curso de Educação Física de uma universidade pública da Bahia.
Os sujeitos foram contatados por e-mail e aderiram à participação do estudo de forma espontânea, após assinarem o termo de consentimento livre e esclarecido. A produção dos dados foi autorizada pelo CEP mediante o Parecer 1.960.905.
Na análise dos dados usamos algumas etapas da análise de conteúdo em sua versão temática (BARDIN, 2001). Para Minayo (2006), essa ferramenta mostrou-se pertinente aos propósitos de uma pesquisa qualitativa como a nossa. Cabe esclarecer que não buscamos seguir a pretensa objetividade dessa técnica. Procuramos compreender os conteúdos latentes, não aparentes, de certo modo inéditos e os significados que surgiam nos discursos dos colaboradores da nossa pesquisa, atentando para o contexto em que foram produzidos.
Os sentidos da afetividade na relação educativa
No campo educativo, a afetividade é tratada de maneira ampla, mas o recorte que nos interessa é a relação professor-estudante que acontece durante o processo formativo no contexto da Educação Superior. Nesse campo, o termo afetividade abrange tanto as emoções e os sentimentos quanto atitudes de cuidado com o próximo, valores e ética, abarcando o desenvolvimento pessoal e profissional dos sujeitos.
Neste trabalho, tomamos por base o conceito de afetividade apresentado por Rios (2010, p. 403), que encontrou nesse termo afetividade diversos significados, entre os quais destacamos: “atitudes e valores, comportamento moral e ético, desenvolvimento pessoal e social, motivação, interesse e atribuição, ternura, inter-relação, empatia, constituição da subjetividade, sentimentos e emoções.” Ao conceber a afetividade como a expressão de sentimentos e emoções, ele defende que a competência afetiva possa ser desenvolvida pelos processos de formação inicial e continuada dos professores.
Na literatura, de modo geral, constatamos que alguns estudiosos utilizam os termos sentimentos e emoções como sinônimos. Outros, como Damásio (2013), Martin e Briggs (1986), distinguem os dois termos, embora os estudem de maneira integrada.
Espinosa (2016, p. 5) define a afetividade por meio de cinco componentes: “a atitude relacionada a crenças (concepções e convicções, incluindo seus aspectos cognitivos e sociais), emoções, autoconfiança ou autoconceito, crenças de atribuição ou atribuição, controle (interno, externo, controlabilidade, estabilidade) e motivação ou comprometimento”.
Quanto à emoção, trata-se de uma reação aguda episódica provocada por um estímulo específico; tem um caráter explosivo e pode desenrolar-se com ações contínuas. A emoção nasce da análise de determinadas circunstâncias. Desse modo, existe uma dependência entre cognição e emoção.
Com efeito, Hagège (2017) explicita que a epistemologia cartesiana-positivista negligenciou o corpo e as emoções nos processos educacionais institucionais, priorizando os aspectos cognitivos. Mas a autora garante que tal epistemologia está evoluindo na medida em que reconhece a importância da regulação das emoções para uma pessoa tornar-se cidadã.
Quanto às considerações em tela, as ciências da educação devem se preocupar com as emoções, dado que a sala de aula é passível de suscitar emoções positivas e/ou negativas. Ao mesmo tempo que pode gerar alegria a partir da surpresa, da satisfação e do contentamento, pode também gerar emoções negativas como ansiedade, inquietude, preocupação, medo, raiva, tristeza, nojo, desânimo e angústia (ESPINOSA, 2016).
Neste sentido, como emoções negativas, como às que nos referimos anteriormente, inibem a capacidade de o indivíduo desenvolver conexões sociais satisfatórias; ao contrário, experiências emocionais positivas são fundamentais para o estabelecimento de novos laços sociais (TAYLOR; PEARLSTEIN; STEIN, 2017).
Ainda que se considere a importância da dimensão afetiva, nossa maneira de pensar e de agir na sala de aula, particularmente na Educação Superior, continua fortemente influenciada pelo pensamento cartesiano que não toma essas dimensões do universo humano na prática educativa. Tais aspectos não são considerados como objetos de conhecimento, logo não são componentes de ensino nem de aprendizagem na universidade. Nesse âmbito, privilegiam-se conteúdos relativos ao mundo dos objetos e não aqueles relativos ao mundo das pessoas. Com efeito, a sociedade atual se desenvolveu de maneira desequilibrada porque ela não resulta de um desenvolvimento das relações pessoais e interpessoais equitativo ao forte desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
Na atualidade, alguns pensadores, como Favre e Favre (1998) e Damásio (2013), reconhecem a importância das emoções e dos sentimentos na aprendizagem, reivindicando a coexistência harmoniosa da afetividade e da cognição. Tassoni (2000) afirma que as dimensões afetiva e cognitiva do sujeito se completam, de modo a não existir uma redução da importância de uma sobre a outra e sim uma colaboração constante na aquisição do conhecimento. Vigotski também se posiciona contrário à dicotomia entre cognição e afeto quando afirma que os sentimentos mantêm relação com os pensamentos:
A forma de pensar, que junto com o sistema de conceito nos foi imposta pelo meio que nos rodeia, inclui também nossos sentimentos. Não sentimos simplesmente: o sentimento é percebido por nós sob a forma de ciúme, cólera, ultraje, ofensa. Se dizemos que desprezamos alguém, o fato de nomear os sentimentos faz com que estes variem, já que mantêm uma certa relação com nossos pensamentos. (VIGOTSKI, 1991/2004, p. 184)
De maneira efetiva, Favre e Favre (1998) postulam que numerosos estudantes, aptos do ponto de vista intelectual a seguir seus estudos, mostram-se inaptos de ponto de vista afetivo e emocional. Neste mesmo sentido, Damásio (2013) alude que a aprendizagem depende da emoção. Aime (2016) defende a hipótese que a afeição do professor cria um clima favorável ao processo de aprendizagem. Para a autora, a emoção na relação afetiva entre professor-aluno representa o coração da vida mental dos seres humanos. Pereira (2017) evidencia que a afetividade na relação professor-aluno apresenta relações diretas com a qualidade do processo ensino-aprendizagem; que a qualidade da mediação docente pode produzir afetos positivos ou negativos e que a afetividade não pode ser pensada isolada da cognição.
Os modelos que levam em conta apenas o aspecto intelectual têm sido questionados. Osti e Tassoni (2019) deixam claro que as escolhas e as formas de agir dos professores na sala de aula vão impactar diretamente a maneira como os discentes constroem aprendizagens e as relações consigo mesmos.
Tomando por base os estudos de Martin e Briggs (1986), que enfatizam a competência social entre os indivíduos de um grupo, Rios (2010) criou o modelo “Competência afetiva na relação educativa”, constituído dos seguintes elementos: vínculo, expressão, comunicação verbal, comunicação não verbal, diálogo, respeito, cooperação, apoio, capacidade de inclusão e de participação e gestão de conflitos.
O termo competência tem aqui o sentido de ação eficiente dos docentes em novas situações ligadas às relações estabelecidas na prática educativa com os estudantes, nas quais mobilizam sentimentos, conhecimentos na situação, discernimento e o momento adequado.
De acordo com Rios (2010), o professor que apresenta a competência afetiva na relação educativa age de forma humana, pois percebe o discente em sua totalidade e subjetividade, ouvindo-o, aconselhando-o, mostrando-se aberto ao diálogo, valorizando os saberes trazidos por tal sujeito, acolhendo-o em suas dificuldades não apenas acadêmicas, mas pessoais e buscando a criação de um ambiente favorável à construção e consolidação da aprendizagem.
Resultados e discussão
Na sequência, analisamos os relatos dos sujeitos da pesquisa que realizamos, buscando estabelecer um diálogo entre eles e vários estudiosos sobre o tema em consideração.
Para um participante desta pesquisa, a afetividade tem diversos sentidos que estão em conformidade com o modelo proposto por Rios (2010), nos quais se distinguem sentimentos de proximidade, carinho, respeito e dedicação, como podemos verificar no excerto a seguir:
A afetividade com essa relação talvez de proximidade, de carinho e respeito, de dedicação que o professor tem ao trabalho e essa afetividade tem que envolver essas dimensões todas. É uma coisa sistêmica, não é uma coisa fragmentada. Ela é fundamental para entender que a relação do professor, entendendo também o sistêmico, não pode ser só uma conta do professor, é uma conta de todos que fazem parte do processo, que envolve a universidade, que envolve as instâncias. (Prof. Esporte, informação verbal, 2017)
A proximidade física é um dos componentes da comunicação não verbal apresentada por Rios (2010). Trata-se da linguagem do silêncio, aquela do corpo que, muitas vezes, torna-se mais eficaz para comunicar os estados afetivos. Significa aproximar-se do outro, ir ao seu encontro. Diversos sentimentos, inclusive a motivação para os estudos e a aprendizagem de determinado conteúdo, podem ser facilitados a partir de tal interação. Entretanto, proximidade tem preocupado muitos educadores. Ela pode tornar possível ou dificultar o diálogo. Sugere-se manter a distância na proximidade. Mas, torna-se difícil antecipar o lugar psíquico ideal entre professores e seus alunos. Fica a cargo do próprio educador encontrar a postura que lhe convém entre os extremos distância e proximidade.
No que concerne ao respeito, ele é definido por Abbagnano como “o reconhecimento de sua dignidade própria ou da dignidade do outro e o comportamento inspirado neste reconhecimento” (2007, p. 822). Em outras palavras, respeitar o outro é reconhecer a sua dignidade e admitir que esse sujeito é essencial em nossa vida e em nossa maneira de agir.
De acordo com o Prof. Esporte, anteriormente citado, a afetividade é fundamental na prática educativa, pois se trata de uma dimensão que deve abarcar a universidade como um todo. Encontramos em Imbernón essa mesma ideia de afetividade, ao propor que a instituição educativa deve aproximar-se mais do seu caráter relacional e dialógico abrangendo todas as pessoas:
Para educar realmente na vida e para a vida, para essa vida diferente, e para superar desigualdades sociais, a instituição educativa deve superar definitivamente os enfoques tecnológicos, funcionalistas e burocratizantes, aproximando-se, ao contrário, de seu caráter mais relacional, mais dialógico, mais cultural-contextual e comunitário, em cujo âmbito adquire importância a relação que se estabelece entre todas as pessoas que trabalham dentro e fora da instituição. (2011, p. 7- 8)
Como expressa a professora Flor de Lis, a afetividade tem o sentido de compreender o outro, de escuta, de diálogo, de cuidado, de correção de (conduta), de cumprimentar o outro para propiciar a humanização das relações. Vejamos o excerto:
A afetividade, não é ficar: ó meu amorzinho, venha cá, deixa eu lhe dar um beijo um abraço, não é isso! A questão que a gente chama de humanização da relação [...], eu não sinto isso no ensino superior, [...] eu não vejo afetividade nas nossas relações, isso é uma tristeza. Afetividade é: Olhar o outro, entender o outro, ouvir, dialogar sair dessa relação muito formatada, né? [...] Essa atitude de cuidar é um ato afetivo, de corrigir, de mostrar ao estudante qual o melhor caminho, não quero que você erre. Uma forma melhor para você caminhar, é formação né? [...] Eu acho que a emoção é tudo [...], no nosso dia a dia tá tudo ficando mecanizado. Você vai ao banco, é um terminal, você vai fazer um atendimento, é tudo eletrônico e essa questão do corpo a corpo do olho no olho, ainda é fundamental! Mesmo que nós estejamos na sociedade altamente evoluída, mas a gente ainda vai precisar do toque! Do olho no olho, do Bom Dia! [...] Ainda tem professores, colegas, que criticam bastante isso, né? -Não estou aqui para esse tipo de coisa! Minha função é dar meu assunto, ir-me embora. (Prof.ª Flor de Lis, informação verbal, 2017)
Fica evidente que, nas duas declarações anteriores, o sentido trazido para afetividade é mais amplo, diz respeito a um sentimento de acolhimento que deve abranger as relações na universidade como um todo, não apenas a prática docente. Vem da necessidade de humanizar as relações, de acolher o sujeito, de ser cordial e, inclusive, de corrigir o discente.
Essa acepção mais ampla de afetividade citada pela Professora Flor de Lis está em consonância com o estudo de Quadros e Mortimer (2016) a que nos referimos anteriormente. Tanto nesta quanto na pesquisa dos autores referenciados, a afetividade não significa apenas carinho. Ela estabelece uma relação mais humanizada que implica dar atenção ao estudante como pessoa, bem como a suas dificuldades, buscando superá-las.
Mais do que nunca a universidade pública tem recebido estudantes de diferentes culturas e estratos sociais. Muitos são ainda adolescentes imaturos que necessitam dessa acolhida para aprender a conviver no ambiente acadêmico. Este por si só amedronta, dado que parece grande, impessoal. Muitos são provenientes de famílias que, por vezes, não cumprem o papel de, como diz a professora, “mostrar a ele qual o melhor caminho”.
O termo afetividade com o sentido de compreensão foi apontado por 52% das 100 professoras que participaram da pesquisa de Rios (2010). Trata-se de uma disposição interna, de um sentimento que se inscreve nas interações sociais e possibilita considerar o sujeito da aprendizagem com a sua historicidade, diferenças, sentimentos, valores, desejos e projetos.
Além desses aspectos assinalados, a afetividade aparece nos resultados desta pesquisa como contato físico, como olhar, nas palavras da professora Flor de Liz: “a gente ainda vai precisar do toque! Do olho no olho”. O olhar favorece a comunicação simultânea e transparente entre as pessoas. O contato visual parece ser o canal mais expressivo e importante, porque ele manifesta a essência do ser, suas emoções e sentimentos. Segundo Silva (2017), as expressões faciais influenciam de forma direta a resposta dos estudantes em relação à aprendizagem.
O sentido do contato físico, por sua vez, difere de cultura para cultura. Na cultura brasileira, por exemplo, o estudante considera que tocar o outro ou ser tocado pode representar ternura e afeto; a partir desse tipo de contato é que se produz a conexão afetiva.
Os professores Krot e Esporte apresentam outros sentidos da afetividade na prática educativa, quais sejam: entender o contexto do estudante, dar limites, acolher, ouvir, mediar:
Entender esse contexto do aluno é fundamental. Entender para poder agir. Agir afetivamente não é necessariamente dizer sim para esse aluno; - Sim, meu filho, saia da sala quantas vezes você quiser. Sim, meu aluno, chegue atrasado quando você quiser! Agir afetivamente é dizer não! Agir afetivamente entendendo esse contexto, né, desse menino ou dessa menina, mas a partir desse contexto buscar intervir positivamente, não é? [...] Atitude muito sensata de acolher, de tentar entender, de ouvir. (Professor Krot, informação verbal, 2017)
A relação afetiva professor-aluno é escuta qualificada, é parar para ouvir, é saber o nome. (Professora Flor de Lis, informação verbal, 2017)
A questão da preocupação com o outro, uma preocupação com o ser humano, é colocar junto todas aquelas questões de explicação. Quando eu coloco junto, por exemplo, a história da vida dela. Quando eu coloco as limitações a qual ela representa. Outros avançam mais, outros com limitações. Então, eu tenho que levar em consideração isso também. [...] às vezes, fulano tá ali com um problema muito maior e a gente não dá conta de tudo. Apesar de ser bem complexo, como eu falei, as pessoas vão ter reações diferentes ou iguais a seus problemas. Então, a gente tem que fazer esse processo de mediação do professor mesmo. (Professor Esporte, informação verbal, 2017)
Alguns sujeitos da pesquisa consideram fundamental entender o contexto do estudante para compreender os seus problemas e limitações, de modo a intervir positivamente, isto é, ajudá-lo, contribuir para a formação de valores. No entanto, os professores universitários, de modo geral, têm se preocupado em “transmitir” os conteúdos, desconsiderando a dimensão humana dos seus alunos e que faz parte do seu papel, como educador, formar atitudes e valores.
Trillo (2000) pondera que a dimensão mais emocional da aprendizagem é a formação de atitudes dos estudantes. Para esse estudioso, atitudes são crenças ou convicções que se predispõem de modo favorável ou não, para o desempenho em relação a um objeto social. Para Trillo (2000), as atitudes desenvolvem-se mediante processo de aprendizagem, por meio de interações sociais, nas quais os indivíduos trocam diferentes valores, gerando algum tipo de conhecimento e uma emoção de agrado ou de desagrado a esse respeito, os quais vão contribuir para que tais indivíduos se predisponham a atuar de uma determinada maneira.
Realçamos, anteriormente, a necessidade de o professor conhecer o contexto do estudante. Nesse sentido, Balzan traça o perfil dos universitários que temos diante de nós: a maioria absoluta informa-se sobre os acontecimentos no mundo através da Internet. Todavia, evidenciam dificuldades na elaboração de textos mais complexos; resistem à leitura mais profunda e suas informações são extremamente superficiais; “são desprovidos dos pré-requisitos necessários para a internalização de conhecimentos de nível acadêmico”; (2015, p.279) têm dificuldade para gerenciar o tempo e, por serem emocionalmente carentes, tentam envolver os professores em seus problemas pessoais. Tais características, de fato, tornam a docência cada vez mais complexa, exigindo do professor o exercício de novas tarefas, o que alarga e diversifica o âmbito da profissão de professor.
Confirmando a ideia exposta anteriormente, Karpouza e Emvalotis (2018) concluíram, por meio dos resultados da pesquisa que envolveu professores formadores e estudantes da pós-graduação em Educação na Grécia, que a relação professor-estudantes é um processo dinâmico e complexo. Apesar da hierarquia dos professores, tais relações se caracterizam pelas manifestações do desejo de um relacionamento significativo, que supere obstáculos, mas mantenha os limites. Embora o professor seja o condutor inicial que define o ritmo do relacionamento com os estudantes, o papel destes é igualmente importante, pois a relação entre professores e universitários acontece em parceria. Portanto, um relacionamento tão complexo pode ser influenciado por vários fatores, além das relações entre professor e estudantes.
Os professores sujeitos desta pesquisa, corroborando com os estudiosos referenciados anteriormente, evidenciam que, para agir afetivamente, o docente universitário precisa dar limites. Hoje, talvez, jovens, adolescentes e crianças estejam com dificuldade de escutar um “não” em razão das poucas restrições que lhes são conferidas em casa. Em consequência, cometem atos impensados, cujos resultados podem ser desagradáveis tanto para eles mesmos quanto para seu grupo de convivência. Assim, os sujeitos desta pesquisa consideram que agir afetivamente é também “dizer não”.
Ademais, destacamos que os professores participantes desta investigação apontam outros sentidos para a afetividade na prática educativa: acolher, escutar de forma qualificada, saber o nome dos alunos. Compreendemos o quanto é difícil para o docente aprender o nome dos estudantes, quando se tem turmas numerosas. Apesar desse desafio, muitos conseguem se recordar, valendo-se de técnicas, como fazer associações dos nomes com coisas que lhes interessam ou observando uma característica física original. Quando o docente o chama pelo nome, o estudante aumenta sua autoestima, como mostrado anteriormente na pesquisa de Quadros e Mortimer (2016).
Afora o exposto, a afetividade aparece nas narrativas dos sujeitos com o sentido de vínculo e diálogo:
Acho que esse vínculo entre professor e aluno tem que existir porque você está ali, todo o dia, ou quase todo o dia, várias horas, com aquele aluno. Como é que você não sabe o que tá acontecendo com o aluno? [...] Ele tem que existir! Porque talvez se eu tivesse mais professores preocupados comigo, mais próximos de mim, provavelmente já teria me formado, professores que compreendessem mais, na verdade não só compreender, mas buscar compreender a dinâmica de vida do estudante, entende? Se tivesse ali disposto a ajudar. (Estudante Bianca, informação verbal, 2017)
Uma questão de aproximação de todos, de sentar e conversar, de você não estabelecer essa relação de: - Ah, eu sou seu professor e você é meu aluno! - E só ficar nessa relação hierárquica de poder do professor sobre o aluno, então é nesse sentido mesmo de acolhimento, tentar minimizar a distância entre aluno e professor e buscar entender essa relação, a natureza e as dificuldades da pessoa. Isso gera uma aproximação e essa vontade maior de desempenho, de estar junto. (Estudante Paloma, informação verbal, 2017)
As estudantes Bianca e Paloma apontam a necessidade de aproximação com seus professores. Mostram-se incomodadas com a relação hierárquica de poder que muitos estabelecem com os discentes. É como se os professores assumissem uma atitude de soberba por dominarem o conhecimento de sua área específica e, diante do título que ostentam, desconsiderassem aqueles que ainda estão no processo de formação inicial. Notamos que as narrativas das estudantes deixam transparecer emoções de tristeza e ou de raiva, o que nos faz inferir que são emoções que aparecem, também, nas interações sociais.
E, embora pareça estranho para muitos docentes universitários, os quais imaginam que os estudantes são autônomos em relação à construção da aprendizagem e que o seu papel é apenas “passar o conteúdo”, Bianca expressa que, se professores se preocupassem mais com ela, talvez já tivesse se formado. Bianca e Paloma mostram-se desprovidas da compreensão e do acolhimento por parte dos professores. Sendo assim, podemos inferir que as relações afetivas influenciam o processo de formação acadêmica dos estudantes universitários.
O vínculo é o sentimento de profunda ternura pelo outro, a ligação de uma pessoa com a outra, a disposição para dar e receber afeição, às vezes expresso pelo olhar do sujeito que fala ou por chamá-lo pelo próprio nome. Em relação a esse laço entre professor e estudantes, Bianca aponta que é construído no dia a dia na prática educativa e que ele deve decorrer do interesse do profissional da educação pelo que está acontecendo com seus alunos.
O diálogo pode representar um encontro mútuo que toma a forma de conversa ou de um silêncio profundo com trocas de olhar. Nesse sentido, de acordo com Misrahi (2016), estudioso do filósofo Buber, o diálogo é um comportamento, uma atitude da consciência, uma maneira de ser e de se fazer ser. Mas ele só pode ser autêntico quando parte de um movimento para o outro, no sentido de reconhecê-lo como pessoa e aceitá-lo como parceiro.
Assim, o diálogo tem como característica a congruência, quer dizer, a expressão sem reserva, face a face, a transparência das consciências, o que implica a responsabilidade concreta de uma pessoa com a outra, num ato simultâneo e recíproco de duas pessoas que estão ativamente engajadas na relação. Por fim, o relacionamento autêntico é compreendido na perspectiva de relações recíprocas, o que não acontece quando uma pessoa reduz a outra a objeto. Com efeito, Espinosa (2016) mostra a existência da representação de relação professor-aluno vivida globalmente como desumanizada e desumanizante.
Neste sentido, fica explícito nos depoimentos dos sujeitos da pesquisa que eles condenam o professor que se afasta do estudante, o discente que não respeita o professor. Desse modo, podemos inferir que a dimensão afetiva na relação educativa, particularmente no curso de Licenciatura em Educação Física, constitui o ponto de partida para se estabelecer um clima favorável ao processo de formação acadêmica de futuros professores que vão atuar na escola pública, a qual necessita ser resgatada. Contudo, esse projeto demanda professores com o domínio dos conhecimentos específicos do conteúdo (conhecimentos-base), dos conhecimentos didático-pedagógicos, dos conhecimentos que envolvem a dimensão afetiva e a responsabilidade social, a fim de contribuírem com a superação das desigualdades sociais.
Considerações finais
Os resultados indicam que o termo afetividade, na concepção de estudantes e professores universitários que participaram desta pesquisa, apresenta diferentes sentidos que se intercruzam e dialogam com o modelo “Competência afetiva na relação educativa.” (RIOS, 2010) Esses termos inspiram sentimentos, atitudes, estado e ações voltadas para os outros indivíduos. Semelhante ao sentimento, a afetividade surge nos discursos dos sujeitos indicando respeito, entendimento, vínculo, carinho; como atitude, a afetividade é evidenciada na disposição interna para a proximidade, a compreensão; como ação, a afetividade aparece como cuidar, corrigir a (conduta), cumprimentar o outro, saber o nome, dar limites, mediar. Por fim, a afetividade mostra-se como um estado de humanização.
Tais resultados conversam com inúmeras pesquisas mencionadas neste trabalho; de modo similar, os colaboradores valorizam, entre outros aspectos voltados para a dimensão afetiva, o respeito, a amizade, a compreensão e o apoio.
Os dados produzidos neste estudo nos fazem refletir sobre a importância da dimensão afetiva no processo de formação acadêmica dos estudantes na universidade, particularmente no Curso de Licenciatura em Educação Física. A afetividade possibilita um clima propício de aproximação, compreensão, confiança, respeito mútuo, o que favorece a construção e a aquisição do conhecimento por parte dos sujeitos que se encontram em formação. Ademais, quando a relação entre professores e estudantes não se efetiva de maneira positiva, ela pode trazer resultados contraproducentes para a vida acadêmica e pessoal dos graduandos que se sentem desamparados, desmotivados e, muitas vezes, passam a rejeitar os professores e os componentes curriculares por eles ministrados. Esse contexto pode levar a desistências e atrasos no processo de formação inicial.
Vale acrescentar que não desejamos responsabilizar apenas os professores universitários pela maneira austera, impessoal, distante e arrogante com que, às vezes, tratam os estudantes. Muitos deles não tiveram formação inicial no campo da docência e, nos currículos dos cursos que frequentaram em nível de pós-graduação stricto sensu, a dimensão afetiva deve ter sido negligenciada. Defendemos políticas de formação continuada desses profissionais que possibilitem a reflexão com os pares sobre questões atinentes à prática educativa, por exemplo, a aprendizagem do adulto, a avaliação da aprendizagem e a importância da dimensão afetiva nesse processo.
Munidos da competência afetiva na relação educativa, cremos que os professores terão oportunidade de resgatar essa dimensão negligenciada e, em consequência, poderão tornar-se capazes de desenvolver uma relação sincera e significativa com os estudantes, de modo a melhor intervir nos seus processos de aprendizagem.
Dada essa necessidade formativa por parte de alguns professores universitários, uma pesquisa-ação pode ser realizada a fim de possibilitar o desenvolvimento profissional dos docentes no local do trabalho, de modo que eles discutam e reflitam com os pares sobre suas dificuldades no campo didático-pedagógico, abarcando a dimensão afetiva.
Por fim, registramos que este estudo apresenta como limitação o fato de ter sido realizado apenas com estudantes e professores do curso de Educação Física. Seria interessante, portanto, ser ampliado para outros cursos da universidade, principalmente aqueles que formam professores que vão atuar na Escola Básica.