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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.22 no.75 Curitiba out./dez 2022  Epub 26-Dez-2022

https://doi.org/10.7213/1981-416x.22.075.ds04 

Dossiê

Um arquivo em migalhas: o arquivo pessoal “público” de um historiador catarinense

An archive in crumbs: the “public” personal archive of a historian from Santa Catarina state

KARLA SIMONE WILLEMANN SCHÜTZa 
http://orcid.org/0000-0003-0177-078X

aUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. Doutora em História do Tempo Presente, e-mail:


Resumo

A partir de bases teórico-metodológicas alicerçadas em debates do campo arquivístico, da História Intelectual e da História do Tempo Presente, o artigo busca discutir a formação do conjunto de fontes históricas que permitiu reconstruir aspectos da trajetória intelectual do historiador catarinense Carlos Humberto Pederneiras Corrêa. Por fim, entendido como um arquivo em “migalhas”, a junção de diferentes documentos, alocados também em espaços diferentes, oportunizou a discussão acerca do que seria uma “memória possível” sobre a trajetória desse historiador.

Palavras-chave: Arquivos; Arquivo Pessoal; Carlos Humberto Pederneiras Corrêa; Trajetória Intelectual.

Abstract

From theoretical-methodological bases guided by debates in the archival field, Intellectual History and the History of the Present Time, the article seeks to discuss the formation of the set of historical sources that allowed the reconstruction of aspects of the intellectual trajectory of the Santa Catarina historian Carlos Humberto Pederneiras Corrêa. Finally, understood as an archive in "crumbs", the junction of different documents, also allocated in different spaces, provided an opportunity to discuss what would be a "possible memory" about the trajectory of this historian.

Keywords: Archives; Personal Archive; Carlos Humberto Pederneiras Corrêa; Intellectual Trajectory

Resumen

A partir de bases teórico-metodológicas basadas en debates en el campo archivístico, la Historia Intelectual y la Historia del Tiempo Presente, el artículo busca discutir la formación del conjunto de fuentes históricas que permitieron reconstruir aspectos de la trayectoria intelectual del historiador Carlos Humberto Pederneiras Corrêa. Finalmente, entendido como un archivo en "migajas", el cruce de diferentes documentos, también ubicados en diferentes espacios, brindó la oportunidad de discutir lo que sería una "memoria posible" sobre la trayectoria de este historiador.

Palabras clave: Archivos; Archivo Personal; Carlos Humberto Pederneiras Corrêa; Trayectoria Intelectual

Introdução

Pesquisas sempre partem de uma curiosidade latente, de uma pergunta ou de perguntas que nos inquietam e que anseiam por respostas. Essas indagações atravessam nossas trajetórias intelectuais e chegam a nós através de diferentes caminhos. No caso de historiadores e historiadoras, as respostas para essas questões exigem a existência de fontes variadas, as quais atuam como testemunhos de um passado recente ou distante. Seguindo essa perspectiva, podemos entender que, quando as problemáticas históricas abordadas na pesquisa envolvem a trajetória de vida de certos personagens, é necessário que pesquisadores tenham a possibilidade de acessar documentação referente a essa vida, ou seja, documentos de caráter pessoal.

Porém, nem sempre essa documentação de caráter pessoal se encontra organizada e disponível aos pesquisadores e pesquisadoras, tal qual uma “Eldorado”, cidade na qual ouro e pedras preciosas brotam do solo. Muitas vezes, esses documentos precisam ser pouco a pouco encontrados, sendo localizados em diferentes espaços e tendo condições de acesso distintas. O relato a seguir assemelha-se ao segundo caso, passando longe do “Eldorado”, e pretende dar a ver que a reconstrução de uma trajetória individual não precisa estar necessariamente ligada a um “arquivo pessoal”, entendido como um conjunto “coeso”, no qual uma reunião de documentos está organizada e acessível em um mesmo local. Aqui trataremos de um arquivo pessoal “público” e em “migalhas” e das representações de uma trajetória pessoal que ele permitiu entrever.

O encontro com os documentos que geraram as reflexões trazidas a seguir diz respeito às experiências de pesquisa de doutorado já concluídas1 que tiveram como principal proposta investigar a historiografia catarinense tomando como objeto a trajetória do historiador catarinense Carlos Humberto Pederneiras Corrêa. A partir da análise e interpretação das diferentes produções historiográficas e relações estabelecidas por este homem, a tese buscou compreender o lugar da trajetória desse intelectual na historiografia do estado e, de certa forma, também no cenário historiográfico nacional.

Nascido em Florianópolis em abril de 1941 e falecido em novembro de 2010, Carlos Humberto Pederneiras Corrêa ocupou diversos espaços durante sua vida profissional e atuou em diferentes funções e locais na cidade de Florianópolis e no estado de Santa Catarina: foi diretor do Museu de Arte Moderna de Florianópolis (1963-1969), Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Santa Catarina (1969-1975), Secretário de Educação, Saúde e Assistência Social da Prefeitura Municipal de Florianópolis (1975), professor titular da UFSC (1967 - 1991), além de professor em diversas outras instituições públicas e privadas, no ensino regular e universitário, como o Instituto Estadual de Educação, Fundação Universitária de Joinville, Universidade do Estado de Santa Catarina, Faculdade de Ensino do Desenvolvimento do Oeste (por conta de convênio estabelecido com a UFSC). Era também membro atuante do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC) e da Academia Catarinense de Letras (ACL), tendo os anos finais de sua carreira profissional ficado marcados pelas suas atividades na presidência do IHGSC.

Como se vê acima, apesar de não ter participado efetivamente do que se pode entender como uma cena político-partidária - nunca ter se candidatado a eleições, sendo assim, não ter exercido cargo político mediante eleição por voto popular -, Corrêa desempenhou funções ligadas ao poder executivo de Santa Catarina e Florianópolis, posições de relativa proeminência dentro do espaço político estadual e municipal.

Com o objetivo de seguir os caminhos dessa trajetória, a pesquisa usou como bases teóricas algumas discussões propostas pela História do Tempo Presente e História Intelectual. A seguir, essas bases teóricas estão materializadas sobretudo nos trabalhos do historiador François Dosse e suas interlocuções com recortes da obra de Pierre Bourdieu. Foram especialmente observadas as pesquisas de Dosse que se lançaram a problematizar os percursos de determinados sujeitos da história recente, não com o objetivo de fazer um relato cronológico, mas apreender como se constituíram em dado momento histórico suas produções científicas e as relações intelectuais que estabeleceram. Ou seja, ao longo da tese optou-se por uma metodologia que lançasse questões à trajetória de Carlos Humberto Corrêa e entendesse esse intelectual, suas relações e seus trabalhos também como portadores de determinada historicidade.

No presente artigo, tais bases metodológicas aparecem nuançadas, pois o objetivo da exposição a seguir é mostrar como, ao longo de uma busca insistente por vestígios das ações desse personagem, uma trajetória foi pouco a pouco se reconstruindo a partir de documentação encontrada em espaços não antes esperados. Nesse cenário, em relação à discussão sobre arquivos - suas definições e desdobramentos - são tomados como interlocutores os pesquisadores Ana Maria de Almeida Camargo, que trata de arquivos a partir de sua organização técnica, seus processos de constituição e uso, e Jacques Derrida, que discorre sobre as tensões existentes no processo de arquivamento entre aquilo que será guardado (e ficará para posteridade) e aquilo que é excluído (e estaria fadado ao esquecimento).

De modo a dar conta do relato e das discussões adjacentes à formação do arcabouço de fontes que permitiu lançar luz a certos recortes da trajetória de Corrêa, aqui entendido como um “arquivo em migalhas”, o artigo está dividido em duas seções. Na primeira são abordados os passos iniciais da pesquisa, as desilusões e reinvenções que possibilitaram o desenvolvimento do trabalho de tese e os debates em relação ao que seria um “arquivo pessoal”. Já na segunda parte são levantados os aspectos históricos da trajetória de Corrêa trazidos à cena por essa documentação, nunca perdendo de vista o local e os agentes que salvaguardaram e celebraram determinada memória dele, a qual poderíamos pensar como uma “memória possível” sobre esse historiador.

Reconstruindo a “continuidade” a partir de descontinuidades, um arquivo pessoal “público”

Logo depois de esboçadas quais eram as expectativas iniciais que atravessavam a pesquisa de tese, estava claro que o acesso ao arquivo pessoal de Carlos Humberto Pederneiras Corrêa seria peça importante no desenrolar da problemática proposta no trabalho. No entanto, alguns obstáculos foram aflorando ao longo do caminho, contratempos que, sabe-se, não são exclusivos da pesquisa aqui relatada, mas que podem emergir também ao longo dos diferentes processos que tornam certos arquivos pessoais disponíveis à consulta e que, posteriormente, podem da mesma forma elegê-los como objetos científicos.

De uma maneira geral, compreendeu-se que para tratar da trajetória desse historiador a pesquisa deveria contar com uma gama diferenciada de indícios, os quais desempenhariam o papel de testemunhas de momentos da vida de Corrêa, suas relações pessoais e profissionais e seus interesses: bilhetes, recortes de jornal, fotografias, documentos de trabalho, registros de viagens, certificados, comprovantes, recibos, bem como os livros de sua biblioteca pessoal. O processo de análise também previa a observação das produções acadêmicas desse historiador e documentos concebidos nos espaços da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e de outros órgãos nos quais Corrêa atuou que pudessem contribuir com o desenvolvimento dessa reflexão. Ainda entravam nesse panorama as fontes orais, a partir de entrevistas cedidas por Corrêa a diferentes pesquisadores, e também entrevistas com sujeitos que mantiveram algum tipo de contato com ele, sejam contatos pessoais ou profissionais.

Nesse cenário, qual seria então o primeiro passo a ser tomado, já que a busca era por um arquivo pessoal? Teoricamente, era preciso encontrar os herdeiros desse espólio documental, usualmente os familiares.

O encontro com a viúva de Corrêa mostrou que as dificuldades para acessar a documentação referente a esse historiador seriam maiores do que antes imaginado. Por não se tratar de uma documentação ainda catalogada e organizada, os primeiros obstáculos ao acesso despontaram: após a morte de Corrêa e com a mudança de endereço da viúva (responsável pela salvaguarda do arquivo desse historiador), parte da documentação referente ao arquivo pessoal e pequena parte de sua biblioteca foram transferidas para um novo endereço, enquanto a maioria da documentação relacionada à sua vida pessoal e profissional permaneceu na antiga residência (ou foi descartada). A este quadro, somou-se a reticência da responsável pela salvaguarda em permitir o acesso aos documentos abrigados na sua antiga residência, criando diversos empecilhos à sua consulta, sob justificativa de que a documentação estava desorganizada (em suas palavras, “bagunçada”). Mesmo quando era oferecido auxílio para organização do arquivo pessoal, as respostas em relação ao acesso eram negativas.

Essas barreiras, somadas ao sentimento de pessoas próximas a Corrêa que foram contatadas ao longo do estudo, as quais pareciam desejar que a tese servisse como uma homenagem à figura e ao legado desse historiador, levaram a investigação a seguir novos caminhos. Sendo assim, tendo em mente a necessidade de evitar conflitos durante o processo de pesquisa devido ao possível confronto entre as imagens ou representações relacionadas à intimidade de Corrêa e as expectativas em relação à pesquisa nutridas por personagens próximos a ele, alguns posicionamentos foram tomados. Pensando especificamente no tratamento das fontes, a pesquisa acabou se direcionando para aspectos mais “publicizados” da trajetória do historiador, ou seja, optou-se por desistir da investigação em seu acervo pessoal que estava sob a guarda da sua família. Era momento de buscar um arquivo pessoal “público” e focar na trajetória profissional desse historiador.

Para tentar delinear os caminhos que deveriam ser seguidos, partiu-se do princípio de que uma trajetória é possível de ser entendida, ou seja, reconstruída em partes no presente, quando o seu personagem central é colocado em relação a outros que atravessaram a sua vida. Por meio desses encontros de trajetórias, é que vai se delineando o espaço de determinado personagem nas diversas redes que também se constituem a vida dessas outras pessoas com a qual se encontrou.

Aceitando a condição de não acesso a esse arquivo pessoal e a necessidade de uma busca por outros caminhos, bem como não perdendo de vista o princípio acima destacado, ao longo de meses vários acervos foram consultados e algumas entrevistas de história oral foram realizadas. Foram muitas andanças, idas e vindas, entre bibliotecas e arquivos, em uma busca contínua por rastros dos percursos de Corrêa. Essa dinâmica acabou por focar a sua atuação no espaço público, e o arcabouço documental consultado e interrogado constituiu-se de produções por ele elaboradas, produções de outros autores pertencentes às suas redes, alguns periódicos publicados no período (destaque para o jornal O Estado) e documentação disponível em locais como o Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, o IHGSC, a ACL, o Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), o Arquivo Central da UFSC e o arquivo do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED) da UDESC.

A maior parte das entrevistas analisadas foram depoimentos recolhidos a partir da metodologia da história oral. Porém, também foram utilizados depoimentos coletados por outros pesquisadores e pesquisadoras. Embora com focos distintos aos da tese, e gravados em momentos e cenários diversos, eles tiveram importante valor documental, pois focalizavam a trajetória de Corrêa. Em relação aos outros personagens entrevistados, para além de suas trajetórias, foram levadas em conta as ligações estabelecidas com Corrêa - aliás, foram essas mesmas ligações que guiaram a escolha daqueles que seriam entrevistados.

Nesse cenário, é válido assinalar que os depoimentos orais são constituídos por memórias e diferentes narrativas sobre o passado; logo, portam seleções, esquecimentos e representações particulares acerca deste mesmo passado. Mesmo que não possamos tomá-los como “[...] relatos ‘verdadeiros’ e ‘objetivos’ sobre os fatos narrados, [eles] representam um rico material e trazem informações pouco encontradas em outras fontes” (FERREIRA, 2013, p.154). Além disso, as entrevistas podem ser um ponto de partida para a busca e localização de outros indícios e, assim, elas foram também utilizadas.

A maioria dos documentos relativos às relações intelectuais (e até mesmo pessoais) de Corrêa foram encontrados em duas instituições: o IHGSC e a ACL, ambas responsáveis por uma prática de arquivamento que parece situar-se na fronteira do que poderia ser entendido como um arquivo institucional (ou público) ou um arquivo pessoal. Foi assim que saltaram aos olhos a documentação abrigada nos espaços dessas instituições.

Junto à variada documentação que essas instituições guardam, estão disponíveis para consulta algumas pastas que acondicionam documentos sobre os integrantes do IHGSC e da ACL. A maioria de seus membros possui uma “pasta”, na qual podem ser encontrados vestígios referentes a sua trajetória, principalmente profissional, como convites para eventos ou lançamento de livros, recortes de jornal, fotografias, telegramas, revistas, pequenas publicações em forma de livro, cópias e rascunhos de discursos proferidos pelo titulares desses conjuntos documentais, cópias de e-mails, bilhetes etc. Assim, foi curioso constatar que tais documentos, apesar de estarem abrigados nessas duas instituições, permitiram entrever traços relativos ao mundo privado, a vida pessoal de Corrêa, o qual teria também participado desse arquivamento.

Partindo dessa observação e de novas questões lançadas a esses conjuntos documentais, foi possível perceber que, a despeito desses dossiês estarem ligados a figuras específicas, as quais provavelmente também operaram na sua construção, foram percebidos traços bem aparentes da interferência de terceiros neste arquivamento - situação possível de conjecturar pois estão depositados nesses dossiês alguns documentos de datas posteriores à morte de seus titulares. Além disso, o lugar onde foi operado este processo de arquivamento não é um espaço que está exclusivamente voltado às figuras destes titulares, ou seja, não se trata de um arquivo que visa preservar “somente” a memória de homens e mulheres vinculados a estas instituições, mas se trata de um lugar que se posiciona como local de pesquisa, onde esta prática de criar “pastas pessoais” é comum e acontece com a maioria daqueles e daquelas que foram, ou ainda são, associados ao IHGSC e à ACL.

Durante o processo de manuseio desses documentos, com tantos traços de natureza “privada”, algumas perguntas despontaram: é a presença em maior ou menor número de documentos de caráter público que torna um arquivo pessoal ou público? Será que uma pessoa “ordinária” também não tem documentos “públicos” no seu arquivo pessoal? Um funcionário de instituição pública, por exemplo, não teria documentos emitidos pela instituição onde trabalhou ou por outras instituições públicas pelas quais de alguma forma tenha tido contato? Tais documentos podem fazer parte deste arquivo, em especial porque tal funcionário público, em algum momento de sua trajetória, se relacionou com essas instituições públicas. Por esse ângulo é importante ressaltar que o que dá sentido ao conjunto documental é o próprio acumulador (o funcionário), e não a quantidade de documentos da instituição de trabalho ou de qualquer outra instituição com a qual ele tenha se relacionado e que podem ser encontradas no acervo por ele salvaguardado.

Logo, apesar dos traços da vida privada que invadem esse processo de arquivamento, segundo Ana Maria de Almeida Camargo (2009, p.37) tais dossiês não podem ser considerados arquivos pessoais, pois a sua formação partiu de uma iniciativa das instituições que os abrigam. Como um conjunto de documentos, cada arquivo se relaciona primordialmente com a instituição ou pessoa que o produziu e que reuniu os elementos pertencentes a ele. Portanto, a partir dessa lógica, o que indica a formação de um “arquivo pessoal” é a própria relação que o seu titular mantém com a sua documentação, ou seja, o seu desejo de guardar ou descartar.

Ainda que não possam ser propriamente caracterizados como arquivos pessoais, os dossiês acima mencionados assumiram na pesquisa de tese o papel de um “arquivo pessoal público”, pois permitiram entrever alguns elementos da vida privada de Corrêa. Por abrigarem documentação de caráter pessoal, ao longo do processo de crítica documental foi importante também compreender os conjuntos de natureza pessoal, mesmo que abrigados por uma instituição, não apenas como produtos “naturais” de determinadas trajetórias individuais. Questões como os investimentos pessoais de cada titular, o desejo de promover determinada imagem perante o público e as próprias visões de mundo, assim como regimes políticos, processos históricos ou até mesmo eventos de uma história familiar, tangenciam e se objetivam na formação dos arquivos institucionais e pessoais, bem como se objetivam nos usos que seus titulares ou aqueles que ficam responsáveis pela sua preservação lhe concedem (ASSMANN, 2011). Essas questões fornecem diferentes maneiras de compreensão dos arquivos, maneiras de pensá-los que vão além daquelas que os relacionam apenas como fontes históricas.

Os arquivos aqui mencionados carregam as diferentes expectativas daqueles que o recolheram em relação às memórias que desejaram deixar para a posteridade - tanto o arquivo que se almejou consultar e que está sob a tutela da viúva de Corrêa quanto aqueles que foram efetivamente examinados ao longo da pesquisa de tese. Portanto, poder-se-ia brevemente pensar um pouco sobre qual o investimento da viúva na preservação de certa memória sobre este historiador, mesmo na ausência ou no “silêncio” que se instala na interdição do acesso a essa documentação. Esse silêncio também pode portar significados. Como afirma Jacques Derrida (2001), o “esquecimento” também é parte constituinte do arquivo.

Vale por fim destacar que a pesquisa documental, já em finalização, ganhou ainda maior fôlego e adquiriu contornos diferentes a partir da leitura da obra Paul Ricoeur: um Filósofo em seu Século (2017), de François Dosse. Nessa biografia intelectual, chamou a atenção a maneira como Dosse efetua uma análise sensível das obras de Ricoeur, não priorizando somente a figura e os aspectos da vida e obra do filósofo, mas trazendo para este debate também personagens e autores que atravessaram sua vida.

Na obra O desafio biográfico, também de François Dosse, mas publicada anteriormente, é possível encontrar o relato de Dosse sobre o processo de pesquisa que culminou em Paul Ricoeur: um Filósofo em seu Século. Assim como a pesquisa aqui empreendida, o trabalho de Dosse não pôde dispor do arquivo pessoal de Ricoeur, e essa situação, como o próprio historiador confessou, em um primeiro momento, levantou para ele dúvidas quanto a possibilidade de sua concretização. Porém, contra todos os sinais que o “instinto historiador” poderia mandar, Dosse insistiu na pesquisa e buscou “coletar um material tão extenso quanto possível, a fim de recortar as fontes de informações, para em seguida confrontá-las com os textos [de Ricoeur]” (DOSSE, 2009, p.375).

A pesquisa de Dosse e o seu relato, portanto, serviram como inspiração para validar aquilo que o “instinto historiador” e o seu faro detetivesco já tinham concretizado. Mas, afinal, o que esse “arquivo em migalhas”, no qual estão entrelaçadas tantas vidas, pôde contar sobre a trajetória de Carlos Humberto Pederneiras Corrêa?

Uma trajetória possível

O sociólogo Pierre Bourdieu, em seu clássico texto A ilusão biográfica, alerta para a “ilusão retórica” que pode ser operada quando uma vida é tratada como um “relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção” (BOURDIEU, 2006, p.185). Porém, segundo François Dosse (2009), é preciso ultrapassar as reflexões de Bourdieu no referido texto, o qual declara que a biografia é uma “ilusão”, pois a vida total de um indivíduo é impossível de ser reconstituída. Para Bourdieu, o biógrafo preencheria os espaços vazios deixados pela ausência de documentação com elementos ficcionais com o objetivo de criar uma narrativa coerente. Sendo assim, para esse sociólogo, a biografia não seria um gênero que poderia ser associado ao fazer histórico, pois esta não estaria preocupada com a verossimilhança com a realidade.

A crítica de Dosse a Bourdieu se direciona justamente a essa última afirmação. De acordo com o historiador, a narrativa biográfica e a narrativa histórica são fruto do trabalho que executa o pesquisador, o qual está ciente da impossibilidade de reconstruir por completo no presente uma realidade passada e de que sua narrativa, em certos momentos, necessita de suposições frutos de sua imaginação historiadora. Porém, essas suposições não partem de um processo criativo “livre”, mas daquilo que as fontes sugerem.

Tomando essas reflexões como guias, a pesquisa criou o esboço de uma trajetória intelectual - em diversos tempos e espaços - referente a um mesmo personagem: o historiador Carlos Humberto Pederneiras Corrêa. Por meio desses traçados, foram delineados “desenhos históricos” passíveis de dar conta das possibilidades que se abriam e se fechavam aos caminhos profissionais seguidos pelo historiador. Esses diferentes percursos e personagens que cruzaram a trajetória de Corrêa também entraram em cena, pois “os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social” (BOURDIEU, 2006, p.190, grifo do autor), e não como reverberações unicamente das decisões de um indivíduo. A trajetória de Corrêa se deu a partir de escolhas e interações.

Portanto, optar pela trajetória de um personagem como um problema de pesquisa envolve, antes de tudo, entender que as individualidades se constroem a partir de suas relações com outros homens e mulheres, atuantes em campos, lugares e tempos distintos. Nessas dimensões, uma “pluralidade incoerente” ata e desata nós, criando inúmeras trajetórias. O percurso profissional multifacetado de Corrêa foi passível de ser observado a partir das mais diversas fontes, e não foram perdidos de vista os pequenos detalhes de um mundo mais privado, que certas vezes saltou aos olhos e se colocou como uma reverberação da impossibilidade de demarcar fronteiras claras entre a sua vivência em um suposto mundo público e um mundo da intimidade.

Aliás, é preciso destacar que o encontro com as próprias fontes condicionou a forma como Corrêa (em suas relações) foi apresentado na tese. A ausência dos documentos de seu arquivo pessoal fez com que sua trajetória fosse vista principalmente pelos olhares de outros e pela narrativa pública deixada por ele ao longo da vida. Uma vez que essas memórias circulam no espaço público, muitas vezes elas podem ter deixado avistar somente as “boas” lembranças acerca dele e de seu legado.

Por conta desse arquivo em migalhas que a tese dispunha, as relações que Corrêa estabeleceu foram pensadas a partir de lentes distintas: as das redes de sociabilidade (AGULHON, 1981,1987, 1992), das redes políticas, das redes intelectuais e, certas vezes, também das familiares e de amizade. Nesse sentido, é preciso reconhecer que aqui se recortou algo que por ele foi experienciado como uma continuidade (não só uma continuidade vivida em sua existência concreta, mas também percebida nas narrativas construídas por ele e sobre ele).

A documentação selecionada, ainda, mostrou encontros e deslizamentos que remetiam a uma herança familiar (redes de relações já estabelecidas por seus antepassados, as quais reverberaram nos trabalhos de Corrêa). Essa herança foi por ele “lapidada” de acordo com as possibilidades que se abriam e se fechavam nos diversos tempos vividos e espaços percorridos; logo, Corrêa deslizou e “ajustou” suas condutas para atingir determinados fins (SCHMIDT, 2017). Observando as fontes a partir de diferentes escalas, buscou-se perceber as condições, adaptações e possíveis tensões envolvidas entre os planos individual e social, os quais estão em constante interação.

A partir da operacionalização destes diferentes planos, foram descritas as interações de um personagem com diferentes agentes e a dimensão textual atrelada a esses diálogos. Assim, os deslocamentos de Corrêa no espaço foram investigados a partir de indícios dessas interlocuções: os encontros relatados em jornais e revistas, as redes desenhadas em projetos editoriais, as entrevistas de história oral e as próprias obras e trabalhos de Corrêa. Qualquer suporte que registrou esses encontros foi importante para situá-los no tempo e no espaço. Mesmo não colocando a própria posição de Corrêa sobre essas interações - que se supõe estar presente nos documentos pessoais guardados por sua viúva -, as fontes consultadas permitiram vislumbrar os circuitos por ele percorridos e a ligação entre esses circuitos que sua escrita explicitava. Através dessa documentação, percebeu-se que esses encontros individuais estão inscritos também em planos ampliados e não só no encontro íntimo e restrito; assim sendo, na medida em que foram perdidos alguns detalhes pessoais, ganhou-se a dimensão geral. Cada “nó” dessas redes, cada obra de Corrêa, cada entrevista se abria a projetos e processos políticos e intelectuais maiores desenvolvidos em Santa Catarina (e até no mundo, como o caso da emergência da história oral no estado).

Para compreender esses diversos caminhos, foi importante recuar a análise a período anterior ao seu nascimento, investigando os locais e grupos pelos quais circularam alguns de seus familiares. Evidenciou-se a partir desse olhar que a escrita de Corrêa se confundia com a sua herança de seus antepassados, com as redes de sociabilidade herdadas e posteriormente construídas e também com o legado por ele erigido - que atualmente é cultivado por aqueles que estiveram de alguma forma em contato com esse historiador. A sua “linhagem” e seus locais de pertencimento eram também os objetos de suas pesquisas e reflexões. Jogando com as escalas e colocando as fontes em perspectiva, sua trajetória (construída “em relação”) se materializou a partir das trocas e negociações entre o indivíduo e o mundo, entre Corrêa e o seu lugar social. No plano estadual, a valorização de Corrêa foi detectável na frequência com que participou de comissões e das vezes em que foi convidado a falar ou até mesmo a expressar sua opinião sobre determinados assuntos de interesse do governo estadual, seja do poder executivo ou legislativo. Nesse sentido, podem ser lembrados episódios como a sua presença junto à comissão responsável pela formação do Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC) e o convite em 2004 para emitir sua opinião (naquele momento como presidente do IHGSC) em relação à mudança do hino do estado de Santa Catarina, temática que de tempos em tempos aflora como pauta política no estado.

Apesar de serem detectáveis esses locais privilegiados onde ele exerceu papéis que exigiam opinião e decisão, e nos quais ele pôde se relacionar com personagens atrelados a uma elite política e intelectual catarinense, os vestígios encontrados representaram Corrêa como um homem que mostrou somente sua “superfície”. Os posicionamentos tomados ao longo de sua trajetória foram difíceis de definir, pois se exibiram quase sempre de forma difusa e pouco marcada. Essa resistência em se mostrar de forma mais profunda parece, inclusive, se materializar em episódios como o empecilho criado ao acesso do arquivo pessoal pela família ou ainda na sua própria recusa em assinar a lista de presença no dia do concurso que prestou para ingressar como professor da UDESC no início dos anos 1990. Tais questões apontam para um desejo de controlar os rastros que deveriam ficar para a posteridade. Nesses pequenos detalhes, Corrêa resistiu em aparecer. E foi esse suposto silêncio que pareceu autorizá-lo a “deslizar” com maior facilidade entre grupos e audiências, cargos e comissões, numa quase “onipresença”; assim, apesar de pouco “intensa”, sua presença pode ser percebida em muitos lugares.

À vista disso, reitera-se como suas movimentações traziam as marcas da herança deixada a ele por seus ancestrais - a qual ele ajustou, adaptou e reinventou de acordo com os seus próprios ideais e anseios. A partir desta ótica, notou-se que as suas reinvenções e o controle sobre o que trazia a público proporcionaram ainda a ideia de uma trajetória sem falhas, quase ausente de conflitos. Em relação às suas publicações, vislumbrou-se que Corrêa, a partir de seus deslizamentos e manobras no campo de possibilidades que oferecia a “paisagem” na qual viveu, produziu uma história “sob controle”, a fim de atingir determinados públicos e também financiadores.

O “legado” observado na tese, sobretudo por meio das entrevistas, apontou para a reiteração de uma representação elogiosa de Corrêa. Em diversas fontes, Corrêa é representado como um historiador do político, da intelectualidade, um defensor da história de Santa Catarina, a qual até o fim da sua vida teria pretendido homenagear e difundir. Esse desejo de honrar o seu estado natal apareceu com frequência nas falas que se referiam aos últimos anos de sua trajetória, em especial nos relatos que narraram os seus esforços na divulgação do IHGSC e na conquista de uma nova sede para essa instituição. As narrativas analisadas se direcionaram, assim, para a comemoração deste “legado”. Nesse sentido, pode-se pensar sobre o próprio espaço geográfico de atuação desse historiador, Santa Catarina, que sobretudo na década de 1970 poderia ser caracterizado como um local de autoridade de um grupo restrito de intelectuais, em grande medida subordinados a uma cultura política ligada a oligarquias dominantes no cenário político desde fins do século XIX. Para Corrêa, esse era um cenário de oportunidades, facilitado pela inserção de seus antecessores familiares nesta mesma lógica (e a memória cultivada em seu legado mostrou ser eco também dessa condição).

Ao observar as características acima, a pesquisa optou por colocar a existência desse legado em suspensão, investigando e pondo em evidência alguns dos alicerces dessa memória. Como coloca Beatriz Sarlo, “O passado é sempre conflituoso” (SARLO, 2007, p. 9), pois nele concorrem pelo protagonismo a memória e a história, que nem sempre conseguem se conciliar pois estão em uma mútua relação de desconfiança. A história nem sempre acredita na memória, e em contrapartida a memória não deixa de requerer seu “direito de lembrança” nas narrativas que a história produz. No caso do legado de Corrêa, há a reivindicação de uma lembrança subjetiva específica, que apaga desse legado a existência de conflitos. Em um primeiro olhar, a história e a memória de Corrêa estão supostamente conciliadas, pois parece ter havido nesse percurso um desejo, dos promotores e guardiões (família, amigos e até o próprio Corrêa) dessa lembrança apaziguada, de que os rastros de atritos fossem apagados.

Considerações finais

[...] cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais (CERTEAU, 2002, p.38).

Como aponta Michel de Certeau nessa citação, toda individualidade é composta de elementos relacionais que atuam tal qual balizas, direcionando os rumos que tal individualidade segue e que muitas vezes não formam um trajeto uniforme e coerente.

Os caminhos demonstrados no relato acima, mesmo diante da impossibilidade de ter em mãos o arquivo pessoal de Corrêa, quiseram apresentar como o “arquivo em migalhas” aqui descrito permitiu diversas inserções na trajetória profissional de Carlos Humberto Corrêa, uma trajetória calcada, logicamente, a partir de relações diversas. Depois de um insistente trabalho, um arquivo “pessoal público” se materializou e a partir dele a pesquisa se afastou e se aproximou de seu objeto principal, sempre lembrando o que alerta Rousso (2016, p.245): “Não adianta o historiador deslocar-se para escapar da sua própria contemporaneidade, esta o pega sem que ele saiba exatamente onde e quando”. Em momentos inesperados, Carlos Humberto Corrêa insistia em “aparecer”, como foi o caso de um entrevistado que emergiu a falar de Corrêa no desenrolar de uma entrevista com outro personagem que tinha mantido relações profissionais com o historiador. Esses elementos deram lastro à perspectiva que colocava Corrêa (e o grupo de intelectuais com quais se envolveu) como um “ainda-aí” (ROUSSO, 2016, p.18), como uma História do Tempo Presente, umas das discussões desenvolvidas na tese.

Esse “arquivo em migalhas”, portanto, deu a ver uma “trajetória possível” e demonstrou que os limites entre aquilo que é “público” e aquilo que é “pessoal” não formam uma linha demarcada, pois essas relações não estão dadas, mas se desenvolvem nas diferentes conexões e por meio de agentes que atuam no sentido de edificar ou obliterar certas memórias. Assim, frequentemente, como aponta o trabalho de Campos (2016), a intimidade de determinado personagem está mais “fora” que “dentro” de seu arquivo pessoal, o qual, muitas vezes, é construído por meio de interferências que acabam por controlar aquilo que depois se torna público.

1Realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Tal pesquisa, gerou a tese “Um historiador entre-lugares: a historiografia catarinense e a trajetória do professor Carlos Humberto Pederneiras Corrêa (1963- 2016)”, a qual foi defendida em 2020 no referido programa.

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Recebido: 22 de Julho de 2022; Aceito: 03 de Novembro de 2022

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