Introdução
Os contextos histórico e social, segundo Tardif e Raymond (2000), interferem e modelam as identidades profissionais. Com a profissão de professor não é diferente, embora tenha-se que considerar as especificidades, as condições em que se desenvolvem as atividades profissionais e como ela é vista socialmente. As imagens social e profissional do professor estão desgastadas, o que faz com que, segundo Stano (2001), com o passar do tempo haja uma reconfiguração e outras dimensões do ser e estar professor. Daí a importância de refazer percursos, garimpar o que é possível para encontrar possibilidades de ressignificar a profissão.
A esse respeito, a pesquisa pode tornar-se um mecanismo para ouvir e detectar os caminhos, refazendo-os do seu final para o seu início como uma maneira de “[...] buscar o ainda não tão perdido, mas apenas latente em algum recôndito das dobras que vão nos fazendo hoje os/as professores/as que somos.” (STANO, 2001, p. 43). As marcas da professoralidade formam uma teia pela qual desvendam-se saberes, experiências e práticas que podem ser apropriadas e servir para orientar o pensar, o sentir e o fazer dos mais jovens em seu percurso profissional futuro.
A pesquisa para a produção do estado do conhecimento sobre o tema “final de carreira” ou “envelhecimento docente”, como alguns autores denominam (CAU-BAREILLE, 2014; ALVES; LOPES, 2016), revela que estes estudos ainda são tímidos e carecem de maior profundidade. Cau-Bareille (2014) afirma que a profissão de professor está entre aquelas que apresentam desgaste prematuro, exigindo planejamento de final de carreira - estas penosidades se apresentam de forma relativamente invisíveis e necessitam de um olhar de perto para o trabalho quotidiano, sendo necessária urgência em revelá-las, focando nas condições do conteúdo do seu trabalho “[...] com vista a facilitar o trabalho dos mais velhos como o dos mais novos.” (CAU-BAREILLE, 2014, p. 5). Lembra ainda, o autor, que a maioria dos estudos sobre os fins de carreira no campo do ensino são de orientação psicológica, sociológica ou médica, reveladoras do esgotamento profissional, resultante do desgaste físico e emocional.
Correlatos a isso, tem-se os estudos das neurociências que contribuem com o processo de ensino e de aprendizagem, tais como os conhecimentos sobre: emoções, atenção, memória, sono, aprendizagem, entre outros. No entanto, muitos desses conceitos que contribuem e se relacionam com a educação dizem respeito mais ao processo de aprendizagem e dão pistas de como proceder em nível de ensino, isto é, estudam mais formas do processo de aprender do que a do processo de ensinar e continuar ensinando.
Neste ensejo, o presente artigo tem por objetivo analisar os pressupostos de ser e estar professor em diferentes realidades, bem como os aspectos das neurociências que convergem com relatos de experiências de professores em fim de carreira da rede pública da região do Alto Uruguai Gaúcho. Embora a investigação esteja focada em um contexto específico ela serve de referência e de parâmetro para se pensar a realidade do envelhecimento docente, estando em sintonia com outros estudos realizados por autores como Santos, Andrade e Bueno (2009), Gentil (2006), Moita (1992), Alves e Lopes (2016), dentre outros. Dessa forma, este trabalho, assim como a neurociência, visa produzir memória para que em grande medida se possa “[...] gravar imagens sob alguma forma codificada para que posteriormente possamos recuperar algo original.” (DAMÁSIO, 2022, p. 47).
Com relação ao envelhecimento na profissão docente, este pode ser compreendido de diferentes formas, sejam elas as formas biológicas, que evidenciam as relações naturais, fisiológicas e irreversíveis dos seres humanos ou, também, as formas como se fortalecem e se forjam a identidade do professor diante de suas experiências de vida e suas memórias. É salutar ressaltar que o declínio biológico do desempenho cerebral começa a ocorrer a partir dos 50 anos, provocando modificações no sistema nervoso central (COCHAR-SOARES; DELINOCENTE; DATI, 2021). No entanto, pesquisas como as de Cochar-Soares, Delinocente e Dati, (2021) e Santos, Andrade e Bueno (2009), apontam que esse declínio não é igual a todos os seres humanos, variando desde questões genéticas a questões ambientais. Sabe-se também, por meio destas pesquisas, que uma alimentação saudável, estímulos benéficos cognitivos, atividades físicas e sentimentos positivos ao longo da vida e nas fases de envelhecimento, melhoram as capacidades do cérebro e propiciam a sua plasticidade para uma melhor qualidade de vida. A esse respeito compreende-se que os professores em final de carreira podem se beneficiar de alguns sentimentos, emoções e capacidades cognitivas inerentes à profissão, se houver atenção quanto a seus aspectos de bem-estar.
Como recorte das neurociências, analisa-se os conceitos específicos de estar consciente e da consciência da profissão, contribuindo para o fortalecimento da identidade docente; seus aspectos emocionais, sentimentais e motivacionais que dão sentidos à profissão no final de carreira; e como elas refletem a socialização e permanência.
Metodologia da pesquisa
A pesquisa1 de caráter qualitativo com enfoque exploratório e de campo envolveu quinze professores em final de carreira que atuam em escolas da rede pública da região do Alto Uruguai Gaúcho. Para a autorização e realização, foi feito o contato com a Coordenadoria Regional de Educação, junto ao setor de Recursos Humanos, o qual foi solicitado a colaborar para mapear e identificar os professores que tivessem mais de 25 anos de exercício na profissão e que estivessem dispostos a participar da pesquisa. Com a devida autorização e de posse das informações necessárias, agendou-se com os professores um horário para coleta dos dados que não interferisse na sua rotina de trabalho. Foi solicitado o consentimento para participar da pesquisa mediante a assinatura da Carta de Anuência, apresentou-se as intenções de pesquisa e seus procedimentos metodológicos. A participação deu-se por adesão voluntária e os professores assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para respondentes não identificados, coletando os dados por meio de uma entrevista semiestruturada, gravada em áudio.
Todos os participantes são concursados no serviço público e a média de tempo de serviço é de 32,5 anos. Destes, 86,7% são do sexo feminino e 13,3% do sexo masculino. Possuem pós-graduação concluída e a formação inicial distribuía-se em diferentes áreas do conhecimento como: Letras, Pedagogia, Filosofia, Matemática, Química, Ciências Biológicas, Educação Física, perfazendo todos os níveis de ensino da rede. Quanto à natureza da análise dos dados, esta é de cunho qualitativo e com base na Análise Textual Discursiva. Neste artigo, especificamente, sistematiza-se e reflete-se sobre as categorias de estar professor em diferentes realidades e o fortalecimento da identidade docente, em face dos pressupostos da neurociência (consciência, emoção e motivação).
A base teórica que sustenta a análise e discussão dos dados é oriunda da vertente histórico-crítica. Esta corrente, segundo Saviani (2011), defende que a educação é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Ao olhar para a história é possível compreender quem somos no presente e o que podemos vir a ser no futuro. A pedagogia histórico-crítica tem como pressuposto a problematização sobre o modo de produção para compreender o desenvolvimento histórico do homem. Este pressuposto implica questionar o papel da educação escolar no interior do modo de produção capitalista. De forma sintética, de acordo com Silva (2019, p. 6), a
[...] pedagogia histórico-crítica parte de uma teoria da história em que predominam as análises, via a reprodução ideal do movimento do real, que é a sociedade instituída pelos pressupostos do modo de produção capitalista. Por isto a importância de compreender o movimento do real por meio de uma ciência unitária, isto é, de uma ciência da história.
A opção pela corrente epistemológica foi feita em decorrência desta ser a que mais se coaduna com a possibilidade de problematizar a dinâmica social, avaliar as transformações no mundo do trabalho e a esclarecer as condições sócio-históricas do exercício da profissão docente, bem como possibilita análises diante dos pressupostos neurocientíficos.
A arquitetura do texto está distribuída em três seções, além da introdução e metodologia, são elas: Diferentes realidades, constituição e fortalecimento da identidade docente; Sentido da/na profissão; e, Socialização e permanência na profissão.
Diferentes realidades, constituição e fortalecimento da identidade docente
Dubar (2020) afirma que nunca se sabe quem é a não ser pelo olhar do outro, que a identidade de uma pessoa não é feita à sua revelia e que não é possível prescindir dos outros para forjar a própria identidade. Para o autor (2020, p. 136), a identidade é compreendida como “[...] o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições (grifo do autor)”. Assim, segundo ele (2020), há as identidades herdadas ou recusadas e as identidades visadas que ocorrem no jogo de forças que denomina de “negociação identitária”, destacando três categorias sociais que atuam na constituição da identidade da pessoa: trabalho, emprego e formação.
Josso (2007, p. 415), ao tratar de histórias de vida, lembra que as identidades humanas (docentes) fazem parte de um processo evolutivo e que tratar destas questões existenciais “[...] permite colocar em evidência a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida.” A ideia da autora que remete à concretude do ser professor e do definir-se como tal ao longo de sua trajetória profissional é amparada também pelo posicionamento de Dubar (2020, p. 330), para quem as identidades sociais e profissionais típicas não são nem expressões “[...] psicológicas de personalidades individuais nem produtos de estruturas ou de políticas econômicas impostas de cima, mas sim construções sociais que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação.” Isto é, não se estabelece de forma unilateral e nem por decreto (SOARES; CUNHA, 2010). Tardif e Raymond (2000, p. 229) somam-se a esta ideia ao afirmar que a “[...] tomada de consciência em relação aos diferentes elementos que fundamentam a profissão e sua integração na situação de trabalho leva à construção gradual de uma identidade profissional.” Em ato contínuo, os autores lembram que a consciência profissional do professor não é um reservatório de conhecimentos no qual ele se abastece conforme as circunstâncias; ela parece ser amplamente marcada por processos de avaliação e de crítica em relação aos saberes situados fora do processo de socialização anterior e da prática da profissão.
Nesse limiar encontra-se a consciência que, de acordo com Damásio, (2011, p. 15) “[...] não é estar meramente acordado.” Ela é, para o autor, (2022, p. 101, grifos do autor) “[...] sinônimo de experiência mental [...]” quer dizer “[...] é um estado da mente imbuído de duas características impressionantes e relacionadas: os conteúdos mentais que ele exibe são sentidos e adotam uma perspectiva singular.” Em outras palavras, “[...] a consciência é um estado da mente resultante de um processo biológico para o qual contribuem vários eventos mentais” e apreende a vida no interior do organismo, do jeito como ela é expressa nos seus termos mentais e a situa nas próprias fronteiras físicas (DAMÁSIO, 2022, p. 103, grifos do autor). Para Damásio (2022), as chaves para a consciência estão no conteúdo das imagens que são produzidas, no conhecimento que esse conteúdo fornece naturalmente, informando-o para identificar o seu proprietário.
É pela ajuda da consciência que os organismos controlam suas vidas obedecendo aos requisitos de sua regulação, sendo ela indispensável para gerir a vida com êxito (DAMÁSIO, 2022). Dessa forma, para que “[...] a mente se torne consciente, um conhecedor, [...] precisa ser gerado no cérebro. Quando o cérebro consegue introduzir um conhecedor na mente, ocorre a subjetividade.” (DAMÁSIO, 2011, p. 24)2. Com a compreensão daquilo que é necessário - o qual é feito pela consciência na ligação entre a mente a um organismo específico - o ser em questão, consegue aplicar conhecimento para atender à necessidade, constituindo no conhecimento e no raciocínio criativo os inventores de respostas novas para cada uma delas (DAMÁSIO, 2022).
No entanto, “[...] uma das bases da consciência é o sentimento, cujo propósito nos ajuda a gerir a vida de acordo com os requisitos homeostáticos3.” (DAMÁSIO, 2022, p. 109). Esses sentimentos, conforme Damásio (2022, p. 68, grifos do autor) são considerados fenômenos mentais “[...] que acompanham e derivam de vários estados de homeostase do organismo, que podem ser primários (sentimentos homeostáticos como fome e sede, dor ou prazer) ou provocados por emoções (sentimentos emocionais como medo, raiva e alegria).” Nesse sentido, os “sentimentos originaram a consciência e, num ato de generosidade, presentearam o resto da mente com ela.” (DAMÁSIO, 2022, p. 110).
Com relação à identidade docente, a subjetividade de cada consciência e os aparatos culturais e sociais moldam-se em via de mão dupla. Para Damásio (2011; 2022) na ausência da consciência, culturas e civilizações não teriam surgido e nem mesmo desvelariam os sérios problemas elucidativos da biologia e da própria existência humana. Com relação à realidade, esta é entendida como o valor funcional dos sentimentos que vêm “[...] do fato de que eles inequivocamente se situam no organismo do seu proprietário, habitam a mente desse organismo ao qual pertencem.” (DAMÁSIO, 2022, p. 109-110). Para o autor (2022), a importância da consciência advém do que ela proporciona diretamente para a mente humana e do que permite que a mente descubra em seguida. A consciência possibilita experiências mentais, do prazer à dor, em conjunto com tudo o que se percebe, memoriza, relembra e manipula enquanto descreve o mundo interior e exterior, no processo de observar, pensar e raciocinar. Partindo destes pressupostos de que a consciência, o sentimento e a identidade docente se fazem de forma imbricada ao individual, coletivo, interno e externo, perguntou-se aos participantes da pesquisa a respeito de como eles se sentiam sendo professores.
As respostas foram muito diversas e algumas revelam sentimentos contraditórios, como relata a educadora Lisiane, que define o que vive como um paradoxo, pois se sente desvalorizada, mas, ao mesmo tempo, pensa em sua importância e função junto aos estudantes, fazendo tudo novamente se fosse preciso.
A expressão do pensamento da professora Lisiane caminha na direção do que Rausch e Dubiella (2013) identificam, após a realização de pesquisa com docentes como o bem e mal-estar docente. As autoras concluem que quando os professores se reportam a fatores de mal-estar docente, todos eles se voltam a aspectos mais externos, organizacionais, estruturais, sistêmicos. O inverso acontece quando pensam em fatores promotores de bem-estar, situação em que olham para dentro de si, dando-lhe um caráter mais interno, apontando razões pessoais e de natureza subjetiva.
O exercício da docência é um campo carregado de tensões, contradições, continuidades e rupturas permanentemente reavaliadas, descartadas ou justapostas que estão ligadas à constituição de sua identidade como professor. Tardif e Raymond (2000) afirmam que, de acordo com suas pesquisas, é impossível compreender a questão da identidade dos professores sem inseri-la imediatamente na história dos próprios atores, de suas ações, projetos e desenvolvimento profissional.
A profissão de professor carrega consigo uma peculiaridade, segundo Nóvoa (1992), caracterizada pela impossibilidade de separar o eu profissional do eu pessoal. Alves e Lopes (2016) partilham deste mesmo pensamento ao firmarem que a subjetividade vivenciada pelo professor na sua práxis vai se configurando de forma singular, mas carregando códigos próprios e específicos deste grupo profissional.
Como Arroyo (2000, p. 27) reforça, os professores não apenas exercem a função de docente. Em outras palavras, a maneira como cada um ensina é dependente daquilo que são como pessoa quando exercem a atividade profissional.
A imagem que o professor constrói de si mesmo e perante a sociedade faz parte do processo constitutivo de sua identidade profissional. Esse processo está em constante transformação, reconstruindo-se ao longo da vida, de acordo com suas experiências sociais e individuais. A maneira como o docente constrói a sua imagem profissional participa na definição de suas ações com os alunos, de suas relações no cotidiano do trabalho e do desenvolvimento de suas atividades pedagógicas. (BURNIER et al., 2007, p. 347).
Para tanto, essa construção precisa ser ciente e consciente do próprio ser, podendo relacioná-la interna e externamente, individual e coletivamente e desempenhar seu trabalho e sua profissão com maior qualidade e com menos penosidades, uma vez que sua escolha profissional não se desvincula de sua figura pessoal e que sua relação com a docência não termina ao findar do expediente contratado.
Pimenta e Lima (2004) enfatizam que pesquisas sobre a identidade profissional docente têm recebido a atenção e o interesse de muitos educadores na busca da compreensão das posturas assumidas pelos professores. A identidade “[...] é construída ao longo de sua trajetória como profissional do magistério. No entanto, é no processo de sua formação que são consolidadas as opções e intenções da profissão que o curso se propõe legitimar.” (PIMENTA; LIMA, 2004, p. 62). No entender de Morgado (2011), a formação inicial é um processo que visa ao desenvolvimento de competências profissionais, sua profissionalização deve promover, em simultâneo, a apropriação de uma dada cultura profissional por parte dos formandos e a construção da sua identidade docente, construção esta que irá prolongar-se ao longo da sua vida profissional.
Gentil (2006) faz menção a isso, destacando que as identidades não nascem com os indivíduos, nem são constituídas por eles isoladamente em suas experiências individuais, elas são processos contínuos, históricos e sociais, constituem-se nos processos de desenvolvimento humano, portanto, em relações e interações entre as pessoas durante toda a sua vida. Este pensamento encontra sinergia nas ideias de Josso (2007, p. 415-416), que identifica a identidade como um constante vir a ser da existencialidade em movimento, concebida “[...] como processo permanente de identificação ou de diferenciação, de definição de si mesmo, através da nossa identidade evolutiva, um dos sinais emergentes de fatores socioculturais visíveis da existencialidade.” (grifo do autor). Mas é importante destacar que a identidade do professor é singular, permeada por profundas influências do que se pode denominar de identidade coletiva. A ideia de base é que esta é produzida pela socialização, isto é, por meio do seu processo de imersão nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos, escolas etc.), nos quais ele constrói, em interação com os outros, sua identidade pessoal e social, antes mesmo do exercício da profissão.
Contudo, Josso (2007) alerta que a variabilidade dentro dos contextos de influência é pouco abordada, não se tratando da maneira adequada sobre como cada indivíduo vive dentro das normas e de determinado status que caracterizam sua existencialidade mais próxima e singular.
Assim, considera-se que a identidade docente seja conferida a nível de consciência de cada docente e a partir deles, de forma mais peculiar, ela também seja moldada com acuidade. Fica a indagação sobre a possibilidade de a identidade pessoal e profissional ser, então, um preceito da consciência coletiva dos que escolheram e escolhem ser professor e como ela é hoje compreendida pela classe brasileira.
Sentido da/na profissão
O sujeito que desempenha o papel de professor não está dissociado da profissão que exerce. Para Dubar (2020), já não se trata apenas de “escolha da profissão” ou de obtenção de diplomas, mas de construção pessoal de uma estratégia identitária que mobilize a imagem de si, a avalição de suas capacidades e a realização de seus desejos. O professor, com seu comportamento e ação, influencia e é influenciado pelo grupo ao qual pertence, podendo tornar-se referência por abrigar saberes, experiências, valores, sentimentos e conhecimentos específicos. Aqui entram em jogo fatores de ordem subjetiva e objetiva. No tocante aos elementos objetivos estão aqueles do contexto e das relações do mundo o trabalho (normas, regras, ambiente), já os fatores de ordem subjetiva referem-se à forma como ele assimila e trabalha tudo isso em sua interioridade. Exemplo claro é quando os participantes externam que se sentem desvalorizados, desanimados, perdidos (Gráfico 1), o que demonstra como o seu entorno e a sociedade são forças modeladoras de seu ser e agir. Gentil (2006, p. 179) denomina este acontecimento de identidade coletiva, compreendida como “[...] um conjunto de atributos nos quais pessoas ou grupos se reconhecem como participantes, através dos quais se distinguem de outros, a partir dos quais significam fatos, acontecimentos, ações e a si mesmos.”
Na consciência do ser e estar professor em diferentes contextos, os sentimentos que assolam sua subjetividade, são resultados de emoções vivenciadas e as emoções, conforme Hargreaves (1998), são o centro do ensino. Do ponto de vista das neurociências, as emoções são fenômenos que sinalizam a presença de algo importante/significante na vida do indivíduo, as quais são manifestadas por meio de alterações na fisiologia e nos processos mentais, mobilizando os recursos cognitivos existentes, tais como a atenção e a percepção (COSENZA; GUERRA, 2011).
Encontrar um conceito único para as emoções não é uma tarefa fácil entre os autores, mas é comum a eles que o estado gerado por elas pode ser tanto satisfatório como insatisfatório, bem como ser reconhecido ou não pelos sujeitos. Para Damásio (2022), as emoções consistem em uma coleção de ações internas involuntárias que ocorrem em conjunto com outras partes do organismo e que são desencadeadas por eventos perceptuais, os quais podem ser dados no presente ou pela evocação da memória. Na via de mão dupla, assim como outros pesquisadores, Cosenza e Guerra (2011) apontam que a memória é privilegiada por acontecimentos que geram emoções, assim como por ela as emoções podem ser exprimidas. Tanto as emoções quanto os sentimentos são compreendidos como sistemas complexos que permitem a ativação e o julgamento consciente e inconsciente das ameaças ou oportunidades com as quais as pessoas são confrontadas a cada momento (DAMÁSIO, 1999 apudFREIRE; BAHIA; ESTRELA; AMARAL, 2011).
Para Tardif (2002), boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo e emocional, baseando-se nas emoções e afeto, na capacidade de pensar nos alunos e igualmente perceber e sentir suas emoções, seus temores, alegrias e os próprios bloqueios afetivos. Na educação, de maneira geral, as emoções precisam ser consideradas pois, de acordo com Hargreaves (1998), o bom ensino e a aprendizagem são carregados de emoções positivas e os propósitos da educação perpassam pelas emoções sentidas pelos professores. O autor ainda argumenta que os bons professores não são máquinas, mas seres emocionais, apaixonados, que se conectam com seus alunos e que invadem suas aulas de emoções positivas. Do ponto de vista das neurociências, as emoções modulam, além da memória, as aprendizagens e outros aspectos fisiológicos (como o sono, a produção de secreções como o suor, o ritmo cardíaco...), assim como modulam os níveis de atenção, percepção e o que a mente e a consciência se comprometem a valorar.
Quanto à instalação e persistência de emoções negativas como ansiedade e estresse, Cosenza e Guerra (2011) salientam que estes estados prejudicam o funcionamento do cérebro, podendo até destruir neurônios. Hargreaves (1998) expressa que se deve evitar ao máximo emoções negativas na educação, correndo o risco de não corresponder aos sentidos e propósitos expressos para ela.
Ainda buscando saber o que os professores em final de carreira sentiam perante a sua profissão, pode-se observar respostas positivas e negativas quanto as suas emoções. Nas respostas com teor mais negativo, o sentir-se desvalorizado foi o de maior incidência, seguido de expressões como: desanimado, sentir-se perdido, impotente, angustiado e estressado.
A fala de Iracema (entrevista, 2020) reflete estas emoções e sentimentos: “Pela profissão me sinto realizada, eu gosto do que eu faço, mas também desanimada pela questão da desvalorização profissional.” Rausch e Dubiella (2013) destacam que a submissão do professor à realização de um trabalho esvaziado de seu sentido compromete a concretização de uma educação para a emancipação e a autonomia. O sentimento da professora sintoniza com o que Pimenta e Lima (2004, p. 66) se referem a respeito da construção e fortalecimento da identidade e o desenvolvimento de convicções em relação à profissão. Para elas, estes fatores estão ligados
[...] às condições de trabalho e ao reconhecimento e valorização conferida pela sociedade à categoria profissional. Dessa forma, os saberes, a identidade profissional e as práticas formativas presentes nos cursos de formação docente precisam incluir aspectos alusivos ao modo como a profissão é representada e explicada socialmente.
Tardif e Raymond (2000) falam do aprendizado que a docência permite, especialmente na fase de “sobrevivência”, os quais são saberes experienciais, recursos que permitem a gestão da classe e o desenvolvimento do ensino. No entanto, além do domínio cognitivo e dos recursos didáticos, a profissão exige também
[...] uma socialização na profissão e em uma vivência profissional através das quais se constrói e se experimenta pouco a pouco uma identidade profissional, onde entram em jogo elementos emocionais, relacionais e simbólicos que permitem que um indivíduo se considere e viva como um professor e assuma, assim, subjetivamente e objetivamente, o fato de fazer carreira no magistério. (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 239).
O Gráfico 1 sintetiza os principais sentimentos de ordem negativa, externados pelos professores, no tocante ao modo como se sentem na profissão. Com base em Pimenta e Lima (2004), poder-se-ia refletir sobre que resultado de trabalho esperar de alguém que se percebe desta forma na profissão?
As mudanças estruturais da sociedade e, por consequência, da educação afetam também sua identidade e seu papel. Suas emoções e sentimentos tornam-se, muitas vezes, distintos de outras épocas e sua autonomia tende a ser condensada ora a mera transmissão de conteúdos e ora relacionada a um papel mais profundo de educar e cuidar. Hargreaves (1998), a esse respeito, diz que, nessa época de reestruturação, superpersonalização e supermoralização condicionam os compromissos emocionais dos professores com os alunos sem a devida consideração de seus contextos, tornando-os mais difíceis de gerir o que permite aumentar a intolerável culpa e o esgotamento que muitos docentes experimentam.
Imbernón (2009) aponta que o isolamento a que os professores estão submetidos faz com que o compromisso se separe da satisfação no trabalho. A prática educativa é, por excelência, uma prática comunicativa e o fechamento a partir de uma cultura do isolamento introduz, na rotina, o desencanto, a desilusão e o comportamento egoísta, impedindo que haja compartilhamento de dúvidas, problemas e experiências que poderiam ser um mecanismo de crescimento profissional.
A afirmação do autor vai ao encontro do que se identifica com a pesquisa de campo, quando se pergunta aos professores quais aspectos foram motivadores ou desmotivadores para que permanecessem na profissão. Considera-se que a motivação é uma habilidade cognitiva complexa, que representa emoções, sentimentos e ações, que é “[...] definida como um processo que está associado diretamente ao comportamento humano” cujos motivos são originados e conscientizados, e estes compreendidos como metas e desejos próprios da atividade social e individual (SANTOS; ANTUNES; BERNARDI, 2008, p. 50, grifos dos autores). Para Sánchez-Sellero, Sánchez-Sellero, Cruz-González e Sánchez-Sellero (2014 apudDAVOGLIO; SPAGNOLO; SANTOS, 2017), motivação laboral são os estímulos que conduzem de maneira qualitativa as distintas formas de atuar no trabalho e que são oriundas deste próprio ambiente. No que tange aos professores, as motivações para permanecer na carreira dão sentidos próprios a suas trajetórias profissionais e, quando há o compartilhamento de motivação com os demais, contribuem para um sentido genuíno da educação.
Quanto à desmotivação, que muitas vezes assola a profissão, nota-se perdas significativas quanto ao desenvolvimento pessoal, social e profissional. As respostas dadas a esse respeito pelos entrevistados acendem um sinal de alerta sobre o ambiente de trabalho, a consciência e as emoções dos professores enquanto seres essenciais para o desenvolvimento humano. Dessa forma, observa-se que os entrevistados não veem nos colegas e no grupo escolar um apoio motivador ou pessoas para quem possam pedir auxílio para resolver as dificuldades que encontram.
A professora Neusa traduz o sentimento vivido na profissão ao revelar que “[...] na nossa profissão também existe um grupo que não é unido, a gente não se apoia um ao outro, é muita pequenez no sentido de eu quero fazer e não quero que o outro faça. Isso quebra muito, desmotiva muito.” (NEUSA, entrevista, 2020). Rebolo e Bueno (2014) concluem, por meio de pesquisa, que essa situação se configura como problemática, uma vez que permite inferir que há falta de espírito coletivo entre os professores e que esse componente afeta a felicidade no trabalho.
Como aspectos positivos de ser professor, seis respostas mostram a realização e a contínua motivação para ser docente, bem como a felicidade, expressa por outros dois entrevistados em estar e ser professor.
Sinto-me muito responsável e a questão de ser gestora me proporcionou isso, conhecimento de pessoas, de ambientes, de alternativas. Esse ganho no sentido de mundo, de conhecimento, de você trazer para a tua rede o que deu certo, de trazer conhecimento e oportunidade, que se você não estivesse nesse contexto não traria, isso é fundamental. (ARACELI, entrevista, 2020).
Convergindo com este pensamento, Souza (2009, p. 105) vê vínculos muito próximos e entrecruzados, a saber: contexto, as condições de trabalho, a vida pessoal e profissional. “As condições de trabalho mais favoráveis produzem reflexos na vida profissional e na vida privada, seja na construção de representações sobre o ofício de professor, seja na construção das carreiras e das trajetórias profissionais.”
Como reiteram Burnier et al. (2007) os fatores do cenário, do contexto e os pessoais podem ser intervenientes de ordem positiva, que concorrem para fortalecer a identidade docente, enquanto os de ordem negativa podem fragilizá-la, como os apontados pela pesquisa. Os autores destacam que esses
[...] elementos da subjetividade docente, por sua vez, estão marcados pelas experiências vividas pelos indivíduos ao longo de suas vidas, pelos discursos, pelas instituições e grupos aos quais tiveram acesso, participantes também da construção dos significados que esses docentes irão conferir às suas experiências em geral e à docência em particular. (BURNIER et al., 2007, p. 348).
Petry (2016) reforça que a identidade docente não consiste em uma mera reprodução de um modelo ou na pura repetição de práticas de outros professores, mas sim um processo de incorporação, transformação e criação que parte necessariamente do desejo do indivíduo que aprende. Moita (1992) pontua que isto se dá como acontecimento, como processo de formação, numa dinâmica em que se vai construindo a identidade de uma pessoa. Stano (2001) argumenta que as identidades não devem ser consideradas cristalizações de modos de ser, mas é necessário vê-las como resultantes de negociações entre sujeitos copartícipes do mesmo espaço-tempo profissional. Identidade docente desenvolve-se em contexto, no entrelaçamento de sua pessoalidade com a profissionalidade. Trata-se de um esforço permanente feito no tempo profissional, que o professor realiza para autoafirmar-se e para superar o que Stano (2001) denomina de “não lugar”, pelo qual o professor forja sua subjetividade e encontra o sentido da profissão.
O sentido da profissão vai se diluindo na “trajetória profissional”, na socialização que a profissão possibilita, em que, “[...] pela formação e atuação profissional, interioriza-se um conjunto de visão de mundo, pensamentos, valores, posturas e significações que permeiam o mundo do trabalho.” (STANO, 2001, p. 38). Com este horizonte, perguntou-se aos professores: se pudessem recomeçar sua vida profissional retornariam como professor? 80% deles afirmaram que sim e justificaram que são professores por opção, por escolha, por gostar, por sentir-se realizado, por poder auxiliar as pessoas. “Eu volto a estudar porque isso me faz falta, porque eu gosto, a gente precisa progredir todo o dia e o estudo vai fazer essa diferença. Sou professora porque escolhi ser e eu seria novamente.” (ARACELI, entrevista, 2020). Segundo Loureiro (1997), o exercício da profissão ao proporcionar sentimentos de realização pessoal e profissional ajuda a consolidar uma escolha inicial, podendo também transformar um envolvimento provisório em envolvimento definitivo. Ademais, é notório que a maior parte dos entrevistados continuam motivados e sentem-se satisfeitos com a escolha feita e com a profissão desenvolvida, mostrando que as realizações com a docência “[...] superam as que provocam emoções ligadas à tristeza, ao medo e à raiva.” (FREIRE; BAHIA; ESTRELA; AMARAL, 2011, p. 7).
Rausch e Dubiella (2013), em pesquisa semelhante, realizada com professores da cidade de Blumenau/SC, dirigem questionamento semelhante e constatam que 44% deles, se pudessem voltar, escolheriam outra profissão. Entretanto, a pesquisa aqui relatada demostra um percentual menor, em torno de 20%, o que não deixa de ser significativo a ser observado, pois um dos requisitos para a qualidade do trabalho a ser realizado é sentir-se bem e identificado com ele. No entender de Rausch e Dubiella (2013, p. 1059), é “[...] importante que os professores estejam bem para educar bem.”
Como é possível um bom trabalho se, permanentemente, o trabalhador luta consigo mesmo pela escolha feita e não encontra sentido no que faz? Como incentivar ou servir de referência profissional aos mais jovens se há uma lamentação pela escolha feita, se quem o escolheu transforma o trabalho em um muro de lamentações e de descontentamento? Que identidade revela o profissional pelo seu comportamento e em suas ações?
Os entrevistados, de maneira geral, não negam, mas alimentam a dúvida diante de fatos como: a não valorização, a sobrecarga de trabalho e os problemas com que se deparam e que, muitas vezes, não sabem como resolvê-los, fazendo com que se questionem se ainda sabem dar aula, somado à forma como os estudantes os tratam, como é possível identificar na fala da professora Liz.
A inclusão hoje é uma dificuldade, a questão de formação pedagógica tudo muda muito rápido, a questão da implantação de nova base, parece que a gente não sabe mais dar aula, a gente tem que se reinventar como professor e a gente pensa, mas e agora? Eu não sei mais dar aula, então se eu fosse escolher hoje eu não sei se eu seria, eu gosto de ser professora, a questão da falta de educação, às vezes, a gente pega turmas com um desrespeito muito grande e eu não sei trabalhar com isso. (LIZ, entrevista, 2020).
Imbernón (2015, p. 76) auxilia a pensar sobre o depoimento da professora Liz quando diz que a profissão docente conduz a uma cotidianidade invisível, complexa, onde o professor tem que:
[...] estabelecer uma difícil convivência entre viver a realidade do que nos rodeia para introduzi-la nas lições e na vida das aulas de cada dia; recordar o passado para que as crianças e os adolescentes reconstruam e eduquem sua própria inteligência a partir do que foi criado; projetar-se ao futuro com a intencionalidade de que as novas gerações possam criar um mundo melhor para eles e para todos.
Vaillant (2015, p. 39), tratando do contexto de trabalho dos docentes, reforça que sua profissionalização se constrói a partir da confluência de três elementos: “[...] a existência de condições de trabalho adequadas; uma formação de qualidade; e uma administração e avaliação que fortaleçam a capacidade dos docentes em sua prática.” No que tange às condições de trabalho adequadas, Clot (2020) fala que os professores trabalham em condições que os desestimulam, que os “intoxicam”, que faz com que percam sua saúde sem estarem doentes. Ele explicita o conceito de saúde ao se referir que a saúde tem então “[...] a ver com a criação, com a possibilidade de desenvolver sua atividade. Não simplesmente viver dentro de um contexto, mas criar o contexto para viver. Essa criação de contexto, esses processos de desenvolvimento, são constitutivos da saúde.” O autor alerta que há componentes do trabalho do professor que podem ser identificados como negativos, como por exemplo, o isolamento pessoal a que está submetido no ambiente de trabalho, que pode degradar sua saúde por se constituir em um risco psicossocial próprio de quem não se sente partícipe de uma história coletiva. Com isso, o trabalho se torna uma atividade frágil e geradora de sofrimento.
As penosidades e sofrimentos que desgastam o professor e a própria profissão docente podem causar emoções desagradáveis, as quais não são consideradas em amplo aspecto de regulação do sistema de educação, ou são ouvidas, consideradas e/ou mudadas quando, na maioria das vezes, são sinalizadas aos gestores ou colegas. A esse respeito, Hargreaves (1998) denota que as principais fontes de desmotivação que geram emoções negativas compreendem as mudanças burocráticas, políticas e sociais refletidas na estrutura da educação. Elas, para o autor, só são reconhecidas quando há a necessidade de se fazer uma grande mudança burocrática nos contextos escolares. Nesse caso, compreende-se que esse reconhecimento sobre as emoções é forjado na busca pela efetividade da mudança, do reconhecimento e da aceitação dela para sua máxima eficiência e eficácia, o que resulta, no entendimento de Hargreaves (1998), na ausência de consideração das emoções dos docentes ante as reformas educacionais.
Ensinar é uma prática emocional, que envolve compreensão emocional, trabalho emocional e estão inseparáveis dos profissionais, de seus propósitos morais e de suas capacidades de atingi-las (HARGREAVES, 1998). Dentro desse pressuposto, observa-se que os entrevistados reconhecem as mudanças sociais e estruturais da educação, das políticas e das relações com os alunos, mas que ainda precisam ser ouvidos enquanto consideração de suas emoções. Eles demonstram, também, que a maior fonte de emoções negativas é sentida quando o campo é incontrolável de suas práticas - campo macro (políticas públicas, ações dos alunos...) - e que as emoções positivas se vinculam a sua epistemologia e a relação mais direta com o ensino - micro (conteúdo de ensino, metodologias abordadas, feedback favoráveis dos alunos...).
Socialização e permanência na profissão
Direcionou-se um questionamento para que avaliassem as circunstâncias e as condições em que os professores começaram a vida profissional e a comparassem com o momento que viviam no momento da entrevista, procurando saber como sentiam a profissão. Destacaram dificuldades de ordem organizacional (logística, estruturais e de ambiente), didático-pedagógicas e de perfil do público que vem para a escola. Sobressaem as respostas: haviam menos recursos pedagógicos; dificuldades de deslocamento; trabalhar com classes multisseriadas; ausência de livros didáticos e ferramentas digitais; o professor respondia por todas as tarefas em escolas menores e do interior (merenda, limpeza, aspectos burocráticos...); os alunos eram menos críticos, perguntavam menos; mudou o conceito de família; havia mais companheirismo entre colegas; não havia muita discussão, nem democracia.
O perfil dos alunos, antigamente eram menos críticos, perguntavam menos, não tinham tanta curiosidade acho que justamente porque não tinham esse acesso grande a tudo que temos hoje, então hoje em dia existe uma curiosidade maior, naquela época 1990/1991 o que falávamos ficava, era aceito, não é igual hoje em dia que é preciso dizer e justificar e ainda estar segura sobre o que se diz. Na nossa alfabetização não começamos com essa tecnologia toda. (LÍDIA, entrevista, 2020).
Sibília (2012) traduz bem o espírito do tempo referido pelo Lídia. Para ela, os professores, muitas vezes, não sabem como enfrentar esse novo cenário; têm dificuldades para suportar a precariedade socioeconômica da profissão e igualmente precisam lidar com as aflições suscitadas pelo significado do seu trabalho e das mudanças desafiadoras da profissão, indo muito além do embate geracional.
A criança atual já não é frágil nem ingênua: ao contrário, presume-se que saiba muitas coisas e seja capaz de escolher, opinar e consumir. Não é mais um infante - cuja etimologia remete, justamente, àquele que não fala - nem se supõe que deva ser “formada” para o futuro, mas é constantemente bombardeada por informações que lhe mostram como ser um garoto ou uma menina de hoje. (SIBÍLIA, 2012, p. 109, grifo da autora).
No que diz respeito a aspectos que permanecem ou são considerados positivos no momento presente, os professores destacam: disponibilidade de muita tecnologia, muitos recursos; permanecem preceitos como compromisso, respeito à individualidade do aluno, o tempo do aluno; e que a forma de tratar o professor não mudou, sempre houve alunos que não respeitavam as normas e as regras.
Hoje me parece que tem muitas possibilidades, tudo é acessível para a juventude, acho que está faltando aquele querer. Aquele desejo, aquele objetivo de por que estudar, por que tal curso, me parece que tem muitas ofertas e está faltando as pessoas se situarem e para que isso vai me ajudar. (JÚLIA, entrevista, 2020).
A professora Priscila tem consciência das necessidades para responder aos desafios profissionais. Identifica a responsabilidade pessoal e profissional do professor de preparar-se e ser ativo para dar conta da tarefa educativa. O “encontrar-se” na profissão soma-se à formação adequada para se obter o combo gerador de bem-estar.
Acredito que continua sendo uma profissão muito boa, muito desafiadora e que, quem está entrando agora, tem que estar muito bem preparado em todos os aspectos, porque inclusive a cobrança dos próprios estudantes está maior, temos que estar mais preparados para seguir o ritmo deles, não é mais como era antes que ditávamos um ritmo e a coisa andava, hoje eles ditam o ritmo. (PISCILA, entrevista, 2020).
Loureiro (1997) ressalta que a imagem positiva do ambiente de trabalho poderá, também, contribuir para a formação de uma imagem mais positiva da profissão e do exercício de sua atividade com maior proficiência. Em um mundo passando por transformação, o pensamento crítico, a solução de problemas e aprendizagem para a vida são imprescindíveis e os professores são parte da engrenagem que dá a sustentação e cria as condições para isso.
Rausch e Dubiella (2013) possuem a mesma linha de raciocínio de Loureiro (1997), ao pontuarem que os professores, por sua vez, devem reconhecer que a qualidade da sua atividade profissional e sua satisfação com o trabalho dependem fortemente do seu equilíbrio emocional, razão pela qual precisam estar atentos ao seu cuidado. Ao sentirem-se bem na escola poderão obter níveis mais elevados de satisfação no desempenho das suas funções, minimizando, consequentemente, os aspectos de insatisfação profissional.
Isto posto, ao acompanhar o trabalho de formação inicial e continuada por algumas décadas e dialogando com educadores chega-se aos fatores objetivos e subjetivos da constituição de sua identidade. Cabe considerar sua condição de trabalhador em meio a circunstâncias materiais e organizacionais nem sempre adequadas e condizentes com as necessidades de seu trabalho, bem como o cuidado e autocuidado, o impacto que possuem os elementos de ordem emocional, sentimental e motivacional na vida e na profissão, o que demonstra a urgência de pesquisas que as considerem e as efetivem na educação, proporcionando maior consciência da profissão.
Considerações finais
Ao considerar a conjuntura relatada pelos professores em final de carreira, é notória a sua relação à construção da identidade docente. Os professores destacam e demonstram sua consciência atual diante das experiências ímpares vividas na carreira. Mostram sua autoimagem, a qual, em alguns momentos das entrevistas, apresenta-se desgastada diante das mudanças decorridas nos estágios da profissão e frente às mudanças sociais.
As emoções demonstradas pelos entrevistados, configuram-se ora como positivas e desencadeiam vontades de continuidade, ora se mostram negativas, tornando-se sentimentos penosos e conflitantes para continuar a exercer a profissão. No entanto, é notório que a maior parte dos profissionais entrevistados se sentem motivados a continuar trabalhando e que as emoções geradas, principalmente quando veem o sentido e os propósitos de sua profissão junto à comunidade escolar, evocam felicidade e realização no fazer, no estar e no ser docente.
Com relação ao envelhecimento na profissão, dentre os aspectos de comprometimento do cérebro dado ao fato do declínio cerebral, estar professor nesta realidade contribui para o sentimento de pertencimento, ao mesmo tempo que demonstram a necessidade de se atentar quanto às emoções e sentimentos que podem prejudicar o envelhecimento saudável, bem como impossibilitar o cuidado mais priorizado de si.
Por fim, compreende-se que quando se pesquisa e se dá voz aos professores, aqui em especial aos professores em final de carreira, abre-se espaço para se tornarem conscientes de suas carreiras, dando também motivos para admirá-las e orgulhar-se delas. Nesse enfoque, proporciona-se momentos de introspecção e serve como fonte de resgate, de memória, de experiências e de emoções, para compreender melhor a identidade docente que permeia o seu ser pessoal e profissional.