“Oh, que inútil severidade da moral - exclamou - quando a natureza a seu modo amoroso, nos forma para tudo aquilo que devemos ser! Oh, as estranhas exigências da sociedade burguesa que primeiro nos confunde e nos desencaminha, para depois exigir de nós mais que a própria natureza! Pobre de toda forma de cultura que destrói os meios mais eficazes da verdadeira cultura e nos indica o fim, ao invés de nos tornar felizes no caminho, propriamente!” (GOETHE, 2006, p. 479).
Introdução
“A natureza ama ocultar-se”, diz Heráclito (In BORNHEIM, 1977, p. 43, Fragmento 123). Esta afirmação, de tom quase profético, antecipa uma percepção sobre o rumo que tomaria a discussão sobre a natureza no decorrer dos séculos, chegando à contemporaneidade, em que se tem produzido uma visão de quase desconsideração ou marcadamente reducionista sobre a função instituidora da natureza, tornando-a apenas como um ente a ser explorado conforme a utilidade definida pelo nosso poder explorador.
Não podemos negar, com efeito, que desde o surgimento da modernidade e do desenvolvimento do racionalismo científico, tem sido difícil à humanidade dobrar-se a uma discussão sobre “fontes desconhecidas” de sua existência e aceitar que tais fontes possam caracterizar ou moldar boa parte de suas ações. O racionalismo, de viés instrumental, diminuiu o espaço de discussão sobre aquilo que não pode ser conhecido a fundo ou em si mesmo, como é o caso da natureza. Por isso, a humanidade tem preferido controlar, medicar, manipular, ocultar ou até mesmo desconhecer o que é a natureza.
Isso levou a que na contemporaneidade se tenha tornado difícil esclarecer se a natureza “ama ocultar-se” ou se o receio do que ela possa efetivamente significar, fez a humanidade ocultá-la ou disfarçá-la. Ao desenvolver conceitos que a designam apenas parcialmente e sem a capacidade de um olhar mais profundo acerca de sua influência na constituição da realidade e da vida de cada ser humano, a humanidade tem promovido o distanciamento da natureza, limitando a compreensão sobre seu papel constituinte da condição humana.
Não podemos desconsiderar, porém, que historicamente surgiram iniciativas que apresentam visões diversificadas sobre o poder de ação da natureza e um certo encantamento ou medo diante dos fenômenos provocados por ela. Ainda que a concepção historicamente predominante seja a de que ela deva ser concebida como uma realidade que cabe ser manipulada e controlada pela racionalidade humana, é mister, contudo, considerar que existem muitas outras percepções sobre a relação entre homem e natureza. Neste sentido, não podemos esquecer os lampejos históricos que traduzem momentos de compreensão diferenciada, em que a humanidade se debruça sobre seus enlaces, e permite deleitar-se ou amedrontar-se diante do poder da natureza. Autores como Heráclito, Espinoza, Schopenhauer, Nietzsche, Humboldt, Goethe, foram alguns dos que ousaram não somente falar sobre o tema, como também, buscaram apontar importantes caminhos a serem trilhados para tornar possível decifrar as influências da natureza no cotidiano de cada um, vislumbrando a partir daí uma nova forma de encarar a natureza e seu significado no estabelecimento do sentido da própria existência humana.
Neste breve ensaio vamos retomar alguns aspectos desta discussão, buscando resgatar o sentido de natureza e sua interferência na formação humana. O texto tem como objetivo esclarecer a noção de natureza e natureza humana em Goethe e analisar as implicações desta concepção na formação humana. O deslumbramento do maior poeta alemão diante da mãe natureza (WULF, 2016), será uma fonte orientadora da reflexão aqui desenvolvida. De modo especial, será considerada a concepção de Goethe sobre a Urform1, pela qual ele identifica um certo poder instituidor da natureza, ainda que possa sofrer influências do contexto e do tempo. Para ele, existem afinidades eletivas2 entre o ser humano e a natureza, que faz com que se mantenha algum grau de unidade e uma força vital ativa da natureza, jamais superável. É a partir dele que alguns diálogos serão estabelecidos entre o conceito de formação e o papel da natureza, procurando apontar o significado desta relação na contemporaneidade.
Como metodologia, partimos de uma análise histórico-hermenêutica do conceito de natureza e de seu tratamento em algumas épocas e obras, para chegar a um momento indutivo a partir da concepção de Goethe, buscando apontar possíveis ligações contemporâneas com esta discussão e suas consequências para a formação na atualidade.
Os conceitos de natureza e natureza humana
A modernidade, dentre muitos outros acontecimentos, marca um processo de separação do ser humano da natureza. Esta separação foi, como afirma Burt,
um passo fundamental rumo à expulsão do homem do grande mundo da natureza e do tratamento dado ao homem como um efeito do que acontece em tal mundo, procedimento que se tornou uma característica bastante constante da filosofia da ciência moderna e que simplificou extraordinariamente o campo da ciência, mas que trouxe em seu bojo os grandes problemas metafísicos e especialmente epistemológicos da filosofia moderna (1983, p.71).
Fica explícito que no desenvolvimento da visão científica da modernidade, o conceito de natureza passa a ser entendido de forma suplementar nas reflexões dos pensadores, diferentemente da concepção de destaque que teve no início do pensamento ocidental. Entre os pré-socráticos, por exemplo, prevalece uma concepção de natureza que a considera um fator de essencial importância para a compreensão do mundo e da vida humana. Aristóteles, em sua obra Metafísica (2002), destaca esta visão definindo os pré-socráticos como physikoi, ou seja, os pesquisadores da physis (natureza). Logicamente, o termo physis na visão pré-socrática não significava apenas o que hoje denominamos de “física”, mas sim, uma realidade de fundamental importância para compreender o ser em sua totalidade.
Em sua expressão original, physis designa para os pré-socráticos “o processo de surgir e desenvolver-se em um constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento” (IBAIXE JR., 2010, p.23). Ao retomar a concepção desses filósofos, podemos constatar a relação de physis como a arché, ou seja, com aquilo que é fundamental e continuamente presente nos acontecimentos da vida.
Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, todos empenharam-se na busca por respostas às questões relativas à constituição da natureza (physis). Buscavam “princípios únicos a partir dos quais a natureza como um todo poderia ser constituída e/ou gerada, bem como seus diversos fenômenos explicados” (POLITO; FILHO, 2013, 334). Em outras palavras,
Em todos eles, a noção de physis está associada a alguma coisa que é fundamental e radical (constitui a base e a raiz) e que, possuindo o atributo da permanência, subjaz ao que é mutável e transitório. Esse princípio é, portanto, constitutivo, mas é também, dentro do pensamento milesiano, principalmente originário e formativo (gerativo) (POLITO; FILHO, 2013, p. 335).
No entender dos pré-socráticos, a physis não é um acontecimento que surge e se desenvolve ao “acaso”. Antes disso, ela esconde certa sequencialidade ou uma “lei” que, “independentemente da intervenção de quaisquer vontades, estabelece uma regularidade necessária no comportamento da natureza” (POLITO; FILHO, 2013, p. 336). Heráclito e Parmênides, apesar de suas divergências, identificam na phisys um mesmo princípio de que tudo é natureza e que nela todas as coisas e todos os seres encontram sua origem e sua dissolução.
A semente desta compreensão plantada pelos pré-socráticos não se restringe a eles, mas segue como tema de reflexão de outros pensadores gregos. Sócrates e os seus “discípulos” se debruçaram sobre o problema dos limites da natureza e Aristóteles aborda a questão da phisys em vários momentos de sua obra. Como constata Angioni, em Aristóteles "natureza é certo princípio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se encontra muda ou repousa em si mesmo e não por concomitância" (2010, p.20). Em Aristóteles, portanto, sem natureza não há possibilidade de mudança nos indivíduos, visto que, é da natureza das coisas que surgem as causalidades que determinam sua finalidade e substancialidade. É na natureza de cada ser que existe a potência e o ato, ou seja, a possibilidade de movimento em direção a perfeição. A realização do ser decorre daquilo que já lhe é inato, que nele está latente.
Para resumir esta primera parte: en la visión aristotélica, lo distintivo del concepto de naturaleza no es otra cosa que el vínculo o enlace íntimo y esencial que dice entre el cambio y el ser de la cosa que cambia, al comprender el cambio como enraizado en el ser de las cosas y el ser como alcanzado, realizado y propagado a través del cambio. Así, el concepto de naturaleza viene a condensar y a comprender en una noción única lo que expresa en el plano de los principios ontológicos la conocida afirmación “el obrar sigue al ser” (PREVOSTI MONCLÚS, 2011, p.36).
Ora, se o fazer segue seu ser, isso significa que a natureza em Aristóteles é causalidade, não condição. É causalidade determinante, não técnica de um acontecer virtual. É potencialidade carregada pelo ser. É o movimento que não perde sua identidade, pois em seu movimento está também sua natureza, no seu sentido e destinação.
Vale destacar ainda a ressalva de Montaigne sobre a natureza. Para este pensador, “o homem não pode impedir que os sentidos não sejam os soberanos mestres dos conhecimentos que possui” (MONTAIGNE, 2016, p.579), ou seja, é inegável que a natureza faz parte da condição do ser humano e interfere na sua ação sobre ela: “Eu tomei, como já disse alhures, bem simplesmente e de maneira crua no que me concerne, este preceito antigo: que nós não saberíamos falhar em seguir a natureza, que o preceito soberano e de se conformar a ela” (MONTAIGNE, 2016, p.960), contudo, isso não significa que ela ofereça certeza, antes sim, pode induzir ao erro.
Para compreender a análise da natureza no sentido de Montaigne é preciso compreender que, se a natureza não engana, os sentidos sim. Ou seja, é possível ser enganado por aquilo que leva a perder de vista a potencialidade da natureza: que são os sentidos. De certa forma, tais expressões já haviam sido abordadas também por Aristóteles, quando este apresenta a necessidade de dialética para confirmação do conhecimento, mas é em Montaigne que ganhará força e tomará um novo caminho para demonstrar que, assim como nos dizeres de Heráclito, a natureza gosta de se esconder, ou, neste contexto, é preciso tomar cuidado para aquilo que se imagina ser a “voz” da natureza. Às vezes é possível enganar-se e, como isso, perder-se, achando que se está no caminho certo.
Se a questão da natureza de Montaigne retoma referências aristotélicas, em Espinoza vê-se novamente uma definição forte de Natureza como expressão de Deus, ou, propriamente como Deus. Para este autor, “Deus (ou substância, ou Natureza) é acima de tudo, a causa eficiente fundamental e geral de todas as coisas, o agente ativo cujo poder explica o início de sua existência” (NADLER. In: HUENEMANN, 2010, p.82). Assim, por natureza deve-se compreender o que existe em si mesmo e, por si mesmo é concebido, exprimindo uma “essência eterna e infinita” de onde tudo segue (SPINOZA, 2010).
Com isso, é possível deduzir que a ideia de natureza em Espinoza aponta para um fator determinante, pois, é causa de tudo aquilo que segue a partir dela, o que significa que a natureza existente no interior de cada ser é fundamental para compreender o que se segue como ações posteriores. Não em vão, é possível visualizar em vários autores que não há livre-arbítrio em Espinoza: se tudo é Deus, e Deus é natureza, e a natureza é o ponto “alfa” do ser, isso significa que tanto o ser, como tudo o que está ao seu redor seguem normas universais, perfeitas e determinadas.
É este pensamento de Espinoza que vai conquistar muitos pensadores, incluindo entre eles, Goethe. Em suas memórias escreveu: “vou dizer, sucintamente, onde me apropriei das maneiras de ver de Espinoza. A natureza age segundo leis de tal modo necessárias, que a própria divindade nelas não pode tocar, e todo o mundo está de acordo nisto, sem o saber” (GOETHE, 1948, p. 319).
Posteriormente, porém, a noção de natureza começa a ter uma nova conotação para Goethe. Ele percebe que a natureza não pode ser reduzida em fonte de recursos que pode ser dominada através de observação, da manipulação e da exploração técnica e científica. A natureza, em todas as suas obras, deve ser compreendida de maneira mais profunda, como um acontecer inesgotável de possibilidades, como fator de influência na constituição de cada indivíduo e de cada realidade. Portanto, resgatar o estudo da natureza de Goethe, não significa apenas estabelecer uma alternativa ao modelo de concepção de natureza contemporânea, mas também discutir o próprio conceito de ser humano que está implícito em seus estudos. Para compreender melhor este tema em Goethe, disponibilizaremos de uma parte deste texto para aprofundá-lo, entendendo a importância que esta abordagem traz para os contextos pedagógicos.
O conceito de natureza em Goethe
A preocupação de Goethe com a natureza provém de sua atuação no campo das ciências e das artes. Ele, como pesquisador e escritor, desenvolve uma concepção de ciências que se difere da concepção vigente em sua época. Integrado ao movimento do Sturm Und Drang (Tempestade e Ímpeto), do Pré-Romantismo Alemão, Goethe absorve muitas das críticas à visão reducionista de ciência e de natureza do pensamento moderno. Isso contribui para o desenvolvimento de uma nova noção sobre a significação e a influência estética da natureza na formação humana.
Sob tal influência, o conceito de natureza torna-se central nas inspirações das obras de Goethe. A natureza não pode ser considerada em seus aspectos fragmentários, “mas como coisa atuante e vivente, [...] como uma totalidade que se esforça por evidenciar-se em suas várias partes” (GOETHE, 1987, p. 8). Ademais, ela não obedece a leis racionais, mas “[...] opera segundo leis que ela a si mesma prescreveu, [...]” (GOETHE, 1987, p. 246). Tal concepção transparece em quase todos seus escritos que se relacionam à formação, como podemos confirmar por suas próprias palavras expressas no romance O sofrimento do jovem Werther:
A primeira vez, numa tarde linda, quando o acaso me levou para debaixo daquelas tílias, achei o lugar bem solitário. Estavam todos no campo; apenas um menino de quatro anos estava sentado no chão, abraçando uma outra criança de uns seis meses, sentada entre suas pernas como se estivesse numa poltrona..Deu-me prazer vê-los ali; sentei-me num arado defronte e avidamente comecei a desenhar aquela postura fraternal. Acrescentei a cerca mais próxima, a porta do celeiro e algumas rodas quebradas...sem colocar nada de meu. Isso fortaleceu o meu propósito de manter-me doravante unicamente ligado com a natureza. (GOETHE, 2009, p. 24)
Em outra obra, Memórias, ele é ainda mais contundente ao escrever: “tudo me empurrava para a natureza que me tinha aparecido em sua maior magnificência” (GOETHE, 1948, p.296). Ao analisar esta colocação é importante entender uma dupla vinculação de Goethe em relação a natureza: tudo o empurrava para uma relação externa da natureza, a partir de um impulso interno, como se a natureza interna e externa buscasse se encontrar, se complementar no seu acontecer.
O olhar de que tudo “empurra” Goethe para a natureza, se mostra através de suas obras como algo que promove nele a vontade de querer, de aprender, de “ser mais”, de ir além e, especialmente, de desenvolver a capacidade de acolher e de reconhecer a beleza estética do mundo, contrapondo-se à vontade racionalista da dominação e exploração da natureza que predomina no ser humano: “Está na natureza do homem gostar mais de se apoderar à vida, força da coisa que ele deseja, do que recebê-la, como um presente que o obriga ao reconhecimento” (GOETHE, 1948, p.131). Goethe extrai da observação e da investigação da natureza, “do fenômeno originário” (Urphänomen) sua categoria decisiva de formação, o que revela o caráter materialista de formatação de seu pensamento. E quer faça ciência ou faça arte o ponto de partida das formulações goethianas é sempre o “fenômeno originário”, enquanto abstração razoável que emana dos ricos tecidos constitutivos do mundo objetivo. A subjetividade em Goethe é sempre uma subjetividade objetivada.
Para superar estes “obstáculos” constituído pela racionalidade, Goethe identifica a arte como a experiência humana diferenciadora da formação humana. Considera que o mundo natural constitui uma totalidade orgânica, que é revestida de uma aura poética. Conforme esclarece Hadot,
Para Goethe, a arte é a melhor intérprete da natureza. À diferença da ciência, a arte não descobre leis, equações, estruturas escondidas por trás dos fenômenos, mas, ao contrário, ensina a ver os fenômenos, a aparência que surge claramente, o que está sob nossos olhos e que não sabemos ver; ela nos ensina que o mais misterioso, o mais secreto, é justamente o que está bem exposto, o visível, mais exatamente o movimento pelo qual a natureza se torna visível. Goethe sonha com um contato com a natureza que abandonasse a linguagem para ser apenas a percepção ou criação de formas (2004, p. 237).
A utilização da arte como ponte entre o homem e a natureza ganha profundidade nos estudos sobre as cores de Goethe. Gianotti destaca que nesta obra o pensador alemão desenvolve uma nova forma de abordar a realidade externa na sua relação com a razão subjetiva da modernidade:
A experiência ótica se torna mais abstrata na medida em que o artista, ao invés de olhar para a natureza na busca de estímulos externos, usa arbitrariamente as cores dispostas em sua palheta e procura expressar um estado interior. As cores são vistas de sua dimensão fisiológica, nos efeitos que produzem internamente na retina do observador (GIANOTTI, 2017, s/p.)
Goethe apresenta uma visão orgânica de natureza, buscando vinculá-la à interioridade humana, às artes, à contemplação, estabelecendo um contraste com a visão de natureza modelada e fragmentada pela racionalidade moderna. Daí decorre o fato de que em Goethe a natureza se põe como fator indispensável para a superação do cientificismo estabelecido pelo iluminismo - principal movimento de defesa da racionalidade em sua época - e de alguns entraves do próprio pensamento romântico.
Para o movimento romântico, a natureza passa ser considerada um organismo vivo e a reaproximação entre ela e o ser humano se dará através da interioridade humana, da contemplação, algo inconcebível na ciência moderna. Conforme destaca Andrade, “a natureza, para os românticos, não é apenas o objeto que sofre o reflexo dos seus devaneios, mas uma morada onde habita a harmonia desejada; ela palpita uma vida que os atrai, guarda sensações não experimentadas pelo mundo da cultura, que lhe é avessa” (2016, p. 41).
Em Herder (1982), por exemplo, já era possível perceber este olhar diferente em relação à natureza, à medida que este autor coloca em questão a sensibilidade do homem que estava perdendo importância diante do desenvolvimento da racionalidade científica. Goethe reforça este olhar sobre a existência de uma ordem natural mais ampla nos seres humanos, com a qual devem estar em harmonia. Em a Doutrina das Cores (2013) desenvolve com mais profundidade esta sua compreensão, acentuando o primado da contemplação da natureza como experiência interativa entre a objetividade das formas vistas e a subjetividade das emoções. Destaca a experiência do “o mundo do olho”, que se constitui por formas e cores. Afinal, refletia Goethe, se cada um percebe as cores de maneira diferente é porque cada um traz diferenças determinantes em sua constituição física. Tais diferenças, se determinantes, determinam também a leitura e o aprendizado da vida e do mundo.
Goethe sustenta a ideia de que a interação com a natureza vai além da relação subjetiva do homem com o mundo. Na relação sujeito-objeto se estabelece a necessidade de cada indivíduo fazer as próprias experiências e reconhecer o significado das sensações para si em todos os momentos. Tal experiência não poderá ser padronizada e nem negligenciar a particularidade de cada indivíduo. Isso implica em reconhecer a natureza como um acontecer inesgotável e o conhecimento como um processo inesgotável de aprendizagens e experiências. Bach Jr. esclarece com propriedade a visão de experiência em Goethe:
Cabe ressaltar que o experimento em Goethe é um posicionamento do sujeito em transformar suas experiências em processos que visam verificar a produção do fenômeno em uma multiplicidade de condições. Deste modo, a fenomenologia goethiana opõe-se ao experimento isolado que descaracteriza o mundo vivido e percebido pelo pesquisador. Pelo contrário, é o aprimoramento da qualidade perceptiva que encaminha o processo de pesquisa para níveis superiores da experiência humana. A pergunta fenomenológica não é o que surge, nem por que surge, mas como o fenômeno surge. (2016, p. 75).
A aprendizagem humana sobre a natureza é, portanto, inesgotável e vem marcada pela sensualidade de cada um. Neste aspecto, Goethe diferencia-se não só de Rousseau3, mas também de Herder4, pois leva em consideração questões da sensualidade, entendendo que também ela pode tornar-se significativa para a formação dos indivíduos. Em Goethe, a benevolência e a simpatia não são mais limites à realização sensual e, por isso, o Jovem Meister caminha por entre seus romances revelando que as suas paixões e emoções o ensinam a viver. Cada experiência individual de seus romances torna-se, assim, uma experiência física-psíquica única para o autoconhecimento. No entendimento de Taylor, para Goethe “o bem viver passa a consistir uma fusão perfeita do sensual e do espiritual, em que nossas realizações sensuais são vivenciadas como tendo a importância maior” (2005, p.478).
É possível perceber então que a questão da natureza em Goethe elabora-se por meio do experienciar, ou seja, insere-se na experiência da autoformação, estando intimamente ligada com a questão da autenticidade5 e da necessidade de omni-compreensão. A incapacidade de estarmos atentos às condições que determinam nossa experiência, limitam nossa percepção sobre o que nos ocorre. Goethe em suas Memórias faz questão de demonstrar que
[...] se pudéssemos, sem nos tornarmos doentes imaginários, prestar a atenção a tudo o que nos é nocivo, pouparíamos bastante sofrimentos. Infelizmente o que se dá com a natureza física é o mesmo que se dá com a natureza moral: não reconhecemos nossos erros, nossos defeitos que nos restam não se parecem em nada com aqueles de que nos desembaraçamos, e é-nos impossível vê-los tais quais são, enquanto estivermos sob sua influência (1948, p.192).
Portanto, natureza e autenticidade juntam-se à intersubjetividade (na condição do “outro eu”) e à liberdade para constituir, em Goethe, a formação integral do homem para a condução de sua perfectibilidade, com equilíbrio entre os talentos naturais e uma formação voltada para a sociedade. Com isso, o homem de Goethe, segundo Nietzsche, é
[...] um homem forte, muito cultivado, hábil em todas as atividades corporais, contido em si mesmo e respeitoso de si mesmo, capaz de atrever-se a sentir alegria por toda amplitude e riqueza do natural, pois tem forças suficientes para exercer semelhante liberdade; pensou em um homem tolerante, não por debilidade, mas por força [...] (In LÖWITH, 2008, p.236).
Força, é claro, não significa aqui apenas uma força física, no sentido de imposição ou a capacidade de ser e agir, mas sim, uma força harmoniosa de ser, de equilíbrio subjetivo e de realização estética. Goethe demonstra entender que o equilíbrio é a maior demonstração de força de um indivíduo, pois possibilita cultivar-se e expandir-se, sem prejudicar a si ou aos outros à sua volta. O indivíduo que tem como força a harmonia de si, consegue conviver e evoluir também na (e pela) intersubjetividade por relações saudáveis, em processos de fortalecimento mútuo.
Goethe percebe, no entanto, que a vida não é somente força, energia, potencialidade e harmonia. Levar em consideração a natureza é também ser capaz de acolher a vida em suas diferentes fases, em suas limitações e vicissitudes, como bem expressa quando escreve:
Aumenta o meu sofrimento verificar que perdi aquilo que fazia o encanto da minha vida: sagrada e tumultuosa força graças à qual podia criar mundos e mundos em torno de mim. Essa força não mais existe! Quando contemplo, da minha janela, o sol matutino rasgar a bruma sobre a colina distante, iluminando campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o riacho tranquilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros desfolhados, essa natureza me parece fria e inanimada como uma estampa colorida (GOETHE, 2009, p. 110).
Assim sendo, ao olhar para a interpretação da natureza em Goethe é possível entender um pouco mais de sua visão sobre a necessidade de uma formação ampla e integral dos indivíduos. É possível visualizar o “porquê” da constituição de um conceito que leva em consideração as expectativas da vida humana em suas diferentes fases e circunstâncias. E esta sensibilidade de Goethe, que em sua época rendeu elogios de muitos pensadores, nos parece ainda desafiadora na contemporaneidade.
Natureza e educação
Como foi possível perceber, a natureza em Goethe é o fenômeno primordial (Urphänomen), que está no princípio de tudo. É de onde e de que tudo surge e a partir do qual tudo se desenvolve. Assim, é determinante porque traz em sua origem algumas questões pré-determinadas que direcionam aspectos vitais, assim como o surgimento da planta constitui e determina o que ela virá a ser enquanto ser em seu futuro. Porém, não significa que ela seja determinante em sua totalidade. Como exemplo, da mesma forma que uma árvore se molda a partir do ambiente em que vive, ou seja, das condições que encontra em seu desenvolvimento, a natureza é em Goethe espaço aberto para formação (Bildung). Ela é parte constituinte do devir humano, é Kínesis, mudança incessante, e, por isso, permite que seja trabalhado em suas constantes manifestações particularizadas.
Uma ilustração que pode ajudar no entendimento desta visão de Goethe sobre vida, natureza e cultura, é a escultura que ele produziu no pátio de sua casa, o cubo e a esfera. O cubo representa aquilo que é fixo no universo. Enquanto a esfera representa aquilo que é mutável e maleável. Com isso, pode-se entender que a existência é uma junção de coisas fixas e maleáveis, ou seja, não é possível dizer que existe algo totalmente maleável em Goethe, ao mesmo tempo, também de que não é possível dizer que há algo totalmente estático e definido.
Diferente dos “deuses”, que são considerados como eternos e veem as coisas em sua totalidade-, os homens percebem o mundo e as coisas - e agem sobre elas - sempre baseados em um limitado recorte espaço-temporal. Por isso, é possível apontar que não há como compreender a natureza de forma absoluta e definitiva, nem mesmo para afirmar em que termos e o quanto influencia ou não a existência humana.
Cabe aqui recuperar o tema a que nos referimos anteriormente, quando baseados em Heráclito, afirmamos que a “a natureza ama esconder-se” e que, em sua profundidade de constituição metafísica - como a entende Spinoza (2010) -, ela está além do limite de nossa compreensão. Não há como determiná-la com exatidão o que ela é, embora seja preciso tentar compreendê-la a partir da mais íntima autorreflexão. Até porque, apesar dela ser universal a todos, sua manifestação realiza-se de forma diferenciada em cada ser.
A partir disso, e pensando na formação humana, admitir que não é possível determinar a natureza como algo de total entendimento pela racionalidade humana, é dar-se conta que todo o saber é de um certo modo temerário, ou seja, que é preciso aprender a andar e a lidar com “escuridão” do processo de realização da vida humana. Por perceber que a trilha de formação e aperfeiçoamento humano é, de algum modo, desenvolvido “às escuras”, revela o fato de que a formação humana depende de dois conceitos indispensáveis: o autoconhecimento e a exclusividade do processo. A natureza, compreendida como um conjunto de forças plasmadoras, só é possível de ser conhecida a partir do entendimento dos princípios formadores do próprio conhecimento, qual seja, a experiência concreta com os objetos e com a natureza que nós também somos. A particularidade e a exclusividade da experiência são fundamentais no desenvolvimento da formação humana.
Porém, é preciso considerar que a exclusividade no sentido de que, se somos - como menciona Merleau-Ponty (1999) - um corpo-próprio, isso significa que partimos de diferentes raízes de natureza, o que leva compreender também que cada um terá um desenvolvimento próprio e necessitará compreender tal desenvolvimento para potencializá-lo. Neste contexto, a concepção de uma formação “universal” pode ser aceita somente em aspecto limitado. É preciso que cada indivíduo possa ter suas próprias experiências e um plano de vida diferenciado. Este fato, como é possível perceber, joga por terra a ideia de formação em massa e de que é possível educar com maestria vários indivíduos ao mesmo tempo através de conteúdos iguais e de métodos similares.
Diferente disso, parece indispensável a educação contribuir para que os indivíduos consigam se conhecer melhor, entender sua condição de ser da natureza, sua forma de pensar e agir. A exclusividade do processo pedagógico, ou mesmo, a possibilidade de constituir uma avaliação que auxilie no desenvolvimento da individualidade de cada um, só é possível de forma efetiva a partir do autoconhecimento. É a omnicompreensividade em Goethe que permite compreender nossa omnilateralidade. Retomando novamente a escultura da casa de Goethe: é o quadrado que dá suporte para a esfera, ou seja, é a parte fixa que dá suporte para aquilo que é maleável. De maneira analógica, é somente a partir do momento que a laranjeira descobre que ela somente pode dar laranjas, e que não poderá dar outra fruta, é que ela consegue produzir laranjas. Se negar seu lado fixo, não conseguirá sobreviver diante das estações do ano e frutificar.
Assim, é possível vislumbrar uma grande contribuição de Goethe para educação e a formação humana, destacada com muita propriedade por Bach Junior, quando escreve:
Como fenomenologia da natureza, o método de pesquisa de Goethe tem implicação no campo da educação, ao fundamentar um processo de aquisição do conhecimento que não busca a dicotomização entre sujeito e objeto. Ao enfatizar a formação do sujeito em seu aperfeiçoamento em relação às impressões sensoriais, a fenomenologia da natureza possui desdobramentos para a prática educativa ao percorrer processos paradigmáticos diferenciados em comparação ao reducionismo dos modelos matemáticos, herdados do passado como referências referendadas e estabelecidas. Nestes termos, a fenomenologia da natureza se apresenta como processo complementar aos métodos científicos vigentes, evitando, assim, absolutizações e unilateralidades presentes em qualquer formação reducionista. Deste modo, este estudo vem colaborar na proposição de um processo educativo dialógico, tendo a natureza como parceira ativa e o método de pesquisa de Goethe como suporte dialógico e intermediador.” (2016, p. 118).
Diante de tal apontamento, pode-se afirmar que a formação que desconhece as influências de uma natureza ativa, pode conduzir os indivíduos, mas também, pode estar fadada a conduzir os indivíduos a equívocos patológicos irreversíveis.
Considerações finais
Podemos concluir que para Goethe a natureza se faz presente como uma totalidade orgânica de inesgotável poder de realização e de uma força poética dotada de permanente inspiração. Para perceber e usufruir desta totalidade orgânica, é preciso compreender a natureza como physis e superar o passado dos recortes que tem levado a humanidade a se sentir estranho diante da natureza.
A natureza se concretiza em uma continuidade desconhecida, ou como bem observa Heráclito, “a natureza ama esconder-se”. Cabe-nos reconhecer que não temos, efetivamente, a capacidade de conhecê-la em profundidade e de forma definitiva. Esta limitação não significa, porém, que a natureza não lá esteja e que, de algum modo, ela intervém nas experiências cotidianas de cada indivíduo. O desafio está em encontrar formas de compreensão e de sensibilidade que leve cada indivíduo a perceber a ação que a natureza exerce em sua vida. Esta é a preocupação de Goethe em suas reflexões e estudos sobre a natureza.
Neste sentido, parece que Goethe consegue lançar ainda em seu tempo uma reflexão importante sobre algo que a ciência moderna consegue suscitar: não reconhecer que antes mesmo do nascimento os seres humanos já possuem uma constituição física e psíquica, é algo preocupante. Não reconhecer, ou conhecer, como alguém reage às primeiras experiências cotidianas (que serão determinantes para demais experiências basilares da vida) é uma lacuna desafiante para a formação dos indivíduos.
É certo, como menciona Piazza (2021) que nosso cérebro é “aberto” e sempre passível de transformação, contudo, é também importante considerar que esta transformação só é possível através de uma intervenção forte do mundo externo sobre a cultura. Assim, se faz mister refletir que sem a intervenção externa as primeiras impressões, estas, determinadas pela natureza de cada um - não metafísica, mas física, que diz respeito às cores, aos cheiros, aos sabores, a forma de sentir ameaçado, a quantidade de serotonina em cada indivíduo - serão determinantes para os indivíduos no constante de suas relações sociais.
Ora, diante disso, não somente se reforça a importância da formação dos indivíduos, mas que toda a educação precisa estar atenta à individualidade de cada um e voltados para o reconhecimento da natureza de cada indivíduo. É este caminho que o conceito de formação de Goethe parece apontar.
A formação do sujeito, segundo Goethe, é um processo permanente de aprimoramento da subjetividade na sua interatividade com os fenômenos da natureza. Este processo não é, porém, seguro e necessariamente virtuoso. Ela se realiza por uma dinâmica que envolve a permanência e a mudança de forma concomitante e não progressiva. Negar o acontecer da natureza em cada ser humano é negar a sua possibilidade de tornar-se esclarecido e humano. Este acontecer, no entanto, não deixa de revelar o lado trágico da existência humana, uma vez que sempre estamos à mercê de afinidades eletivas que colocam em questionamento a validade de nossas escolhas e de nossas certezas. Eis a tragédia da vida, pois por mais que o ser humano tente, acaba tendo que se render ao fato de que aquilo que mais lhe diz respeito é o que menos ele consegue se apropriar.
Por isso, a formação em Goethe aponta a necessidade de preparar o indivíduo para compreender a si e suas relações com a natureza. Trata-se de compreender como esta conexão entre o eu, a natureza e os outros pode acontecer de forma saudável e evolutiva, sem desconsiderar a própria a incompletude deste acontecer. A formação humana deve ser, assim, necessariamente uma formação omnilateral e omnicompreensiva, que envolve o indivíduo em sua relação com a natureza e a realidade do mundo a partir da compreensão de si mesmo e da autoconstrução. Não é uma formação “industrial”, técnica, mas uma formação que permita cada indivíduo se conhecer e formar integralmente.