“Sem dúvida a educação é um fato - porque se dá. Sem dúvida, é um processo, porque está sempre se fazendo. Envolve pessoas num contexto. Ela mesmo sendo contextualizada - onde e como se dá. É uma aproximação desse fato-processo que a pesquisa educacional tenta compreender”.
“Sempre tive em mente que a educação e a atividade docente estão a serviço da construção da civilização”
Introdução
O foco deste trabalho é apresentar algumas das contribuições da professora pesquisadora Bernardete Angelina Gatti para a Educação, para a Formação de Professores e para a pesquisa educacional brasileira. Trata-se de um desafio, a se considerar a sua longa e densa trajetória de pesquisa. O primeiro passo foi a análise do currículo lattes e outras plataformas, tais como Scielo, Google Scholar, Portal da Anped. Com este mapeamento prévio nos reunimos uma primeira vez com Bernardete, ainda em 2019. Com a pandemia do Covid-19e em conversas em modo remoto, nos voltamos, também, às lives e ao seu trabalho na Cátedra de Educação Básica, da USP (http://www.iea.usp.br/eventos/pesquisa/catedras-e-convenios/catedra-de-educacao-basica). Em muitas conversas com Bernardete, fomos tecendo o texto, com em um exercício de reflexão que possa expressar a produção científica desta pesquisadora preocupada e comprometida com a formação de professores no Brasil.
O texto está organizado de modo a resgatar um pouco a biografia de Bernardete e a afirmação de seu compromisso com a pesquisa e a formação de professores. Ousamos afirmar que o objetivo último, que atravessa a trajetória acadêmica e profissional da autora, é seu compromisso com o desenvolvimento humano, com a escola, com a promoção das crianças, com um projeto de sociedade mais igualitário para todos os brasileiros. Trazemos algumas das contribuições de Bernardete (docentes e na pesquisa), a partir de textos e livros que contribuíram sobremaneira em nossa trajetória profissional. Nossa discussão sobre a produção de Bernardete apresenta um pouco de sua vasta obra. Ao final, nas referências, indicamos trabalhos da autora que podem ser consultados, ampliando o conhecimento sobre sua obra.
Tempos e Espaços Formativos
Bernardete nasceu no interior do Estado de São Paulo, em 1941. O interesse pela leitura aconteceu na primeira infância. Aos cinco anos ingressa na escola, já alfabetizada. Era uma época em que a escola pública atendia uma parcela pequena da população, mas era consistente, especialmente para quem viesse de um meio mais letrado. Antes mesmo de completar 13 anos já estava no ensino médio, na Escola Normal Estadual de Matão e na Escola Técnica de Comércio (fazendo dupla jornada). Sua trajetória precoce se confirma também no exercício da docência: em 1959 inicia sua carreira profissional na condição de professora efetiva no magistério estadual de São Paulo e, aos 20 anos, conclui o curso Pedagogia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na Universidade de São Paulo (FFCL/USP). A formação inicial e profissional foram se delineando de modo entrelaçado, desafiando-a constantemente1. Era um tempo de esperança, de um sentimento de que o Brasil poderia se transformar, crescer de modo mais amplo. De acordo com Walter Garcia:
Os anos 1950 e 1960, a partir da eleição de Juscelino Kubitschek, trouxeram a sensação de que o país poderia enfim ganhar sua emancipação cultural, econômica, política e social. Apesar da velha polarização política entre forças tradicionais, PSD e PTB de um lado e UDN de outro, era possível vislumbrar que as propostas de Juscelino, de avançar 50 anos em cinco - este era seu mote - representavam um choque para as velhas oligarquias habituadas a fazer política (Garcia, 2016, p. 7)
[...]
Essas transformações dos anos 1950/60 prepararam o terreno para o surgimento e a consolidação de novas exigências sociais, como o movimento sindical e a emergência de novas demandas na área educacional. O ideário da escola pública, em todas as suas ramificações, ganhou status de projeto político que ajudaria a construir um novo país. Pelo menos assim pensavam muitos intelectuais e estudantes desse período. Novos agrupamentos políticos se constituíam nas universidades, clamando por uma reforma universitária que fosse capaz de abrigar todos aqueles até então excluídos do sistema educacional. Na Rua Maria Antônia, sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde estudei e onde também estudou Bernardete Gatti, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, era comum os estudantes serem chamados a firmar abaixo-assinados pela legalização de partidos políticos até então proibidos, como, por exemplo, o Partido Comunista. Os inimigos de plantão eram os gorilas, termo emprestado às ditaduras latino-americanas que estavam em plena vigência em muitos países (Garcia, 2016, p. 8).
A formação consistente desde as primeiras letras e, sobretudo, na sua graduação, forjou, em Bernardete, uma trajetória multidisciplinar, na matemática, na estatística, na psicologia, na avaliação e na pesquisa. Ao curso de Pedagogia ela agregou o estudo em diferentes disciplinas (na matemática e na estatística), em seu percurso acadêmico. Foi conciliando os estudos com a docência e a iniciação à pesquisa, de tal modo que transitava entre áreas, possibilitando a construção de um olhar amplo e específico sobre o objeto educação (e para a formação de professores). São estas bases formativas que forjaram a pesquisadora que, já em sua tese de doutorado, defendida em 1972, trazia análises quanti e qualitativas.
Sim, minha formação acabou sendo múltipla. Embora não tenha terminado o curso de matemática, fiz disciplinas suficientes para me desenvolver na estatística aplicada. Na França, durante o doutorado em psicologia na Universidade de Paris VII - Denis Diderot, aproveitei para frequentar disciplinas de estatística aplicada. Estudei modelos descritivos inovadores em um laboratório e usei muita estatística na minha tese, defendida em 1972. Fiz os créditos em psicologia também (Gatti apudPierro, 2018, p. 28).
Em diferentes entrevistas, Bernardete destaca, também, a importância dos professores que ela teve, para sua formação, especialmente, em pesquisa. Segundo ela, a participação nos estudos da professora Carolina Bori e dos professores José Camargo Pereira e Arrigo Leonardo Angelini, na USP, foram fundamentais para compreender a importância da estatística na pesquisa, seja na Psicologia ou na Educação. Estes envolvimentos com pesquisas, sua experiência como alfabetizadora e a realização do doutorado em Psicologia na Universidade Paris VII, na França, foram fundamentais para a constituição da pesquisadora. Ainda em 1971 Bernardete foi convidada a trabalhar na Fundação Carlos Chagas, atividade que foi conciliada com seu contrato com a USP, no qual era professora de estatística desde 1964 (no Instituto de Matemática e Estatística).
Eu já estava no curso de pedagogia e a vida me conduziu a seguir na área. Como eu estudava à tarde, além de dar aulas de manhã, também trabalhava à noite. Lecionei matemática para turmas de oitava série durante dois anos, em uma escola no bairro da Aclimação. Fui alfabetizadora com 18 anos de idade e comecei a dar aulas de matemática aos 20 anos. Mas encontrei meios para falar de assuntos abstratos com os adolescentes. Em vez de partir para demonstrações teóricas, eu baseava as aulas em problematizações do ambiente. Aprendi isso com a pedagogia. Perguntava para os alunos: “Por que este prédio não cai?”. E mostrava a eles que havia matemática na construção de um edifício, associando um problema concreto a uma solução matemática. Acho que essa abordagem funcionou, porque nenhum aluno fugiu das minhas aulas. Foi naquela época que comecei a refletir sobre a formação de professores (Gatti apudPierro, 2018, p. 28-29).
Desde seu início de carreira, como pesquisadora, Bernardete se interessa pela formação de professores como objeto de estudo. Ao ingressar na Fundação Carlos Chagas, pôde participar de pesquisas que lhe proporcionaram, em uma visão mais ampla, pesquisas que envolviam redes de ensino, que analisavam bancos de dados, algo que favoreceu sua formação como pesquisadora. Em entrevista à revista Época, em 2018, Bernardete afirma:
Trabalhei com grandes bases de dados. Também havia outro foco em uma das primeiras pesquisas que publiquei com minha equipe no periódico Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas. Foram trabalhos em que procurávamos entender como era a aprendizagem dos professores na formação continuada. Trabalhei, ainda, em um projeto para Ministério da Educação (MEC) e o Banco Mundial, em parceria com a Universidade Federal do Ceará, na década de 1980. Foi uma avaliação do Programa de Expansão e Melhoria do Ensino Rural. Consistiu em um estudo desenvolvido ao longo de cinco anos, com coleta de dados em uma amostra de 603 escolas de Pernambuco, Piauí e Ceará. Foram analisadas variáveis como perfil dos professores, infraestrutura escolar e condição socioeconômica dos alunos de segundo e quarto anos. A aprendizagem de conceitos básicos de língua portuguesa e matemática estava visivelmente prejudicada nessas turmas. Não houve melhoria de desempenho, estatisticamente identificável, no decorrer dos cinco anos de investigação (Pierro, 2018, p. 29).
A esta experiência com a pesquisa, com os números, com as bases filosóficas, sociológicas e, sobretudo, psicológicas, Bernardete se engajou efetivamente em associações, tais como Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), entre outras.
A autora dá destaque a convergências teóricas e metodológicas nas várias fases desse processo, que tem início com a criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, INEP (1938) e vai até o início da implantação dos programas de pós-graduação ao final da década de 1970. Nessa trajetória destaca o papel da ANPEd na integração e no intercâmbio de pesquisadores e na disseminação da pesquisa em educação e questões a ela ligadas. Mostra que esse quadro institucional passou por mudanças substantivas com o grande desenvolvimento da pós-graduação strictu sensu, resultante de estímulos específicos à pesquisa, das avaliações periódicas e das exigências para as carreiras docentes universitárias (Paiva, 2003).
Destacamos sua participação no Ministério da Educação (MEC), na qualidade de assessora, representante da área Educação, na Comissão de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), membro para a Comissão Especial para a área de Desenvolvimento Social e Educação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), membro do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo, membro do conselho consultivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Não poderíamos deixar de mencionar os títulos importantes que Bernardete recebeu ao longo de sua trajetória, dos quais destacamos: Pesquisador Emérito, INEP (1989); a Ordem Nacional do Mérito Educativo, no grau de Cavaleiro, Ministério da Educação e Cultura (1994); a Ordem Nacional do Mérito Educativo no grau de Comendador, Ministério da Educação (2000); o Diploma de Mérito, ANPAE - Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação (2003). Essas nomeações refletem o árduo trabalho de Bernardete para com a ciência brasileira e, além do reconhecimento do seu compromisso qualitativo com a educação, representam e legitimam a produção de conhecimento sobre a formação de professores no Brasil. O trabalho continua! Bernardete Gatti segue atuando no Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo e, na pesquisa, na Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Referência para Pesquisa e para a Pesquisa na Formação de Professores
A pesquisadora e professora Bernardete foi forjada desde muito cedo, ainda na graduação, na USP. O compromisso com a pesquisa e, especialmente com o método, marcam a história acadêmica de Bernardete. De acordo com Vigotski (1996), um dos princípios metodológicos fundamentais na pesquisa é a existência de uma íntima relação entre teoria e método. De acordo com o autor soviético, o olhar do pesquisador sobre o objeto a ser investigado é guiado pelos seus referenciais teóricos, ao passo que o método possibilita à teoria provar-se nos resultados deste objeto ou encontrar elementos para a sua reelaboração. Para Vigotski, o “[...] modo de olhar o objeto determina o método mais adequado para chegar aos objetivos, mas é a natureza do objeto que determina, por sua vez, a maneira de ser olhado” (Schlindwein, 2018, p. 18, 19). O envolvimento com pesquisadores experientes, desde sua formação inicial, atravessa a trajetória profissional de Bernardete, fato que lhe permitiu, desde muito cedo, em sua carreira profissional, o compromisso com a busca de um método e o aprendizado com o trabalho coletivo, na pesquisa. “Bori sempre primou por deixar em nossas mentes a ideia de que a pesquisa tem que ter um método e que a pesquisa tem que garantir de alguma maneira que a explicação ou a compreensão a que se chegue seja sólida” (Gatti, 2022).
Recentemente, Gatti publicou um livro intitulado: “Uma Cartografia na Formação de Professores para a Educação Básica: práticas e soluções inovadoras em propostas curriculares” (Gatti, 2022). O trabalho apresenta discussões de resultados de um estudo que teve por objetivo principal identificar e analisar cursos de formação inicial de professores para a educação básica no Brasil (licenciaturas) que apresentem inovações em termos de práticas e dinâmicas curriculares” (Gatti, Guimarães, et Puig, 2022, p. 6). A inovação é aqui compreendida como: “Algo é novo em certo contexto, tempo e situação em relação ao existente anteriormente naquele contexto” (Gatti; Guimarães et al. Puig, 2022, p. 6).
A investigação se realiza no eixo de curadoria e pesquisa da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados da USP. Novamente uma pesquisa de grande escopo, perseguindo um novo modo de empreender estudos no campo da formação de professores e que envolve um volume grande de dados e desafios de diferentes ordens, desde o mapeamento das instituições, até os modos de construir e organizar o currículo e o ensino, sem falar de deferentes modalidades na realização (remoto, híbrido, presencial, entre outros). O desenvolvimento de uma nova pesquisa requer pensar em um novo método. Bernardete e seu grupo propõem, nesta investigação, uma metodologia denominada “cartografia-garimpagem” (Gatti, 2022, p. 11), uma abordagem qualitativa delineada no movimento de superação dos muitos desafios encontrados ao longo da investigação. De acordo com Bernardete,
Esta pesquisa busca a construção do que se pode denominar uma cartografia de soluções e práticas curriculares que evidenciem alguma mudança/inovação em cursos de formação de professores, considerados em seu todo. Trata-se de traçar um mapa de experiências relevantes que têm potencial para inspirar mudanças nos tradicionais formatos de formação de professores. Isso implica localizar e trazer à luz experiências curriculares institucionalizadas em licenciaturas que mostrem aspectos de superação da visão disciplinar fragmentária que tem caracterizado as graduações voltadas à formação de professores para a docência na educação básica (Gatti, 2022, p. 10).
[...]
Essa “cartografia-garimpagem” implicou procedimentos mais flexíveis, com variações em coleta ou mudança ou agregação de focos no percurso, experimentando caminhos em comprometimento com realidades. Essa é uma abordagem já reconhecida no âmbito das pesquisas qualitativas (Passos et al., 2015). A cartografia-garimpagem é um tipo de estudo que acolhe os dados, ao invés de escolhê-los, uma forma de pesquisar que cria “a possibilidade de pensar e escrever, de compor uma pesquisa com os heterogêneos recolhidos a partir dos mais diversos lugares”, como colocado por Neuscharank et al. (2019, p.4)” (Gatti, 2022, p. 11).
As análises, toma como casos dez instituições de ensino superior de diferentes regiões do Brasil, apresentam indicativos relevantes para se pensar a formação de professores para os desafios atuais. Um primeiro indicativo se refere ao uso de meios variados de ensino, com uma participação efetiva dos estudantes.
Esse aspecto relativo ao emprego de meios variados e mais participativos com os estudantes, pela criação de ambiências de aprendizagem diferenciadas e que sejam propiciadoras de estímulos não só à participação, mas também à criatividade dos licenciandos e ao desenvolvimento de seu gosto pelo conhecimento e pela busca desse conhecimento, chama a atenção. O fato é que essas ações pedagógicas se assentam também em nova formação e exploração pedagógica por parte dos formadores de professores e no reconhecimento que, sem desprezar formas habituais de aulas, há que mobilizar também de outro modo os estudantes para a construção de novos conhecimentos de modo a criar condições para que desenvolvam autonomia formativa e de escolhas. É preciso considerar que isso se dá, nas licenciaturas interdisciplinares, dentro de uma nova perspectiva epistemológica quanto aos conhecimentos envolvidos nessa formação, concebidos como integrados e interrelacionados, colocados, portanto, em outro diapasão2 (Gatti, 2022, p. 146).
Outro destaque importante é o fato de uma polarização no ensino, em uma perspectiva formativa na qual o “extenso e aprofundado das disciplinas” possa dar conta da formação do professor. O estudo de Gatti reitera a especificidade da docência na educação básica, da necessidade de uma formação que exige teorização e conceitos próprios, intimamente imbricados com a prática. As autoras, sob a coordenação de Gatti, elencam possibilidades de transformação na formação inicial de professores, mas alertam que mudanças efetivas demandam. A formação de professores, alerta o estudo, precisa pensar o futuro, com as condições atuais.
Como um problema que se anuncia hoje como social, a formação inicial de professores, nas licenciaturas, está demandando olhares e realizações que possibilitem dar identidade a essa formação, construindo-se maior integração nas, e entre, as licenciaturas e seu corpo docente, em perspectivas colaborativas, assumindo as práticas educacionais como práticas socioculturais, com base em uma ética social que destaque o valor dessa formação e da profissionalidade a ela associada (Gatti, 2022, p. 150).
Um outro trabalho recente, publicado pela UNESCO (Práticas pedagógicas na educação básica do Brasil: o que evidenciam as pesquisas em educação), Bernardete e seu grupo realizam um mapeamento de artigos, teses e dissertações defendidas entre 2008 e 2018, com o intuito de analisar estudos que pesquisam práticas pedagógicas na educação básica. Trata-se de uma pesquisa nos moldes do estado da arte ou do estado do conhecimento, com procedimentos de metanálise. Valendo-se das palavras-chave “práticas pedagógicas” e “boas práticas”, o levantamento foi realizado na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no Scientific Eletronic Library Online (SciELO). Foram mapeados 52 trabalhos (28 teses e 24 artigos), um número muito pequeno, considerando-se o volume total de pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação em educação no país. Só este mapeamento já indica o quanto a prática é pouco valorizada e até mesmo negligenciada na universidade.
Consideramos que estes estudos com grande volume de dados, os quais Bernardete coordena ou participa, constituem-se, muitas vezes, em pontos de partida para pesquisas realizadas nos diferentes níveis de formação do pesquisador ou do professor. O trabalho de Bernardete é base e inspiração para pesquisadores, sejam aqueles iniciantes na carreira ou mais experientes. Sua contribuição, além de sinalizar metodologias diferenciadas, traz um olhar atento sobre um universo muitas vezes difícil de ser acessado pelo pesquisador principiante.
É preciso relevar as contribuições de Gatti para os campos das discussões de questões teórico-metodológicas. Seus trabalhos sobre metodologia da pesquisa ampliaram o debate sobre o uso de modelos quantitativos e qualitativos no campo educacional, na superação de uma dicotomia histórica, na pesquisa educacional no Brasil. Em suas discussões relacionadas aos enfoques quantitativos e qualitativos na pesquisa em educação, a autora constata que as questões de método e de teoria ainda não foram suficientemente aprofundadas tanto na tradição lógico-empirista, como nas tradições críticas. As relações entre teorização, métodos e instrumentos deixam claro o papel do embate de ideias, perspectivas e teorias com a prática. A autora deixa claro que não há um único modelo de pesquisa científica.
A pesquisa educacional, tal como ela vem sendo realizada, compreende uma vasta diversidade de questões, de diferentes conotações, embora todas relacionadas complexamente ao desenvolvimento das pessoas e das sociedades. Ela tem abrangido questões em perspectivas filosóficas, sociológicas, psicológicas, políticas, biológicas, administrativas etc. Se pensamos em um dos seus aspectos - o da educação escolar -, ela se refere aí a problemas de legislação, de currículo, de métodos e tecnologia de ensino, de formação de docentes, das relações professor-aluno etc. Diz respeito a especialidades como a psicologia do escolar, a orientação educacional, a supervisão pedagógica, a administração escolar (Gatti, 2002, p.13).
De acordo com Bernardete (2018), a variedade de procedimentos e a criatividade do pesquisador possibilitam a constituição do conhecimento científico. Para a autora, a produção científica no campo educacional “[...] significa trabalhar com algo relativo a seres humanos ou com eles em seu processo de vida" (p. 12).
O problema da formação de professores começa na faculdade. Os docentes de Pedagogia e das licenciaturas - de matemática, língua portuguesa, biologia etc. - não sabem ensinar para quem dará aula. Isso porque eles mesmos não aprenderam como fazer isso. Para não dizer que a formação didática não existe, podemos dizer que ela é precária. A maioria dos futuros professores não aprende como lecionar. Não recebem na faculdade as ferramentas que possibilitarão que eles planejem da melhor forma possível como ensinar ciências, matemática, física, química e mesmo como alfabetizar. Muitos de nossos professores saem da faculdade sem saber alfabetizar crianças. É um problema grave (Gatti, 2018).
Na obra intitulada: “A Construção da Pesquisa em Educação no Brasil” (Gatti, 2010), a autora apresenta a trajetória das pesquisas realizadas no campo da educação no Brasil, no qual demonstra a preocupação com a forma como os dados são coletados e como a informação é tratada para que se garanta a segurança quanto ao tipo de conhecimento gerado. Para a autora, “[...] não há um modelo de pesquisa científica, como não há “o método científico para o desenvolvimento da pesquisa” (p. 32), mas há uma variedade de procedimentos nos quais o conhecimento científico se faz.
Ao situar as pesquisas realizadas e analisar o contexto histórico no qual elas foram produzidas, Gatti (2010) traz à tona os problemas que se constituem em pano de fundo nas produções das próprias pesquisas. A autora destaca a dificuldade de construir categorias teóricas mais consistentes que abarquem a complexidade das questões educacionais em seu contexto social. Afirma que os modismos periódicos, o imediatismo quanto a escolha dos problemas de pesquisa, resultam, muitas vezes, em um pragmatismo e na falta de pesquisas que possam intervir e transformar os modos educacionais.
Bernardete (2010) critica as relações frágeis que se estabelecem entre universidade e ensino básico, o que indica a falta de conjugação entre pesquisa e ensino nas instituições. Gatti questiona o papel social para a consistência metodológica. Muitas pesquisas podem ser consideradas interessantes do ponto de vista teórico, mas pouco relevante do ponto de vista social.
A autora discute as questões relacionadas aos métodos utilizados nas pesquisas em educação e parte do princípio de que método se revela nas nossas ações, na nossa organização do trabalho investigativo. Método implica em concepção de mundo, de homem, de relações sociais. O método reflete o tempo histórico no qual a pesquisa é realizada. Há de garantir coerência e consistência em torno do objeto a ser investigado. A autora salienta que “[...] nem tudo o que se faz sobre a égide da pesquisa educacional pode ser considerado como fundado em princípios da investigação científica” (Gatti, 2010). Os enfoques e posturas metodológicas são muitas vezes conflitantes. E ainda há fragilidade no domínio consistente de métodos e técnicas de investigação em qualquer que seja a abordagem que o investigador se situe.
Outro livro referência, produzido por Bernardete, tem por título: “Formação de Professores e Carreira: problemas e movimentos de renovação. Gatti apresenta a ideia de um professor que ensina com arte e provoca o leitor na discussão de como formar professores que construam em si essa ciência com arte. Neste livro (Gatti, 1997) já aponta para carências e defasagens na formação do professor, para o exercício da profissão em todos os níveis da educação, por região, trazendo para o centro do debate a questão da qualidade da formação do professor (algumas das quais realizadas anteriormente em Institutos de Educação).
Questões sobre concepções de ensino e técnicas pedagógicas para o trabalho do professor são primordiais em sua formação, ao passo que têm sido menosprezadas ao se tê-los preteridos em virtude da pesquisa e extensão acadêmica. Para a autora (Gatti, 2010), a formação pedagógica é muito importante.
No que concerne à formação de professores, é necessária uma verdadeira revolução nas estruturas institucionais formativas e nos currículos da formação. As emendas já são muitas. A fragmentação formativa é clara. É preciso integrar essa formação em currículos articulados e voltados a esse objetivo precípuo. A formação de professores não pode ser pensada a partir das ciências e seus diversos campos disciplinares, como adendo destas áreas, mas a partir da função social própria à escolarização - ensinar às novas gerações o conhecimento acumulado e consolidar valores e práticas coerentes com nossa vida civil (Gatti, 2010, p. 1375).
Sua crítica, pautada em indicadores de pesquisa vão ao ponto:
Olha, muita gente já disse que maior remuneração não faz tanta diferença, mas eu sou contra. Para mim, a remuneração é chave. Aumentar os salários é fundamental para valorizar a profissão, para trazer gente mais bem preparada para a sala de aula e para fazer os que já estão nela correr atrás de melhorar. Ninguém escolhe uma carreira só por ideologia. Você olha o que será seu futuro profissional. E a carreira do professor, em geral, não delineia um futuro muito bom. Ela cria uma armadilha. Para o professor avançar em termos de salário, ele é obrigado a deixar de ser professor para ser coordenador ou ser diretor. Tem de abandonar a sala. Isso ocorre justamente quando ele já tem experiência em dar aula. Acho que a carreira tem de dar incentivos para que ele se mantenha na sala (Gatti, 2018).
Pesquisa e Formação de Professores em Tempos de Pandemia
As contribuições de Bernardete em tempos de pandemia pelo COVID193 se expressam também em atividades online (conferências, debates, aulas), apresentadas “ao vivo”, via internet, que ficaram conhecidas como lives. Estes modelos de atividades remotas foram amplamente utilizados durante a pandemia, justamente pela imposição do isolamento social decorrente da pandemia do COVID 19. Estas atividades ficaram gravadas e estão disponíveis para livre acesso4. Bernardete trabalhou intensamente durante o período de pandemia, algo que denota o vigor e atualidade de suas contribuições (Gatti, 2020, 2021, 2021b). Apresentamos, a seguir algumas de suas conferências e debates promovidos de modo online.
Em dezembro de 2020, Gatti (2020) discute a formação continuada no contexto da pandemia, no II SEMFOR seminário de formação do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica (CEFAPRO, 2020). Destaca questões da formação continuada no contexto anterior (presencial) e a partir da emergência da pandemia indicando a importância da formação descentralizada e as relações que se estabelecem entre escola, família e comunidade. Critica duramente as formações continuadas que podem ser classificadas como mercantilistas, pautadas no pragmatismo, genéricas, unitárias ou centralizadas. São formações que abordam temáticas ou técnicas pontuais, “da moda”, em um formato que impõe modelos de ensino de cima para baixo. De modo geral, estas formações se constituem em forma de pacotes padronizados, muitas vezes vendidos por grandes conglomerados educacionais que visam tão somente o lucro. Não estão associados a fundamentos socioculturais e filosóficos e tampouco se preocupam com as especificidades.
Gatti defende a formação em serviço descentralizada como uma alternativa a esses modelos padronizados. Indica a importância de políticas de formação de professores que possam se constituir a partir das demandas vivenciadas pelos profissionais que atuam nas escolas, com iniciativas locais, a partir de necessidades prementes. As formações descentralizadas, organizadas a partir de realidades específicas, tendem a fortalecer a comunidade escolar, produzindo o conhecimento de forma mais horizontal, com uma linguagem acessível, que possa atender às necessidades reais da escola.
As relações e o bem coletivo aparecem com destaque nesta apresentação de Bernardete (2020). Ela reitera que é preciso criarmos uma perspectiva de bem público, que a educação é sempre algo para o futuro próximo, concepção de vida cidadã e, que o sentido, a sua finalidade á a formação humana. Destaca o sentido social da escola, inclui uma concepção de projeto de humanização do homem (PINO, 2005); um trabalho coletivo, que abarca o cuidado de si e do outro, o crescimento coletivo. Alerta, também, que as relações possam ser revitalizadas, porque a sociedade tem sido muito individualista. A educação escolar e a formação de professores está conectada com a vida real, com os enfrentamentos, dificuldades e vivências de cada pessoa.
Em fevereiro de 20215, na live intitulada: “A formação de professores e a pesquisa educacional” (Gatti, 2021), Bernardete alerta para a relação entre conhecimento e as desigualdades sociais, que podem se desdobrar em diferentes graus de dependência ou de liberdade para as crianças e adolescentes.
Em março de 2021, Gatti (2021b) apresenta: “Importância da Pesquisa em Educação para a Prática Pedagógica - Contexto pandemia”, e traz para o debate a preocupação com a escassez de síntese de conhecimento acumulado acessíveis, em uma linguagem que possa ser compreendida por diferentes interlocutores. Alerta que a ciência e a pesquisa muitas vezes ficam somente no meio acadêmico. A pesquisadora aponta para a busca de outros interlocutores, a partir de uma elaboração de textos que possam traduzir a pesquisa sofisticada em palavras que possam ser entendidas pelos gestores educacionais e professores, e que sejam bem recebidas pela comunidade, saindo do jargão academicista para serem mais bem compreendidas.
Algumas considerações
Tarefa difícil, esta, de mapear toda a produção de Bernardete no campo da metodologia científica e da pesquisa na formação de professores. Seu histórico na produção acadêmica se entrelaça com a história do desenvolvimento e da institucionalização da pesquisa em educação no país, desde os anos 1960. Como já indicado no início do texto, consultamos artigos de revistas, artigos nos Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas e, também, na Revista Psicologia Educacional, nas bases do Scielo, da Revista Brasileira de Educação, da ANPEd, entre outras fontes (incluindo seu currículo lattes). Não poderíamos deixar de fora alguns livros de Bernardete, os quais se constituem em fontes permanentes de referência para quem estuda a formação de professores, a avaliação e a pesquisa.
Os estudos da pesquisadora indicam seu comprometimento com a escola, com a formação humana, com a possibilidade de uma sociedade mais letrada e inclusiva. Bernardete aprendeu a ler em casa. Em um meio letrado e com certeza instigador, promotor de sua curiosidade e busca do saber. Tal fato não se constitui em realidade para grande parte dos brasileiros e brasileiras, que vivem em condições precárias de subsistência6.
Aquela menina atenta, perspicaz, afetiva, desenvolveu um modo de vida coerente com seus princípios. Seus conhecimentos e relações produziram e transformaram nossa história educacional recente. Em suas palavras, em entrevista à Walter Garcia: “aprendi a pensar que escrever cientificamente na área de Ciências Humanas é uma questão muito delicada porque cada termo que você usa pode estar carregado de muitos significados e que deixar clara a perspectiva da investigação é essencial”.
Os limites deste texto impediram de discutir a ampla produção acadêmica de Bernardete Gatti. Apresentamos um recorte com o intuito de provocar o leitor a deleitar-se nos estudos desenvolvidos pela autora. Tivemos a felicidade de termos Bernardete em nossa trajetória acadêmica. Fica aqui o convite para lerem, discutirem e problematizarem suas contribuições para a pesquisa sobre formação de professores.