INTRODUÇÃO
Maria José Esteves de Vasconcellos, psicóloga originária da área da terapia familiar e professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), brinda os leitores com o excelente livro Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência ,1 lançado em 2002 e já em sua 11a edição. Seis capítulos, bem distribuídos em 269 páginas, exercerão profundas implicações naqueles que desejam compreender os princípios subjacentes às políticas públicas brasileiras para a educação médica.
Se você é um acadêmico pragmático, que não se atém a refletir sobre filosofia e ciência, ao ler esse livro perceberá como a hegemonia da ciência tradicional restringiu aos autores importantes dos séculos XVII, XVIII e XIX a fundação dos pilares da ciência. Entretanto, entre perplexo e maravilhado, descobrirá que, durante toda a segunda metade do século XX, muitos outros cientistas trabalharam para lançar as bases do pensamento sistêmico. Constatará ainda que o paradigma da ciência estende seus tentáculos para quase todas as áreas da vida cotidiana, influenciando nosso modo de ser e de estar no mundo.
O ponto central do livro, já representado por seu título, é a proposta do pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência, defendida pela autora de forma didática, além de bem embasada histórica e teoricamente. No início do livro, Maria José Esteves de Vasconcellos conta de forma muito fluida a própria história profissional e a aproximação dela ao pensamento sistêmico, e, simultaneamente, apresenta alguns dos autores que embasarão a sua proposta.
A parte I – “Rastreando as origens do conhecimento científico” – , apresenta, em dois capítulos basilares, as noções de paradigma e epistemologia.
No primeiro capítulo, esses dois conceitos amplamente utilizados, com significados muitas vezes conflitantes, são objeto de um posicionamento claro da autora sobre os fundamentos e sentidos que serão considerados por ela no percurso do livro.
O segundo capítulo destaca momentos marcantes no desenvolvimento da concepção de conhecimento científico. Consideramos esse capítulo imprescindível, na medida em que conhecer a historicidade do desenvolvimento da ciência permite ao leitor tomar consciência das origens dos fenômenos vivenciados em vida e das crenças que determinam suas convicções e seus posicionamentos profissionais e até mesmo pessoais. Percebe-se aqui não somente a importância do surgimento da ciência para a evolução do mundo, mas também a origem de fenômenos tão presentes e controversos atualmente, como a separação entre ciência e filosofia e entre corpo e mente.
A parte II – “Acompanhando as transformações do paradigma da ciência” – desenvolve-se em três capítulos que apresentam respectivamente: o delineamento do paradigma tradicional da ciência, as dimensões do paradigma emergente da ciência contemporânea e o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência – a cereja do bolo confeitado por Maria José.
Em nota de rodapé, a autora concede ao leitor que julga conhecer bem o paradigma da ciência tradicional a opção de pular o capítulo 3 e ir direto ao 4. Recomendamos o capítulo 3 mesmo aos mais experientes, uma vez que, desde Descartes, muitos cientistas passaram a fazer ciência, deixando de pensar a ciência; sua leitura fácil apresenta a ciência clássica, ou tradicional, sob o ponto de vista de três pressupostos fundamentais: a simplicidade, a estabilidade e a objetividade. Um quadro de referência de termos próprios da ciência tradicional (previsibilidade, neutralidade, classificação, impessoalidade, racionalidade, multidisciplinaridade, relações causais lineares, atitude “ou-ou”, leis gerais, certeza etc.) ajudará o leitor a se situar em relação a esse paradigma de ciência e ao seu modo de ver o mundo.
O capítulo 4 apresenta o paradigma emergente a partir de pressupostos-espelho daqueles apresentados anteriormente: à simplicidade sobrepõe-se a complexidade; à estabilidade, a instabilidade; e à objetividade, a intersubjetividade. O texto, de leitura não tão fácil como o anterior para os não iniciados na física, desenrola-se também com o auxílio de um quadro de referência de termos que se encaixam nos três pressupostos utilizados para explicar o novo paradigma. Aqui o leitor poderá se aproximar de termos (como transdisciplinaridade, desordem, crise, espaços consensuais, conexões, contextualizações, múltiplas verdades, princípio dialógico, foco nas relações, redes de redes, entre outros) caros à educação necessária ao século XXI.
O capítulo 5, apresentando o cientista novo-paradigmático, defende por que a autora entende o pensamento sistêmico como o novo paradigma da ciência. Aqui o leitor que está vivendo a transição de paradigma ou que já fez a ultrapassagem, mas ainda se sente diferente da maioria, às vezes com dificuldade em perceber-se aceito pelos pares, às vezes com culpa por compreender o mundo e portar-se de forma complexa e intersubjetiva, poderá adquirir o argumento que lhe faltava para se apropriar desse novo paradigma, transformando definitivamente sua postura epistemológica diante das questões da vida e do trabalho, pois são indissociáveis.
Finalmente, a parte III – “Um adendo necessário: teorias de sistemas” – presenteia o leitor interessado em se aprofundar nesse estudo com um último capítulo, que rastreia as origens das abordagens teóricas dos sistemas; a autora leva o leitor a passear entre a teoria geral dos sistemas e a cibernética, oriundas do paradigma tradicional, e seus equivalentes mais recentes, como o construtivismo e a si-cibernética, a teoria da autopoiese, a biologia do conhecer, a nova teoria geral dos sistemas e a teoria geral dos sistemas autônomos.
Embora o paradigma da ciência tradicional ainda seja hegemônico em nossa sociedade ocidental e capitalista, várias são as evidências de que vivemos um momento de transição paradigmática. As crises que vivenciamos atualmente, desde políticas, no cotidiano da nossa vida pessoal, até aquelas específicas da educação médica, como a dificuldade em avaliar os estudantes e a epidemia de transtornos mentais entre estudantes e profissionais, têm sua origem na convivência e no embate entre grupos, cada vez maiores, que veem o mundo sob lentes diferentes da maioria, sem essa noção no plano consciente. A revolução digital inaugurou uma nova era histórica e mudou a forma como as pessoas pensam e aprendem; isso exige de nós, professores e profissionais de saúde formados no século passado, uma abertura para a mudança, deixando de lado nossas atitudes neutras, objetivas, fragmentadoras, reducionistas e com foco no objeto, para a ampliação do olhar em direção a um objeto que emerge da distinção do(s) observador(es), quando em interação com outros objetos e com o meio em que vivem.
O livro Pensamento sistêmico pode ser o pontapé inicial para os que se lançam na academia e representar a linha de chegada para os que já iniciaram suas reflexões sobre seus papéis, de professor ou de estudante, nos tempos atuais. Ele deve ser lido e debatido por todos aqueles que se comprometem com a formação de profissionais para o século XXI.