INTRODUÇÃO
Os transtornos mentais comuns (TMC), ou transtornos mentais menores, são os mais frequentes e menos graves entre os transtornos mentais, sendo relacionados a grande sofrimento mental, dificuldades nos relacionamentos e perda de qualidade de vida1. Os TMC englobam depressão não psicótica, ansiedade e sintomas somatoformes, como cansaço, esquecimento, irritação e diminuição da concentração2.
Estudos sugerem que os TMC atinjam de 9% a 12% da população mundial3. Não existem pesquisas que apresentem os índices de prevalência de problemas mentais no âmbito nacional, mas se estima que a prevalência de TMC no Brasil seja de 12% a 15% em todas as faixas etárias3. As faculdades de Medicina propiciam um ambiente estressor que pode prejudicar a qualidade de vida do estudante, seu desempenho acadêmico e bem-estar psicossocial, além de causar sofrimento mental e dificuldade de relacionamento4,5. A tensão presente na graduação médica inclui competição no processo de seleção do curso, necessidade de adquirir muitos conhecimentos, dificuldade na administração do tempo, individualismo, responsabilidades e expectativas sociais acerca do papel do médico1. Em quatro estudos transversais com uso do Self Reporting Questionnaire (SRQ-20), as prevalências de TMC em estudantes de Medicina variaram de 33,6% a 44,7%1,5-7.
A perda da saúde mental está relacionada com diminuição da produtividade do estudante, maior dificuldade de relacionamento e sofrimento mental5. Nesse sentido, a escola médica deve ter a capacidade de cuidar, respeitar, escutar e ajudar o estudante de Medicina a desenvolver mecanismos para lidar com a pressão a que estará submetido no cotidiano acadêmico e profissional, dando-lhe suporte psicológico e pedagógico9.
Este trabalho tem como objetivo identificar a prevalência de TMC entre os estudantes do curso de Medicina da Universidade Regional de Blumenau (Furb) e determinar associações com possíveis fatores de risco.
MÉTODOS
Foi realizado, entre agosto e outubro de 2017, estudo transversal com alunos do primeiro ao sexto ano do curso de Medicina da Universidade Regional de Blumenau (SC). Para participar da pesquisa, os alunos deviam estar regularmente matriculados no curso de Medicina e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A amostra do estudo foi composta por 340 alunos matriculados no curso de Medicina, entregando-se os questionários durante a aula no momento da pesquisa; os alunos da nona à décima segunda fase (internato) foram abordados no intervalo de suas atividades. Foram entregues 342 questionários, sendo que 340 alunos (99,4%) responderam às perguntas e assinaram o TCLE. A amostra corresponde a 71,13% do total de alunos matriculados (478 acadêmicos) no curso de Medicina da Furb.
Foram aplicados dois questionários anônimos de autorresposta, um para coleta de dados sociodemográficos, psicossociais e uso de álcool e substâncias, e outro para rastreamento de transtornos mentais comuns (TMC). O primeiro, elaborado pelos autores, continha dados socioeconômicos (semestre de estudo, idade, sexo, etnia, estado civil, procedência, espiritualidade, religião, renda familiar e renda própria), informações sobre o curso e aprendizagem (motivo de escolha, satisfação com a escolha da profissão, pensamento de desistência, reprovação em matérias, carga horária média diária de aulas, carga horária média diária de estudos extraclasse, horas de lazer por dia, sentimento em relação às horas de lazer, número de faltas por semana e realização de plantão), fontes de tensão (cobrança pessoal, pressão social e de familiares e profissionais), redes de apoio (morar sozinho, com a família ou amigos, relação com os pais, dificuldade para fazer amigos, sentimento de rejeição por amigos ou outros da mesma idade e sentimento de que recebe apoio emocional necessário) e história médica pregressa (doença psiquiátrica diagnosticada por médico e medicação usada, história de tratamento medicamentoso psicoativo sem receita médica e realização de psicoterapia). A frequência de uso de álcool e outras substâncias foi avaliada por meio de questões referentes ao uso, nos últimos três meses, de álcool, tabaco, maconha, cocaína, crack, anfetamina, inalantes, sedativos, alucinógenos, opioides e outras substâncias. Para o rastreamento de TMC, foi aplicado o Self-Reporting Questionnaire-20 (SRQ-20), que é o instrumento elaborado pela Organização Mundial da Saúde para este fim10. Esse instrumento, na versão em português, é formado por 20 perguntas. Por meio dele avaliam-se transtornos não psicóticos (ansiedade, depressão e sintomas somatoformes), de modo que a presença dos sintomas avaliados indica os casos suspeitos de TMC10.
Na análise dos dados, os alunos foram classificados em dois grupos de acordo com a pontuação no SRQ-20: (a) casos não suspeitos de TMC – homens com pontuação inferior ou igual a cinco e mulheres com pontuação inferior ou igual a sete; (b) casos suspeitos de TMC – homens com pontuação superior ou igual a seis e mulheres com pontuação superior ou igual a oito5. Nesses pontos de corte, a sensibilidade e especificidade do SRQ-20 para homens são 89% e 81%, enquanto para mulheres são 86% e 77%, respectivamente11.
Os indivíduos considerados casos suspeitos de TMC foram comparados aos demais em relação aos dados obtidos pelo questionário sociodemográfico, psicossocial e uso de álcool e outras substâncias, evidenciando-se as características mais presentes nos casos suspeitos de TMC. Os dados foram inseridos numa planilha eletrônica do programa Microsoft Excel® 2013 e analisados com uso do programa BioEstat, versão 5.3. Na análise dos dados foi usado o teste estatístico qui-quadrado de Pearson por análise bivariada e contagem de frequências. Foram consideradas variáveis significantes aquelas cuja associação identificada teve nível de significância (p) inferior a 0,05. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa em Seres Humanos (CEPH) da Universidade Regional de Blumenau em 16 de dezembro de 2016 (Parecer no 1.872.361).
RESULTADOS
A maioria da amostra era feminina (66,5%), 57,9% tinham entre 20 e 23 anos, e 54,1% indicaram seguir alguma religião (Tabela 1). Na distribuição entre os ciclos, a maioria dos alunos pertencia ao ciclo básico e ao ciclo clínico, 71,1% informaram deixar de assistir, em média, a menos de uma aula por semana, 53,2% realizam, no mínimo, quatro horas semanais de atividade extraclasse. 46,3% informaram morar sozinhos, 18,6% com companheiro(a) e 35,1% com a família. Dessa amostra, 92,6% afirmaram não apresentar sintomas de depressão maior, 85% informaram não ter consumido maconha, 76,8% não consumiram tabaco e 92% consumiram álcool nos três meses que antecederam a aplicação dos questionários. Nenhum desses fatores, como mostra a Tabela 1, apresentou associação significante com o desenvolvimento de transtornos mentais comuns.
Variável | N | % | %TMC | P (valor) | |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | 0,066 | ||||
Masculino | 114 | 33,5 | 28,9 | ||
Feminino | 226 | 66,5 | 71,1 | ||
Idade | 0,53 | ||||
Até 19 anos | 61 | 17,9 | 16,8 | ||
20 a 23 anos | 197 | 57,9 | 60,7 | ||
24 anos ou mais | 81 | 23,8 | 22 | ||
Segue alguma religião | 0,579 | ||||
Sim | 279 | 54,1 | 19,1 | ||
Não | 61 | 45,9 | 16,8 | ||
Ciclo | 0,512 | ||||
Básico | 134 | 39,4 | 41,6 | ||
Clínico | 134 | 39,4 | 36,4 | ||
Internato | 72 | 21,2 | 22 | ||
Número de aulas a que não assisto, em média, por semana | 0,054 | ||||
Menos que uma aula | 241 | 71,1 | 64,5 | ||
Uma a duas aulas | 87 | 25,7 | 32 | ||
Três ou quatro aulas | 7 | 2,1 | 2,3 | ||
Mais que quatro aulas | 4 | 1,2 | 1,2 | ||
Carga horária diária média de estudo extraclasse, por semana | 0,796 | ||||
Menor que 2 h | 46 | 13,5 | 13,9 | ||
Entre 2 e 4 h | 112 | 32,9 | 32,9 | ||
Maior que 4 h | 181 | 53,2 | 52,6 | ||
Quanto à moradia | 0,091 | ||||
Moro sozinho | 157 | 46,3 | 52 | ||
Moro com colega | 63 | 18,6 | 17,3 | ||
Moro com família | 119 | 35,1 | 30,6 | ||
Apresenta depressão maior | 0,075 | ||||
Sim | 25 | 7,4 | 9,8 | ||
Não | 315 | 92,6 | 90,2 | ||
Uso de maconha nos últimos três meses | 0,342 | ||||
Sim | 51 | 15 | 16,9 | ||
Não | 288 | 85 | 83,1 | ||
Uso de álcool nos últimos três meses | 0,087 | ||||
Sim | 311 | 92 | 89,6 | ||
Não | 27 | 8 | 10,4 | ||
Uso de tabaco nos últimos três meses | 0,329 | ||||
Sim | 79 | 23,2 | 25,4 | ||
Não | 261 | 76,8 | 74,6 |
Fonte: Elaboração dos autores, 2017.
A prevalência de transtorno mental comum (TMC) na população estudada foi de 50,9%, o que corresponde a 173 alunos classificados como grupo suspeito de TMC. A Tabela 2 apresenta associações entre prevalência de TMC e fatores acadêmicos e sociais. Cerca de 60,6% da amostra nunca pensaram em largar o curso. Sobre a carga horária semanal de atividades extracurriculares, 64,4% dos alunos tinham de 8 horas a 14 horas. Em relação às horas de lazer, 44,8% apresentaram menos de duas horas de lazer por semana, e 66% se sentem insatisfeitos com as horas de lazer; 87,2% opinaram que a carga horária de atividades acadêmicas é extensa. A competitividade foi indicada por 85,1% dos estudantes. Não sentir dificuldades em fazer amigos foi indicado por 73,7% da amostra. Cerca de 77,2% dos alunos não sentem rejeição pelos amigos ou outras pessoas da mesma faixa etária, e 66,8% sentem que recebem apoio emocional necessário.
Variável | N | % | %TMC | P (valor) | |
---|---|---|---|---|---|
Já pensou em abandonar o curso | < 0,01 | ||||
Não, nunca | 206 | 60,6 | 45,1 | ||
Sim, mas não mais | 107 | 31,5 | 43,4 | ||
Sim, ainda penso | 27 | 7,9 | 11,6 | ||
Carga horária diária média de aulas/atividades extracurriculares por dia | 0,035 | ||||
Entre 4 h e 8 h | 72 | 21,2 | 23,1 | ||
Entre 8 h e 12 h | 219 | 64,4 | 58,4 | ||
Mais que 12 h | 49 | 14,4 | 18,5 | ||
Horas de lazer por dia | 0,004 | ||||
Menos de 1 h | 77 | 22,7 | 28,3 | ||
Menos de 2 h | 152 | 44,8 | 46,8 | ||
Menos de 3 h | 81 | 23,9 | 20,2 | ||
Mais que 3 h | 29 | 8,6 | 4,6 | ||
Como você se sente quanto às horas disponíveis para lazer | < 0,01 | ||||
Satisfeito | 80 | 23,7 | 14,5 | ||
Indiferente | 34 | 10,1 | 9,9 | ||
Insatisfeito | 223 | 66 | 75,6 | ||
Carga horária extensa | 0,047 | ||||
Sim | 294 | 87,2 | 90,8 | ||
Não | 43 | 12,8 | 9,2 | ||
Competitividade | 0,003 | ||||
Sim | 286 | 85,1 | 90,8 | ||
Não | 50 | 14,9 | 9,2 | ||
Sente dificuldade em fazer amigos | < 0,01 | ||||
Sim | 89 | 26,3 | 37 | ||
Não | 250 | 73,7 | 63 | ||
Sente rejeição por amigos ou outros da mesma faixa etária | < 0,01 | ||||
Sim | 77 | 22,8 | 32,6 | ||
Não | 260 | 77,2 | 67,4 | ||
Sente que recebe o apoio emocional necessário | < 0,01 | ||||
Sim | 223 | 66,8 | 55,6 | ||
Não | 111 | 33,2 | 44,4 |
Fonte: Elaboração dos autores, 2017.
Considerando-se que todos os fatores apresentados na Tabela 2 apresentaram associação estatística significante (p < 0,05), a análise por qui-quadrado mostrou que foram encontrados proporcionalmente mais estudantes com transtornos mentais comuns entre aqueles que nunca pensaram ou não pensam mais em abandonar o curso, aqueles com cargas horárias diárias de atividades acadêmicas superiores a oito horas, tinham menos de duas horas de lazer por dia, mostraram insatisfação com as horas disponíveis para lazer, consideraram ter cargas horárias extensas de atividades, são competitivos, sentiam dificuldade para fazer amigos, sentiam rejeição por amigos de mesma faixa etária e não sentiam receber apoio emocional necessário.
A Tabela 3 apresenta associações entre prevalência de TMC e indicadores de saúde mental. A maioria dos alunos afirmou existência de cobrança pessoal (94,4%), pressão social (73,3%), dos professores e profissionais da área (72,4%), mas inexistência de pressão familiar (57,6%); 77,6% dos participantes afirmaram não apresentar transtornos psiquiátricos, e 91,5% não apresentaram transtorno de ansiedade generalizada; 80,8% dos participantes informaram não utilizar medicação psicoativa; 87,6% não fazem uso de antidepressivo; 67,8% dos participantes afirmaram nunca ter frequentado psicoterapia; e 50,6% informaram ter feito uso de drogas recreativas nos três meses anteriores à data da pesquisa. Os fatores apresentados na Tabela 3 apresentaram associação estatística significante (p < 0,05), de modo que a análise por qui-quadrado mostrou que foram encontrados proporcionalmente mais participantes com transtornos mentais comuns entre aqueles que afirmaram haver cobrança pessoal, pressão social, pressão dos professores e profissionais da área, pressão familiar, doença psiquiátrica diagnosticada por médico, transtorno de ansiedade generalizada, fazer uso de medicação psicoativa, usar antidepressivo, frequentar atualmente ou ter abandonado psicoterapia e ter feito uso de drogas recreativas nos três meses anteriores à data da pesquisa.
Variável | N | % | %TMC | P (valor) | |
---|---|---|---|---|---|
Cobrança pessoal | 0,0002 | ||||
Sim | 320 | 94,4 | 98,8 | ||
Não | 19 | 5,6 | 1,2 | ||
Pressão social | 0,001 | ||||
Sim | 247 | 73,3 | 80,9 | ||
Não | 90 | 26,7 | 19,1 | ||
Pressão dos professores ou profissionais da área | 0,0003 | ||||
Sim | 244 | 72,4 | 80,9 | ||
Não | 93 | 27,6 | 19,1 | ||
Pressão familiar | 0,001 | ||||
Sim | 143 | 42,4 | 50,9 | ||
Não | 194 | 57,6 | 49,1 | ||
Apresenta doença psiquiátrica diagnosticada por médico | 0,001 | ||||
Sim | 76 | 22,4 | 29,5 | ||
Não | 263 | 77,6 | 70,5 | ||
Apresenta transtorno de ansiedade generalizada | 0,005 | ||||
Sim | 29 | 8,5 | 12,7 | ||
Não | 311 | 91,5 | 87,3 | ||
Faz uso de medicação psicoativa | 0,001 | ||||
Sim | 65 | 19,2 | 26,2 | ||
Não | 273 | 80,8 | 73,8 | ||
Uso de antidepressivo | 0,004 | ||||
Sim | 42 | 12,4 | 17,3 | ||
Não | 298 | 87,6 | 82,7 | ||
Sobre psicoterapia | 0,001 | ||||
Nunca frequentou | 230 | 67,8 | 59,5 | ||
Abandonou antes de receber alta | 46 | 13,6 | 19,1 | ||
Frequenta atualmente | 27 | 8 | 11 | ||
Recebeu alta | 36 | 10,6 | 10,4 | ||
Uso de drogas recreativas nos últimos três meses | 0,02 | ||||
Sim | 171 | 50,6 | 67,8 | ||
Não | 167 | 49,4 | 79 |
Fonte: Elaboração dos autores, 2017.
DISCUSSÃO
A prevalência de transtornos mentais comuns entre os estudantes de Medicina em universidades do Brasil mostrou-se variável nos estudos analisados1,5-7,12,13. Na Universidade Regional de Blumenau (Furb), a prevalência de casos suspeitos de TMC foi de 50,9%, o que representa maior taxa em relação aos dados encontrados nos estudos analisados: pesquisas realizadas na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no curso de Medicina de Botucatu (SP) e na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) encontraram prevalências de 33,6%, 44,7% e 37,1%, respectivamente1,5,6.
Características da realidade da vida universitária e do processo de ensino têm sido relatadas como fontes geradoras de conflitos, afetando negativamente a saúde mental e o desempenho acadêmico dos alunos7. Quando comparamos a prevalência dos estudantes universitários com a da população geral, o valor encontrado é maior em relação às taxas populacionais, usando-se o mesmo instrumento de rastreamento (SRQ-20)1,12,13,14. Um estudo populacional realizado na cidade de Olinda (PE) evidenciou que 35% da amostra tinham TMC; já em São Paulo (SP) e Santa Cruz do Sul (RS), pesquisas feitas em programas de saúde da família encontraram que 24,95% e 38% da amostra, respectivamente, eram classificados como casos suspeitos8,12,13. O resultado encontrado possivelmente se deve ao fato de os estudantes de Medicina pertencerem a um grupo vulnerável a situações estressantes14.
O ambiente adverso da faculdade de Medicina faz com que o estudante experimente três fases psicológicas na graduação14: euforia, quando há percepção de onipotência; decepção, que se inicia nos dois primeiros anos do curso, quando há alteração dos hábitos cotidianos; a última fase, que ocorre no internato, reflete um período de adaptação e grande competitividade pela residência14. Estudos em outras universidades de Medicina do País mostraram associação entre os ciclos básico e clínico do curso e maiores prevalências de TMC, em relação a um menor valor no período do internato1,5. A menor prevalência de transtornos mentais comuns nos dois últimos anos da faculdade pode ser explicada por conta de fatores protetores, como, por exemplo, idade maior que 20 anos, maior maturidade e habilidade para lidar com os estressores5.
Uma característica do curso de Medicina é a carga horária extensa de aulas15. Além disso, os acadêmicos de Medicina ainda dedicam parte de seu tempo livre a outras atividades, como estudo individual, ligas acadêmicas, iniciação científica, monitorias e estágios15. Foi demonstrado que o menor número médio de horas de lazer por dia é associado a maior frequência de TMC, indicando que este pode ser um fator de risco. A prevalência de TMC entre o grupo que afirma ter menos de uma hora de lazer em média por dia foi 2,3 vezes maior que a encontrada no grupo que respondeu ter três horas de lazer em média por dia.
A história médica pregressa de doença psiquiátrica mostrou relação com TMC, sendo transtornos de ansiedade generalizada e depressão maior os mais presentes, com prevalências de 8,5% e 7,4%, respectivamente. Pode-se supor que parte dos acadêmicos que está no grupo suspeito de TMC buscou assistência médica, porque tem diagnósticos específicos de transtornos mentais. Dentro da população de casos suspeitos de TMC, 122 estudantes (70,5%) responderam não ter doença psiquiátrica diagnosticada. Neste grupo, para aqueles que não realizaram avaliação psiquiátrica recente, caberia investigação por profissionais da saúde mental6.
Transtorno mental comum demonstrou estar relacionado com maior uso de antidepressivos e ansiolíticos, sendo que apenas 28,6% do grupo que usa antidepressivos não apresentaram TMC. Desta forma, apesar do uso da medicação, 71,4% dos estudantes ainda estavam em sofrimento mental. Neste sentido, má adesão ao tratamento e desafios sociais crônicos relacionados ao curso de Medicina poderiam explicar a ausência de resposta ao uso da medicação16. Ter concluído tratamento com psicoterapeuta mostrou ser fator protetor de TMC, de acordo com estudos que mostraram eficácia da psicoterapia no tratamento da depressão de leve a moderada17.
Indivíduos insatisfeitos com o suporte emocional fornecido pelo grupo social, família e amigos são mais suscetíveis a transtornos mentais, principalmente sintomas depressivos18,19. Sentir que não recebe o apoio emocional que necessita mostrou ser fator de risco para TMC, como apresentado na Tabela 2, similarmente ao encontrado em estudos anteriores com alunos de Medicina1,5,6. Muitos acadêmicos deixam o lar familiar quando iniciam a graduação em Medicina20. Dificuldade para fazer amigos e se sentir rejeitado levam a uma deficiência na composição da nova rede de apoio local1,6 e demonstraram relação com maiores prevalências de TMC na Furb. O grupo de alunos que respondeu “sentir dificuldade para fazer amigos” apresentou maior proporção de participantes com TMC do que o grupo que respondeu “não”, com 71,9% e 43,6%, respectivamente. Morar com a família ou amigos deveria fornecer uma rede de apoio protetora para desenvolvimento de transtorno mental21, mas, no presente, estudo morar sozinho não mostrou associação significativa com prevalência de TMC.
Mostraram-se com maior prevalência de TMC os alunos que classificaram como fontes de tensão carga horária extensa, competitividade, cobrança pessoal, pressão social, familiar, de professores e profissionais da área. A intensa demanda e competição durante o processo de educação médica colabora para produzir estresse nos estudantes. Há uma alteração de autoimagem, pois o aluno, antes reconhecido como capaz e bem-sucedido, se depara com falhas e resiste em aceitá-las. Além disso, há uma crescente responsabilidade em virtude do papel que o médico desempenha20.
O uso de álcool e outras substâncias (tabaco, maconha, cocaína, crack, anfetaminas, êxtase, inalantes, hipnóticos/sedativos, alucinógenos e opioides) mostrou associação significante com a presença de TMC, o que indica constituir um fator de risco. Já o consumo isolado de cada substância não demonstrou relação estatística significante, talvez relacionada à baixa frequência de uso de cada substância individual. Na população estudada, 92% responderam ter usado álcool nos últimos três meses, valor superior ao de outros cursos de Medicina no Brasil22,23. No curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (MG), 66,34% afirmaram consumir álcool22. Já entre estudantes de Medicina de Salvador (BA), 87,2% responderam ter consumido alguma bebida alcoólica nos últimos 12 meses23. A prevalência do uso de maconha na amostra foi de 15%, compatível com estudos realizados em oito escolas médicas do Estado de São Paulo, no qual os valores encontrados variaram de 6% a 16%24.
O presente estudo não encontrou significância entre gênero e prevalência de TMC, resultado que reproduz o encontrado na literatura pesquisada, na qual os sexos feminino e masculino apresentam prevalências sem diferença estatística relevante4-7. Neste estudo, nenhuma religião demonstrou relação significativa com TMC (Tabela 1), diferentemente de outros estudos, que identificaram associação entre não seguir alguma religião com maior prevalência de TMC5 ou com a religião espírita, considerada fator de risco quando comparada a outras ou a nenhuma religião1.
Um possível viés do estudo foi o número reduzido de estudantes do internato que responderam ao questionário, devido à dificuldade de encontrá-los, por terem poucas aulas teóricas em salas de aula ou estarem em estágio fora da cidade. Outro ponto a enfatizar é que, embora o instrumento SRQ-20 tenha alta sensibilidade e especificidade para rastreamento de casos de TMC, o diagnóstico psiquiátrico formal deve ser realizado por profissional da saúde mental11. Como características do estudo transversal, as variáveis e o desfecho são concomitantemente estudados, o que impossibilita inferir sobre a causalidade das associações analisadas. Todavia, esses estudos norteiam sentidos em que a variável e o desfecho estudado se associam6.
CONCLUSÃO
Os resultados encontrados indicam maior prevalência de casos suspeitos de TMC na população estudada do que em outros cursos de Medicina brasileiros e do que na população geral. Os acadêmicos que têm história médica pregressa de doença psiquiátrica, que não consideram ter uma rede de apoio psicológica adequada e que não têm bons relacionamentos com pessoas da mesma idade têm maior risco de ter TMC. Pode-se concluir também que os estudantes em sofrimento mental usam mais medicações psicoativas e mais álcool e outras substâncias. Essas informações fornecem subsídios para ações de prevenção e cuidado da saúde mental. Propõe-se investigar características do currículo do curso de Medicina da Furb, em especial do internato, que possivelmente estejam contribuindo para manutenção de altas prevalência de TMC, mesmo na presença de fatores protetores. Recomenda-se a estruturação de um programa de apoio à saúde mental dos estudantes, a fim de melhorar a qualidade de vida e a formação médica.