INTRODUÇÃO
Os movimentos sociais, organizados em torno da reforma sanitária, contribuíram para a institucionalização do processo de formação em saúde no país, de tal maneira que a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 200, que compete ao Sistema Único de Saúde (SUS) “ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde”1. Essa formação deve estar em consonância com as reais necessidades em saúde da população, e, sendo assim, promoveu-se a inclusão da perspectiva da social accountability (responsabilidade social) como um elemento central para o paradigma de educação na saúde para o novo milênio2.
Segundo essa perspectiva, os processos formativos em saúde, de pesquisa e oferta de serviços, devem ser orientados e construídos em conjunto com as prioridades de saúde da comunidade - principalmente aquelas mais vulneráveis3. Além disso, o SUS traz a equidade como um de seus princípios doutrinários, de tal maneira que a política de saúde reconheça a pluralidade dos grupos populacionais e suas necessidades específicas, a fim de que sejam atendidos até o limite do que o sistema puder oferecer para todos4. Assim, a graduação em Medicina deve ter como compromisso tornar o futuro profissional capacitado para reconhecer tais diferenças entre seus pacientes, a fim de promover cuidados guiados pela equidade.
Isso se torna ainda mais importante no contexto da pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19), doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, já que se vivencia uma nova prioridade de saúde. Inicialmente, ponderava-se que uma maior vulnerabilidade à doença estaria relacionada principalmente às pessoas idosas e com comorbidades crônicas. Entretanto, ao longo da pandemia, explicitou-se que essa compreensão de vulnerabilidade deveria ser aprimorada para pessoas e comunidades com risco aumentado de exposição, adoecimento com gravidade e/ou morte. Entre esses(as) sujeitos(as) e coletivos, destaca-se aqueles social e historicamente marginalizados como as população negra e indígenas, pessoas com deficiência/diversidade funcional e os membros da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) (5), (6.
Nesse sentido, o que se tem observado ao longo da pandemia da Covid-19 é um despreparo profissional para um cuidado integral em saúde que considere essas pessoas e comunidades invisibilizadas. Se, de acordo com Frenk et al. (7, os currículos e documentos legais orientadores da formação em saúde precisam ir ao encontro das reais necessidades em saúde das pessoas e comunidades, a atual pandemia tem demonstrado que precisamos compreender como os processos formativos em saúde consideram as questões das vulnerabilidades e diversidades, como raça/etnicidade e identidade de gênero e sexualidade.
Assim, o presente ensaio buscará analisar criticamente as questões das diversidades em relação às Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina (DCN)8. Uma vez que a demanda do sistema de saúde por profissionais comformação generalista, humanitária, reflexiva9 e, sobretudo, atenta às necessidades de saúde de populações historicamente marginalizadas torna-se ainda mais evidente no momento atual, apresenta-se este ensaio composto de três blocos temáticos: “Análise comparativa das DCN de 200110 e 2014 na perspectiva da diversidade”,“Como podemos problematizar as questões da diversidade a partir das DCN de 2014?” e “As DCN de 2014 e o que precisamos tornar mais evidente na busca pela diversidade no ensino médico”.
Além disso, o percurso reflexivo provém de experiências, inquietações e debates pessoais, como educandos(as) e educadores(as), em diálogo com a literatura indexada sobre o tema. Dessa forma, pretende-se problematizar com este ensaio como os cursos de Medicina podem promover avanços em seus processos de ensino-aprendizagem em relação às diversidades - biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética - e aos demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana, como previsto nas DCN8. Ademais, esse debate poderá aprimorar a responsabilidade social da(s) escola(s) médica(s) no sentido da promoção da justiça social pela redução de iniquidades a partir da ampliação das perspectivas de cuidados, decorrentes desse aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem.
ANÁLISE COMPARATIVA DAS DCN DE 2001 E 2014 NA PERSPECTIVA DA DIVERSIDADE
A publicação das DCN para os cursos de Medicina, no ano de 2001, representou um marco na mudança da educação médica e do ensino e da prática em saúde no Brasil. A partir de uma proposta de aprimoramento de aspectos curriculares (organização curricular, estratégias de ensino-aprendizagem e processos de avaliação) e do perfil profissional do(a) egresso(a), pretendeu-se aperfeiçoar uma formação em saúde alinhada com os desafios do século XXI, orientando os processos formativos para as reais necessidades de saúde da população e da interprofissionalidade11), (12.
Dessa forma, observa-se uma explicitação da premência de as instituições educacionais e as políticas públicas em saúde e educação se reorganizarem e adaptarem a formação em saúde em conformidade com as necessidades, demandas e características da população. Esse aspecto pode ser observado, por exemplo, no artigo 3º da DCN que afirma que o perfil do formando tem como característica o senso de responsabilidade social e o compromisso com a cidadania, a fim de promover a saúde integral do ser humano10.
Além disso, as DCN de 2001, ao proporem um currículo para a formação médica baseado em competências e habilidades, representam o início da orientação curricular para a formação generalista, humanista e direcionada à comunidade11. Portanto, observa-se uma expansão da concepção pedagógica acerca do modelo de formação em saúde, incorporando uma perspectiva biopsicossocial em contraposição a um modelo biomédico e tecnicista, caracterizado pelos “reducionismos biologicistas”13. Destaca-se que esses reducionismos compreendem o adoecimento a partir de uma visão predominante biológica com enfoque nos processos fisiopatológicos, em que a doença se torna o elemento central do cuidado. Já em uma perspectiva biopsicossocial, busca-se ampliar essa proposta considerando os determinantes em saúde e os elementos socioculturais como integrantes do adoecimento físico, da percepção do indivíduo em sentir-se doente e do cuidado prestado11.
Apesar de representar um grande avanço na estruturação de ensino, pesquisa e serviço em saúde, no que tange à mudança de um modelo biomédico para uma compreensão biopsicossocial, ainda se apresentavam lacunas principalmente em relação à atenção primária à saúde (APS) e à saúde coletiva (SC), e, especificamente, às Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS). Vários aspectos - do acolhimento às demandas ao cuidado integral dasaúde pautados pelo reconhecimento das dimensões, subjetividades e diversidades étnico-raciais, de gênero, sexualidade, socioeconômicas e político-histórico-culturais - mostraram-se incipientes e, muitas vezes, foram ignorados na estruturação curricular e na formação médica10),(11. Dessa forma, a presença explicitada das CSHS teria a possibilidade de aprimorar as DCN de 2001 pela promoção da perspectiva de que o processo de ensino e o cuidado na saúde são fenômenos existenciais, societários, individuais e coletivos13),(14.
Com a instituição do Programa Mais Médicos em 2013, por meio da Lei nº 12.871, que previa a reformulação das DCN dos cursos de Medicina implementadas em 2014, houve a oportunidade de aprimorar as competências, os valores e as perspectivas para a concretização do perfil do(a) egresso(a) em Medicina no âmbitos da educação e da saúde. Entre esses avanços, destacam-se o reforço à orientação da formação médica voltada para o SUS e para seu fortalecimento, e a inclusão dos eixos de atenção à saúde, gestão em saúde e educação em saúde nas competências contempladas pelos cursos de Medicina11. Ademais, explicitou-se a importância das CSHS ao longo do processo formativo, assim como o reconhecimento e a compreensão do processo saúde-doença a partir da perspectiva da determinação social, reforçando a importância de questões relativas às diversidades na estruturação curricular e formação do perfil do(a) egresso(a) (8.
Para a estruturação dessas novas diretrizes no âmbito da diversidade e com base no entendimento da determinação social do processo saúde-doença, foram incluídas as abordagens e discussões de temas transversais no currículo. Esses temas envolvem conhecimentos, vivências e reflexões sistematizados acerca dos direitos humanos, das relações étnico-raciais, da história das culturas afro-brasileira e indígena e do impacto destes nas condições de saúde dessas populações, do reconhecimento à existência da diversidade de gênero e orientação sexual, assim como as relações socioeconômicas, políticas, éticas, ambientais, culturais e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana e que singularizam cada pessoa ou cada grupo social8. Todas essas adições visam aperfeiçoar a formação em saúde em relação aos aspectos da responsabilidade social como um elemento central no exercício da medicina e da promoção da justiça social, compreendida pela redução das iniquidades e desigualdades em saúde dos indivíduos e da população15),(16.
COMO PODEMOS PROBLEMATIZAR AS QUESTÕES DA DIVERSIDADE A PARTIR DAS DCN DE 2014?
O livro Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde16 apresenta uma análise da determinação social no processo de saúde e doença e mostra como essas questões perpetuam sistematicamente barreiras para um cuidado integral em saúde. Dentro das possíveis barreiras, a Política Nacional de Atenção Integral à População Negra destaca a luta pela cidadania e pelo direito à saúde pautado pela equidade, uma vez que os negros têm vivenciado historicamente os efeitos do racismo institucional e das diversas violências que estruturam a sociedade brasileira17. Tal abordagem dos aspectos de raça e etnicidade no ensino e cuidado em saúde se iniciam com a relevância da obrigatoriedade de que cadastros incluam a autodeclaração dos(as) usuários(as) e produzam dados que possam ser desagregados por raça/cor evidenciando as iniquidades em saúde. Mas, para além desse processo, é fundamental inserir como conteúdo a compreensão sobre como essas iniquidades se articulam com as práticas da atenção individual e coletiva, do ensino, da pesquisa e da gestão em saúde. Assim, a educação médica deve problematizar o racismo e suas diferentes formas de manifestação, seja pela ausência de processos de combate ao racismo institucional seja pela compreensão e postura dos profissionais, como elementos que perpetuam as iniquidades em saúde ou estabelecem processos antirracistas que visam à promoção da equidade racial, inclusive reconhecendo os piores indicadores relacionados ao tratamento da síndrome respiratória aguda grave e óbitos por Covid-19 nesse segmento populacional18.
No mesmo sentido inclusivo, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas19 aponta para a importância da formação de profissionais de saúde para atuação em contextos interculturais. A compreensão de outras racionalidades de cuidado em saúde, como em cada um dos vários sistemas tradicionais indígenas, explicita a necessidade do aprimoramento de competências culturais que perpassam as práticas de cuidado individual e coletivo, de gestão e de educação em saúde. Exemplo disso é o fato de que orientações extremamente importantes no combate à Covid-19, como lavar as mãos frequentemente e utilizar máscaras e álcool em gel, são interpretadas pelos povos indígenas conforme suas especificidades culturais, exigindo comunicação culturalmente competente20),(21. Ademais, materiais informativos e campanhas não alcançarão os indígenas se não estiverem disponíveis nos idiomas nativos22.
Destaca-se que a competência cultural está relacionada a um conjunto de conhecimentos, comportamentos e atitudes que promovam a compreensão das diferenças culturais e o respeito a elas23. Ademais, é necessário ter uma postura de humildade cultural que reitera ações antiopressões do não saber e do aprender a aprender, como descrito nas DCN8),(23.
Já a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais24 problematiza as violências decorrentes das questões de identidade de gênero e orientação sexual. Observa-se que há um processo de cuidado em saúde que pressupõe a sexualidade dos(as) sujeitos(as) a partir de uma perspectiva cisgênera (que a identidade de gênero tem correspondência com o gênero atribuído à genitália) e heterossexual. Nesse sentido, a cis-heterossexualidade presumida e a visibilidade seletiva em relação às pessoas acabam por promover barreiras e violências para o cuidado integral em saúde, atreladas a um discurso majoritário da “não diferença”25),(26. Com isso, as práticas de ensino em saúde, como as relacionadas aos roteiros clínicos de anamnese, podem ser aprimoradas com uma perspectiva centrada no(a) usuário(a) em relação ao nome social, à identidade de gênero e à orientação sexual27. Ademais, os processos formativos precisam considerar as múltiplas vulnerabilidades que a população LGBT enfrenta e como elas podem ser exacerbadas em momentos de pandemia, como ressalta a Organização Mundial de Saúde (OMS)28.
Ainda sobre as questões de gênero e sexualidade, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher29 faz uma articulação teórico-reflexiva sobre a importância da perspectiva de gênero nas práticas de cuidado. A partir da concepções do que é gênero, podem-se ampliar as possibilidades identitárias e afetivas dos(as) sujeitos(as), as quais precisam ser incorporadas no ensino e cuidado em saúde de forma transversal, como orientado pelo OMS30. Essa perspectiva permite questionar as masculinidades hegemônicas e as interferências no processo de cuidado em saúde, como debatido pela Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem31. Ainda são debates que ampliam as práticas de cuidado integral relacionadas aos ciclos de vida: as Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde e a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa32),(33. É premente, portanto, ampliar a formação médica para além das questões exclusivamente biológicas34 por meio, por exemplo, da articulação das ações e dos planos presentes nas políticas específicas, como reconhecimento de que a determinação social atravessa a prática médica socialmente referenciada.
Além do mais, o momento atual de pandemia, com a orientação para as práticas de quarentena domiciliar, distanciamento e isolamento social, explicitou, mais uma vez, a necessidade de refletir e atuar sobre a situação das populações que vivem em condições de aglomeração, principalmente nas periferias das grandes cidades, mas destacou, especialmente, o paradoxo de ofertar cuidado para a população em situação de rua. Segundo a Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua35, essa população é marcada pela expulsão, pelo desenraizamento e pela privação. Essas questões expõem o processo de exclusão que esses(as) sujeitos(as) vivenciam e a importância de pensarmos ações e estratégias intersetoriais para promover o cuidado e os direitos humanos. Nesse sentido, práticas interprofissionais pautadas em uma formação social e humanística36 podem ser um dos possíveis caminhos para aprimorarmos o cuidado em saúde a essa população.
Ainda sobre as questões relacionadas à exclusão, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional37 destaca que, apesar de as pessoas terem temporariamente o direito de ir e vir suspenso, os demais direitos fundamentais devem ser garantidos pelo Estado. Diante disso, essa política aponta para a importância de pensarmos o cuidado em saúde associado a vários pontos do sistema prisional e como os(as) custodiados(as) devem ser acompanhados(as) em relação aos princípios e às diretrizes do SUS. Entre estes, destaca-se a humanização que perpassa o comportamento profissional relacionado a uma postura que respeite as diferenças e sem a imposição de valores e crenças. Diante disso, a necessidade de aprimoramento do profissionalismo, proposto pela DCN8, pode abarcar o desenvolvimento de competências que tenham esse contexto ao longo dos processos formativos.
AS DCN DE 2014 E O QUE PRECISAMOS TORNAR MAIS EVIDENTE NA BUSCA PELA DIVERSIDADE NO ENSINO MÉDICO
Quando se pensa em perfil do(a) egresso(a), entende-se que há a necessidade de articulação entre os conhecimentos, as habilidades e as atitudes requeridos. O(a) egresso(a) terá que considerar não apenas as dimensões das diversidades na sua prática profissional, mas também e de forma crítica as competências pautadas no compromisso social.
De acordo com as DCN, o discente, na atenção à saúde,
[...] será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social[...]8.
A tratativa das dimensões das diversidades, fomentadas nas DCN, de modo geral, pode sofrer na sua concretização de notável marginalização, uma vez que as instituições entendam que, ao orientarem o trabalho transversal dos temas, fazem-no com pouca ênfase, de forma genérica e superficial, sem aprofundar a formação acadêmica nas políticas públicas, na relação com os movimentos sociais e programas de saúde, mesmo com a intencionalidade de ser inclusiva.
Pensar em adentrar nesses temas depende primeiramente de ressignificar a formação médica, fundamentada em um ensino cis-heteronormativo, e ainda entender que cabe à escola médica estimular ações que possam colaborar numa maior abrangência de ensino regrado no compromisso social38.
Para ser socialmente referenciada, a escola médica deve ser um espaço onde se problematizem o racismo e a discriminação dos povos originários, o capacitismo, o machismo, a LGBTfobia e todas as formas de opressão, visando à saúde mental e ao bem-estar de docentes, discentes e daqueles(as) que vão participar de forma mais enfática da vida acadêmica a partir dessa inclusão.
As instituições precisam assumir o compromisso de incorporar as temáticas não só nos textos e nas referências bibliográficas, mas também trazer a diversidade de representação para os corpos docente e discente por meio de ações afirmativas, como na constituição das relações acadêmicas com as comunidades e os movimentos sociais. Essa integração deve ser assumida com o compromisso acadêmico de mutualidade desde a construção do marco teórico até a execução das atividades vivenciais, não só ofertando parcerias pautadas no assistencialismo, mas na construção de pontes com o SUS e cenários de práticas que se articulem com as políticas e programas de saúde vigentes com ensino, pesquisa e extensão.
Entretanto, que diversidades, grupos, políticas e programas devem ser trabalhados nesses temas? No Quadro 1, apresentamos algumas dessas políticas/programas nacionais que devemos como educadores(as) ensejar aos(às) estudantes e aos(às) próprios(as) docentes das áreas não relacionadas à APS, SC e CSHS, tendo a compreensão de que, em cada município e estado, essas diretrizes assumem contornos específicos que devem ser incorporados aos currículos locais, como as políticas regionais de saúde que visam ampliar o cuidado com imigrantes e refugiados.
Política/programa | Objetivo | Ano de publicação | Documento Legal |
População indígena | Garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, de acordo com os princípios e as diretrizes do SUS, contemplando as diversidades social, cultural, geográfica, histórica e política, de modo a favorecer a superação dos fatores que tornam essa população mais vulnerável aos agravos à saúde de maior magnitude e transcendência entre os brasileiros, reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito desses povos à sua cultura. | 2002 | Portaria nº 254 de 28 de janeiro |
População em situação de rua | Indignação com a violência e a negação de direitos a esta população. Instituição do conselho técnico. | 2009 | Portaria do Ministério da Saúde n° 3.305, de 24 de dezembro |
População negra | Reconhecimento do racismo e da luta contra o racismo institucional. | 2011 | Portaria nº 992, de 13 de maio |
População LGBTQI+ | Discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. | 2011 | Portaria nº 2.826, de 6 de novembro |
Pessoas privadas de liberdade | Inclusão da população penitenciária no SUS, garantindo que o direito à cidadania se efetive na perspectiva dos direitos humanos. | 2014 | Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro |
Povos do campo, das florestas e das águas | Reconhecimento de distintos modos de viver e produzir; redução dos riscos e agravos à saúde decorrentes do processo de trabalho e das tecnologias agrícolas. | 2014 | Portaria nº 2.311, de 23 de outubro |
Pessoas com deficiência | Assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. | 2015 | Lei nº 13.146, de 6 de julho |
Povo cigano | Promover a saúde integral do povo cigano/romani, respeitando suas práticas, seus saberes e suas medicinas tradicionais, priorizando a redução da ciganofobia ou romafobia e o combate a elas. | 2018 | Portaria nº 4.384, de 28 de dezembro |
Fonte: Elaborado pelos autores.
CONCLUSÃO
Para além das DCN de 2014, a Resolução nº 569 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)39 apresenta princípios gerais para as diretrizes de todos os cursos da área da saúde. De acordo com essa resolução, as competências necessárias a um(a) egresso(a) do curso da área da saúde, como a Medicina, perpassa a defesa da vida e do SUS, com a redução de iniquidades em saúde16 e atendimento às reais necessidades sociais em saúde da população, o que reitera também a responsabilidade social da escola médica.
Para que isso ocorra, o documento aponta para a importância da integração ensino-serviço-gestão-comunidade, entendendo que a formação em saúde está intrinsecamente ligada ao mundo do trabalho e à prática cotidiana, necessitando também valorizar as demandas em saúde da comunidade, especialmente em se tratando de populações historicamente negligenciadas. A resolução menciona também a importância da educação e da comunicação em saúde, que podem ser aprimoradas, por exemplo, com a abordagem da comunicação não violenta e com o compromisso de construção compartilhada de conhecimento, à luz do que é exposto na Política Nacional de Educação Popular em Saúde40.
Soma-se aesse cenário o fato de as políticas de acesso ao ensino superior contribuírem para um novo perfil do(a) egresso(a)41, inserindo no contexto da educação médica as vivências que esses(as) estudantes têm por serem parte de grupos historicamente invisibilizados. Para além disso, construções fora da sala de aula, como o surgimento de coletivos estudantis auto-organizados, fizeram, durante a pandemia da Covid-19, que as demandas de discussões negligenciadas pela universidade ou colocadas anteriormente apenas como alvo da extensão universitária assumissem destaque no currículo paralelo por meio de seminários virtuais. É esperado que esse movimento repercuta nas salas de aula, pressionando docentes e a gestão acadêmica no sentido de efetivar as expectativas e lacunas de ensino-aprendizado em relação à diversidade, conforme apontam as DCN de 2014.
Assim, como exposto, a pandemia da Covid-19 mostra-se como uma oportunidade em que a mídia e a sociedade como um todo olhem para as desigualdades sociais em saúde, considerem a relevância do SUS e enfatizem os múltiplos apontamentos contemporâneos que evidenciam que os projetos pedagógicos e os componentes curriculares dos cursos de Medicina precisam se atualizar e se comprometer com a construção de uma proposta de ensino e cuidado em saúde que valorize a diversidade e a diminuição das iniquidades em saúde.