INTRODUÇÃO
Segundo análise realizada pela Organização Mundial da Saúde, o suicídio representa, em nível internacional, um grave problema de saúde pública, com cerca de 800 mil casos por ano. Atualmente, o suicídio é considerado a segunda principal causa de morte em pessoas jovens de 15 a 29 anos de ambos os sexos. Nesse panorama, o Brasil apresenta o índice de 6,5 casos por 100 mil habitantes, situação que configura uma problemática sanitária, com inúmeros custos ao sistema de saúde1.
A situação dramática do país é intensificada pela ocorrência de registros entre a população jovem, realidade muito presente no âmbito do ensino superior, período marcado por intensas transformações pessoais e identitárias. No ensino sobre saúde, o suicídio adquire progressivamente significativa expressão, com inúmeras ocorrências em diferentes cursos de graduação, destacadamente entre acadêmicos da área médica2. Especialmente na Medicina, a exaustiva rotina de estudos e as experiências de contato frequente com a doença e a morte podem potencializar o desencadeamento de crises e transtornos emocionais, os quais podem intensificar o risco para o suicídio2.
Vale destacar que a notificação da tentativa ou concretização do suicídio é compulsória em até 24 horas decorridas desde o atendimento nas redes pública e privada de saúde, e tem por objetivo o monitoramento e o acompanhamento dos casos atendidos nos serviços, visando à prevenção e ao enfrentamento de novas ocorrências3. Entretanto, estima-se que muitas ocorrências permanecem subnotificadas, o que pressupõe um número ainda maior de casos. Por essa razão, é fundamental que os profissionais sejam sensibilizados para a importância de ações nos âmbitos da educação e prevenção, visando a medidas precoces que ajudem a diminuir as estatísticas.
O suicídio constitui uma temática que deve receber atenção especial por parte das autoridades sanitárias, mas, apesar dos avanços, percebe-se que o estigma relacionado ao tema ainda persiste, alimentado principalmente por preconceitos recorrentes no imaginário social, como a ideia de que as pessoas afetadas pelo problema são fracas ou provenientes de famílias de má índole4. Tais concepções, além de equivocadas, dificultam o seu enfrentamento, fortalecendo a discriminação e isolamento, o que pode colaborar para o planejamento e a ocorrência de novas tentativas de autoagressão, bem como para o desenvolvimento de outras morbidades, como a maior predisposição ao uso de substâncias psicotrópicas5.
Infelizmente, as dificuldades para o efetivo enfrentamento da problemática reverberam na formação e na atuação dos profissionais de saúde, tornando sua identificação e sua prevenção mais difíceis6, culminando mais em um debate moral do que técnico. Ao cometer suicídio, a pessoa é condenada a um fim trágico não só pela irreversibilidade de sua ação, mas também pela falta de acolhimento às suas demandas emocionais, resultado, em grande parte, do julgamento moral e da incompreensão sobre as motivações que levam a esse comportamento.
Nesse viés, o suicídio tem ganhado progressiva notoriedade na formação e na prática médicas, já que, ao procurarem atendimento médico, muitos pacientes referem demandas que não são somente físicas, mas também psicológicas, e embora tais queixas se manifestem no corpo, precisam ser traduzidas pelo profissional7. Saber identificar o que está por detrás das entrelinhas do discurso, incluindo aquilo que é verbalizado ou não, é fundamental quando se trata da identificação da ideação suicida. Cerca de 40% a 60% dos pacientes que cometeram suicídio tiveram uma consulta médica no mês anterior à morte, em sua maioria com médico generalista e não psiquiatra, e um terço deles fazia tratamento para algum tipo de transtorno mental8.
As habilidades de comunicação do médico na relação com o paciente contribuem para uma intervenção mais adequada diante do risco de suicídio, mas é necessário saber identificar esse risco, abordá-lo e encaminhar, quando necessário, o indivíduo aos serviços especializados9. Na maior parte dos casos, o suicídio pode ser evitado, mas ações eficazes dependem diretamente do tipo de abordagem realizada. O que se observa em muitos serviços de atenção à saúde é o despreparo dos profissionais para lidar com esse tipo de situação, resultado também de uma formação acadêmica centrada numa perspectiva marcadamente biomédica, com pouca valorização da subjetividade10.
A compreensão das reais demandas do paciente e a possibilidade de prover suporte psicossocial a ele durante as dificuldades emocionais são competências fundamentais para lidar com a problemática do suicídio11. Consequentemente, o acolhimento de tais necessidades mediante uma escuta qualificada é uma ferramenta fundamental na identificação do risco de suicídio e no fortalecimento do vínculo entre o profissional e o indivíduo. Portanto, é fundamental que o médico tenha interesse legítimo pelo sofrimento do paciente11. Essa habilidade é um componente da prática médica e tem como um dos objetivos a identificação de um potencial risco e a implementação de intervenções preventivas, em especial nas situações hospitalares e emergenciais, em que o paciente se encontra agudizado12.
A intensificação de discussões sobre o suicídio ao longo da educação médica é urgente e necessária. A dificuldade em abordar pessoas que se encontram em condição de risco, ora por apresentarem ideação suicida, ora por já terem histórico de tentativa anterior, ainda encontra barreiras alicerçadas na escassa problematização do tema na formação médica e nos preconceitos subjacentes ao tema, como a crença de que alguém que tentou o suicídio não deseja de fato concretizá-lo13.
O suicídio tem sido objeto de muitos estudos na área da saúde, em especial no campo da psicologia e psiquiatria, porém, quando se trata mais especificamente da inserção do tema na educação médica, as pesquisas são mais recentes10),(14),(15. Assim, considerando a riqueza do tema e sua relevância na formação de futuros médicos, o presente estudo foi projetado com o objetivo de conhecer as opiniões de estudantes de Medicina sobre o suicídio, incluindo as percepções e atitudes em relação à inclusão da temática na formação médica. Do mesmo modo, trata-se de um estudo voltado a investigar a preparação dos futuros médicos para intervir em indivíduos que enfrentam esse processo.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória e transversal, com uso de metodologia majoritariamente quantitativa, realizada com acadêmicos do curso de Medicina da Universidade do Estado do Pará (Uepa), os quais concordaram em responder ao protocolo de pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A coleta de dados somente teve início após aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, sob Parecer nº 2.753.460 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 91076518.8.0000.5174).
À época do estudo, o curso adotava um modelo híbrido, com predomínio de metodologias ativas de ensino, e registrava um quantitativo de 568 alunos regulamente matriculados na instituição. No total, participaram do estudo 188 alunos, pertencentes ao ciclo básico (primeiro e segundo anos), clínico (terceiro e quarto anos) e internato (quinto e sexto anos), sendo a amostragem não probabilística de conveniência13.
O convite para participação na pesquisa foi realizado nas salas de aula, ocasião em que a equipe de pesquisadoras apresentava o objetivo e a metodologia do estudo, e quando também era enfatizada a importância da participação livre e voluntária. A fim de alcançar um certo equilíbrio na distribuição dos participantes por ano no curso, foi calculado um número mínimo de 30% dos alunos de cada turma. Diferentemente das outras séries, o contato com os alunos do internato ocorreu em grupos menores, visto que, em função da natureza das atividades realizadas nesse período, existiam poucas oportunidades para o acesso integral à turma.
O protocolo de pesquisa incluiu um questionário semiestruturado com opções de múltipla escolha e perguntas abertas, apresentadas com o objetivo de complementar as respostas diretas. Algumas perguntas foram formuladas pelas autoras, com base nas categorias de interesse da pesquisa, enquanto outras foram adaptadas do Questionário de Atitudes Frente ao Comportamento Suicida (QACS)15, do qual se extraíram perguntas que investigavam a percepção e atitudes em relação a afirmativas sobre o suicídio.
Na primeira parte do protocolo, os participantes deveriam informar dados sociodemográficos e descrever seu contato prévio com o tema do suicídio, incluindo informações sobre como o conteúdo era abordado nas atividades acadêmicas e sua experiência, tanto profissional quanto pessoal.
Na segunda parte, os participantes deveriam ser posicionar nas afirmativas sobre sentimentos e atitudes acerca do suicídio. O QACS possui um total de 21 sentenças, das quais foram utilizadas apenas oito, por sua maior afinidade com o objetivo da pesquisa. Essas frases foram retiradas do instrumento original (fator sentimento e fator capacidade) e acrescidas de novas afirmativas, totalizando 12 frases que foram apresentadas aos participantes.
Realizou-se a análise dos dados por meio de estatística descritiva, e utilizou-se o software Excel 2010 para a apresentação dos resultados em tabelas. As respostas às questões abertas foram organizadas e sistematizadas, e posteriormente agrupadas em categorias, de modo a retratar as informações fornecidas pelos participantes.
RESULTADOS
Do total de participantes, 101 (53,7%) eram do sexo feminino e 87 (46,3%) do sexo masculino, e a maioria dos participantes (56,3%) se encontrava na faixa etária entre 20 e 24 anos. Em relação ao período do curso, 34% encontravam-se no ciclo básico 34,6% cursavam o ciclo clínico, constituído pelo terceiro e quarto períodos da graduação, e 31,4% estavam no internato.
Ao serem questionados sobre a relevância da temática do suicídio na formação acadêmica (Tabela 1), 3,18% consideraram sem importância ou pouco importante; 1,59%, neutro; e 98,2%, importante ou muito importante. Além disso, mais de 50% dos estudantes afirmaram já ter discutido o tema suicídio em algum momento do curso, com destaque para o segundo (74,3%) e terceiro (82,3%) anos, tendo menor porcentagem entre os participantes que se encontravam no internato (aproximadamente 32%), o que está ilustrado no Gráfico 1. No contexto das atividades acadêmicas, a maioria mencionou as contribuições das humanidades médicas, ofertadas nos dois primeiros anos, além de outras atividades, como as habilidades profissionais (destacadamente a psiquiatria), as sessões tutorias, a deontologia e a psicologia médica.
Ano | Sem importância | Pouco importante | Neutro | Importante | Muito importante | |||||
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n | % | n | % | N | % | n | % | N | % | |
Ciclo básico | 0 | - | 2 | 3,1 | 1 | 1,6 | 17 | 26,6 | 44 | 68,7 |
Ciclo clínico | 0 | - | 0 | - | 2 | 3,1 | 19 | 29,2 | 44 | 67,7 |
Internato | 1 | 1,7 | 3 | 5,1 | 0 | - | 14 | 23,7 | 41 | 69,5 |
Total | 1 | 0,5 | 5 | 2,7 | 3 | 1,6 | 50 | 26,6 | 129 | 68,6 |
Em relação à satisfação quanto à abordagem da temática nas atividades acadêmicas, cerca de 70% afirmaram ser pouco satisfatória ou insatisfatória. O menor índice de satisfação ocorreu no internato, tendo o quinto e sexto anos, respectivamente, 96,1% e 89,7%. Em contrapartida, o segundo ano do curso demonstrou o maior índice de satisfação, com uma taxa de 65,7%.
Quando questionados se conheciam algum manual e/ou protocolo de intervenção na área do suicídio, apenas 9,57% dos participantes responderam afirmativamente, dos quais a maioria cursava o ciclo clínico (Gráfico 2). Aqueles que sabiam da existência de recomendações de intervenção nos casos de suicídio citaram os manuais da área de urgência psiquiátrica, as orientações para encaminhamento aos centros de apoio e de atenção psicossocial, e o Disque 188. Entretanto, observou-se que somente dois participantes tinham um conhecimento mais específico das recomendações e do funcionamento da rede de serviços, o que representa um baixo percentual em relação ao número total de participantes do estudo.
Quando questionados se já haviam vivenciado alguma experiência dessa natureza durante atividades práticas realizadas ao longo da formação acadêmica, 79,25% responderam negativamente. Entre os que já haviam tido experiências com o tema, a taxa de resposta foi menor nos anos iniciais do curso, sendo mais frequente no ciclo clínico e internato, pela maior inclusão de conteúdos relacionados à psiquiatria e em virtude da intensificação das atividades práticas tanto no contexto ambulatorial como no hospitalar. Os participantes também citaram a importância das aulas práticas em unidades básicas de saúde (UBS) e nos serviços de pronto atendimento, a atuação em comunidades mediante ações extensionistas e a realização de pesquisas sobre temas relacionados à saúde mental.
Entre os que tiveram a experiência acadêmica ao longo do curso, 52,1% a consideraram muito importante para sua formação profissional, 30,5% mencionaram que foi importante e 17,4% adotaram uma postura neutra. Porém, o fato de nenhum dos participantes ter marcado alternativas que indicavam pouca ou nenhuma importância demonstra que os alunos valorizam essas experiências quando têm a oportunidade de vivenciá-las durante a formação.
Vale ressaltar que 53% dos participantes afirmaram já ter vivenciado experiências dessa natureza na vida pessoal. Do total de participantes que viveram a experiência em sua vida (Tabela 2), 43,9% relataram que somente a ideia do suicídio esteve presente, 10,2% já tiveram a ideia e praticaram alguma ação nesse sentido, 36,7% tiveram experiência com amigos/conhecidos, 8,2% com familiares e 1% declarou ter tido outro tipo de experiência. Vale destacar que o período situado entre o quarto e o sexto ano do curso apresentou significativa elevação na taxa de resposta.
“Você já viveu uma experiência pessoal em relação ao suicídio?” | ||||||||||||
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1º ano | 2º ano | 3º ano | 4º ano | 5º ano | 6º ano | |||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | |
Sim, eu mesmo, porém não realizei nenhuma ação. | 8 | 27,5 | 6 | 17,1 | 10 | 29,4 | 7 | 22,5 | 5 | 18,5 | 7 | 22,6 |
Sim, eu mesmo, e realizei uma ação. | 2 | 6,9 | 3 | 8,6 | 2 | 5,9 | 1 | 3,2 | - | - | 2 | 6,4 |
Sim, com familiares. | 2 | 6,9 | 1 | 2,8 | 3 | 8,8 | - | - | 1 | 3,8 | 2 | 6,4 |
Sim, com amigos. | 10 | 38 | 5 | 14,3 | 4 | 11,8 | 4 | 13 | 5 | 18,5 | 8 | 25,8 |
Sim, com outras pessoas. | - | - | - | 1 | 2,9 | - | - | - | - | - | - | |
Nunca tive. | 6 | 20,7 | 20 | 57,2 | 14 | 41,2 | 19 | 61,3 | 16 | 59,2 | 12 | 38,8 |
No que tange à capacidade de identificar comportamentos de risco para o suicídio, menos da metade dos acadêmicos afirmaram que se sentiram capazes de realizar a identificação dos fatores de risco em uma abordagem clínica (45%). Entretanto, a maioria (84,6%) discordou da afirmação de que não seria correto fazer perguntas sobre ideação suicida, já que elas poderiam incentivar o ato. Na opinião dos participantes, a identificação do risco requer a formulação de questionamentos que estimulem o diálogo sobre o assunto. Entretanto, os resultados apontam dúvidas em relação à forma como o assunto deve ser abordado na prática médica.
Parte das perguntas incluídas no questionário abordava a opinião dos alunos em relação a ideias presentes no imaginário social. A Tabela 3 apresenta o demonstrativo das taxas de resposta.
QUESTÕES | Discordo totalmente | Discordo parcialmente | Neutro | Concordo parcialmente | Concordo totalmente | |||||
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Fator sentimento | n | % | n | % | n | % | N | % | n | % |
O suicídio é um ato de fraqueza e despreparo para lidar com adversidades da vida. | 130 | 69,5 | 34 | 18,2 | 8 | 4,3 | 10 | 5,3 | 5 | 2,7 |
O suicídio é uma tentativa de manipular os outros. | 148 | 78,7 | 31 | 16,5 | 8 | 4,3 | 1 | 0,5 | 0 | 0 |
Quem tenta se matar tem alguma doença mental. | 69 | 36,7 | 39 | 20,7 | 22 | 11,7 | 42 | 22,3 | 16 | 8,6 |
Quando a intenção existe de fato, nada impede que ela se realize de fato. | 74 | 39,4 | 65 | 34,6 | 11 | 5,7 | 29 | 15,5 | 9 | 4,8 |
Quem tenta suicídio não tem Deus no coração. | 163 | 86,7 | 12 | 6,4 | 9 | 4,8 | 4 | 2,1 | 0 | 0 |
Quem quer se matar em algum momento vai tentar fazê-lo. O comportamento suicida tende a se repetir. | 18 | 9,6 | 46 | 24,5 | 16 | 8,5 | 76 | 40,4 | 32 | 17 |
Quem ameaça não se mata. | 141 | 75 | 35 | 18,6 | 7 | 3,7 | 5 | 2,7 | 0 | 0 |
Fator capacidade | ||||||||||
Me sinto capaz de identificar e classificar os comportamentos de risco suicida. | 20 | 10,6 | 47 | 25 | 36 | 19,1 | 69 | 36,7 | 16 | 8,5 |
Sei como realizar a notificação compulsória e encaminhá-la corretamente. | 83 | 44,1 | 56 | 29,8 | 15 | 8 | 26 | 13,8 | 8 | 4,3 |
Tenho preparo técnico para atender um paciente com ideação suicida. | 72 | 38,8 | 64 | 34 | 21 | 11,2 | 30 | 16 | 1 | 0,5 |
Vale ressaltar, entretanto, que a maioria dos participantes (69,39%) concordou que o preconceito e a dificuldade de abordar o suicídio influenciam na identificação de casos e na prevenção de ocorrências.
Do total dos acadêmicos, somente 30,9% concordaram parcial ou totalmente com a frase “Quem tenta se matar tem alguma doença mental”, demonstrando que as razões que circunscrevem o ato não se reduzem à existência de transtornos emocionais em curso. Entretanto, a baixa taxa de respostas a esse item pode também expressar uma interpretação equivocada da afirmação pelos participantes, em função do uso pejorativo da expressão “doença mental”, a que pode ter desencadeado uma percepção negativa em relação à inadequação dela
Por fim, no que concerne à notificação compulsória, 70% dos participantes afirmaram que teriam dificuldade em realizá-la por desconhecerem como ocorre o processo.
DISCUSSÃO
Os achados do estudo demonstraram que a maioria dos acadêmicos, tanto do ciclo básico quanto do clínico e internato, considera o suicídio como um importante tema na formação acadêmica, principalmente os discentes do primeiro ano. Contudo, no que diz respeito à inserção da temática ao longo da formação, parte significativa avaliou como pouco satisfatória, destacadamente os alunos do ciclo clínico. Tais achados reforçam os resultados de outros estudos, revelando a necessidade de aprofundar o tema nas atividades acadêmicas como um conteúdo transversal da formação, em particular porque parte desses profissionais irá intervir em situações clínicas que envolvem o risco de suicídio15. Nesse sentido, lacunas existentes na formação médica implicam o despreparo e a insegurança nos futuros médicos, com desdobramentos no enfrentamento dessa realidade
Quando se mapearam os locais onde os estudantes têm contato com o tema, o internato foi o período em que menos o assunto foi abordado, ainda que em 2014, após revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN´s), tenha sido introduzida a abordagem da saúde mental nesse ciclo da graduação15. Tal resultado aponta fragilidades no processo de formação, considerando que as DCN preconizam uma formação capaz de viabilizar a atuação em diferentes níveis de atenção, com ações de prevenção de doenças e promoção, recuperação e reabilitação da saúde. Entretanto, uma possível interpretação para tal resultado é o fato de que os alunos do internato não tiveram experiência com o desenho atual do curso, agora menos fragmentado e pautado na integração e articulação dos conteúdos ao longo de todo o processo formativo. Outro aspecto a ser ressaltado é o fato de que a universidade não possui ambulatório especializado na atenção psicossocial, já que a prática clínica em psiquiatria ocorre apenas em dois momentos - no terceiro e sexto anos -, o que pode ser observado no Projeto Político Pedagógico do Curso de Medicina16.
Quando os participantes foram indagados sobre orientações e protocolos de intervenção, percebeu-se que, embora muitos tenham tido contato com assuntos relacionados ao tema durante a formação acadêmica, em especial por meio de conteúdos curriculares que mantêm proximidade com temáticas voltadas à saúde mental, eles não demonstraram segurança para intervir em tal problemática17. Esse achado é importante para compreender a insatisfação relatada pelos participantes em relação à inserção dessa temática nos conteúdos acadêmicos, ainda que tenham mencionado a importância dela.
O desconhecimento de manuais e protocolos por grande parcela dos estudantes indica a importância de ações voltadas à divulgação de diretrizes de intervenção médica nesse cenário. As lacunas encontradas, incluindo a falta de formação específica sobre o assunto anterior à entrada no mercado de trabalho, podem resultar no despreparo dos profissionais para atuar no atendimento às demandas em saúde mental, particularmente aquelas que envolvem o risco de suicídio. Nesse sentido, muitos médicos acabam limitando e empobrecendo suas intervenções clínicas, por não terem o necessário preparo para identificar ou produzir ações mais eficazes na prevenção da consumação do ato18.
Quando questionados se já haviam vivenciado uma experiência dessa natureza na vida pessoal, mais da metade dos participantes responderam afirmativamente. A alta porcentagem de respostas positivas a esse questionamento vai ao encontro dos dados de um recente boletim epidemiológico, os quais apontam um registro de 48.204 tentativas de suicídio no país, índice bastante elevado quando comparado a outros países. Supõe-se que esse número esteja subestimado, havendo possivelmente um número maior de pessoas com ideação suicida que não foram incluídas nas estimativas, particularmente porque não consumaram o ato19.
Ademais, merece destaque o total de respostas positivas para a presença de ideação suicida entre os participantes, haja vista que mais da metade já tinha alguma experiência pessoal prévia nesse sentido. Nesse viés, pesquisas recentes têm revelado um alto índice de ideação suicida entre estudantes de Medicina, chegando a 14% dos indivíduos apresentando pensamentos suicidas20)-(23.
Foi relevante o achado de que menos da metade dos acadêmicos se sentiam capaz de identificar comportamentos de risco suicida. Do mesmo modo, em relação à notificação compulsória, 70% dos participantes afirmaram que teriam dificuldade para realizá-la. Tais resultados reforçam estudos anteriores que demonstram a falta de capacitação e de conhecimento por parte de estudantes de Medicina em relação a tais temáticas, o que limita as ações de prevenção e intervenção17. Nesse contexto, o estudo realizado por Amorim15 na Faculdade de Medicina do Centro Universitário Christus (Unichristus) e na Universidade Estadual do Ceará (Uece), em Fortaleza, também evidenciou que os estudantes não se sentiam seguros ou preparados para atender pacientes com risco de suicídio.
Vale ressaltar que a maioria dos participantes concordou que o preconceito e a dificuldade de abordar o suicídio influenciam muito a identificação de casos e a prevenção de ocorrências. Assim, as crenças e os mitos que cercam a interpretação do tema no imaginário social acabam por reforçar uma visão pessimista e recriminatória, que em nada traduz a complexidade inerente à temática24. Nesse contexto, as respostas dos acadêmicos indicaram uma compreensão ampliada dos múltiplos fatores que tangenciam a questão, realidade que a Organização Mundial da Saúde ressalta como tendência a superar concepções simplórias e equivocadas em relação ao suicídio21.
Nesse contexto, merece destaque o fato de que grande parte dos participantes discordou totalmente da ideia do suicídio como resultado de um ato de fraqueza e despreparo para lidar com os problemas da vida, o que, em certa medida, se distancia da visão ainda predominante do ato suicida como uma manifestação de fracasso pessoal25. Em estudo anterior, Magalhães et al.14 destacaram que mais de 60% dos acadêmicos da Faculdade de Medicina de Barbacena, tanto do ciclo pré-clínico quanto do pós-clínico, atribuem o sofrimento psíquico à fragilidade emocional.
De modo geral, as respostas demonstraram a preocupação dos participantes de evitar uma atitude preconceituosa em relação ao tema, já que a presença de ideação suicida, na perspectiva deles, pode ser o desdobramento de um quadro clínico mais complexo12. Entretanto, vale ressaltar que os preconceitos em relação ao comportamento suicida apresentaram menor intensidade nos acadêmicos do internato, possivelmente pelo maior conhecimento dos agravos em saúde e pela progressiva maturidade, pessoal e acadêmica para lidar com temas em saúde mental. De fato, como encontrado em um estudo realizado em universidades do Ceará, reconhecer o comportamento de risco para o suicídio como de etiologia multifatorial mitiga barreiras que dificultam o entendimento e a abordagem do tema, bem como subsidia a prevenção26.
Além disso, a maioria também discordou de que a formulação de perguntas sobre ideação suicida poderia estimular ações dirigidas à consumação do ato, demonstrando uma atitude positiva em relação à abordagem clínica do tema nas intervenções médicas. Os resultados vão de encontro ao estudo realizado na Faculdade de Medicina de Barbacena14, no qual quase 70% dos acadêmicos afirmaram ter receio de perguntar sobre ideias suicidas e acabar induzindo sua ocorrência, tanto no ciclo clínico quanto no não clínico. Certamente, abordar o tema requer maturidade, competência técnica e prudência, haja vista que o profissional também deverá estar pessoalmente preparado para dialogar sobre o assunto, independentemente de suas convicções e crenças pessoais.
Os dados obtidos demonstraram que entre os estudantes de Medicina, principalmente dos ciclos básico e clínico, já existe a ideia do suicídio como um ato passível de ser prevenido. Nesse sentido, preparar os alunos para valorizar os enunciados verbais e as mudanças de comportamento de seus pacientes constitui importante estratégia para facilitar a identificação do comportamento suicida e, consequentemente, a prevenção dele27. Nesse aspecto, a realização de simulações e a discussão dos manuais e protocolos de orientação podem servir de apoio a profissionais menos experientes na área, oferecendo subsídios para intervenções mais adequadas e pontuais.
Destaca-se que as concepções religiosas também precisam ser consideradas, pois podem interferir na percepção do acadêmico sobre a temática. Isso ocorre porque muitas religiões, destacadamente as monoteístas, abordam a vida como uma Dádiva sagrada, fazendo com que o suicídio seja visualizado como um atentado a Deus28. Entretanto, 86,7% dos participantes discordaram totalmente da afirmativa que associa o suicídio à falta de fé em Deus. Embora tal achado revele o predomínio de uma abordagem mais secular da problemática, vale ressaltar a importância de discutir como as concepções religiosas dos alunos podem interferir em suas abordagens clínicas, já que existem temas que evocam valores religiosos, em especial aqueles que estão relacionados ao início e fim da vida.
Estudos demonstram que tentativas de suicídio anteriores podem exercer influência na consumação do ato, servindo como sinal de alerta para os profissionais da saúde envolvidos com o paciente26. Assim, antecedentes presentes na biografia do paciente devem ser valorizados nas intervenções médicas, com destaque para a atenção primária à saúde. As respostas obtidas demonstraram a preocupação dos participantes com as tentativas anteriores, entretanto a abordagem do tema nas atividades curriculares deve contemplar os fatores de risco e de proteção para o comportamento suicida, informação que deve ser incluída na abordagem inicial do médico.
As respostas dos participantes, destacadamente os alunos do internato, reforçam a associação frequentemente realizada entre o suicídio e os transtornos mentais, uma concepção muito presente entre os profissionais da área da saúde. Isso ocorre porque a existência anterior de conflitos emocionais atua como principal fator de risco para a progressão do comportamento suicida3, ainda que se considere o suicídio como um processo multifatorial25. Por esse motivo, conteúdos relacionados à saúde mental devem contemplar as contribuições de diferentes campos de conhecimento, e, nesse sentido, as humanidades médicas e a bioética representam importantes referenciais de análise, inclusive como diretrizes éticas e normativas para as intervenções.
Os dados revelam que, no geral, os participantes da pesquisa foram receptivos ao tema e reconhecem a sua importância, achado que coincide com outros estudos que também tiveram a participação de acadêmicos de cursos da saúde13. Entretanto, embora tenham demonstrado conhecimento sobre as responsabilidades da profissão e se mostrado disponíveis para intervir nos casos em que pessoas apresentem algum risco para o suicídio, as respostas dos participantes sugerem que ainda existe uma falta de preparo técnico para a abordagem médica do suicídio, o que talvez justifique a alta taxa de respostas em relação à dificuldade de realizar a notificação dos casos. Tal fato precisa ser valorizado, pois a notificação é compulsória, tanto pela suspeita quanto pela confirmação do suicídio, e tem como objetivo fornecer dados - como, onde e por que - relacionados à ocorrência do ato. O acesso a tais informações torna possível ao Estado o planejamento de estratégias e políticas públicas que visem à prevenção da violência autoinfligida29.
CONCLUSÕES
Os achados demonstram que o suicídio é uma temática relevante na educação médica, entretanto os acadêmicos ainda carecem de informações que lhes possibilitem desenvolver ações de prevenção e de intervenção nesse cenário. Foi possível constatar que, embora a maioria dos participantes esteja sensibilizada pessoalmente para a importância do tema, os conteúdos relacionados ao assunto ainda precisam ser mais explorados ao longo do curso, apontando a necessidade de discussão acerca de manuais, protocolos e diretrizes de intervenção existentes.
Na atualidade, o suicídio revela-se como um importante desafio na prática médica e são necessárias medidas práticas eficazes que tornem possível descontinuar o caminho da ideação à consumação. Entretanto, é preciso resgatar a importância da dimensão humana na prática médica, de modo que os profissionais da área possam ter ações efetivas para a abordagem do tema com os pacientes e as famílias deles, incluindo a correta notificação dos casos. Para que isso de fato ocorra, faz-se necessário que as discussões sobre os aspectos subjetivos do processo saúde-doença estejam presentes ao longo de toda a formação médica, como parte do compromisso e da responsabilidade da profissão no enfrentamento das demandas contemporâneas em saúde.