INTRODUÇÃO
A cirurgia global é uma área de estudo, pesquisa e prática que advoga por melhores desfechos e equidade em saúde para todos os indivíduos que demandam assistência cirúrgica, anestésica e obstétrica1. Com cinco bilhões de pessoas não tendo acesso a serviços cirúrgicos, torna-se iminente a necessidade de otimizar os sistemas de saúde. Entre seus componentes, incluem-se a força de trabalho cirúrgica e, por consequência, o treinamento e a educação dos profissionais envolvidos1-3. Segundo a proposta da comissão em cirurgia global da The Lancet, até 2030 todos os países deverão atingir o índice de 20 médicos cirurgiões, anestesistas e obstetras a cada 100 mil habitantes para garantir adequadamente a assistência em saúde da população1)-(3. Com isso, mulheres cisgênero e outras minorias de gênero em cirurgia podem agregar substancialmente para que haja o aumento da mão de obra cirúrgica nos países, em particular naqueles de baixa e média rendas4.
No Brasil, embora as mulheres componham 46,6% da população de médicos em 2020, disparidades em equidade de gênero persistem nas especialidades cirúrgicas5. As mulheres representam 57,7% dos ginecologistas e obstetras, e consistem em apenas 22,1% dos cirurgiões gerais e 38,3% dos anestesistas5. Dentre as barreiras que previnem as mulheres de exercer maior liderança nessas especialidades, tem-se o acesso reduzido a redes de apoio e orientação. Desse modo, o desenvolvimento de programas de mentoria torna-se uma alternativa relevante não apenas contribuindo para a retenção dessas profissionais nas áreas cirúrgicas, mas também para a criação de ambientes de trabalho mais inclusivos e diversos4),(6.
Mentoria é definida como a relação na qual o mentor, indivíduo com mais experiência e conhecimento, auxilia o outro, o mentorando, a crescer profissional e pessoalmente por meio de orientação, aconselhamento e promoção acadêmica7. Também foi demonstrado o seu papel em desenvolver resiliência, de modo a melhorar o manejo de tempo e a maneira como os mentorandos lidam com situações de emergências, habilidades essenciais ao profissional das áreas cirúrgicas8. Entretanto, a pouca evidência acerca das mentorias voltadas para a mão de obra cirúrgica em países da América Latina dificulta a compreensão do impacto contexto-específico dessa intervenção4),(6.
Em 2018, o grupo Gender Equity Initiative in Global Surgery (GEIGS) foi fundado, sendo a formação de redes de trabalho e mentoria um dos seus pilares para capacitar médicos, residentes, estudantes de Medicina e outros profissionais de saúde em cirurgia, anestesia e obstetrícia4),(9. A mentoria é ofertada para todas as regiões, incluindo a América Latina, sendo uma oportunidade ímpar de entender os desfechos desses programas sob o desenvolvimento da força de trabalho em cirurgia. Assim, o objetivo deste artigo é relatar a experiência do programa internacional de mentoria do GEIGS como mecanismo de promoção de equidade de gênero e suas possíveis repercussões na força de trabalho cirúrgica da América Latina.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
O programa é organizado pelo time de mentoria do GEIGS, o qual almeja desenvolver um espaço que capacite, empodere e amplifique as vozes de minorias de gênero por meio da relação mentor-mentorando. Para atingir tal objetivo, o programa de mentoria segue os princípios de inclusão e diversidade, e, entre 2019 e 2021, o GEIGS trabalhou com dois modelos estruturais.
Como mencionado, a iniciativa foi fundada em 2018, mas o programa de mentoria iniciou-se em 2019, tendo caráter voluntário e sem quaisquer fins lucrativos. Ele era baseado na formação de duplas, seguindo a estrutura tradicional de um mentor para um mentorando. Para o ciclo de 2021, o time adotou o modelo que consiste na criação de pequenos grupos heterogêneos, com indivíduos de diferentes graus de experiência acadêmica e profissional, estimulando-se a troca de conhecimento de forma horizontal a partir de diferentes perspectivas. Ademais, cada grupo tem a liberdade de determinar a estrutura que forneça maiores benefícios para seu funcionamento.
Desde 2019, o programa de mentoria do GEIGS é renovado, e, a cada ano, as chamadas para recrutar mentores e mentorandos acontecem por meio de suas mídias sociais e outros veículos de comunicação. As inscrições ocorrem por meio de um formulário on-line, com perguntas relacionadas à identidade pessoal e profissional, a interesses dos aplicantes e às suas expectativas concernentes ao programa. Encerradas as inscrições, o time organiza os grupos de mentoria de acordo com as preferências dos aplicantes, sendo estas: pessoas do mesmo gênero, país de origem ou residência, especialidades de interesse e objetivos. Além disso, para atenuar as barreiras linguísticas, no ciclo de 2021, o programa montou grupos baseados no idioma, admitindo participantes não falantes da língua inglesa. De fato, o programa possibilitou que mentores e mentorandos que fossem fluentes apenas em idiomas como o português e o espanhol pudessem vivenciar o programa, com o objetivo de conectar os aplicantes da América Latina e do Caribe.
Os mentores são selecionados com base no seu nível de treinamento (residência, mestrado, anos de trabalho, entre outros), especialidade, identidade de gênero e expectativas para com a relação entre mentor e mentorando. Como não foi possível selecionar todos os mentorandos por insuficiência de mentores, priorizaram-se os inscritos de países em desenvolvimento e de identidades de gênero sub-representadas em áreas cirúrgicas, como mulheres, pessoas trans e não binárias. Para a formação dos grupos, tentou-se reunir pessoas com interesses semelhantes, mesclando participantes de países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Cada edição do programa dura sete meses, e, nesse período, o grupo se reúne com o mentor com frequência mínima de uma vez por mês, podendo aumentá-la de acordo com a necessidade e o desejo dos participantes. No início do programa, os mentorandos estabelecem um plano de trabalho e objetivos, com metas de curto e longo prazos. O time de mentoria realiza três acompanhamentos com os participantes por meio do preenchimento de um questionário enviado via e-mail. O primeiro acompanhamento se atém a fazer um levantamento para verificar se os grupos realizaram encontros e estabeleceram suas metas conjuntas. Adicionalmente, o time envia um guia centrado na relação mentor-mentorando para prover o melhor suporte aos grupos. O segundo e terceiro acompanhamentos focam a satisfação dos participantes quanto à metodologia de trabalho adotada em seu grupo e aos objetivos alcançados durante o ciclo. Finalmente, existem duas vias de comunicação entre mentores, mentorandos e o time de mentoria. Por um lado, os participantes podem preencher um formulário no qual detalham suas preocupações e considerações sobre o programa. Por outro lado, podem contatar o time de mentoria via e-mail com o propósito de esclarecer dúvidas ou mudar de grupo.
Essas medidas são tomadas a fim de garantir que cada grupo esteja trabalhando integralmente e com um planejamento que permita verificar se os marcos estabelecidos no início do ciclo foram concluídos ou estão em progresso. Outrossim, o time tem o compromisso de saber se os mentorandos estão recebendo suporte adequado e se os participantes têm se beneficiado com as reuniões. Ao considerar que cada grupo tem sua própria complexidade, o time de mentoria avalia os desfechos finais do programa a partir das metas estabelecidas pelos grupos por meio do preenchimento de um formulário no início do ciclo. A progressão nos desfechos é mensurada utilizando a escala Likert no segundo e terceiro acompanhamentos. Enfim, os grupos fazem uma reunião de encerramento na qual compartilham suas conquistas e experiências ao final do ciclo.
Resultados na América Latina e no Caribe
Para o ciclo de 2021, o programa do GEIGS conseguiu definir com sucesso 77 grupos de mentoria com 310 participantes, incluindo mentores e mentorandos de diversos países. Ao total, tivemos aplicações de dez países da América Latina e do Caribe, sendo o Brasil aquele com maior número de mentorandos inscritos (100), seguido de Peru (sete), Argentina (três) e Venezuela (dois). Em contrapartida, tivemos apenas dez inscrições de mentores brasileiros; Colômbia, Nicarágua e Peru receberam, cada um, apenas uma inscrição. Finalmente, houve a criação de um grupo de mentoria composto somente por participantes fluentes na língua portuguesa. Acerca das especialidades cirúrgicas, a cirurgia geral foi a maior procura por parte dos mentorandos (n = 39), seguida da neurocirurgia (n = 26). Entretanto, especialidades como urologia tiveram interesse somente de um mentorando.
DISCUSSÃO
A necessidade ainda maior de programas como o do GEIGS durante a pandemia é evidente, por causa do vínculo estabelecido entre os participantes, mostrando-se como uma iniciativa positiva para desenvolver estratégias de enfrentamento dos desafios vivenciados. Nesse contexto, foi demonstrado que programas de mentoria podem auxiliar os estudantes no campo da saúde mental, de modo a reduzir o estresse e aumentar a autoconfiança e a sensação de bem-estar dos mentorandos10.
A mentoria em grupos heterogêneos, como os formados no programa em discussão, contribuem para a troca de experiências, pois possibilita aos mentorandos compreender o curso e a profissão de maneira longitudinal e horizontal, e conhecer os desafios enfrentados em cada fase10. Esse modelo se contrapõe à cultura hegemônica nos países em desenvolvimento, que tendem a supervalorizar a formalidade na comunicação e a hierarquia, onde questionar a opinião de um professor pode ser visto como algo ofensivo e os estudantes são tratados de forma paternalista11.
Apesar do crescente número de mulheres na medicina, as especialidades cirúrgicas continuam sendo um campo predominantemente masculino. As mulheres que decidem não seguir a carreira cirúrgica justificam sua escolha com base na falta de colegas de trabalho do mesmo gênero, no sexismo e na preocupação com a gravidez e o cuidado com os filhos12),(13. No tocante a mulheres cirurgiãs, elas relatam que a falta de mentoria é um dos obstáculos para a progressão na carreira e satisfação na especialidade, e comumente têm a percepção que sua especialidade é dominada pelos homens13.
No caso das pessoas trans e de gênero não binário, a falta de colegas do mesmo gênero tende a ser bastante significativa, porém existe uma intensa escassez de dados sobre o tema na literatura médica, especialmente no que concerne à cirurgia. Essa falta de dados pode ser corroborada pelo fato de que 60% desses estudantes de Medicina não assumem sua identidade de gênero dentro das escolas médicas por medo de preconceito e falta de suporte14. Existe a recomendação de que programas de mentoria sejam desenvolvidos para acolher estudantes e médicos trans e não binários, mas, até o presente momento, os autores deste estudo não encontraram, no Brasil, dados sobre um programa na área médica que aborde a identidade de gênero além da perspectiva binária - com exceção do programa discutido neste trabalho14.
O futuro do programa de mentoria do GEIGS é promissor, mas a maior limitação deste trabalho é que, no momento em que foi escrito, em fevereiro de 2021, o programa havia começado há apenas um mês, então mesmo que haja 77 grupos inicialmente, nos próximos meses esse número tende a diminuir porque mentores e mentorandos podem não conseguir se comprometer. Alguns fatores podem estar relacionados à queda na adesão, como a definição do mentor, que não foi uma escolha pessoal do mentorando, e a forma de pareamento de mentores e mentorando, associada a maior adesão em alguns trabalhos15. Além disso, a desmotivação pode ser causada por falta de tempo e horários das reuniões, um efeito que, dada a perspectiva internacional com diversos fusos horários, pode ser potencializado no programa apresentado10.
Entretanto, a mentoria é uma escolha voluntária do participante, o que está relacionado a maior adesão e performance acadêmica, quando comparadas à mentoria obrigatória15. Dados sugerem que os mentorandos preferem mentores do mesmo gênero que o seu, e as mulheres na cirurgia tendem a ter mais dificuldade de encontrar mentores do mesmo gênero, além de terem pouco acesso a programas institucionais de mentoria13),(16),(17. Portanto, um ponto forte do programa foi a opção dada aos participantes de serem pareados com pessoas do mesmo gênero que o seu, visto que o GEIGS trabalha com uma visão além do sexo binário, respeitando a diversidade de gênero dos seus membros. Como a mentoria acontece em um ambiente virtual, há a possibilidade de os participantes encontrarem mentores do mesmo gênero e com interesses idênticos, o que, de outro modo, não seria acessível por questões geográficas.
Uma razão que justificaria o baixo número de candidatos a mentores na América Latina e no Caribe pode ser a estratégia de divulgação para lançar as chamadas referentes à mentoria. O GEIGS utiliza plataformas como Twitter, Facebook e Instagram, que podem não ser acessíveis a todos os interessados. O uso das mídias sociais foi referido como promotor de oportunidades de fortalecimento das redes de contato para mulheres na cirurgia, que proporciona a chance de encontrar mentores do mesmo gênero. Portanto, investir nas estratégias de divulgação nas redes, disseminando o programa por meio de plataformas locais e organizações nacionais que podem tornar-se aliadas no processo, pode aumentar consideravelmente o impacto do programa em edições futuras13),(16.
Ademais, vem crescendo no meio acadêmico a discussão sobre a importância de descolonizar a saúde global e a cirurgia global, expressão que se refere à repercussão que estruturas de poder do colonialismo exercem na assistência à saúde. Entre as áreas influenciadas por tais disparidades, inclui-se a produção científica na área da saúde, fazendo com que o protagonismo das discussões sobre o tema esteja centrado nos países desenvolvidos, que devem transferir conhecimento aos países em desenvolvimento18. Um estudo recente demonstrou que 71% das conferências sobre Cirurgia Global aconteceram em países de alta renda, e, dos 112 eventos analisados, apenas cinco aconteceram na América Latina entre 1997 e 201919.
O desconhecimento sobre o conceito de cirurgia global, uma lacuna especialmente presente nos países em desenvolvimento, pode justificar a baixa adesão dos profissionais a um programa de mentoria desenvolvido por uma iniciativa de cirurgia global. A falta de programas de desenvolvimento de profissionais na área de cirurgia global e saúde global, como o apresentado neste trabalho, pode ter contribuído para inibir o crescimento de cientistas e da pesquisa sobre a temática na América Latina, gerando um ciclo que se retroalimenta de maneira negativa11.
Outro fator que pode estar associado à baixa adesão dos mentores ao programa é que, por se tratar de uma organização voluntária, eles não são remunerados, o que pode ser visto como um aumento de carga horária sem o correspondente aumento no salário. Além disso, os modelos avaliativos nos países em desenvolvimento tendem a focar questões puramente acadêmicas, desconsiderando aspectos como profissionalismo, ética e equilíbrio entre vida pessoal e profissional, que são comumente trabalhados por meio da mentoria11.
Apesar dessas limitações, este relato fornece uma visão geral de como um programa de mentoria pode contribuir para que mais estudantes de Medicina sejam incentivados a seguir carreiras em cirurgia, anestesia e obstetrícia, de modo a promover a equidade de gênero, para além da perspectiva binária, nessas áreas de atuação. Além disso, esta experiência é uma oportunidade para identificar direções futuras no desenvolvimento de programas de mentoria na América Latina e no Caribe.
CONCLUSÃO
A mentoria vem se consolidando com uma importante estratégia educacional para a melhoria do desempenho acadêmico e profissional, além de ser um mecanismo de suporte com efeitos positivos na saúde mental, o que pode ser ainda mais necessário e relevante quando se trata de grupos que sofrem preconceito de gênero. Nesse contexto, o programa de mentoria do GEIGS é uma iniciativa com potencial transformador no tocante à equidade de gênero nas especialidades cirúrgicas.
Os autores perceberam a necessidade de maiores estudos sobre educação na saúde que abordem a população trans e não binária, investigando o benefício de intervenções como a mentoria. Além disso, destacam-se a escassez de estudos sobre cirurgia global e o baixo quantitativo de programas consolidados de mentoria originários de países de baixa e média rendas, como os da América Latina e do Caribe. Portanto, a promoção de estratégias regionalizadas de atuação, como a proposta pelo GEIGS, é essencial para o desenvolvimento de novos estudos sobre os temas citados, com foco em publicações fora da língua inglesa, e para a descolonização da saúde global por meio da diminuição de barreiras linguísticas.
Por fim, é preciso reforçar que não basta apenas educar as mulheres (cis e trans) e as pessoas de gênero não binário e dar suporte a elas, mas também é imprescindível conscientizar a sociedade sobre a importância de compreender as identidades de gênero além da perspectiva binária e reconhecer como isso impacta as relações de trabalho e as perspectivas de carreira, especialmente dentro do campo cirúrgico.