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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.2 Rio de Janeiro  2022  Epub 25-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.2-20210273 

Artigo Original

Percepção de preceptores do internato sobre a influência de modelos na formação médica

Perception of internship preceptors on the influence of models on medical education

Sandra Maria Barroso Werneck Vilagra1 
http://orcid.org/0000-0002-6199-7954

Marlon Mohamud Vilagra1 
http://orcid.org/0000-0003-4797-5238

Henrik Werneck Vilagra1 
http://orcid.org/0000-0001-9363-7382

Lahis Werneck Vilagra1 
http://orcid.org/0000-0002-7783-2863

Maria Cristina Almeida de Souza1 
http://orcid.org/0000-0001-7631-723X

Patrícia Zen Tempski2 
http://orcid.org/0000-0003-4199-055X

1 Universidade de Vassouras, Vassouras, Rio de Janeiro, Brasil.

2 Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Introdução:

O profissionalismo é a base do contrato social que legitima a medicina como profissão e pode ser desenvolvido a partir da interação com bons modelos profissionais. No papel do preceptor, um profissional da saúde tem, entre seus atributos, o de acompanhar o estudante enquanto desenvolve sua função assistencial, tornando-se, consequentemente, um modelo na formação do futuro profissional.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo verificar a percepção dos preceptores do internato do Hospital Universitário de Vassouras (HUV) sobre a influência de modelos na formação médica.

Método:

Trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória, cuja metodologia foi constituída por duas etapas. A primeira compreendeu a aplicação de um questionário estruturado com dados sociodemográficos, enquanto a segunda contemplou a realização de grupo focal on-line.

Resultado:

Dos 42 preceptores, 28 participaram efetivamente (75,6%). A análise dos dados evidenciou a importância atribuída pelos preceptores ao seu papel de educador não só para a formação de futuros médicos tecnicamente capacitados ao exercício de uma medicina humanizada, mas também para profissionais dotados de princípios éticos, valores e compromissos.

Conclusão:

Os preceptores exercem a sua função com muito prazer e compromisso, autopercebendo que são modelos de profissionalismo e que podem representar exemplos positivos ou negativos para os estudantes. Ressalta-se que o tema profissionalismo necessita ser explicitado na construção dos currículos, em vez de ficar restrito ao currículo oculto na formação médica.

Palavras-chave: Currículo; Educação Médica; Empatia; Profissionalismo

Abstract:

Introduction:

Professionalism is the basis of social contract which legitimizes medicine as profession, and it can be developed through interaction with good professional models. As preceptor, health professionals have, among their attributes, to accompany students while developing his/her care function, thus becoming a model to form future professionals.

Objective:

This article aims to verify internship tutors’ perception on models’ influence on their medical training at the University Hospital of Vassouras (HUV).

Method:

This is an exploratory qualitative research, whose methodology consisted of two stages. The first comprised a structured questionnaire about sociodemographic data, while the second contemplated the accomplishment of an online focus group on the digital zoom platform.

Result:

From 42 preceptors invited to participate, 28 actually participated, representing 75.6%. Data analysis evidenced the importance attributed by preceptors to their role as educators not only for the training of future doctors technically qualified to exercise humanized medicine, but also for professionals endowed with ethical principles, values and commitments.

Conclusion:

It was concluded that preceptors exercise their role with great pleasure and commitment, self-perceiving that they are models of professionalism and that they can represent positive or negative examples for students. It is also noteworthy that the professionalism theme needs to be made explicit in the construction of curricula, rather than being restricted to the hidden curriculum in education.

Keywords: Curriculum; Medical Education; Empathy; Professionalism

INTRODUÇÃO

O profissionalismo consiste em princípios e compromissos que estabelecem relações caracterizadas pela integridade, pela ética, pela justiça social e pelo trabalho em equipe1. Docentes, estudantes e profissionais devem ter a clareza de que o profissionalismo é a base do contrato social que legitima a medicina como profissão. Dessa forma, o docente assume papel crucial no processo de formação de médicos imbuídos de valores essenciais à profissão2. O profissionalismo expressa expectativas médicas por meio de um conjunto de requisitos para que profissionais tenham competência clínica, comunicação efetiva, capacidade de abordar questões éticas e legais, além de valores morais como honestidade, integridade, responsabilidade, respeito, compaixão, empatia e capacidade de trabalhar colaborativamente3.

Os currículos das escolas médicas devem contemplar estratégias para desenvolver o profissionalismo do estudante, atributo imprescindível ao desenvolvimento da identidade profissional4),(5. Parcela dos determinantes críticos da identidade médica não vem do currículo formal, mas do currículo oculto, definido como conjunto de informações sutis e pouco reconhecidas6. Apesar de não estar presente nos currículos formais, o currículo oculto é onipresente e materializa-se pela transmissão de conhecimento por meio de atitudes e valores e até de omissões. Como não é explicitado oficialmente, sua existência e desenvolvimento dependem, portanto, dos docentes7. É imprescindível que educadores compromissados com valores profissionais estejam atentos ao currículo oculto como importante fator de formação8.

O currículo oculto contempla experiências de formação educacional e profissional de forma não intencional, relacionadas ao desenvolvimento de valores e atitudes, podendo ser considerado como o “pano de fundo” do processo de aprendizagem9),(10. Por meio do currículo oculto, o “preceptor modelo” representa a figura singular na formação médica, cujo perfil decorrerá da ação de modelos em sua formação, positivos ou negativos. O currículo oculto deve se tornar um fator positivo, que, alinhado ao currículo formal, contribua para que o aprendiz constate que o ensinado em sala de aula seja observado à beira do leito11.

O preceptor é um mediador da construção de conhecimento, com formação generalista ou especializada, que tem, entre suas atribuições, a de acompanhar o estudante enquanto realiza a sua função assistencial, momento em que representa modelo para o indivíduo em formação. A preceptoria, atividade na qual se evidencia o profissionalismo, é fundamental para melhorar a qualidade da formação técnica e pessoal e a prestação dos cuidados10.

Modelos positivos e negativos podem ter efeitos amplos e de longo prazo para pacientes e médicos, motivos pelos quais os preceptores devem estar cientes de que o seu comportamento e suas atitudes influenciam a formação dos alunos. Somente por meio de um esforço conjunto, no qual escola e professores reproduzam ao longo de todas as atividades atitudes profissionais e éticas, pode-se influenciar o comportamento do aluno a fim de que ele se torne um profissional ético e competente10.

Não há evidências de que todos os modelos com responsabilidade de ensino na educação médica tenham os atributos de um modelo a ser seguido. Embora, muitas vezes, o comportamento antiético dos modelos clínicos seja negativo, isso pode representar uma oportunidade de aprendizagem para avaliar criticamente as vantagens e desvantagens dos comportamentos12. A modelagem de papéis, quando o preceptor se torna modelo a ser reproduzido pelo estudante, constitui a estratégia principal para a transmissão de valores no ensino do profissionalismo5. O modelo de papel positivo representa uma estratégia eficaz para o desenvolvimento do profissionalismo13, e a modelagem oposta pode impactar negativamente o desenvolvimento do profissionalismo pelos alunos14.

A dificuldade em responder às demandas dos pacientes e da sociedade tem sido atribuída à falta de preceptores que sejam exemplos, uma vez que muitos parecem não compreender seu papel e sua responsabilidade em formar profissionais para que possam atender às necessidades da sociedade10.

Se, por um lado, a literatura é farta de textos que discutem internato e educação médica, por outro, não se encontram muitos trabalhos que enfoquem o modelo de preceptor, justificando a realização desta pesquisa.

Tendo em vista o fato de que o modo como o profissionalismo é ensinado impacta os comportamentos e a vida profissional, objetivou-se verificar a percepção dos preceptores do internato do Hospital Universitário de Vassouras (HUV) sobre a sua influência na formação dos alunos.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa qualitativa exploratória aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de Vassouras por meio do Parecer nº 3.908.653, de 10 de março de 2020.

A seleção dos sujeitos da pesquisa ocorreu por amostragem intencional, amplamente utilizada na pesquisa qualitativa, pois buscou-se selecionar uma fonte de dados rica em informações para o estudo15. Critérios de inclusão foram o participante atuar como preceptor do internato médico do HUV e concordar em participar da pesquisa, por meio do registro de concordância no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A pesquisa foi realizada em duas fases. A primeira consistiu no envio, via Google Formulário, de questionário a 42 preceptores das áreas de clínica médica, pediatria, cirurgia geral e ginecologia obstetrícia do internato no HUV. Oito perguntas relacionavam-se a dados sociodemográficos e informações profissionais: idade, sexo, ano de obtenção do grau de graduação e da especialidade, tipo de formação profissional, exercício de atividade docente na Universidade de Vassouras, titulação e formação pedagógica na área de ensino.

Diante do cenário imposto pela coronavirus disease 2019 (Covid-19), reunir presencialmente pessoas para ouvi-las, mesmo que em pequenos grupos, produziria risco de contágio viral. Foi então necessária a idealização de estratégias para obtenção das informações, preservando ao máximo detalhes (como a fala, a interação, as expressões faciais), riquezas pertinentes aos encontros presenciais.

A segunda fase da pesquisa se deu com realização dos grupos focais on-line, via plataforma Zoom16. Publicações indicam que reuniões de grupos focais on-line representam uma estratégia que permite a participação, a interação e o engajamento com percepções semelhantes e muito próximas às vividas nos grupos presenciais17. A pesquisa foi realizada em junho e julho de 2020, com cinco encontros de grupos focais. A amostra foi dividida em grupos de acordo com a disponibilidade dos participantes. Os grupos foram heterogêneos em relação às áreas e experiências para fomentar o estímulo e a discussão, e fornecer novos insights sobre tema18.

Durante os meses em que os grupos focais foram realizados, havia a recomendação de restrição de convívio social devido à Covid-19, justificando o não retorno dos preceptores às atividades práticas. Não foi possível, portanto, avaliar a percepção do preceptor sobre o exercício de sua função durante a pandemia. Como as perguntas foram aprovadas pelo CEP antes da pandemia, não se avaliou a percepção do preceptor sobre sua atuação nesse período.

Formaram-se grupos focais compostos por seis a oito preceptores, além de um pesquisador e um moderador em cada grupo. O tempo destinado às sessões variou de 60 a 90 minutos. A condução do grupo baseou-se em roteiro de quatro perguntas:

  • O que é ser preceptor?

  • Qual é a característica principal do seu preceptor modelo?

  • Qual de suas características irá permanecer na formação do seu estudante?

  • Que conselho você deixaria a um novo preceptor?

Os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo, técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática e qualitativa do conteúdo manifestado por meio das comunicações19. A análise dos dados foi realizada por meio da descrição feita pelo pesquisador dos conteúdos dos cinco encontros dos grupos focais on-line, e, após a transcrição das respostas, cada pesquisador individualmente agrupou as respostas em categorias e itens. Realizaram-se a revisão e a análise das categorias e dos itens, que foram agrupados e disponibilizados em uma tabela e em quatro quadros.

RESULTADOS

Do universo de 42 preceptores, aceitaram participar da pesquisa 28 (75,6%). A não participação de 24,3% dos preceptores se deveu à dificuldade de conexão digital, ao acesso à sala Zoom (14,3%) e a problemas pessoais (10%). Dados sociodemográficos são apresentados na Tabela 1.

Tabela 1 Características sociodemográficas dos 28 preceptores. 

n %
Sexo
Masculino 17 60,7%
Feminino 11 39,3%
Idade (média ± DP) 50,4 ± 11,1
Escolaridade (maior titulação)
Doutorado 2 7,1%
Mestrado 14 53,6%
Especialização médica ou residência 11 39,3%
Formação
Especialização 5 17,9%
Residência médica 15 53,6%
Especialização e residência médica 8 28,6%
Tempo de experiência profissional (média ± DP)
Especialização 22,6 ± 13,1
Residência 22,5 ± 10,6
Especialização e residência 33,5 ± 9,1
Área de atuação
Clínica médica 14 50%
Cirurgia geral 6 21,4%
Pediatria 4 14,3%
Ginecologia e obstetrícia 4 14,3%
Exercício da função docente
Não 7 25,0%
Sim 21 75,0%
Tem formação pedagógica na área de ensino
Não 4 14,3%
Sim 24 85,7%
n %
Tipo de formação pedagógica na área de ensino
Especialização 1 3,6%
Especialização e mestrado 2 7,1%
Oficina 13 46,4%
Oficina e curso de atualização 5 17,9%
Oficina, curso de atualização e mestrado 4 14,3%
Oficina, curso de atualização, mestrado e doutorado 1 3,6%
Oficina, especialização e curso de atualização 1 3,6%
Oficina, especialização, curso de atualização e mestrado 1 3,6%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Declararam ter formação pedagógica 85,7% dos preceptores, a qual ocorreu por meio da Oficina de Desenvolvimento e Competência Pedagógica para Preceptores (ODCPP), com carga horária total de 180 horas e atividades desenvolvidas no ambiente presencial (60 horas) e a distância (120 horas), promovida pelo HUV em parceria com a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem). Quanto à área de atuação, 50% dos preceptores eram da clínica médica, 14,2% da pediatria, 14,2% da ginecologia e obstetrícia (GO) e 21,4% da cirurgia geral. Áreas com menor adesão à pesquisa foram pediatria (14,3%) e GO (14,3%) (Tabela 1).

A função de preceptor e docente no curso de graduação em Medicina é exercida por 75% dos participantes, enquanto 25% dedicam-se exclusivamente à preceptoria. Não se analisou se havia respostas diferentes entre os que exercem docência e preceptoria e os que se dedicam exclusivamente à preceptoria.

Para cada pergunta do grupo focal objetivando verificar a percepção do preceptor sobre a influência da formação médica, foram produzidas categorias para análise (produção de dados). A pergunta “O que é ser preceptor” resultou em quatro categorias: educador, ensino em ambientes clínicos, motivação e dificuldades (Quadro 1).

Quadro 1 Análise dos dados produzidos a partir das repostas à pergunta “O que é ser preceptor?” 

CATEGORIAS ITENS EXEMPLOS DE DISCURSO
Educador Formar integralmente “ensiná-los que não é apenas técnica, é entender angústia do paciente” (P13, masc., 60 anos).
Ensino em ambientes clínicos Profissionalismo “ensiná-los a trabalhar em equipe” (P1, fem., 48 anos).
Desenvolvimento de autonomia “basta ser um nobre incentivador que tudo se alavanca automaticamente” (P19, masc., 66 anos).
Ensinar pelo exemplo “o exemplo que você der vai marcar a vida dessa pessoa” (P10, fem., 62 anos).
Motivação Aperfeiçoamento “ser preceptor nos faz crescer como pessoa” (P16, masc., 39 anos).
Dificuldades Desafios “ensinar que pacientes são diferentes do livro” (P4, fem., 38 anos).
Carga excessiva de trabalho “às vezes, o estudante é um peso para mim” (P12, masc., 44 anos).

Fonte: Elaborado pelos autores.

Na categoria educador, foi observada a importância de formar integralmente o estudante a fim de graduar profissional dotado de aspectos técnicos e humanísticos, valorizador do relacionamento interprofissional. Atenção ao relacionamento médico-paciente humanizado esteve presente no discurso dos participantes. Na categoria ensino em ambientes clínicos, observou-se preocupação dos preceptores com profissionalismo e desenvolvimento da autonomia, da ética, do trabalho em equipe e do ensinar pelo exemplo, cabendo-lhes ser incentivadores dos alunos. Já na categoria motivação, pôde-se observar o quanto é gratificante para o profissional exercer a função de preceptor. Na categoria dificuldades encontradas no exercício da preceptoria, registraram-se desafios de ensinar e a sobrecarga de trabalho.

Quanto à segunda pergunta “Qual é a característica principal do seu preceptor modelo?”, os resultados mostraram um conjunto de categorias expressas por profissionalismo, relacionamento humano e educador (Quadro 2). Profissionalismo foi mencionado em itens relacionados ao conhecimento técnico, pautado, porém, na ética e no humanismo. Na categoria relacionamento humano, evidenciou-se a importância do preceptor não somente na formação profissional dos estudantes, mas também na vida pessoal. Na categoria educador, a formação, como exemplo e modelo, ficou marcada para esse preceptor, e a segurança na transmissão de conhecimento foi mencionada como muito importante. Os itens foram rigor como necessidade de orientação em determinadas etapas da formação do estudante e disponibilidade desse preceptor em poder escutar os alunos em suas necessidades.

Quadro 2 Análise dos dados produzidos a partir das repostas à pergunta “Qual é a característica principal do seu preceptor modelo?” 

CATEGORIAS ITENS EXEMPLOS DE DISCURSO
Profissionalismo Conhecimento técnico “era modelo de muito conhecimento em época totalmente diferente” (P22, masc., 64 anos).
Ética e humanismo “não tinha a tecnologia que tem hoje, mas tinha o calor humano” (P22, masc., 64 anos).
Relacionamento humano Rigor “naquele momento eu precisava desse rigor, eu acho que isso que me fez crescer” (P14, masc., 65 anos).
Disponibilidade para escutar “estava sempre pronto a nos escutar em qualquer momento” (P6, fem., 39 anos).
Educador Formador “o meu exemplo, exigente, exemplar formador” (P2, masc., 62 anos).
Segurança “meu preceptor dizia: ‘Você tem capacidade, vai lá e faz, eu estou ao seu lado’” (P21, masc., 63 anos).

Fonte: Elaborado pelos autores.

As percepções sobre a questão “Qual de suas características irá permanecer na formação do seu estudante” geraram o mesmo conjunto de categorias que foram catalisadas na pergunta “Qual é a característica principal do seu preceptor modelo?”, mostrando que as características deixadas pelos preceptores modelos dos participantes e pelos atuais preceptores do HUV são aquelas que eles pretendem deixar em seus estudantes. As características foram categorizadas em profissionalismo, relacionamento humano e educador (Quadro 3). Na categoria profissionalismo, observou-se o relacionamento médico-paciente pautado na ética, no humanismo e no compromisso com paciente. Evidenciou-se a relevância do amor à profissão pelos preceptores. Na categoria relacionamento humano, registrou-se preocupação do preceptor em fomentar o desenvolvimento da competência de escutar o outro. E como educador, o preceptor se coloca na função de inspirar estudante mantendo-se atento para que não perca a sua individualidade.

Quadro 3 Análise dos dados produzidos a partir das repostas à pergunta “Qual de suas características irá permanecer na formação do seu estudante?” 

CATEGORIAS ITENS EXEMPLOS DE DISCURSO
Profissionalismo Compromisso com o paciente “que possam citar pelo menos minha característica do compromisso com paciente” (P22, masc., 64 anos).
Amor à profissão “sempre tento deixar que amo o que faço” (P6, fem., 39 anos).
Relacionamento humano Escutar o outro “em 2030 eu não sei se a gente vai ter o olho no olho” (P11, fem., 56 anos).
Educador Exemplo, inspirador “continuar inspirando esses alunos a fazerem a minha especialidade” (P1, fem., 48 anos).

Fonte: Elaborado pelos autores.

As respostas à quarta pergunta “Que conselho você deixaria a um novo preceptor?” foram agrupadas em duas categorias: competência profissional e competência emocional (Quadro 4). Na categoria competência profissional, registraram-se os itens profissionalismo, educador e exemplo. Na competência emocional, o item apresentado foi a empatia.

Quadro 4 Análise dos dados produzidos a partir das repostas à pergunta “Que conselho você deixaria a um novo preceptor?” 

CATEGORIAS ITENS EXEMPLOS DE DISCURSO
Competência profissional Profissionalismo “tem que ter formação, postura e certeza de que isso que você quer. Os alunos são exigentes” (P21, masc., 63 anos).
Educador “O preceptor é o grande elo de formação do aluno” (P28, masc., 46 anos).
Exemplo “as palavras ensinam, o exemplo arrasta!” (P22, masc., 64 anos).
Competência emocional Empatia “procuro me colocar no lugar dele para entender o que ele precisa” (P12, masc., 44 anos).

Fonte: Elaborado pelos autores.

DISCUSSÃO

O HUV é cenário de prática para os estudantes de Medicina da Universidade de Vassouras, no estado do Rio de Janeiro. Módulos do internato são realizados nesse hospital, o que justifica a preocupação com profissionalismo no processo de trabalho dos preceptores.

O percentual (85,7%) de preceptores que declararam participação em capacitações pedagógicas contribui para o aprimoramento do internato, ratificando que a formação pedagógica dos docentes se constitui em diferencial para qualidade da educação médica20. É importante que ações de educação permanente voltadas aos preceptores sejam planejadas pelas instituições e pelos hospitais de ensino. Este estudo apresentou porcentagem elevada de preceptores com formação pedagógica, divergindo dos estudos de Botti21, que observou percentual da formação pedagógica por, no máximo, 50% dos preceptores. Entretanto, não foi encontrado estudo que mostrasse a diferença da percepção por preceptores que não são docentes de graduação em relação aos que desempenham a função de professor no curso.

O tema profissionalismo foi abordado na ODCPP. É importante a abordagem desse tema que, como constructo, poderá reduzir lapsos e fomentar uma assistência pautada no respeito à autonomia das pessoas e na responsabilização social22),(23. O “movimento do profissionalismo” surgiu porque a medicina e a sociedade acreditavam que o profissionalismo da medicina estava ameaçado por seus próprios fracassos e pela evolução dos cuidados modernos em saúde11),(13.

Wuillaume et al.20 citam a influência da própria formação profissional do preceptor no seu desempenho como educador, o que, de fato, foi constatado entre os participantes desta pesquisa. Os grandes mestres do ensino médico do passado criaram padrões que ainda servem de modelo para os atuais preceptores, sobretudo os mais idosos20. Os preceptores do HUV relataram que têm características e reproduzem condutas que foram observadas em seus professores modelos. Esses resultados corroboraram os achados de Gardeshi et al.24 de que o preceptor tido como modelo desempenha papel fundamental para a formação, pois representa o espelho de valores técnicos, éticos e humanísticos para futuro médico, transformando-o por meio da autonomia vigiada e permitindo-lhe desenvolver senso crítico15),(16. Coincidentemente, os preceptores do HUV revelaram-se compromissados em incentivar os estudantes a consolidar a individualidade.

Em consonância ao que foi citado por Horsburgh et al.25, de que osalunos aprendem com os preceptores e há atributos essenciais aos modelos positivos, como excelente conhecimento clínico, reconhecidas habilidades, abordagem centrada no paciente e prática profissional humanizada e exercida com empatia e compaixão, os participantes desta pesquisa mencionaram vários desses atributos como desejáveis a um preceptor.

Interações do estudante com modelos positivos e o contato com seu entusiasmo pessoal e profissional podem impactar sua formação, de modo a influenciar inclusive a escolha da especialidade e dos rumos de carreira profissional19),(26. Um modelo é um ideal a ser perseguido. Ninguém é um modelo perfeito em todos os momentos17. A modelagem negativa ainda representa um grande desafio para os educadores. Neste estudo, os preceptores evidenciaram que não trazem consigo características de seus modelos negativos e que isso faz com que se atentem em ser modelos positivos. A influência da modelagem negativa na educação médica requer pesquisas mais profundas a fim de se identificarem maneiras de mitigar seus desdobramentos6),(27),(28.

Os modelos na formação não estão contemplados no currículo formal, constituindo-se em participação não explícita na formação do futuro profissional, compondo o chamado currículo oculto da educação3. Assim como existem modelos positivos, em sintonia com objetivos da escola, há os negativos, contrariando os desejos da formação acadêmica e da sociedade18. O currículo oculto resulta das relações interpessoais vividas academicamente, extrapolando o currículo formal, o que pode ser um facilitador ou um empecilho ao aprendizado. Decorre das relações interpessoais que se desenvolvem na esfera acadêmica, com destaque para aquelas que emergem de situações cotidianas e não se encontram estabelecidas no currículo formal5.

A preceptoria constitui-se em uma via de mão dupla, de mútua aprendizagem. Contudo, há desafios a serem superados. Os participantes desta pesquisa citaram que enfrentam dificuldades devido à presença dos estudantes no seu ambiente de trabalho, pois é gerada sobrecarga em suas atividades. Contudo, consideram que a qualidade do seu desempenho melhora quando têm alunos os acompanhando, pois isso demanda que se mantenham atualizados para ensinar.

Observou-se, entre os participantes, a preocupação em modelar o profissionalismo em seus alunos, o que significa ouvi-los em suas necessidades, estimular as individualidades e ensiná-los a construir conhecimento, pois a competência clínica engloba conhecimentos e habilidades, comunicação com pacientes e equipe, e raciocínio clínico sólido associado à tomada de decisões17.

Entre as limitações deste estudo, está o fato de que sua reprodutibilidade se restringe às instituições nas quais a construção da matriz curricular seja coletiva, em clara demonstração de participação democrática na educação. Também temos como limitação a não realização da pesquisa com os grupos de alunos da instituição sobre a visão deles em relação aos preceptores. Como diferencial, evidencia a relevância de que os gestores educacionais identifiquem a percepção dos preceptores sobre profissionalismo, a fim de instituírem medidas fomentadoras de bons modelos. Adicionalmente, este estudo difere dos demais por sugerir a contemplação, nas capacitações pedagógicas, dos temas currículo oculto e profissionalismo, e também a inclusão na matriz curricular da competência a ser desenvolvida pelo estudante: “identificar bons modelos de preceptores que me sirvam de exemplo”.

CONCLUSÕES

Ser preceptor é uma função que todos os participantes da pesquisa exercem com muito prazer e compromisso. Os preceptores têm como características marcantes dos seus preceptores o fato de que muitos se tornaram seus exemplos, não só de vida profissional, mas também pessoal. A afirmativa de que o preceptor modelo “não morreu, pois está vivo em mim” foi citada por vários participantes.

Transmitir para seus alunos os princípios do profissionalismo médico pautados na ética e na medicina humanizada é um compromisso demonstrado pelos preceptores do HUV. Exercer a função de preceptoria não requer apenas conhecimento técnico, mas também exige colocar-se no lugar do aluno e entender aquilo de que ele precisa. Constatou-se que os preceptores têm clareza da presença do currículo oculto e do seu impacto no processo de formação da identidade profissional.

Concluiu-se que o tema profissionalismo poderia ser explicitado na construção dos currículos, em vez de ficar restrito ao currículo oculto na formação médica, subsidiando gestores na otimização do processo educacional.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 04 de Março de 2022; Aceito: 29 de Março de 2022

sm.vilagra@uol.com.br marlonvilagra@gmail.com henrik17@gmail.com wernecklahis@gmail.com mcas.souza@uol.com.br patrícia.tempski@fm.usp.br

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Pedro Tadao Hamamoto Filho.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Sandra Maria Barroso Werneck Vilagra participou da coleta e interpretação de dados, e da redação e revisão final do artigo. Marlon Mohamud Vilagra participou da coleta e interpretação de dados, e da revisão final do artigo. Henrik Werneck Vilagra e Lahis Werneck Vilagra participaram do levantamento das referências e da redação do artigo. Maria Cristina de Almeida Souza participou do levantamento das referências e da revisão do artigo. Patrícia Zen Tempski delineou a pesquisa e participou da discussão dos resultados e da revisão final do artigo.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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