INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, instalou-se uma grande crise no sistema mundial de saúde em razão dos limites do paradigma biomédico hegemônico no Ocidente, reconhecido como a verdadeira ciência1. Algumas causas estão em amplo debate, como insatisfação dos pacientes, baixa resolubilidade das doenças crônicas, medicalização excessiva, desumanização na clínica e na hospitalização, avanço tecnológico, custos crescentes, dificuldade de acesso ao sistema público e aumento na desigualdade social estrutural entre cidadãos e entre nações.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi desafiada a encontrar soluções e a partir disso estimulou ações para fomentar pesquisas relacionadas às Medicinas Tradicionais (MT), de modo a revitalizar conhecimentos ancestrais. Uma das respostas encontradas foi que as limitações do paradigma biomédico podem ser reduzidas diante da pluralidade de práticas em saúde e da diversidade cultural quando se reconhecem outros sistemas médicos. Assim as MT passaram a ser uma estratégia importante para a superação dessa crise global nos sistemas públicos de saúde.
Nas últimas décadas, a inserção das MT nos sistemas públicos de saúde está crescentemente atendendo ao propósito de aumentar a qualidade de vida das populações. Medicinas Tradicionais Complementares e Integrativas (MTCI) é a expressão recentemente adotada que significa um amplo conjunto de práticas baseadas em teorias de diferentes culturas com ênfase na prevenção de doenças e na promoção e recuperação da saúde2),(3. Em muitos países, elas são a principal e, às vezes, a única via de acesso à saúde para a população, e, em outros, o sistema convencional biomédico é a principal oferta. Nesse sentido, é fundamental ter em conta que não estamos tratando de um movimento isolado nem regionalizado, mas de um esforço mundial.
As MTCI trazem à luz saberes e práticas com visão ampliada, complementar e integradora, que refletem a complexidade da vida com interfaces biológica, mental, emocional, espiritual, social, cultural e ambiental, considerando os pressupostos da ciência moderna. Grande parte dessas práticas está pautada no paradigma vitalista, centrado na “vida” e na “saúde”, cuja concepção é originária da Antiguidade ocidental clássica e de antigas tradições médicas orientais as quais possuem conhecimentos doutos e etnológicos de saúde2.
O paradigma biomédico, constituído no nascimento da racionalidade científica moderna no século XVII, estruturou-se a partir do século XIX com os avanços científicos da medicina ocidental moderna e na América foi forjado no modelo flexneriano de educação médica. Esse paradigma tem a “doença” como foco de pensamento e ação, próprio da racionalidade científica moderna.
Madel Luz, pesquisadora que definiu a expressão “Racionalidades Médicas”, afirma que um dos grandes desafios na construção de um Sistema Único de Saúde (SUS) universal, dentro da proposta integrativa e complementar, é a dificuldade de integração do paradigma biomédico ao vitalista nos cursos formativos, em virtude de suas divergências fundamentais e estruturais3. A expressão Racionalidades Médicas possui fundamento teórico-conceitual e epistemológico, sendo uma categoria analítica no âmbito teórico da ciência, cuja construção lógica é empiricamente estruturada em dimensões que são verificáveis de acordo com os procedimentos da racionalidade científica moderna4. Racionalidades Médicas são identificadas como todo sistema médico complexo que contém cinco dimensões: morfologia humana, dinâmica vital, doutrina médica, sistema diagnóstico, sistema terapêutico e mais um aspecto que pode ser considerada a sexta dimensão, a cosmologia. Esse conceito permite o estudo de outras Racionalidades Médicas vigentes em nossa cultura que são ativas e simultâneas à biomedicina. Dentro desses sistemas, estão: medicina ocidental moderna, medicina tradicional chinesa, medicina ayurvédica, medicina unani, medicina homeopática e medicina antroposófica.
O contexto político-institucional
Em busca de inserção e integração das MTCI nos sistemas públicos de saúde, foram lançadas estratégias mundiais que orientam os níveis legislativo, político, acadêmico e assistencial. O objetivo central foi reconhecer as MTCI garantindo qualidade, segurança e eficácia mediante uso adequado e regulação de produtos, práticas e praticantes5),(6. A OMS reforçou, em conferência realizada em Astana, em 2018, a importância da integração de conhecimentos científicos e tradicionais para atender à atenção primária, bem como o Relatório Global de 20197) registrou que 90% dos países fizeram significativas contribuições em MTCI, dos quais 50% já tinham leis e/ou regulamentações. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)8 desenvolve ações convergentes: “Rede MTCI Américas”9, que reúne países latino-americanos, e “Biblioteca Virtual em Saúde-MTCI” em um repositório de produção acadêmica10.
As MTCI são denominadas, no Brasil, de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) e foram desenvolvidas a partir de uma política pública específica no SUS: a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC)11, lançada em 2006 com cinco modalidades originárias. Atualmente conta com 2912)-(14. Neste texto, será utilizada a sigla “PICS/MTCI”, representando a nomenclatura comumente utilizada nacional e mundialmente. Dados recentes do Ministério da Saúde registram a presença dessas práticas em todas as capitais, bem como em mais de quatro mil municípios, o que significa um cenário nacional de 67%, em mais de 17 mil serviços de saúde. Esses dados correspondem a 90% das PICS na atenção primária. No plano prático, a PNPIC está relacionada “às políticas de cuidado à saúde, possibilitando que intervenções diagnósticas e terapêuticas de sistemas médicos não hegemônicos obtenham legitimidade institucional, consideradas sua coerência teórica e consistência terapêutica” (p. 18)15.
Diante da ascendência desse ramo na Saúde Coletiva4, é importante destacar que o Brasil está na vanguarda desse movimento com iniciativas governamentais, organização e regulação da oferta no SUS. Algumas instâncias seguem diretrizes mundiais e promovem essas práticas: “RedePICS Brasil” - participa da luta em defesa dos princípios do SUS como política universal, inclusiva e civilizatória, reforçando o papel da atenção primária; “ObservaPICS” - agrega instituições públicas, promove a comunicação das PICS e partilha experiências e estudos com pesquisadores, gestores e usuários do SUS; “Consórcio Acadêmico Brasileiro para Saúde Integrativa - CABSIN” - centro de excelência em MTCI, composto por pesquisadores-referências na construção do conhecimento científico com mapas de evidências e tradução de ordem prática para gestores.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina16 trazem a orientação de transformar o perfil do egresso de modo a contemplar as necessidades da população, visando atender às demandas do SUS, como promoção de profissionais generalistas, dotados de crítica reflexiva e ética, pautada na responsabilidade com a sociedade brasileira e no compromisso com o país. Essas diretrizes, que têm muitos conteúdos pautados na Saúde Coletiva, podem contribuir para o desenvolvimento de uma postura acadêmica aberta a novos conhecimentos e à transformação da própria prática biomédica, diante de um diálogo entre academia e sistema público.
O desafio da formação médica
A expansão mundial das PICS/MTCI nos serviços públicos de saúde promoveu o debate sobre a necessidade de formação de profissionais qualificados. Em relação à formação médica, há uma variedade de formas de inserção desse conhecimento em países como Estados Unidos, Canadá, México, Reino Unido, Alemanha, Taiwan, Japão, Coreia do Sul, entre outros. A oferta ocorre de variadas formas, como disciplinas obrigatórias ou optativas na graduação, módulos na pós-graduação, em programas específicos e em cursos livres.
Segundo Tesser et al.17, essa expansão está gerando uma valorização das PICS/MTCI com institucionalização de regulamentos e legislações. Na Suíça, 46% dos médicos têm alguma formação em PICS/MTCI. O uso e a indicação de alguma prática estão relacionados a 50% dos médicos ingleses, a 32% dos franceses, a 20% dos alemães e a 50% dos holandeses. Os Estados Unidos e Cuba são referências mundiais em MTCI com políticas indutoras no período formativo, fortalecendo o conhecimento científico e a atuação profissional posterior. Os mesmos autores, em estudo posterior, indicaram que 78% da oferta das práticas no SUS está na atenção primária, 16,7% na média complexidade e 3,4% na alta complexidade: “Nas últimas décadas houve uma crescente revalorização das MTCI, com aumento da demanda, legitimação social e regulamentação institucional, inclusive em países de alta renda em que o uso da biomedicina está bem estabelecido e disseminado” (p. 175)17.
De acordo com Bailey et al18, 40% da população adulta norte-americana usa PICS/MTCI (nos Estados Unidos, nomeada medicina complementar e alternativa). Desde 1999, instituições como a American Association of Medical Colleges (AAMC) e, segundo Appelbaum et al.19, o Comitê Científico do Instituto de Medicina reconhecem a necessidade de aplicação desses conhecimentos na educação médica e apontam a incorporação de informações suficientes para que os profissionais possam orientar pacientes com competência. Segundo esses autores, PICS/MTCI, em Cuba nomeada de Medicina Natural e Tradicional, não é aprendida além dos conhecimentos convencionais, mas sim incorporada em todos os níveis do currículo, cujos conhecimentos complementam e integram a medicina convencional sem conflitos na academia e nos serviços.
No Brasil, a qualificação profissional se constitui num grande desafio em busca de qualidade, segurança e efetividade. Não existem ações indutoras que formem profissionais qualificados para o SUS. Há ofertas de cursos livres da iniciativa privada, entretanto apresentam limitações para atender à esfera pública. Existem ofertas em pós-graduações, mas com restrições e nem sempre atendem ao perfil para o trabalho na atenção primária. Em relação à graduação, a presença dessas práticas está sob oferta de disciplinas optativas ou conteúdos aplicados em outras disciplinas, nem sempre integradas ao projeto político-pedagógico do curso. De maneira geral, a inserção é incipiente e demonstra grande desconhecimento temático17.
De 272 escolas médicas, apenas 20,9% apresentaram ensino em PICS, não havendo crescimento na inserção de saberes e práticas vitalistas nos últimos dez anos. Apesar de o quantitativo de escolas médicas ter triplicado desde 2006 com o Programa Mais Médicos na interiorização das universidades e com a regulamentação da PNPIC, não houve crescimento expressivo nos currículos de graduação20.
Os valores que permeiam a educação médica impactam diretamente o sistema de saúde, pois, ao se formarem, os estudantes irão atuar como médicos da rede de atenção e para lá levarão atitudes e valores, além de habilidades e competências. É na formação que há a oportunidade de desenvolver uma forma essencialmente humana de lidar com o outro, com os companheiros de trabalho e com o mundo, e isso fará do médico um profissional comprometido com a vida das pessoas e com a sociedade21.
Se a formação médica é importante para o avanço da PNPIC visando à resolubilidade do sistema público de saúde no Brasil, o SUS, e se o grande desafio é a dificuldade de conciliação dos dois paradigmas, para superar essa questão é necessária uma reflexão crítica sobre a temática. Dessa forma, a hipótese de base deste artigo é que contemplar conteúdo sócio-histórico, epistemológico e político-institucional de Racionalidades Médicas no currículo das escolas médicas poderá contribuir para qualificar o cuidado convencional destinado à saúde com integração e complementaridade de práticas vinculadas à abordagem vitalista. A inserção deste conhecimento científico no período formativo poderá conduzir os acadêmicos para valores como a humanização dos procedimentos gerais e específicos para aumentar a qualidade de vida e de saúde da sociedade brasileira.
A inserção das Racionalidades Médicas na Universidade Federal da Fronteira Sul
Com base na preocupação anteriormente descrita, a área de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó, ofertou um componente curricular optativo para o terceiro ano do curso de Medicina com 36 horas-aula: “Racionalidades Médicas e PICS no SUS”. O objetivo principal foi estimular uma reflexão crítica sobre os paradigmas biomédico e vitalista na formação médica vinculados ao aspecto cultural das formas de cuidado, visando ao reconhecimento e à valorização das práticas vitalistas de cuidado destinado à saúde. A justificativa fundamental para inserção dessa temática foi atualizar os acadêmicos sobre políticas mundiais e nacionais relacionadas ao tema, que ampliam opções terapêuticas, reduzem a medicalização, humanizam o atendimento, previnem doenças e promovem saúde.
A parte teórica do curso foi estruturada na obra Racionalidades Médicas e práticas integrativas em saúde: estudos teóricos e empíricos15 e contou com o seguinte conteúdo programático: medicalização da sociedade ocidental contemporânea; estratégias da OMS; âmbito científico das Racionalidades Médicas; Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares; medicina tradicional chinesa; medicina homeopática; plantas medicinais e fitoterapia; termalismo e crenoterapia; medicina antroposófica; cuidado de si e do outro; integralidade. O recurso didático foi baseado em dinâmicas teórico-vivenciais pautadas em metodologias ativas, em que os alunos puderam experimentar práticas terapêuticas individuais e coletivas com profissionais convidados para realização de acupuntura, auriculoterapia, craniopuntura, shiatsu, ventosas, moxabustão, ioga, meditação, reiki, dança circular, plantas medicinais e tai chi chuan.
Diante da relevância dessa oferta e da dificuldade de integração dos paradigmas biomédico e vitalista ao longo do período formativo do curso de Medicina, foi desenvolvida uma pesquisa que resultou neste artigo. O objetivo foi avaliar o interesse dos acadêmicos pela temática pouco reconhecida nos cursos de graduação em Medicina do Brasil, mas crescentemente valorizada e incorporada na educação médica de muitos países.
MÉTODO
A pesquisa seguiu as normas éticas da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFFS, campus Chapecó, em Santa Catarina: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 89184618.9.0000.5564. Com a finalidade de atender ao objetivo proposto, a trajetória metodológica escolhida foi mista, integrando as abordagens qualitativa e quantitativa, relevantes na condução do estudo e na análise da complexidade da realidade pesquisada22. Para ambas as abordagens, a fonte primária de pesquisa foi a coleta de dados por meio da aplicação de questões abertas para análise qualitativa e de um questionário fechado para a quantitativa. Os instrumentos para coleta foram elaborados especialmente para este estudo.
A investigação teve um delineamento exploratório-descritivo23, com análise qualitativa realizada de acordo com Minayo24),(25, a qual relaciona a noção de tema e busca responder questões que não podem ser quantificáveis em razão de os conteúdos desse tipo de análise trabalharem em contexto de múltiplos significados. Essa abordagem é relevante porque crenças, valores e atitudes são aspectos intrínsecos e imanentes das visões de mundo dos sujeitos, historicamente construídas individual e coletivamente. Essa modalidade desenvolve uma análise temática mediante a sistematização do estudo em três etapas: 1. pré-análise com leituras flutuantes até obter um corpus de informações; 2. exploração do material coletado com sistematização do conteúdo de maior densidade; e 3. tratamento dos resultados obtidos mediante interpretação qualitativa.
Na pré-análise, o investigador organiza o material, e, de acordo com os objetivos e a questão de estudo, definem-se a unidade de registro, a unidade de contexto, os trechos significativos e as categorias. Para isso, realizam-se leituras flutuantes dos dados originais do estudo, no sentido de tomar contato com a estrutura das narrativas, encontrando orientações para registros de impressões. Na exploração do material pressupõe-se a aplicação do que foi definido na pré-análise, com a necessidade de repetir a leitura para dar densidade ao conteúdo e visando à extração dos núcleos de sentido e categorias, com registro da frequência em que ocorrem os núcleos e os sentidos atribuídos por cada sujeito. Para o tratamento dos resultados obtidos busca-se o desvendamento do conteúdo subjacente ao que está exposto ou sendo manifestado nas narrativas escritas dos participantes. Essa etapa, interpretativa da análise, contribui para a informação de ideologias, tendências e características do fenômeno que está sendo estudado25.
A coleta dos dados para exploração, tratamento e análise foi realizada em duas ocasiões: i) inicialmente, aplicou-se uma questão aberta para resposta manuscrita individual no primeiro dia de aula, quando estavam presentes 17 acadêmicos (77,2%): “Quais as suas expectativas quanto ao componente optativo?”; ii) no último dia de aula, foram devolvidas as respostas manuscritas a cada aluno, e aplicou-se outra questão aberta, para ser respondida também de forma manuscrita, quando estavam presentes os 22 alunos (100%): “Considerando suas expectativas no início do componente, pedimos que releia o que escreveu na ocasião e relate como avalia o componente ao seu término”. Os dados coletados por meio dessas questões foram digitalizados e codificados. Essa sistematização possibilitou a extração de categorias para o desenvolvimento da análise.
A análise quantitativa compreendeu uma coleta dos dados realizada por meio de questionário fechado, aplicado no último dia de aula, com a participação dos 22 alunos (100%). O questionário apresentava quatro perspectivas, com suas variáveis correspondentes: 1. participação: motivação, nível de aprendizagem e utilização dos materiais recomendados; 2. desenvolvimento do componente: avaliação do conteúdo, domínio, estruturação e profundidade da abordagem; 3. recursos utilizados, infraestrutura e tempo: estratégias de ensino, material didático, carga horária, número de estudantes matriculados e infraestrutura; 4. avaliação geral: programa do componente, método pedagógico, conjunto de professores convidados e o componente em seu conjunto.
Armazenaram-se as informações coletadas em planilhas eletrônicas no programa Microsoft Office 2016, transferindo-as posteriormente para o programa Stata 11. Os dados foram apresentados de forma descritiva caracterizada por frequências absoluta e relativa e medidas de tendência central e dispersão, compondo um delineamento de estudo transversal26.
RESULTADOS
Estudo qualitativo: avaliação dos estudantes sobre a integração dos paradigmas na formação médica
Para os resultados relacionados à abordagem qualitativa, foram extraídas as seguintes categorias: 1. paradigma biomédico - que refletiu o interesse dos estudantes em avançar o conhecimento além dos saberes convencionais; 2. paradigma vitalista - que apontou o desejo de conhecer práticas de saúde que integram e complementam a medicina convencional; e 3. dinâmica teórico-vivencial - que avaliou os recursos didáticos utilizados.
Quanto ao paradigma biomédico
Alguns estudantes conheciam as PICS/MTCI, mas sem aprofundamento acadêmico. Entretanto, o conceito Racionalidades Médicas e esse ramo científico da Saúde Coletiva era totalmente desconhecido dos acadêmicos. A descoberta de novos saberes e o desejo de aprofundar os estudos e reposicionar reflexões de modo diferenciado do modo convencional que rege a formação médica, foram relatados como aspectos de interesse e estímulo.
Os estudantes compreenderam a possibilidade de um modo distinto de pensar a clínica, diante do corpo, da mente e da alma do ser humano, buscando modos de reduzir a medicalização e as intervenções da medicina convencional. A trajetória de outras medicinas e suas práticas, seus benefícios, a importância da observação do ambiente e aspectos relacionais e interrelacionais favoreceram novos olhares com base em um novo conceito de saúde. Conhecer como outras culturas vivenciam o processo saúde-doença-cuidado ao longo da história da humanidade foi um ponto de destaque. Nesse sentido, um acadêmico mencionou o seguinte:
Conhecer melhor os benefícios das práticas integrativas na saúde dos pacientes; quando orientar a estes o uso destas ferramentas, a quem procurar ajuda quando não souber o necessário sobre esse conhecimento, da mesma forma como conhecer a história, a origem, influências das práticas ao longo do desenvolvimento da história da área da saúde.
O componente permitiu o entendimento de que a medicina ocidental não é a única forma disponível de conhecimento, sendo importante ir além do processo formativo e dar vazão a uma perspectiva diferente da abordagem convencional. Ampliar a visão permite não fixar o raciocínio clínico exclusivamente na doença. Assim, as expectativas iniciais foram não só contempladas, mas também superadas com sucesso, sendo o componente avaliado como excelente, refletindo uma abertura paradigmática na percepção da estrutura convencional de ensino médico, rumo a novas perspectivas, como afirmou um acadêmico: “Cada racionalidade médica, com sua peculiaridade, demonstrou que o saber tradicional é válido e que deve, com certeza, estar em nossas opções preventivas e terapêuticas”.
Quanto ao paradigma vitalista
Foi identificado interesse pelo tema com a finalidade de conhecer as aplicações clínicas das PICS/MTCI e suas bases científicas, e ampliar o horizonte profissional. Inicialmente, apontou-se a necessidade de superar o desconhecimento sobre outras práticas na formação médica. A questão do preconceito foi destacada tanto no início quanto ao final do componente.
Conhecer as políticas nacionais e internacionais entendendo a aplicação na organização do sistema com inserção das práticas vitalistas foi considerado relevante. A compreensão da resolubilidade na promoção da saúde e no aumento da qualidade de vida da população permitiu abrir novo olhar para o SUS. O autocuidado foi naturalmente estimulado, e os estudantes buscaram as práticas para benefício próprio, como reduzir o cansaço, o desânimo e o estresse.
A realidade nacional e mundial, bem como a produção científica desse ramo, superou preconceitos com o reconhecimento de outras culturas e a valorização de novos saberes e práticas. Conhecer outras medicinas e suas cosmologias proporcionou aprendizagem que contribuiu para a apropriação de um novo conceito de saúde, permitindo uma transformação no pensamento, como apontou um acadêmico: “Paradigmas que carregava a partir de uma visão deturpada foram vencidos e esclarecidos, evidenciando o quão importante é esse estudo”.
Quanto à dinâmica teórico-vivencial
A dinâmica adotada no curso foi considerada interessante pelos estudantes. Apreciaram as rodas de conversa com conteúdos teóricos inovadores e as vivências que os levaram a experimentar práticas como: acupuntura, auriculoterapia, craniopuntura, shiatsu, ventosas, moxabustão, ioga, meditação, reiki, dança circular, plantas medicinais e tai chi chuan. Essa dinâmica foi relatada como uma oportunidade para momentos de relaxamento, alegria e prazer, assim como as estratégias didáticas adotadas abrandaram a densidade neste momento do curso.
Houve destaque para o poder terapêutico do paradigma vitalista, tanto nas práticas individuais quanto nas coletivas. A experimentação de tais práticas foi o ponto alto para os acadêmicos. Houve unanimidade sobre as vivências terem sido a melhor parte do curso, constituindo-se em experiência única e valiosa.
A realização das práticas vinculadas à compreensão teórica deu amplitude ao entendimento sobre equilíbrio e desequilíbrio vital, central no paradigma vitalista, o que se contrapõe ao raciocínio baseado em doença do paradigma biomédico. A existência desse componente optativo para o processo de formação médica foi relatada com relevância pelos estudantes, como expressa um deles: “O componente proporcionou o conhecimento das diversas práticas por meio das aulas expositivas e também metodologias ativas, como imersão nos serviços de saúde e rodas de conversa, tornando o aprendizado interessante e superando as expectativas iniciais”.
Estudo quantitativo: a avaliação dos estudantes sobre o interesse temático
Os 22 estudantes matriculados no componente optativo responderam ao questionário aplicado nesta pesquisa, gerando uma taxa de resposta de 100%. As frequências das respostas às questões categóricas estão apresentadas na Tabela 1.
Variável | n | % |
---|---|---|
1. Quanto à sua participação como estudante matriculado no componente | ||
Motivação para continuar estudando a temática | 22 | 100,0 |
Muito motivado | 1 | 4,5 |
Motivado | 20 | 91,0 |
Pouco motivado | 1 | 4,5 |
2. Quanto ao desenvolvimento e conteúdo do componente | ||
Como avalia o conteúdo do componente | 22 | 100,0 |
Adequado às expectativas | 22 | 100,0 |
Os professores/convidados apresentaram domínio do conteúdo | 22 | 100,0 |
Sempre | 12 | 54,5 |
Quase sempre | 9 | 40,9 |
Poucas vezes | 1 | 4,6 |
A estruturação do componente permitiu a compreensão dos temas | 22 | 100,0 |
Sempre | 12 | 54,5 |
Quase sempre | 10 | 45,5 |
Como avalia a profundidade da abordagem dos temas | 22 | 100,0 |
Ótima | 6 | 27,3 |
Boa | 14 | 63,6 |
Regular | 2 | 9,1 |
3. Quanto aos recursos, às estratégias de ensino, à infraestrutura e ao tempo | ||
As estratégias de ensino foram adequadas aos objetivos propostos | 22 | 100,0 |
Sempre | 11 | 50,0 |
Quase sempre | 10 | 45,5 |
Poucas vezes | 1 | 4,5 |
O material didático foi adequado às discussões e aos temas abordados | 22 | 100,0 |
Considero adequado às discussões e à compreensão dos temas | 19 | 86,4 |
Considero adequado às discussões, mas pouco adequado para a compreensão dos temas | 3 | 13,6 |
Como avalia a carga horária do componente | 22 | 100,0 |
A carga horária foi satisfatória em sua totalidade | 17 | 77,3 |
A carga horária foi suficiente para as rodas de conversa, mas insuficiente para as vivências | 5 | 22,7 |
Como avalia o componente quanto ao número de estudantes | 22 | 100,0 |
Adequado à proposta do componente | 22 | 100,0 |
Como avalia os locais disponibilizados para as atividades | 22 | 100,0 |
Todos os locais foram adequados às atividades propostas | 19 | 86,4 |
A maior parte dos locais adequados às atividades propostas | 3 | 13,6 |
4. Quanto ao componente de maneira geral | ||
Importância da temática na formação médica | 22 | 100,0 |
Muito importante | 10 | 45,5 |
Importante | 12 | 54,5 |
Indicaria o componente aos colegas de curso | 22 | 100,0 |
Certamente | 12 | 54,5 |
Provavelmente sim | 10 | 45,5 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Considerando os aspectos relacionados à percepção dos estudantes sobre a temática das PICS/MTCI na educação médica, destaca-se que 95,5% encontraram-se muito motivados ou motivados a continuar estudando o tema. Quanto à importância das PICS/MTCI na formação médica, 100% dos estudantes consideraram importantes ou muito importantes.
Para algumas questões, foi solicitado ao estudante que atribuísse percentuais ou notas de acordo com sua avaliação. Na questão de autoavaliação quanto ao nível de aprendizagem dos conteúdos do componente, a média das respostas foi de 87,6% (desvio padrão 5,9). A distribuição dos percentuais atribuídos é apresentada no Gráfico 1.
Os estudantes ainda foram questionados sobre a utilização e/ou leitura dos materiais recomendados, sendo solicitada a indicação de percentual do nível de utilização e/ou leitura. O percentual médio foi de 78,4% (desvio padrão 10,9). A distribuição da frequência dos percentuais atribuídos é apresentada no Gráfico 2.
Ainda foi solicitado aos estudantes que atribuíssem nota de 0 a 10 para os quesitos: programa do componente, método pedagógico, professores e convidados em seu conjunto, e sobre o componente de forma geral. As médias (com seus respectivos desvios padrão) alcançadas foram: 9,5 (0,7) para o programa do componente; 8,9 (1,0) para o método pedagógico; 9,3 (0,6) para os professores e convidados; e 9,3 (0,6) para o componente em seu conjunto. As distribuições das frequências para essas avaliações são apresentadas no Gráfico 3.
Com esses resultados, de maneira geral, a avaliação do componente optativo de PICS/MTCI foi bastante positiva, considerando todos os aspectos abordados na etapa quantitativa do estudo.
DISCUSSÃO
Com os resultados das três categorias sistematizadas para a análise qualitativa, é possível afirmar que a oferta impactou o processo formativo dos estudantes que participaram do estudo, ao inserir valores distintos dos convencionalmente abordados nos cursos de formação. O reconhecimento de outras culturas em saúde baseadas no vitalismo apresentou uma nova perspectiva de cuidado.
Machado et al.27 argumentam que, ao ter como centro a “doença”, o paradigma biomédico elimina a arte de curar, exclui a subjetividade humana e visa ao controle da natureza, do corpo e da sociedade. Campos et al.21 afirmam que a reflexão crítica sobre esse paradigma traz à luz o caráter fragmentado e medicalizante da formação convencional.
Os acadêmicos demonstraram ampliação do conceito de saúde e conseguiram transformar o raciocínio baseado na doença de modo a orientá-lo em busca da integralidade do cuidado e contemplar as subjetividades com o objetivo de alcançar o equilíbrio energético.
A integralidade é um desafio a ser enfrentado na formação médica porque uma das características da racionalidade científica moderna, segundo Tesser et al.28, é a crescente ênfase nas especialidades médicas, levando o saber biomédico a decompor o paciente e centrar seu raciocínio clínico sob o ponto de vista biológico. De acordo com Nascimento et al.29, a integralidade do cuidado ao longo do processo saúde-doença-cuidado é um fator permanente na visão vitalista. As autoras afirmam que, a partir do reconhecimento de distintos saberes e práticas em saúde, diferentes sistemas culturais são aceitos e possibilitam a integração e a complementaridade entre eles. Os acadêmicos demonstraram reconhecimento da importância de valores vitalistas como escuta acolhedora, vínculo terapêutico, integração com o ambiente, processo saúde-doença-cuidado, autocuidado, entre outros.
A integração dos paradigmas na formação pode resultar em um aporte importante para a resolubilidade no SUS mediante vínculo terapêutico. O reconhecimento das Racionalidades Médicas, como campo científico da Saúde Coletiva, permite desenvolver uma perspectiva integrativa e complementar na formação médica. Tais saberes e práticas devem ser transversais ou longitudinais nos cursos de graduação para se efetivar um aumento na qualidade das práticas. A formação em PICS/MTCI no Brasil tem encontrado muitas limitações na oferta e na qualidade, o que se torna um dos maiores desafios para a PNPIC17.
Albuquerque20 relata que existe ausência de análises que orientem a resolubilidade dessa política na formação médica e que seu fortalecimento depende não somente da sua expansão na rede assistencial, mas sobretudo do estímulo à educação e à ciência com produção de evidências científicas, eliminando preconceitos com esclarecimentos e orientações a gestores, docentes e acadêmicos. A autora alerta que, se a dificuldade de inserção das PICS/MTCI não for resolvida por meio de integração temática nos projetos político-pedagógicos da formação médica, haverá retrocesso dos avanços já galgados.
O caráter optativo deste tema no currículo do curso reforçou os achados de pesquisas em que a oferta em instituições públicas tem tido um aumento considerável nos últimos anos, notadamente em cursos de Medicina. A ampliação de oferta de disciplinas, pesquisa e extensão proporciona o desenvolvimento de habilidades em um ou mais recursos terapêuticos por meio de carga horária prática, para que se alcance a demanda de PICS no SUS30.
A análise quantitativa indicou que os estudantes participantes do estudo avaliaram positivamente a inclusão do tema no processo formativo. A importância dessa abordagem é corroborada pelos achados de Morales et al.31 em que os estudantes de medicina da Universidade Federal de Santa Catarina indicaram que não houve abordagem de PICS durante o curso, mas a maioria deles gostaria de adquirir conhecimentos nessa área, e 84,69% recomendariam o uso para seus familiares e futuros pacientes.
O estudo conduzido por Santos et al.32 apresenta que poucos estudantes de Medicina (25,8%) haviam tido contato por meio de disciplina ou atividades de extensão que abordassem as PICS. Porém, grande parte (74,1%) deles entendia a necessidade de estarem presentes na formação, preferencialmente de forma optativa.
Considerando uma prática específica, a acupuntura, Carnevale et al.33 indicam que os estudantes do curso de Medicina da Universidade Estadual de Campinas apresentaram grande interesse na oferta de uma disciplina optativa que tratasse da terapêutica em seu processo de formação. Nesse estudo, todos os participantes entenderam que a temática é importante. No mesmo sentido, os estudos de Almeida et al.34, Couto et al.35 e Goecks et al.36 apontam para a importância dessa temática durante a graduação para estudantes de diversas áreas de formação em saúde.
Nogueira37 corrobora esses dados e introduz saberes e práticas do paradigma vitalista em uma disciplina curricular no curso de Medicina, destacando a importância de convidar os estudantes ao contato teórico com outros paradigmas, o que possibilita a construção do olhar integral sobre os usuários dos serviços de saúde e, consequentemente, favorece a formação de profissionais que saibam lidar com a complementaridade dos saberes na perspectiva da integralidade do cuidado.
Segundo Azevedo et al.38, os profissionais do SUS não estão nem técnica nem politicamente preparados para atuação com as PICS, sendo imprescindível o incentivo ao contato com essas práticas durante o processo formativo, em sintonia com o SUS e a Saúde Coletiva. Dessa forma, a avaliação positiva pelos estudantes aponta na direção de alcançarmos essa sintonia, apesar de a oferta se enquadrar como disciplina informativa, por oferecer basicamente conteúdo introdutório.
Motta et al.39 se referem às Racionalidades Médicas como um conceito que pode ser o anúncio de um novo paradigma em saúde para promover sistemas médicos complexos com aplicabilidade no SUS e propiciar a integralidade do cuidado e a pluralidade dos saberes. Como a análise qualitativa demonstrou a efetividade desse conceito na aceitação de sistemas médicos de outras culturas, há a possibilidade de o conceito de Racionalidades Médicas se abrir para novos conhecimentos e novas experiências em saúde.
O estudo apresenta limitações naturais, sobretudo por ter sido uma investigação pontual e local. A característica da amostra utilizada não permite inferências para o contexto geral da formação médica, mesmo quando considerada a realidade do curso no qual os estudantes pesquisados estão inseridos. Por tratar-se de uma amostra intencional, podem existir vieses reforçados pelo caráter optativo do componente curricular. Apesar disso, os resultados se mostraram favoráveis à inclusão da temática no contexto do curso no qual se desenvolveu a pesquisa. Diante dos resultados, novas pesquisas ou a continuidade desta podem promover aprofundamento nas questões que envolvem as Racionalidades Médicas na formação de estudantes de Medicina da UFFS.
CONCLUSÃO
Os resultados desta pesquisa permitiram compreender o papel da inserção do tema Racionalidades Médicas e PICS no processo formativo no contexto do curso estudado. A iniciativa proporcionou a reflexão crítica dos paradigmas, mesmo que de forma vertical, pontual e de caráter informativo. Também foi possível identificar a plena aceitação das metodologias de ensino adotadas, a partir das notas e narrativas dos estudantes.
Verificamos que, para abrir perspectivas de integração e complementaridade de recursos terapêuticos vinculados ao paradigma vitalista no período de formação, é necessário aprofundar argumentos teóricos com conteúdo sócio-histórico, epistemológico e político-institucional. Dessa forma, é possível afirmar que a iniciativa cumpriu com todos os objetivos, permitindo aos estudantes envolvidos uma reflexão crítica sobre resistências e preconceitos provenientes de um modelo de formação convencional flexneriana em relação a outras práticas de saúde, mundialmente emergentes.
Espera-se que o componente optativo tenha permitido a emergência de sentidos que orientam a integralidade do cuidado e a promoção da saúde para o grupo de estudantes que participou desse estudo. Encontrar grande interesse acadêmico proporcionou vigor e confiança para pesquisadores e docentes continuarem a desenvolver a inserção temática de Racionalidades Médicas nessa instituição, bem como servir de experiência exitosa para iniciativas similares em outras instituições.