INTRODUÇÃO
As pandemias tendem a ser marcadas por perdas em massa: de vidas, rotinas, costumes e regras. Esse cenário coloca os indivíduos em uma situação atípica de imprevisibilidade, que resulta em perturbação psicossocial e exposição aos limites máximos das capacidades de enfrentamento populacional, de modo a gerar tensões e angústias que se expressam de formas variadas entre os envolvidos1.
Além do impacto socioeconômico causado pela pandemia de Covid-19, diversas preocupações surgiram quanto ao sofrimento psicológico, ao medo do adoecimento e às incertezas sobre o futuro. Há uma expectativa de aumento no sofrimento psíquico, níveis de estresse, ansiedade e irritabilidade, além da manutenção prolongada de medos e inseguranças. Por isso, é observada maior incidência de transtornos psiquiátricos, como depressão, ansiedade e transtorno do estresse pós-traumático. O grau de resistência individual é variável e multifatorial, pois depende do repertório psíquico, do histórico de relação com eventos de proteção e risco próprio, da rede de relações sociais e do ambiente2.
Dentre os transtornos psicológicos, a depressão e a ansiedade são os mais frequentes, influenciando negativamente a qualidade de vida dos estudantes que está intimamente ligada ao desempenho no processo de formação e na realização das atividades acadêmicas3. Vários fatores estão associados à elevada prevalência desses transtornos mentais entre estudantes de Medicina, tais como: elevada carga horária, grande volume de informações, contato com adoecimento e terminalidade, insegurança em relação ao ingresso no mercado de trabalho, autocobrança e expectivas sociais e da instituição de ensino4),(5.
A resiliência tem sido reconhecida como um aspecto importante na promoção e manutenção da saúde mental e parece reduzir níveis de estresse e emoções negativas, como ansiedade, depressão ou raiva. Pessoas pouco resilientes tendem a apresentar maior exposição ao estresse e dificuldade no enfrentamento das adversidades6),(7.
O objetivo do presente estudo foi analisar as repercussões da pandemia de Covid-19 na saúde mental de estudantes de Medicina do estado de Pernambuco. Avaliamos a prevalência de ansiedade e depressão e o grau de resiliência entre os estudantes envolvidos no estudo.
MÉTODOS
Trata-se de estudo de corte transversal, com abordagem quantitativa e analítica, realizado com estudantes do curso de Medicina das 11 instituições de ensino do estado de Pernambuco.
Incluíram-se os estudantes regularmente matriculados nos cursos de Medicina de todos os períodos acadêmicos, de instituições públicas e privadas, maiores de 16 anos. Os discentes que não forneceram consentimento e/ou que apresentaram respostas incompletas no questionário foram excluídos do estudo.
Todos os alunos matriculados nas 11 escolas médicas do estado foram convidados a participar do estudo, no período de julho a agosto de 2021, por meio de e-mails direcionados às instituições de ensino e aos diretórios estudantis. Utilizou-se um questionário estruturado eletrônico construído na plataforma Google Forms Google (Google Inc, Mountain View, CA, USA).
Para subsidiar a identificação da prevalência de sintomas de ansiedade e depressão entre os participantes, foram aplicadas os Inventário de Beck para ansiedade e depressão (IAB e IDB)6. Para avaliar o grau de resiliência, utilizou-se a escala de resiliência de Wagnild e Young7. Todos esses instrumentos foram traduzidos e validados para a população brasileira.
As variáveis dependentes estudadas foram os escores de ansiedade, depressão. Foram escolhidas como variáveis independentes: escore de resiliência, características socio-demográficas, comportamentais e as condições de saúde.
Análises estatísticas
As variáveis quantitativas foram descritas em média e desvio-padrão, e dispuseram-se as variáveis categóricas em frequências absolutas e relativas.
O teste de correlação bivariada de Pearson foi utilizado para determinar a existência de correlação entre variáveis. Para verificar a existência de associação entre duas variáveis categóricas, adotou-se o teste qui-quadrado de Pearson; quando não se verificou a condição para a aplicação desse teste, utilizou-se o teste exato de Fisher; nos casos em que não foi possível obter o resultado desse teste, usou-se o teste da razão de verossimilhança.
Para determinar variáveis preditoras dos escores de ansiedade e depressão, com as respectivas RC e os intervalos de confiança 95% (IC95%), foi calculado um modelo de regressão logística binária, por backward selection, em que, partindo de um modelo com todas as variáveis, as que atingem p > 0,10 são progressivamente removidas. Para esse cálculo, os escores foram classificados como binários: de mínima a leve ou de moderada a grave.
A margem de erro utilizada na decisão dos testes estatísticos foi de 5%. Os dados foram digitados e tabulados no software Microsoft Excel, e realizaram-se os cálculos estatísticos no Statistical Package for the Social Sciences 20.0 (IBM, Armonk, NY, USA).
À época do desenho do estudo, Pernambuco contava com um total de 11 escolas médicas, com oferta de 1.390 vagas no primeiro ano8. Para o cálculo amostral com nível de confiança de 95% e margem de erro de 5%, levando em conta a população de estudantes no estado em torno de 8.340 (considerando os seis anos de curso médico), cerca de 368 respostas seriam representativas da população8.
Aspectos éticos
A realização da pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Maurício de Nassau (Parecer nº 4.861.367 e CAAE nº 45346321.8.00005193). O questionário só poderia de ser respondido se os participantes concordassem com a participação no estudo, após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Caracterização da população estudada
Nosso estudo incluiu um total de 416 estudantes de Medicina, em sua maioria mulheres (60,9%), matriculados em instituição de ensino superior (IES) privada (74,8%), com idade média de 25 anos. Cerca de 73,8% dos discentes residiam no mesmo municípo da IES, e 65,6% tinham familiares que moravam no mesmo município. A maioria das respostas (56%) foi originada da faculdade à qual os pesquisadores possuem vínculo; alunos das universidades federal e estadual corresponderam a 9% e 14%, respectivamente; participantes matriculados em outras instituições privadas e públicas correspoderam a 19% e 2%, respectivamente.
Observamos que 12,5% (n = 53) dos estudantes afirmaram que foram diagnosticados com Covid-19, dos quais 90,6% informaram ter contado com uma rede de ajuda (isto é, pais, familiares e amigos). Em virtude das suspensões das aulas em consequência da pandemia, mais da metade (53,3%) regressou à cidade de origem nesse período.
Em relação aos resultados dos inventários de ansiedade, depressão e resiliência, a maioria foi classificada com grau mínimo de ansiedade (33,2%) e de depressão (54,3%). As frequências percentuais relativas às seis categorias da resiliência tiveram valores que oscilaram de 11,3% a 24,3%, sendo “moderadamente alta” a mais prevalente.
Houve moderada correlação negativa entre o escore de ansiedade e resiliência (r = -0,371; p < 0,001). Dentre indivíduos com alta resiliência, a maior proporção apresentou escore mínimo de ansiedade (57,1%). Nos classificados com ansiedade moderada, somente 18,2% e 15,8% dos casos possuíam resiliência alta ou moderadamente alta, respectivamente. No caso de ansiedade grave, 23,2% possuía resiliência muito baixa; e apenas 2,6%, resiliência alta (Tabela 1).
Escore de Depressão de Beck | |||||
---|---|---|---|---|---|
Escore de resiliência | Mínimo | Leve | Moderado | Grave | Valor p |
Alta (de 91 a 98) | 72 (93,5%) | 4 (5,2%) | 1 (1,3%) | 0 (0%) | < 0,001a |
Moderadamente alta (de 82 a 90) | 90 (89,1%) | 9 (8,9%) | 2 (2,0%) | 0 (0%) | |
Nem alta, nem baixa (de 74 a 81) | 53 (74,6%) | 9 (12,7%) | 7 (9,9%) | 2 (2,8%) | |
Mais para baixa (de 65 a 73) | 34 (53,1%) | 13 (20,3%) | 9 (14,1%) | 8 (12,5%) | |
Baixa (de 57 a 64) | 14 (29,8%) | 18 (38,3%) | 12 (25,5%) | 3 (6,4%) | |
Muito baixa (de 14 a 56) | 9 (16,1%) | 21 (37,5%) | 17 (30,4%) | 9 (16,1%) | |
Escore de Ansiedade de Beck | |||||
Escore de resiliência | Mínimo | Leve | Moderado | Grave | Valor p |
Alta (de 91 a 98) | 44 (57,1%) | 17 (22,1%) | 14 (18,2%) | 2 (2,6%) | < 0,001a |
Moderadamente alta (de 82 a 90) | 46 (45,5%) | 36 (35,6%) | 16 (15,8%) | 3 (3,0%) | |
Nem alta, nem baixa (de 74 a 81) | 21 (29,6%) | 20 (28,2%) | 22 (31,0%) | 8 (11,3%) | |
Mais para baixa (de 65 a 73) | 15 (23,4%) | 20 (31,3%) | 19 (29,7%) | 10 (15,6%) | |
Baixa (de 57 a 64) | 6 (12,8%) | 12 (25,5%) | 22 (46,8%) | 7 (14,9%) | |
Muito baixa (de14 a 56) | 6 (10,7%) | 17 (30,4%) | 20 (35,7%) | 13 (23,2%) |
a Qui-quadrado de Pearson.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Comportamento semelhante foi observado entre o cruzamento do escore de depressão e o de resiliência (Tabela 1), apontando a existência de moderada correlação negativa (r = -0,596; p < 0,001). A grande maioria (93,5%) dos estudantes com alta resiliência obteve escore mínimo de depressão. Não houve registro de nenhum estudante com resiliência alta ou moderadamente alta e classificado com depressão grave.
Análise da escala de ansiedade entre estudantes de Medicina no estado de Pernambuco
No que diz respeito à classificação de ansiedade, houve associação significativa entre as variáveis relacionadas à faixa etária, ao período cursado, à existência de residência fixa e aos familiares que residem no municipio da IES (Tabela 2).
Escore de Ansiedade de Beck | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Mínimo | Leve | Moderado | Grave | Valor p | ||
Faixa etária (anos) | 0,005a | |||||
De 17 a 23 | 52 (27,8%) | 59 (31,6%) | 52 (27,8%) | 24 (12,8%) | ||
De 24 a 29 | 53 (31,9%) | 46 (27,7%) | 48 (28,9%) | 19 (11,4%) | ||
De 30 a 42 | 33 (52,4%) | 17 (27,0%) | 13 (20,6%) | - | ||
Tipo de IES | 0,06a | |||||
Pública | 38 (36,2%) | 30 (28,6%) | 33 (31,4%) | 4 (3,8%) | ||
Privada | 100 (32,2%) | 92 (29,6%) | 80 (25,7%) | 39 (12,5%) | ||
Período cursado | 0,009a | |||||
Ciclo básico (do 1º ao 4º) | 22 (27,2%) | 17 (21%) | 25 (30,9%) | 17 (21%) | ||
Ciclo clínico (do 5º ao 8º) | 55 (31,6%) | 55 (31,6%) | 48 (27,6%) | 16 (9,2%) | ||
Ciclo de internato (do 9º ao 12º) | 61 (37,9%) | 50 (31,1%) | 40 (24,8%) | 10 (6,2%) | ||
Residiam no mesmo município da IES | 111 (36,2%) | 94 (30,6%) | 74 (24,1%) | 28 (9,1%) | 0,023a | |
Familiares residem no mesmo município da IES | 103 (37,7%) | 75 (27,5%) | 66 (24,2%) | 29 (10,6%) | 0,036a | |
Retornaram à cidade natal durante a suspensão de aulas | 67 (30,2%) | 65 (29,3%) | 62 (27,9%) | 28 (12,6%) | 0,28a | |
Diagnosticados com Covid-19 | 13 (24,5%) | 14 (26,4%) | 19 (35,8%) | 7 (13,2%) | 0,29a | |
Dispunham de rede de ajuda | 13 (27,1%) | 12 (25,0%) | 16 (33,3%) | 7 (14,6%) | 0,44b | |
Comorbidades prévias | ||||||
Ansiedade | 3 (12,5%) | 6 (25,0%) | 8 (33,3%) | 7 (29,2%) | 0,25b | |
Depressão | 1 (4,8%) | 7 (33,3%) | 7 (33,3%) | 6 (28,6%) | 0,13b | |
Problemas de saúde durante a pandemia | 7 (16,3%) | 10 (23,3%) | 19 (44,2%) | 7 (16,3%) | 0,009a | |
Exacerbação de sintoma prévio | 8 (9,1%) | 25 (28,4%) | 37 (42,0%) | 18 (20,5%) | < 0,001a | |
Relacionado à ansiedade | 3 (7,0%) | 8 (18,6%) | 20 (46,5%) | 12 (27,9%) | 0,11b | |
Relacionado à depressão | 2 (22,2%) | 2 (22,2%) | 4 (44,4%) | 1 (11,1%) | 0,48b | |
Início de medicação durante a pandemia | 45 (23,0%) | 53 (27,0%) | 67 (34,2%) | 31 (15,8%) | < 0,001a | |
Benzodiazepínico | 7 (12,7%) | 14 (25,5%) | 20 (36,4%) | 14 (25,5%) | 0,043a | |
Antidepressivo | 9 (15,8%) | 15 (26,3%) | 20 (35,1%) | 13 (22,8%) | 0,22a | |
Etilismo | 81 (31,5%) | 79 (30,7%) | 67 (26,1%) | 30 (11,7%) | 0,48a | |
Aumentaram a ingesta de álcool na pandemia | 24 (26,4%) | 33 (36,3%) | 26 (28,6%) | 8 (8,8%) | 0,27a | |
Tabagismo | 9 (36,0%) | 3 (12,0%) | 9 (36,0%) | 4 (16,0%) | 0,22a | |
Aumentaram o uso de tabaco durante a pandemia | 1 (14,3%) | 1 (14,3%) | 4 (57,1%) | 1 (14,3%) | 0,51b | |
Uso de drogas ilícitas | 8 (34,8%) | 3 (13,0%) | 9 (39,1%) | 3 (13,0%) | 0,29a | |
Aumentaram o consumo de drogas ilícitas na pandemia | 2 (33,3%) | - | 3 (50,0%) | 1 (16,7%) | 0,91b | |
Terapia ou suporte psicológico | 0,001a | |||||
Já faziam anteriormente | 12 (20,0%) | 24 (40,0%) | 17 (28,3%) | 7 (11,7%) | ||
Iniciaram durante a pandemia | 7 (18,4%) | 6 (15,8%) | 20 (52,6%) | 5 (13,2%) | ||
Não faziam, nem iniciaram | 119 (37,4%) | 92 (28,9%) | 76 (23,9%) | 31 (9,7%) |
IES: instituição de ensino superior; a qui-quadrado de Pearson; b teste exato de Fisher.
Fonte: Elaborada pelo autores.
Observou-se um percentual mais elevado de ansiedade moderada entre os estudantes diagnosticados com Covid-19 (35,85), entre aqueles com doenças previamente diagnosticadas (33,3%) e os que apresentaram exacerbação de algum sintoma previamente referido (42,0%) (Tabela 2).
Resiliência moderadamente alta (RC = 0,18 [0,08-0,38]; p < 0,001) e alta (RC = 0,18 [0,08-0,41]; p <0,001) e suporte psicológico anterior à pandemia (RC = 0,36 [0,14-0,95]; p = 0,04) foram fatores de proteção independentes para ansiedade de moderada a grave. Já cursar o ciclo clínico, ou seja, do quinto ao oitavo período, foi fator de risco independente para ansiedade de moderada a grave (RC = 1,95 [1,07-3,55]; p = 0,02). O modelo de regressão completo está descrito na Tabela 3.
RC | IC95% | Valor p | ||
---|---|---|---|---|
Residir no mesmo município da IES | 1,74 | 1,06-2,83 | 0,02* | |
Terapia ou suporte psicológico | ||||
Não fazia, nem iniciou | - | - | 0,09 | |
Iniciou durante a pandemia | 0,59 | 0,32-1,09 | 0,09 | |
Já fazia anteriormente | 0,36 | 0,14-0,95 | 0,04* | |
Resiliência | ||||
Muito baixa | - | - | < 0,001** | |
Baixa | 1,23 | 0,54-2,75 | 0,62 | |
Mais para baixa | 0,58 | 0,27-1,23 | 0,15 | |
Nem alta nem baixa | 0,47 | 0,22-0,98 | 0,04* | |
Moderadamente alta | 0,18 | 0,08-0,38 | < 0,001** | |
Alta | 0,18 | 0,08-0,41 | < 0,001** | |
Período cursado | ||||
Ciclo básico (do 1º ao 4º) | - | - | 0,06 | |
Ciclo clínico (do 5º ao 8º) | 1,95 | 1,07-3,55 | 0,02* | |
Ciclo de internato (do 9º a 12º) | 1,07 | 0,65-1,76 | 0,74 |
IES: instituição de ensino superior; RC: razão de chances; IC95%: intervalo de confiança de 95%; * teste estatisticamente significante para p < 0,05; ** teste estatisticamente significante para p < 0,001.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Análise da escala de depressão entre estudantes de Medicina no estado de Pernambuco
A Tabela 4 aponta associação significativa entre o grau de depressão, o período do curso e a existência de residência fixa no mesmo município da universidade frequentada pelo discente. Observaram-se maior frequência de depressão moderada entre os alunos do ciclo básico de ensino (19,8%) e frequência menos elevada entre o grupo de estudantes do internato. Vale ressaltar que o percentual de estudantes com escore mínimo de depressão foi mais expressivo no grupo que possuía residência fixa no mesmo município da universidade (58,6%). A frequência de participantes classificados com depressão leve (23,9%) e moderada (15,6%) foi maior entre aqueles que não possuíam residência fixa no mesmo município da universidade.
Não houve associação significativa entre o diagnóstico de Covid-19 e o escore de depressão. Aqueles com depressão moderada eram mais frequentemente acometidos por doenças previamente diagnosticadas (33,3%). O percentual de participantes com depressão moderada foi mais elevado entre aqueles que apresentaram exacerbação de algum sintoma previamente referido (34,1%). Da mesma forma, o uso de antidepressivos entre os indivíduos classificados com depressão moderada foi maior quando comparados com aqueles com depressão mínima (40,4% e 33,3%, respectivamente) (Tabela 4).
Escore de Depressão de Beck | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Mínimo | Leve | Moderado | Grave | Valor p | ||
Faixa etária (anos) | 0,06a | |||||
De 17 a 23 | 93 (49,7%) | 47 (25,1%) | 44 (23,5%) | 3 (1,6%) | ||
De 24 a 29 | 90 (54,2%) | 48 (28,9%) | 25 (15,1%) | 3 (1,8%) | ||
De 30 a 42 | 43 (68,3%) | 14 (22,2%) | 5 (7,9%) | 1 (1,6%) | ||
Período cursado | 0,005a | |||||
Ciclo básico (do 1º ao 4º) | 38 (46,9%) | 19 (23,5%) | 16 (19,8%) | 8 (9,9%) | ||
Ciclo clínico (do 5º ao 8º) | 118 (67,8%) | 29 (16,7%) | 20 (11,5%) | 7 (4,0%) | ||
Ciclo de internato (do 9º ao 12º) | 116 (72%) | 26 (16,1%) | 12 (7,5%) | 7 (4,3%) | ||
Residiam no mesmo município da IES | 180 (58,6%) | 76 (24,8%) | 48 (15,6%) | 3 (1,0%) | 0,010b | |
Familiares residem no mesmo município da IES | 160 (58,6%) | 68 (24,9%) | 41 (15,0%) | 4 (1,5%) | 0,06a | |
Retornaram à cidade natal durante a suspensão de aulas | 115 (51,8%) | 55 (24,8%) | 48 (21,6%) | 4 (1,8%) | 0,17a | |
Diagnosticados com Covid-19 | 23 (43,4%) | 17 (32,1%) | 12 (22,6%) | 1 (1,9%) | 0,39a | |
Dispunham de rede de ajuda | 22 (45,8%) | 15 (31,3%) | 10 (20,8%) | 1 (2,1%) | 0,54b | |
Comorbidades prévias | 36 (36,4%) | 24 (24,2%) | 33 (33,3%) | 6 (6,1%) | < 0,001a | |
Ansiedade | 6 (25,0%) | 6 (25,0%) | 8 (33,3%) | 4 (16,7%) | 0,09b | |
Depressão | 2 (9,5%) | 2 (9,5%) | 12 (57,1%) | 5 (23,8%) | < 0,001b | |
Problemas de saúde durante a pandemia | 18 (41,9%) | 11 (25,6%) | 12 (27,9%) | 2 (4,7%) | 0,08a | |
Exacerbação de sintoma prévio | 30 (34,1%) | 23 (26,1%) | 30 (34,1%) | 5 (5,7%) | < 0,001a | |
Relacionado à ansiedade | 12 (27,9%) | 12 (27,9%) | 15 (34,9%) | 4 (9,3%) | 0,41b | |
Relacionado à depressão | 3 (33,3%) | - | 5 (55,6%) | 1 (11,1%) | 0,13b | |
Início de medicação durante a pandemia | 85 (43,4%) | 57 (29,1%) | 49 (25,0%) | 5 (2,6%) | < 0,001b | |
Benzodiazepínico | 17 (30,9%) | 18 (32,7%) | 15 (27,3%) | 5 (9,1%) | 0,002b | |
Antidepressivo | 19 (33,3%) | 11 (19,3%) | 23 (40,4%) | 4 (7,0%) | < 0,001b | |
Etilismo | 131 (51,0%) | 73 (28,4%) | 48 (18,7%) | 5 (1,9%) | 0,37a | |
Aumentaram a ingesta de álcool na pandemia | 46 (50,5%) | 29 (31,9%) | 14 (15,4%) | 2 (2,2%) | 0,67a | |
Tabagismo | 10 (40,0%) | 8 (32,0%) | 5 (20,0%) | 2 (8,0%) | 0,07a | |
Aumentaram o uso de tabaco durante a pandemia | 2 (28,6%) | 3 (42,9%) | 1 (14,3%) | 1 (14,3%) | 0,72a | |
Uso de drogas ilícitas | 12 (52,2%) | 5 (21,7%) | 4 (17,4%) | 2 (8,7%) | 0,14a | |
Aumentaram o consumo de drogas ilícitas na pandemia | 2 (33,3%) | 1 (16,7%) | 2 (33,3%) | 1 (16,7%) | 0,46b | |
Terapia ou suporte psicológico | 0,013b | |||||
Já faziam anteriormente | 26 (43,3%) | 20 (33,3%) | 10 (16,7%) | 4 (6,7%) | ||
Iniciaram durante a pandemia | 17 (44,7%) | 12 (31,6%) | 8 (21,1%) | 1 (2,6%) | ||
Não faziam, nem iniciaram | 183 (57,5%) | 77 (24,2%) | 56 (17,6%) | 2 (0,6%) |
IES: instituição de ensino superior; a qui-quadrado de Pearson; b teste exato de Fisher.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Observou-se associação significativa entre resiliência mais para baixa/baixa/muito baixa e diagnóstico de doenças prévias, cuja principal representante foi depressão (80,9%). Houve associação significativa entre exacerbação de sintomas prévios e resiliência mais para baixa/baixa/muito baixa (60,2%). Também se verificou associação significativa entre uso de medicação durante a pandemia (49,5%) e resiliência baixa/baixa/muito baixa. Os medicamentos mais utilizados foram benzodiazepínicos (65,5%) e antidepressivos (61,4%).
Em relação ao suporte psicológico, os resultados mostram que estudantes com resiliência mais para baixa/baixa/muito baixa já faziam terapia (55%), e cerca de 44,7% precisaram de suporte psicológico durante a pandemia.
Resiliência nem alta nem baixa (RC = 0,14 [0,05-0,36]; p < 0,001), moderadamente alta (RC = 0,02 [0,005-0,10]; p < 0,001) e alta (RC = 0,01 [0,02-0,11]; p < 0,001) e retornar à cidade natal durante a suspensão das aulas (RC = 0,41 [0,18-0,91]; p = 0,02) foram fatores protetores independentes para depressão de moderada a grave. Já cursar o ciclo clínico, ou seja, do quinto ao oitavo período, foi um fator de risco independente (RC = 2,74 [1,26-5,93]; p = 0,01). A Tabela 5 descreve as outras análises do modelo de regressão.
RC | IC95% | Valor p | ||
---|---|---|---|---|
Retornou à cidade natal durante a suspensão de aulas | 0,41 | 0,18-0,91 | 0,02* | |
Resiliência | ||||
Muito baixa | - | - | < 0,001** | |
Baixa | 0,55 | 0,24-1,28 | 0,16 | |
Mais para baixa | 0,41 | 0,18-0,91 | 0,02* | |
Nem alta nem baixa | 0,14 | 0,05-0,36 | < 0,001** | |
Moderadamente alta | 0,02 | 0,005-0,10 | < 0,001** | |
Alta | 0,01 | 0,002-0,11 | < 0,001** | |
Período cursado | ||||
Ciclo básico (do 1º ao 4º) | - | - | 0,02* | |
Ciclo clínico (do 5º ao 8º) | 2,74 | 1,26-5,93 | 0,01* | |
Ciclo de internato (do 9º ao 12º) | 1,19 | 0,59-2,39 | 061 | |
Retornou à cidade natal durante a suspensão de aulas | 0,41 | 0,18-0,91 | 0,02* | |
Resiliência | ||||
Muito baixa | - | - | < 0,001** | |
Baixa | 0,55 | 0,24-1,28 | 0,16 | |
Mais para baixa | 0,41 | 0,18-0,91 | 0,02* | |
Nem alta nem baixa | 0,14 | 0,05-0,36 | < 0,001** | |
Moderadamente alta | 0,02 | 0,005-0,10 | < 0,001** | |
Alta | 0,01 | 0,002-0,11 | < 0,001** | |
Período cursado | ||||
Ciclo básico (do 1º ao 4º) | - | - | 0,02* | |
Ciclo clínico (do 5º ao 8º) | 2,74 | 1,26-5,93 | 0,01* | |
Ciclo de internato (do 9º ao 12º) | 1,19 | 0,59-2,39 | 061 |
RC: razão de chances; IC95%: intervalo de confiança de 95%; * teste estatisticamente significante para p < 0,05; ** teste estatisticamente significante para p < 0,001.
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
Estima-se que mais de 20% dos estudantes universitários apresentem algum tipo de distúrbio psiquiátrico durante a sua formação acadêmica. Entre os transtornos, ansiedade e depressão são os mais prevalentes9. Alguns estudos sugerem que houve piora na saúde mental desses estudantes durante a pandemia de Covid-19. Um estudo com estudantes de Medicina realizado na China demonstrou elevado percentual de discentes com sintomas psiquiátricos: 21,9% apresentavam sintomas de ansiedade, e 30,6%, de depressão. Em nosso estudo, em que se utilizaram os escores de Beck, grande parte desses estudantes foi classificada com, ao menos, grau mínimo de ansiedade (33,2%) e de depressão (54,3%)10),(11.
Em indivíduos na faixa etária entre 18 e 35 anos, um estudo de triagem indicou sinais sugestivos de transtorno de humor em 72,8% dos casos. Essa alta proporção parece ser explicada pelas diversas mudanças experimentadas no desenvolvimento físico e psíquico durante a juventude12. Em nosso estudo, a frequência de ansiedade foi maior na faixa etária de 17-29 anos, tendo sido verificada ocorrência de ansiedade grave em 24,2%.
Wang et al.10 descreveram autorrelato de quadros de ansiedade em 24,9% dos estudantes universitários durante a pandemia de Covid-19, dos quais 0,9% sofria de sintomas de ansiedade grave, 2,7% tinham ansiedade moderada, e 21,3% apresentavam ansiedade leve. Nosso estudo encontrou percentual semelhante de ansidade leve (29,3%), porém com frequência acentuadamente superior de ansiedade moderada (27,2%) e grave (10,3%).
De modo geral, os estudantes universitários estão mais expostos à ocorrência de transtornos psicológicos, principalmente aqueles que precisam se afastar do núcleo familiar em decorrência da localização da universidade13. Uma pesquisa com estudantes de Medicina e médicos recém-formados apontou a distância do núcleo familiar como fator associado à presença de sintomas ansiosos14.
Neste estudo, a existência de residência fixa no mesmo município da universidade e o suporte familiar foram fatores significativamente associado ao grau de ansiedade dos estudantes. Houve um maior percentual de ansiedade moderada entre os estudantes procedentes de municípios distantes da universidade que, consequentemente, estavam afastados do núcleo familiar, e isso indica que o suporte familiar parece representar um fator protetor para o desgaste mental experimentado. O grau de depressão nos discentes também esteve significativamente associado à residência fixa no mesmo município onde estudavam.
A existência de apoio oferecido pela família parece ser um fator protetor contra o aparecimento de doenças psíquicas, especialmente a depressão15),(16. Os indivíduos que estudam em municípios distantes e/ou afastados do convívio familiar estão mais propensos a desenvolver transtornos psiquiátricos. Os discentes que fazem menos visitas aos seus familiares por mês fazem parte de um grupo cuja prevalência de transtornos mentais comuns foi superior a 50%9),(17),(18.
No que diz respeito à ansiedade e resiliência, um estudo português verificou que a resiliência reduz a intensidade do estresse e produz uma diminuição de sintomas como a ansiedade e depressão em estudantes universitários19. Assim como descrito por Bacchi et al.20, nossos resultados indicam que níveis elevados de resiliência estão associados a níveis baixos de estresse e ansiedade. Maior resiliência parece influir em melhor percepção na qualidade de vida e no ambiente de ensino em discentes universitários21.
Quanto ao uso de medicamentos, um estudo com estudantes de Medicina do estado de São Paulo demostrou frequente consumo de medicamentos controlados com o intuito de diminuir o estresse e a ansiedade22. Em uma pesquisa de campo, Fávero et al.23 apontaram que ansiedade (43,8%) e depressão (53,1%) são os principais motivos para uso de ansiolíticos por estudantes. No presente estudo, cerca de 47% dos participantes fizeram uso de medicação no período da pandemia, especialmente benzodiazepínicos (28,1%). Nos discentes que já faziam uso de benzodiazepínicos, os resultados revelaram a presença de ansiedade moderada em 36,4% e de ansiedade grave em 25,5%, corroborando os resultados de Marchi et al.24 que revelaram a presença de ansiedade moderada em 29% e ansiedade grave em 35% dos universitários.
Neste estudo, em torno de 30% dos participantes usaram antidepressivos ou benzodiazepínicos, drogas que podem causar dependência principalmente se usadas sem acompanhamento médico. A reconfiguração da finalidade do uso de psicofármacos e o aumento de prescrições indicam a percepção dessas drogas como mediadoras de conflitos: um alicerce no manejo de qualquer sinal de sofrimento psíquico rotulado como patologia, mesmo que essa dor seja congruente ao momento de catástrofe25.
No que se refere ao grau de depressão entre os participantes deste estudo, foi identificada baixa proporção de casos de depressão, prevalecendo os sintomas mínimos, conforme pontuação do IDB. A detecção de sintomas, ainda que leves, possui papel fundamental na prevenção de depressão maior, condição incapacitante e risco aumentado de suicídio3),(15),(16. Um estudo realizado com 400 universitários portugueses identificou prevalência de 79% para sintomas depressivos, sendo 29% com grau leve, 31% moderado e 19% grave17. Em univesitários do Sul do Brasil, a prevalência de depressão foi 32,8%: 28,2% leve, 4,2% moderada e 0,4% grave10),(26. A variação dos resultados observados na literatura pode ser reflexo do uso de diferentes instrumentos de coleta, forma de abordagem e distintos períodos da coleta de dados.
Houve maior frequência de depressão moderada entre os alunos do primeiro ao quarto período (19,8%) e menor entre estudantes do nono ao 12º período. Alguns autores apontam que, nos primeiros anos de curso, os estudantes estão mais propícios ao desenvolvimento de sofrimento psíquico quando comparados com aqueles em períodos mais avançados13),(27.
Merece destaque o incremento no consumo de álcool, tabaco e drogas ilícitas durante a pandemia, condizente com o comportamento na população em geral e em estudantes de Medicina, durante o isolamento social14. O consumo do álcool tem sido fortemente associado a transtornos mentais, e, durante o isolamento, essa associação foi potencializada, podendo desencadear ou exacerbar episódios depressivos e ansiosos, como também aumentar o risco de suicídio15),(26),(27. Apesar de o aumento na ingesta de álcool e tabaco ter sido referido por, respectivamente, 35,4% e 28% dos participantes, não encontramos relação entre aumento da ingesta e gravidade de sintomas ansiosos e depressivos.
No que se refere à depressão e resiliência, Carvalho et al.28 observaram que, em pessoas com doenças cardiovasculares, a resiliência está associada a menor susceptibilidade ao processo de adoecimento e maior habilidade para atenuar pressões causadas pelo impacto negativo da doença. Por sua vez, indivíduos pouco resilientes parecem ter maior exposição ao estresse e menos preparo emocional para o enfrentamento de adversidades28. Corroborando esses resultados, evidenciamos que estudantes menos resilientes apresentavam maiores níveis de depressão quando comparados àqueles com níveis elevados de resiliência.
É inegável que a pandemia provocou, além de preocupações com a própria saúde, a ruptura na rotina pessoal, gerando incertezas relacionadas à continuidade do percurso acadêmico. Um estudo realizado por Marin et al.29 aponta que as modificações geradas durante a pandemia podem ter sido o gatilho para o desencadeamento de desconforto emocional e consequências psicológicas, corroborando os resultados aqui descritos. Tais consequências se manisfestam como exacerbações de sintomas e deflagração de quadros de ansiedade e depressão, ainda que caracterizadas como quadros leves.
Também se constatou que o contato direto dos estudantes de Medicina com a Covid-19 em ambiente hospitalar intensificou transtornos psíquicos previamente diagnosticados. Do Bú et al.30 descreveram que, diante dos efeitos psíquicos deletérios causados pelo isolamento social, os estudantes com algum problema para controlar emoções negativas manifestaram maior dificuldade de adaptação e tenderam a apresentar níveis menores de resiliência.
Neste estudo, a maioria dos entrevistados apresentava alguma doença previamente diagnosticada, sendo depressão uma das doenças mais prevalentes entre os estudantes com escore de baixa resiliência. Esses achados reforçam os obtidos por Crepaldi et al.31 e Dyrbye et al.32, sugerindo que, conforme o cuidado com a saúde mental é reestabelecido, há também uma melhora no nível de resiliência. Nesse sentido, é relevante destacar a importância no rastreio, diagnóstico e tratamento precoce direcionados a essa população.
Os dados do estudo apontaram associação significativa entre a baixa resiliência e o início e a manuntenção de psicoterapia, como suporte psicológico, no período da pandemia. O amparo psicológico profissional em pessoas principalmente menos resilientes pode dispor de eficácia na remissão de sintomas, o que reforça a necessidade de intervenção psicológica, não descartando a importância dessa intervernção em indivíduos com alta/moderada resiliência. Instruções e/ou procedimentos específicos conduzidos por especialistas ajudam no direcionamento psíquico, alcançando melhores resultados no processo saúde-doença. Protocolos de saúde são úteis para padronizar e otimizar resultados positivos em situações de emergência ou crise33)-(35.
Limitações
A limitação mais relevante do estudo envolve a coleta de dados ter sido realizada de forma remota, o que pode ter contribuído para a baixa adesão dos estudantes à pesquisa. Apesar de todos os alunos das 11 instituições de ensino com curso em Medicina terem sido convidados por meios formais, apenas cerca de 4,9% respoderam à pesquisa. Além disso, mais de metade das respostas adveio de uma mesma faculdade, provavelmente pelo fato de o estudo ter sido conduzido por pesquisadores ligado à instituição.
Outro ponto relevante é que as escalas de ansiedade e depressão de Beck são instrumentos de triagem, não sendo capazes de estabelecer o diagnóstico definitivo, o que pode ter contribuído para proporções superestimadas dos transtornos mentais avaliados.
CONCLUSÃO
Os resultados desta pesquisa sugerem que a pandemia de Covid-19 provocou impacto na saúde mental de estudantes de Medicina do estado de Pernambuco. As evidências de sofrimento psíquico foram identificadas na população estudada de acordo com os instrumentos utilizados, reforçando a necessidade de avaliar estratégias para uma melhor adaptação desse grupo em momentos de grande instabilidade.