INTRODUÇÃO
A pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020, repercutiu em todo o mundo e impactou dramaticamente os âmbitos da saúde, com inúmeras mortes e internações, econômico, com as medidas de isolamento, e social, com distúrbios emocionais e comportamentais1. No Brasil, estudos mostram os impactos da Covid-19 na saúde mental da população em geral, com aumento da ansiedade, insônia, hiperatividade, depressão, entre outros problemas de saúde gerados pelo medo, pela dificuldade financeira e pelo isolamento social2.
No cenário acadêmico, em todo o mundo, a pandemia produziu o fechamento generalizado de instituições de ensino, como escolas, faculdades e universidades3. No Brasil, o Ministério da Saúde autorizou a substituição de aulas presenciais por aulas em meios digitais (exceto estágios, práticas de laboratório e, para os cursos de Medicina, os internatos)4.
Fatores como o atraso no prosseguimento do curso, a interrupção de aulas práticas e estágios curriculares, e, em algumas universidades, a realização de atividades de maneira remota, resultando em preocupações com o acesso à internet e dificuldades na adaptação ao novo método de aprendizagem, repercutiram de forma negativa na saúde mental dos estudantes universitários. Em adição, aspectos como a quebra da rotina acadêmica, o afastamento de amigos e a preocupação com o atraso do curso também contribuíram para o agravamento da saúde mental dos alunos de graduação nesse período de pandemia5. Outro fator preocupante se relaciona às perdas de aprendizagem e habilidades decorrentes desse momento, que poderão impactar a aquisição das competências esperadas na profissão médica.
Apesar das dificuldades vivenciadas pelos estudantes com a pandemia da Covid-19, estudos sobre adversidades estudantis em outros cenários demonstram que alguns estudantes, mesmo gravemente desfavorecidos, são capazes de superar os desafios e atingir resultados de níveis considerados superiores6. Observa-se, portanto, que alguns indivíduos respondem diferentemente a situações traumáticas, ao serem capazes de recuperar-se de um acontecimento desestabilizador, resistir inicialmente para depois superá-lo e projetar-se no futuro7.
Trata-se do fenômeno da resiliência, que é a capacidade humana de enfrentar experiências adversas, sobrepor-se a elas e ser fortalecido ou transformado pelo fato ocorrido8. O tema da resiliência em ambientes estudantis tem despertado o interesse de pesquisadores, uma vez que se relaciona a um bom desempenho acadêmico. São descritos três tipos de resiliência: a emocional, a acadêmica e a social. A emocional está associada aos sentimentos que favorecem a capacidade de adaptação, a resiliência acadêmica se refere ao ambiente escolar como facilitador da aprendizagem para a resolução de problemas, e a resiliência social trata dos relacionamentos e modelos sociais que também fornecem suporte para enfrentamento e superação de problemas9.
Três características são consideradas essenciais para que uma pessoa seja resiliente: a capacidade de aceitar a realidade, a capacidade de improvisação e a capacidade de encontrar sentido em algum aspecto da vida10. A resiliência resulta da interação entre os fatores promotores de risco e os recursos pessoais, estes últimos compreendendo dois processos motivacionais: a necessidade de defesa contra o perigo e a necessidade de atingir objetivos positivos11. Os fatores de proteção que contribuem para a superação das adversidades, também chamados de pilares da resiliência, são: a autoestima, as aptidões e competências pessoais, o senso de humor e a espiritualidade7.
A espiritualidade favorece a adaptação às dificuldades inevitáveis da vida, funcionando como um fator protetor, pois ameniza o estresse e a vulnerabilidade do indivíduo10. Estudos também demonstram que, em situações de estresse, os indivíduos espiritualizados têm mais resiliência e, consequentemente, lidam melhor com as dificuldades que lhes são impostas12)-(14.
Segundo Cunha et al.15, o crescente interesse pela investigação da influência da espiritualidade e religião na saúde traz a necessidade de conceituar melhor os termos religião, religiosidade e espiritualidade que são utilizados nas pesquisas nacionais e internacionais. Religião é o sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos designados para facilitar o acesso ao sagrado (Deus, força maior, verdade suprema). A religiosidade se refere ao quanto um indivíduo acredita em determinada religião, segue-a e a pratica. A espiritualidade pode ser definida como aquilo que traz significado e propósito à vida das pessoas16),(17.
Segundo Saad et al.18, Garfield et al.19 e Gnanaprakash20, o envolvimento espiritual melhora o estado psicológico por estimular a esperança, o perdão, o altruísmo e o amor, que impactam positivamente o enfrentamento de situações estressantes, levando a um melhor estado de bem-estar e de saúde mental.
É nesse sentido que a espiritualidade representa a alma da resiliência, como disposição humana capaz de despertar o sentimento de unidade para com o próximo, com o mundo e com a natureza, de modo a permear as inter-relações de afetos mais profundos e promover vínculos mais efetivos, capazes de desenvolver competências necessárias para resultados mais resilientes. A fé, a convicção de pertencer ao universo, de fazer parte de um propósito supremo, traz responsabilidades, sentido e significado para a existência que são capazes de dotar o indivíduo de dispositivos fundamentais no trato das adversidades21.
O efeito positivo da espiritualidade no alívio do sofrimento psíquico já foi demonstrado na população em geral6 e em estudantes de Medicina18. Wachholtz et al.22 sugerem que a espiritualidade pode ser considerada um fator protetor no enfrentamento de adversidades. Segundo Lucchetti et al.23, estudos demonstram relações entre maior espiritualidade e melhoria na saúde mental, nos desfechos clínicos, no bem-estar geral e na qualidade de vida, e maior sobrevida.
O contexto vivido pela pandemia da Covid-19, diante do isolamento social e da privação do convívio do ambiente escolar, exigiu dos estudantes estratégias de enfrentamento que pudessem promover uma (re)construção de sentido da vida. Sob essa ótica, a espiritualidade tem se mostrado como um recurso importante de ressignificação, facilitando a capacidade de resistência diante das adversidades24.
Assim, nesse cenário ímpar vivenciado por toda a humanidade no enfrentamento da pandemia da Covid-19, o conhecimento sobre os fatores que influenciam a capacidade de resiliência dos estudantes de Medicina, em especial a espiritualidade, é necessário e oportuno para embasar estratégias curriculares que visem promover a resiliência deles como medida de enfrentamento das adversidades vivenciadas ao longo do curso.
MÉTODO
Foi realizado um estudo transversal, misto, conduzido por meio de um questionário autorrespondido para avaliação da resiliência e espiritualidade em estudantes de Medicina.
Participaram do estudo 309 estudantes de Medicina de 44 instituições de ensino públicas e privadas brasileiras. Os critérios de inclusão foram estar regularmente matriculado em uma instituição de ensino de Medicina brasileira e ter mais de 18 anos. Para o recrutamento, utilizou-se a técnica de snowball, que utiliza de redes de referência e é apropriada para amostra em grupos de difícil acesso e quando não há precisão do número de sujeitos pesquisados25. Os estudantes de Medicina (independentemente do ano ou semestre de graduação) foram convidados a participar do estudo por meio de WhatsApp ou e-mail, que continham um link de acesso ao questionário em cujo cabeçalho havia as informações necessárias para a participação no estudo, incluindo o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, que deveria ser assinado digitalmente antes do preenchimento do questionário. Foi assegurado aos participantes sigilo dos dados coletados, que seriam analisados em conjunto, não sendo divulgada a identificação de nenhum estudante. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade José do Rosário Vellano (CAAE nº 32131020.3.0000.514 e Parecer nº 4.248.876).
Aplicaram-se, no período de junho a agosto de 2020, um questionário que continha perguntas fechadas abordando aspectos sociodemográficos, a escala de Resiliência desenvolvida por Wagnild et al.26, a Escala de Atitudes Relacionadas à Espiritualidade desenvolvida por Braghetta27 e três questões abertas nas quais foi solicitado aos alunos que citassem os pontos positivos e negativos e as dificuldades experienciados durante o isolamento social.
Características dos instrumentos utilizados
Questionário sociodemográfico composto por 12 perguntas fechadas a respeito das seguintes variáveis: sexo, idade, período do curso, estado civil, renda familiar, especialidade pretendida, grau de felicidade nos últimos meses, grau de satisfação por estar fazendo o curso de Medicina, avaliação da própria qualidade de vida e conceito de espiritualidade. Havia ainda três questões abertas sobre a opinião em relação aos pontos positivos e negativos e às dificuldades enfrentadas no isolamento social, com o intuito de identificar os possíveis fatores promotores de risco (pontos negativos e dificuldades) e fatores de proteção (pontos positivos) relacionados com a resiliência dos estudantes.
Escala de resiliência: desenvolvida por Wagnild et al.26 para medir níveis de adaptação psicossocial positiva a eventos de vida importantes. Possui 25 itens descritos de forma positiva com resposta do tipo Likert variando de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente). Os escores da escala oscilam de 25 a 175 pontos, e valores de escore até 120 indicam resiliência reduzida; escores de 121 a 145, resiliência moderada; e escores acima de 145, resiliência moderadamente elevada ou elevada, o que significa alta resiliência. Estudos têm mostrado boa confiabilidade e validade desse instrumento26, já adaptado para o português27.
Escala de Atitudes Relacionadas à Espiritualidade (ARES): escala desenvolvida por Braghetta28) baseada na compreensão sobre espiritualidade no contexto brasileiro e em bases teóricas. Apresentou análises psicométricas apropriadas e foi validada com estudantes de Medicina. Ela contém 11 itens com resposta em escala de Likert variando de 1 (discordo muito) a 5 (concordo muito). Os escores da escala oscilam de 11 a 55. Valores de escore até 38 indicam baixa espiritualidade; entre 39 e 45; moderada espiritualidade; e acima de 45 alta, espiritualidade.
Os dados quantitativos foram analisados mediante o programa SPSS v.17.0. Neste estudo, adotaram-se as medidas descritivas mínimo, máximo, mediana, média e desvio padrão (DP), além de percentuais para descrever os resultados das variáveis estudadas. Utilizaram-se o teste qui-quadrado para variáveis categóricas, o teste de Mann-Whitney para variáveis ordinais, a correlação de Pearson para variáveis escalares e o teste de Kruskal-Wallis para comparação entre grupos independentes em relação à variável de interesse. Todos os resultados foram considerados significativos para uma probabilidade de significância inferior a 5% (p < 0,05).
Colocaram-se todas as respostas discursivas em uma tabela para análise, e o anonimato dos participantes foi assegurado pela adoção de numeração na identificação. Cada estudante foi identificado com a letra “E” seguida de um número, de acordo com a sequência dos respondentes ao questionário (E n°). Como referência para a análise, utilizaram-se as proposições da técnica de análise de conteúdo temática proposta por Bardin29, em relação às etapas: leitura flutuante e categorização. A “leitura flutuante” foi realizada com o intuito de se familiarizar com o material. Em seguida, analisaram-se as respostas dos alunos para cada pergunta, definindo as ideias principais ou os sentimentos demonstrados que deram origem às categorias. Logo após a definição das categorias, todas as respostas foram analisadas individualmente por três pesquisadores que deveriam selecionar a categoria à qual cada uma pertencia. Logo após, fez-se a análise de consenso das questões. Aquelas em que não houve concordância entre os pesquisadores foram novamente avaliadas até a obtenção de consenso.
RESULTADOS
Caracterização da amostra
Participaram do estudo 308 estudantes de Medicina: 80,4% de instituições do Sudeste (n = 248), 10% do Centro-Oeste (n = 31), 4,3% do Nordeste (n = 13), 4,3% do Sul (n = 13) e 1% do Norte (n = 3). Desses 72,1% eram do sexo feminino (n = 222), 78,6% tinham idade entre 18 e 24 anos (n = 242), 93% afirmaram ser solteiros (n = 287), 53,4% declararam renda familiar maior que dez mil reais (n = 163) e 84,1% (n = 259) informaram residir com a família (pai e mãe). Em relação ao período do curso, 72,4% (n = 222) estavam na primeira metade do curso (primeiro, segundo ou terceiro ano); e 27,6% (n = 85), na segunda metade do curso (quarto, quinto ou sexto ano). Entre os participantes, 43,5% (n = 134) declararam desejar seguir uma especialidade clínico-cirúrgica; 39,9% (n = 123), uma especialidade clínica; e 16,6% (n = 51), uma especialidade cirúrgica. Quanto ao nível de satisfação no que concerne ao curso de Medicina, 48,4% (n = 149) informaram que estavam muito satisfeitos, 35,7% (n = 110) mencionaram que estavam moderadamente satisfeitos e 15,9% (n = 49) relataram que estavam pouco satisfeitos ou muito insatisfeitos.
Entre os estudantes, 12,3% (n = 38) se consideram muito felizes com a vida nos últimos meses; 53,2% (n = 164), consideram felizes; 32,1% (n = 99), não muito felizes; e 2,3% (n = 7), infelizes. A respeito da qualidade de vida, 27,9% (n = 86) classificaram como muito boa; 42,5% (n = 131), como boa; 22,7% (n = 70), como razoável; e 6,8% (n = 21), como ruim ou muito ruim.
Em relação à religião, 73,7% (n = 227) declararam possuir uma religião, 26,3% (n = 81) mencionam não ter nenhuma religião, 72% (n = 222) consideraram importante ou muito importante ter uma religião e 28% (n = 86) afirmaram que ter uma religião é pouco importante ou não tem nenhuma importância. Sobre o conceito de espiritualidade, 59,7% (n = 184) dos estudantes mencionaram a busca de sentido e significado para a vida humana; 55,5% (n = 171), a crença em algo transcendente à matéria; 50,3% (n = 155), a crença e relação com Deus/religiosidade; 40,9% (n = 126), uma postura ética e humanística; e 32,8% (n = 101), a crença na existência da alma e na vida após a morte (Tabela 1).
Variável | Frequência N (%) |
---|---|
Sexo | |
Feminino | 222 (72,1%) |
Masculino | 86 (27,9%) |
Total | 308 (100,0%) |
Faixa etária | |
De 18 a 24 anos | 242 (78,6%) |
De 25 a 30 anos | 44 (14,3%) |
Acima de 30 anos | 22 (7,1%) |
Total | 308 (100,0%) |
Estado civil | |
Solteiro | 287 (93,2%) |
Casado | 10 (3,3%) |
União estável | 9 (2,9%) |
Divorciado | 1 (0,3%) |
Viúvo | 1 (0,3%) |
Total | 308 (100,0%) |
Renda familiar | |
Até dez mil reais | 142 (46,6%) |
Acima de dez mil reais | 163 (53,4%) |
Total | 305 (100,0%) |
Três casos sem informação | |
Com quem mora atualmente | |
Família (pai e mãe) | 259 (84,1%) |
Sozinho | 26 (8,5%) |
Parente | 18 (5,8%) |
Total | 308 (100,0%) |
Ano do curso | |
1º ano | 97 (31,6%) |
2º ano | 66 (21,5%) |
3º ano | 59 (19,3%) |
4º ano | 35 (11,4%) |
5º ano | 25 (8,1%) |
6º ano | 25 (8,1%) |
Total | 307 (100,0%) |
Um caso sem informação | |
Especialidade que deseja seguir | |
Cirúrgica | 51 (16,6%) |
Clínica | 123 (39,9%) |
Clínico-cirúrgica | 134 (43,5%) |
Total | 308 (100,0%) |
Satisfação em estar estudando Medicina | |
Muito insatisfeito | 12 (3,9%) |
Um pouco satisfeito | 37 (12,0%) |
Moderadamente satisfeito | 110 (35,7%) |
Muito satisfeito | 149 (48,4%) |
Total | 308 (100,0%) |
Nível de felicidade com a vida nos últimos meses | |
Muito feliz | 38 (12,3%) |
Feliz | 164 (53,2%) |
Não muito feliz | 99 (32,1%) |
Infeliz | 7 (2,3%) |
Total | 308 (100,0%) |
Qualidade de vida neste momento | |
Muito boa | 86 (27,9%) |
Boa | 131 (42,5%) |
Razoável | 70 (22,7%) |
Ruim | 19 (6,2%) |
Muito ruim | 2 (0,6%) |
Total | 308 (100,0%) |
Possui religião | |
Sim | 227 (73,7%) |
Não | 81 (26,3%) |
Total | 308 (100%) |
Importância de ter uma religião | |
Nenhuma importância | 18 (5,9%) |
Pouca importância | 68 (22,1%) |
Importante | 95 (30,8%) |
Muito importante | 127 (41,2%) |
Total | 308 (100,0%) |
Conceito da espiritualidade | |
Busca de sentido e significado para a vida humana | 184 (59,7%) |
Crença em algo transcendente à matéria | 171 (55,5%) |
Crença e relação com Deus/religiosidade | 155 (50,3%) |
Postura ética e humanística | 126 (40,9%) |
Crença na existência da alma e na vida após a morte | 101 (32,8%) |
Total | 308 (100,0%) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Resiliência nos estudantes de Medicina
O escore médio encontrado nos estudantes durante o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 foi de 135,9 ± 17,8, demonstrando resiliência moderada: 29,9% (n = 92) apresentaram resiliência moderada elevada a elevada; 51,9% (n = 160), resiliência moderada; e 18,2% (n = 56), reduzida resiliência.
A maior resiliência foi influenciada pelos seguintes fatores: alto nível de satisfação em estar estudando para ser médico, alto nível de felicidade com a vida nos últimos meses, maior qualidade de vida durante o isolamento, possuir religião e alta importância atribuída ao fato de ter uma religião (Tabela 2). Observaram-se maiores escores de concordância (muito e totalmente) nas afirmativas; “Sinto orgulho de ter realizado coisas em minha vida” em 85,7% dos estudantes (n = 264) e “Manter interesse nas coisas é importante para mim” em 85,3% (n = 263). Os menores escores de concordância foram observados nas afirmativas “Sinto que posso lidar com várias coisas ao mesmo tempo” em 18,8% (n = 58) e “Faço as coisas um dia de cada vez” em 9,1% (n = 28).
Variável | Espiritualidade | Resiliência | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
P50 (P25 - P75) | Média ± DP | p | P50 (P25 - P75) | Média ± DP | p | |
Sexo | ||||||
Feminino | 52,0 (44,0; 54,0) | 47,3 ± 9,8 | 0,006 | 137,0 (126,0; 149,0) | 136,4 ± 16,3 | 0,903 |
Masculino | 48,0 (35,0; 53,0) | 43,0 ± 12,7 | 138,0 (124,8; 149,0) | 134,5 ± 21,1 | ||
Faixa etária | ||||||
De 18 a 24 anos | 50,0 (41,0; 54,0) | 45,5 ± 11,1 | 0,046 | 137,0 (125,8; 149,0) | 136,0 ± 17,6 | 0,947 |
De 25 anos ou mais | 52,0 (46,5; 55,0) | 48,2 ± 9,6 | 137,0 (125,0; 150,0) | 135,6 ± 18,5 | ||
Estado civil | ||||||
Solteiro | 50,0 (42,0; 54,0) | 45,9 ± 11,0 | 0,144 | 137,0 (125,0; 149,0) | 135,5 ± 17,9 | 0,223 |
Demais situações | 52,0 (47,0; 55,0) | 49,6 ± 7,4 | 138,0 (132,0; 155,0) | 141,1 ± 15,0 | ||
Renda familiar | ||||||
Acima de dez mil reais | 50,0 (41,0; 53,0) | 45,5 ± 11,2 | 0,253 | 137,0 (126,0; 149,0) | 136,7 ± 17,0 | 0,586 |
Até dez mil reais | 51,5 (43,0; 54,3) | 46,6 ± 10,5 | 137,0 (124,8; 148,3) | 134,9 ± 18,7 | ||
Com quem mora atualmente | ||||||
Família (pai e mãe) | 51,0 (42,0; 54,0) | 46,3 ± 10,7 | 0,652 | 137,0 (125,0; 149,0) | 135,7 ± 17,9 | 0,935 |
Demais situações | 50,0 (38,0; 53,5) | 45,1 ± 11,8 | 137,0 (125,0; 149,0) | 136,6 ± 17,4 | ||
Ano do curso | ||||||
1º ou 2º ano | 52,0 (41,0; 54,0) | 46,3 ± 10,8 | 0,234 | 138,0 (126,0; 150,0) | 136,6 ± 18,4 | 0,285 |
3º ou 4º ano | 50,0 (44,0; 540) | 46,9 ± 10,1 | 134,5 (123,5; 146,0) | 133,8 ± 16,8 | ||
5º ou 6º ano | 48,5 (40,0; 53,0) | 44,0 ± 12,2 | 137,0 (126,8; 150,3) | 137,3 ± 17,6 | ||
Especialidade que deseja seguir | ||||||
Cirúrgica | 51,0 (40,0; 54,0) | 44,4 ± 13,4 | 0,265 | 140,0 (129,0; 152,0) | 139,1 ± 15,2 | 0,286 |
Clínica | 49,0 (41,0; 54,0) | 45,3 ± 11,1 | 136,0 (120,0; 150,0) | 134,0 ± 19,6 | ||
Clínico-cirúrgica | 52,0 (44,0; 54,0) | 47,5 ± 9,3 | 137,5 (127,8; 148,0) | 136,3 ± 16,8 | ||
Satisfação em estar cursando Medicina | ||||||
Muito insatisfeito ou pouco satisfeito | 46,0 (35,5; 53,0) | 43,0 ± 11,6 | 0,002 | 129,0 (113,0; 139,5) | 126,8 ± 19,8 | < 0,001 |
Moderadamente satisfeito | 48,0 (40,0; 54,0) | 44,8 ± 11,4 | 134,0 (123,0; 143,0) | 131,5 ± 18,1 | ||
Muito satisfeito | 52,0 (47,0; 54,5) | 48,1 ± 9,8 | 143,0 (132,0; 153,0) | 142,1 ± 14,4 | ||
Nível de felicidade com a vida nos últimos meses | ||||||
Muito feliz/feliz | 52,0 (45,0; 55,0) | 47,4 ± 10,1 | 0,001* | 142,0 (131,8; 152,0) | 140,8 ± 15,2 | < 0,001* |
Não muito feliz/ infeliz | 48,0 (38,8; 53,0) | 43,7 ± 11,7 | 129,0 (116,0; 139,0) | 126,6 ± 18,7 | ||
Qualidade de vida neste momento | ||||||
Muito boa | 52,0 (45,0; 55,0) | 47,7 ± 10,0 | 0,064** | 144,0 (132,0; 153,0) | 142,2 ± 14,5 | < 0,001** |
Boa/razoável | 50,0 (42,0; 54,0) | 45,7 ± 11,0 | 135,0 (123,0; 147,0) | 134,4 ± 17,8 | ||
Ruim/muito ruim | 47,0 (35,5; 52,5) | 43,0 ± 12,0 | 132,0 (111,5; 138,5) | 124,7 ± 21,4 | ||
Possui religião | ||||||
Não | 38,0 (25,5; 48,0) | 36,0 ± 13,5 | < 0,001* | 135,0 (125,5; 144,0) | 132,1 ± 16,5 | 0,026* |
Sim | 52,0 (47,0; 55,0) | 49,7 ± 6,8 | 139,0 (125,0; 151,0) | 137,2 ± 18,1 | ||
Importância de ter uma religião | ||||||
Nenhuma ou pouco importante | 38,0 (26,0; 48,3) | 36,4 ± 13,4 | < 0,001** | 134,5 (125,8; 144,3) | 133,7 ± 15,5 | 0,016** |
Importante | 47,0 (42,0; 52,0) | 45,8 ± 8,0 | 137,0 (120,0; 147,0) | 133,2 ± 19,9 | ||
Muito importante | 54,0 (52,0; 55,0) | 52,9 ± 2,6 | 141,0 (129,0; 153,0) | 139,3 ± 17,1 |
A probabilidade de significância refere-se ao teste de Mann-Whitney (*) e ao teste de Kruskal-Wallis (**).
Fonte: Elaborada pelos autores.
Espiritualidade nos estudantes de Medicina
Os escores médios encontrados nos estudantes de Medicina durante o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 foi 46,1 ± 10,8, demonstrando alta espiritualidade: 67,9% (n = 209) com alta espiritualidade, 13,6% (n = 42) com moderada espiritualidade e 18,5% (n = 57) com baixa espiritualidade. A maior espiritualidade observada se correlacionou com sexo feminino, faixa etária acima de 25 anos, nível alto de satisfação em estar estudando para ser médico, nível alto de felicidade com a vida nos últimos meses, possuir religião e alta importância atribuída ao fato de ter uma religião (Tabela 2). Foram observados maiores escores de concordância nas afirmativas “Acredito em algo sagrado, transcendente (Deus, uma força superior)” em 75% (n = 231) dos estudantes e “Minha espiritualidade me incentiva a ajudar outras pessoas” em 65,9% (n = 203). Os menores escores de concordância ocorreram nas afirmativas “Minhas crenças e valores espirituais direcionam minhas ações no dia a dia” em 42,9% (n = 132) e “Minha fé ou crenças espirituais dão sentido à minha vida” em 48% (n =148).
Correlação entre os graus de resiliência e espiritualidade observados nos estudantes de Medicina durante o isolamento social
Foi observada uma correlação significativa, positiva e fraca entre o grau de espiritualidade e o grau de resiliência (r = 0,267, p < 0,001 - correlação de Pearson), e o grupo que apresentou maior resiliência continha a maior porcentagem de estudantes com alta espiritualidade (Gráfico 1).
Categorização das respostas dos estudantes de Medicina em relação aos pontos positivos e negativos e às dificuldades vivenciados no isolamento social durante a pandemia
Em relação aos pontos positivos relatados, obtiveram-se quatro categorias: 1. relações sociais; 2. lazer e desenvolvimento pessoal; 3. preocupação social; 4. economia de tempo e dinheiro. Em relação aos pontos negativos relatados, obtiveram-se quatro categorias: 1. preocupação social, econômica e política; 2. conflitos de convivência; 3. vida social, saúde física e mental; 4. ensino remoto e mudança de rotina. Em relação às dificuldades relatadas, obtiveram-se quatro categorias: 1. vida social, saúde física e mental; 2. conflito de convivência; 3. ensino remoto e adaptação a uma nova rotina; 4. adaptação às novas medidas de proteção individual e coletiva (Quadro 1).
CATEGORIAS | DESCRIÇÃO | RESPOSTAS |
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PONTOS POSITIVOS | ||
1. Relações sociais | Relatos que consideraram que o confinamento possibilitou uma maior aproximação das interações sociais. | • “Passar um tempo que antes não tinha oportunidade com minha família” (E56). |
• “Estar mais perto dos meus familiares” (E83). | ||
2. Lazer e desenvolvimento pessoal | Relatos que consideraram como ponto positivo do confinamento o maior tempo para lazer e a possibilidade de desenvolvimento pessoal, incluindo autocuidado, autoconhecimento e estudos. | • “Autoconhecimento, possibilidade de aprimorar a paciência, resiliência” (E4). |
• “Meu reencontro comigo mesma” (E18). | ||
• “Mais tempo para atividades individuais, como estudo, leitura, musculação e meditação” (E49). | ||
• “Oportunidades para desenvolver a espiritualidade, o autocontrole, e reestabelecer prioridades” (E84). | ||
3. Preocupação social | Relatos que consideraram como positivo o próprio objetivo do confinamento como medida de saúde pública, isto é, a conscientização da população sobre o cenário atual e a necessidade de mudança de hábitos para redução do contágio, e a possibilidade de maior tempo para preparo dos sistemas de saúde. | • “Menor incidência de contágio, melhor preparo do sistema de saúde” (E38). |
• “Reduzir o fluxo de pessoas nos grandes centros e fortalecer o entendimento de um momento que necessita de mudanças no estilo de vida” (E93). | ||
• “Maior desenvolvimento de uma perspectiva social, ao invés de somente individual” (E87). | ||
4. Economia de tempo e dinheiro | Relatos que consideraram que a mudança de hábitos durante o confinamento permitiu uma melhor otimização do tempo e economia de dinheiro. | • “Não ter gasto tempo com transporte para faculdade, comer comida de casa sem ser esquentada no micro-ondas” (E63). |
• “Ter tempo para fazer as coisas em casa” (E65). | ||
• “Não ter que realizar deslocamento para ir às obrigações […]” (E74). | ||
• “[...] almoçar em casa, menos tempo de deslocamento/trânsito para ir para a faculdade” (E86). | ||
PONTOS NEGATIVOS | ||
1 Preocupação social, econômica e política | Relatos de repercussões negativas da pandemia e do confinamento nos campos social, político e econômico, como o desemprego, as mortes e o aumento da desigualdade social. | • “Drástica mudança econômica e social no país” (E65). |
• “Retrocesso da economia” (E111). | ||
2. Conflitos de convivência | Relatos de conflitos com as pessoas de convívio diário, seja por aumento do tempo de convívio e menor privacidade, como das pessoas que voltaram para a casa dos pais, seja por desgaste com pessoas que não seguiam as medidas de combate contra a Covid-19. | • “Muita convivência com meus pais” (E42). |
• “[...] ter que brigar com as pessoas para seguir orientações [...]” (E65). | ||
3. Vida social, saúde física e mental | Os relatos citaram como pontos negativos da quarentena um prejuízo na saúde mental e física, bem como uma sensação de solidão. | • “Distanciamento social. É difícil ficar longe das pessoas que gosta, não poder abraçar, conversar pessoalmente” (E18). |
• “Dificuldade em fazer exercício físico e a alimentação está pior. [E48]”. | ||
• “Aumento de crises de ansiedade” (E56). | ||
4. Ensino remoto e mudança de rotina | Relatos que consideraram que o confinamento foi prejudicial para a vida acadêmica, bem como está exigindo uma adaptação ao ensino remoto emergencial e a uma nova rotina sem sair de casa. | • “Estudar à distância, perder parte das aulas devido à internet, menos concentração, menos rendimento, mais cansaço, menos aprendizado, mais trabalhos” (E89). |
• “Modificar a minha rotina, não conseguir variar o local de estudo, depender do acesso e da qualidade da internet para as aulas, interrupções durante as aulas pela família” (E86). | ||
DIFICULDADES | ||
1. Vida social, saúde física e mental | Relatos que consideraram que o período do confinamento trouxe dificuldades para a vida social, a saúde mental e a saúde física. | • “Ficar sem atividade física e sem ver amigos” (E14). |
• “Medo, incerteza em relação ao futuro” (E51). | ||
• “Dificuldades em não sair com os amigos para bares/festas; aumento da ansiedade [...]” (E108). | ||
2. Conflito de convivência | Relatos que consideraram que o período do confinamento trouxe desafios para as adaptações de convivência dentro do domicílio. | • “[...] me adaptar a morar com meus pais novamente” (E7). |
• “Estar com meus pais, já que não morava com eles há muito tempo” (E74). | ||
• “Ainda, a convivência com a família, mesmo sendo algo positivo, torna-se um dificultador quando é necessário estar concentrada nas aulas, provas e não posso ser interrompida” (E86). | ||
3. Ensino remoto e adaptação a uma nova rotina | Relatos que consideraram que o período do confinamento trouxe dificuldades no que diz respeito ao ensino remoto e à adaptação a uma nova rotina, como ficar mais tempo dentro de casa. | • “A mesma rotina durante muito tempo, sem quebras de expectativa e atividades extras” (E16). |
• “Viver na frente da tela de um computador, estar recluso dentro de casa” (E20). | ||
• “A rotina ficou muito difícil, principalmente para dormir, acordar e estudar” (E36). | ||
• “Acostumar-se com aula on-line” (E69). | ||
4. Adaptação às novas medidas de proteção individual e coletiva | Relatos que consideraram como desafios do período do confinamento a adaptação às novas medidas de proteção individual e coletiva, como hábitos de higiene e uso de máscaras. | • “Acostumar a usar máscara” (E11). |
• “Muito cuidado e limpeza com compras de supermercado [...]” (E31). | ||
• “Incluir novos hábitos de higiene no cotidiano” (E95). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Foi realizada uma análise da frequência das respostas dos estudantes segundo as categorias em relação aos pontos positivos e negativos e às dificuldades durante o isolamento social (Tabela 3). Os resultados evidenciaram que, em relação aos pontos positivos, os estudantes apontaram o lazer e a possibilidade de desenvolvimento pessoal (59,3%) com maior frequência, seguidos pelas relações sociais (52,2%). Em relação aos pontos negativos, a saúde mental/social/física foi a mais citada (72,8%), seguida pelo ensino remoto/pela adaptação a uma nova rotina (51,3%). Entre as dificuldades enfrentadas no isolamento, o ensino remoto e a adaptação a uma nova realidade continuaram a se destacar (62,7%), seguidos pela saúde mental/social/física (38%).
CATEGORIAS | N (%) |
---|---|
Pontos positivos | |
Relações sociais | 160 (52,5%) |
Lazer e desenvolvimento pessoal | 181 (59,3%) |
Reflexões gerais/sociais sobre o contexto atual | 36 (11,8%) |
Economia de tempo e dinheiro | 28 (9,2%) |
Pontos negativos | |
Preocupação social/econômica/política | 53 (17,5%) |
Conflitos de convivência | 15 (5%) |
Saúde mental/social/física | 220 (72,8%) |
Ensino remoto/adaptação a uma nova rotina | 155 (51,3%) |
Dificuldades enfrentadas | |
Saúde mental/social/física | 114 (38%) |
Conflitos de convivência | 27 (9%) |
Ensino remoto/adaptação a uma nova rotina | 188 (62,7%) |
Adaptação às novas medidas de proteção individual e coletiva | 30 (10%) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
Este estudo teve como objetivo avaliar o grau de resiliência de estudantes de Medicina durante o período de isolamento social causado pela Covid-19 e sua relação com a espiritualidade e fatores pessoais. Uma vez que a resiliência resulta da interação entre fatores promotores de risco (situações adversas) e fatores protetores capazes de promover uma evolução positiva em termos de bem-estar psicossocial11),(21),(30, procurou-se conhecer ainda os possíveis fatores promotores de risco (pontos negativos e dificuldades relatados), bem como os fatores protetores (pontos positivos relatados), na perspectiva dos estudantes.
Nossos dados demonstram que, durante o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19, os fatores negativos e as dificuldades enfrentados mais relatados e, portanto, promotores de risco foram a alteração da saúde mental, social e física e a adaptação a uma nova rotina e ao ensino remoto, o que pode ser observado nos seguintes relatos:
Ansiedade/muita notícia ruim e muita gente passando por dificuldades/incertezas sobre o futuro/ não conseguir manter uma rotina (E 59).
Isolamento das outras pessoas, fechamento de academia, desemprego, fechamento de empresas (E60).
Incertezas e falta de resposta sobre o futuro acadêmico, solidão, falta da família, incerteza se poderei voltar para casa ou se devo ficar em BH. Dificuldade em fazer exercício físico e a alimentação está pior. Me sentindo inútil e sem perspectiva, com vontade de chorar quase todo dia (E48).
Modificar a minha rotina, não conseguir variar o local de estudo, depender do acesso e da qualidade da internet para as aulas, interrupções durante as aulas pela família (E86).
Em relação aos fatores estressores em estudantes de Medicina durante a pandemia, nossos resultados estão condizentes com a literatura. Em um trabalho multicêntrico realizado em nove países, em que se abordaram mudanças no estilo de vida entre os discentes de Medicina (n = 2.776) durante a pandemia da Covid-19, observaram-se mudanças negativas em todos os países estudados, por causa das alterações no estilo de aulas (passaram a ser on-line), o que resultou em uma média de 8,7 horas diárias na frente da tela do computador, com piora nos hábitos de estudo, sono e alimentação, levando a sintomas como dor nas costas, astenopia, irritabilidade e instabilidade emocional31. O ensino e as avaliações à distância podem aumentar o nível de incerteza e estresse, por se tratar de modalidade ainda pouco conhecida no ensino médico, fato que pode ter comprometido a supervisão, a comunicação e o monitoramento das atividades por parte dos professores, além de dificultar o estabelecimento de relações socioafetivas, tão relevantes para a ambientação da aprendizagem32. Além disso, o caráter incerto e o curso imprevisível da doença, com a intolerância, a incerteza e o risco percebido de adquirir a infecção, foram considerados fatores de risco para respostas psicológicas negativas, incluindo alteração de comportamentos, sofrimento emocional e reação de evitação entre pessoas comuns. Estudos anteriores relataram que o impacto psicológico da quarentena pode variar de efeitos imediatos, como irritabilidade, medo de contrair a infecção e espalhá-la para membros da família, raiva, confusão, frustração, solidão, negação, ansiedade, depressão, insônia e desespero, a consequências extremas como o suicídio33.
Neste estudo, realizado durante a pandemia da Covid-19, observou-se que os estudantes de Medicina apresentaram, em média, resiliência moderada e alto grau de espiritualidade, que se correlacionaram significativamente de forma positiva e fraca. Esse resultado não corrobora o que foi observado por Salles et al.34 em estudo realizado em uma universidade do Rio de Janeiro, no qual 54% de discentes apresentaram baixa resiliência na pandemia, mas se assemelha aos achados de outro estudo realizado com estudantes de Medicina, em período anterior à pandemia, que encontrou resiliência moderada em 53% dos alunos, influenciada pela fé religiosa, pela espiritualidade, pelo apoio social e pelo otimismo35. Um estudo de revisão sistemática demonstrou haver correlação positiva moderada entre resiliência e espiritualidade/religiosidade36.
Apesar do isolamento social promovido pela pandemia, os fatores positivos mais citados foram as relações sociais e a possibilidade de desenvolvimento pessoal e lazer. Nesse contexto, a resiliência e a espiritualidade dos discentes foram influenciadas positivamente pela satisfação em estudar para ser médico, pelo nível de felicidade com a vida nos últimos meses, pela maior qualidade de vida durante o isolamento, pelo fato de ter uma religião e pela importância atribuída a isso. A alta espiritualidade também sofreu influência do sexo feminino e de idade acima de 25 anos. A correlação entre o grau de espiritualidade e a resiliência observada neste estudo é relevante, uma vez que, além do papel importante da espiritualidade na resiliência, ela também está relacionada à melhoria da saúde mental18, da qualidade de vida37 e do enfrentamento das adversidades38.
Em consonância com nossos dados, o estudo realizado por Tempski et al.24 com alunos de Medicina constatou que aqueles com alta resiliência apresentaram melhor percepção de qualidade de vida. A pesquisa também evidenciou associação entre maiores escores de resiliência com melhor percepção do ambiente educacional e taxas menores de ansiedade e depressão. Resultados concordantes também foram apresentados por Neufeld et al.39 que demonstraram associação entre resiliência e bem-estar psicológico, reforçando que escores mais elevados de resiliência se relacionam a fatores essenciais para melhorar o bem-estar e minimizar o estresse psicológico.
No presente estudo, as afirmativas “Sinto orgulho de ter realizado coisas em minha vida” e “Manter interesse nas coisas é importante para mim” obtiveram maiores escores e porcentagem de concordância na escala de resiliência, sugerindo que a competência pessoal e a motivação são fatores importantes para o desenvolvimento da resiliência. Na literatura, resultados apontam que a satisfação com a competência (Can I really do this?) apresenta associação positiva e estatisticamente relevante com a resiliência39. Segundo Pestana40, o estudante que demonstra características de resiliência percebe-se capaz de enfrentar as dificuldades encontradas nos campos social e acadêmico, o que reflete positivamente nos resultados escolares, tendo a escola função importante na promoção da resiliência, ao incentivar os discentes a superar as adversidades no âmbito das tarefas escolares e em outras realizações.
Conhecer os aspectos relacionados com o desenvolvimento de maior grau de resiliência nos estudantes é fundamental, uma vez que, segundo Pestana40, ela pode ser desenvolvida, e a implementação de programas específicos nas universidades pode impulsionar esse construto. Estudos demonstram que, entre os vários fatores que compõem o processo resiliente, a espiritualidade se destaca como um elemento mediador capaz de dotar o indivíduo de recursos para a superação de adversidades18),(20),(23.
Segundo Saad et al.18, a saúde dos indivíduos é determinada pela interação de fatores físicos, mentais, sociais e espirituais. Assim, esses autores relatam haver uma possível associação causal entre espiritualidade e saúde. Os possíveis efeitos da espiritualidade na saúde podem estar relacionados a efeitos fisiológicos simples, como a redução da tensão muscular, da frequência cardíaca e da pressão arterial, e a reações mais complexas, como a capacidade de controlar a dor, o sofrimento e o estresse, aumentando a capacidade de adaptação a situações desafiantes e de expansão de vínculos sociais41.
Para os estudantes, a espiritualidade foi conceituada principalmente como a “busca de sentido e significado para a vida humana”, seguida pela “crença em algo transcendente à matéria”. Metade dos estudantes entende a espiritualidade como “crença e relação com Deus/religiosidade”, o que se aproxima mais da definição de religiosidade42. Isso sugere uma provável sobreposição dessas duas dimensões na percepção do discente. A respeito do envolvimento religioso por parte dos estudantes, no presente estudo, 73,7% declararam filiação religiosa. Esse dado difere da estimativa da população brasileira que aponta que 95% têm religião43, mas se aproxima dos resultados obtidos em um estudo multicêntrico envolvendo 12 escolas médicas brasileiras, no qual se constatou envolvimento religioso em 66,1% dos alunos participantes44. Neste estudo, observou-se o papel relevante da religião no enfrentamento das adversidades, uma vez que ter religião e dar alta importância a isso se correlacionou com escores maiores de espiritualidade e resiliência. Collier et al.45 relatam que as crenças religiosas e a espiritualidade fazem parte da identidade do indivíduo e, portanto, são facetas individuais que devem ser consideradas na elaboração de estratégias de enfrentamento das adversidades desencadeadas pela pandemia.
Entretanto, é interessante observar que, apesar de a maioria relatar ter religião, somente 32,8% dos estudantes relacionaram a espiritualidade com a crença na existência da alma e na vida após a morte. Esses dados se aproximam dos achados do estudo de Lucchetti et al.44, no qual essa relação foi citada por 20,3%. Essa visão da espiritualidade se aproxima do conceito mais amplo dado por Puchalski46, que envolve aspectos pessoais que correlacionam a abordagem da transcendência por meio da relação com o outro, com o meio ambiente, com a arte e a razão.
Segundo Scorsolini-Comin et al.38, diante do cenário de incertezas e problemas vivenciados na pandemia, a abordagem da espiritualidade pode ser uma estratégia que, ao possibilitar conforto por oferecer uma dimensão de acolhimento e endereçamento das reflexões, tem potencial humanizador ao interligar pessoas, contextos e processos que auxiliam no desenvolvimento da resiliência dos estudantes.
Entretanto, a despeito da importância da dimensão da espiritualidade na qualidade de vida, na resiliência e na relação médico-paciente, poucas escolas médicas brasileiras possuem cursos que tratam especificamente de espiritualidade/saúde. Um estudo realizado por Lucchetti et al.47 com 86 escolas médicas no país identificou que somente 10,4% das instituições de ensino médico ofereciam curso específico sobre espiritualidade, 30,1% relataram abordar o assunto de forma isolada em algum momento do curso, e somente 2% indicaram intenção de implementar um programa específico sobre o tema no currículo.
A necessidade de novos estudos sobre espiritualidade e resiliência entre os estudantes de Medicina parece ser importante para embasar estratégias educacionais voltadas para estimular o bem-estar deles durante a graduação, de modo diminuir a vulnerabilidade dessa população a situações estressantes tanto no âmbito individual de discentes e professores quanto em condições de ensino.
Considerando que a prática da medicina proporciona uma grande proximidade com a vida, a dor, o sofrimento humano, o morrer e a morte, além de despertar outros gatilhos estressores, a introdução de estratégias educacionais no currículo, visando à abordagem da espiritualidade e da resiliência não só na prática clínica, mas também na vida pessoal, é imprescindível. Discutir os conceitos de espiritualidade e resiliência, e os fatores envolvidos pode auxiliar na promoção de mudanças comportamentais que tornarão os estudantes mais fortalecidos diante das adversidades e obstáculos, formando, assim, profissionais mais aptos a lidar com as dificuldades que serão encontradas tanto na prática profissional quanto na vida pessoal. No entanto, é importante que essas estratégias educacionais sejam inseridas no currículo de forma longitudinal com abordagens em diferentes contextos de aprendizagem.
Este estudo apresentou como limitações o tamanho da amostra que pode não ter sido suficiente para representar a totalidade da população de estudantes de Medicina do Brasil, o contexto realista das respostas, uma vez que questionários autorrespondidos são totalmente dependentes da sinceridade dos entrevistados, bem como o caráter transversal do estudo, considerando que resiliência é um processo dinâmico de reconstrução de si mesmo e de adaptação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudantes de Medicina apresentaram, durante o isolamento social, moderada resiliência e alta espiritualidade, observando-se uma correlação positiva, porém fraca, entre elas. A variáveis que influenciaram positivamente na resiliência e espiritualidade foram: satisfação em estar estudando para ser médico, alto nível de felicidade com a vida nos últimos meses e maior qualidade de vida durante o isolamento, ter religião e alta importância atribuída ao fato de ter uma religião. A alta espiritualidade também sofreu influência do sexo feminino e de faixa etária acima de 25 anos. Neste estudo, foi possível, ainda, identificar que, durante o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19, os fatores que mais impactaram negativamente os estudantes de Medicina foram a saúde mental/social/física e a adaptação a uma nova rotina e ao ensino remoto. Assim, os dados deste estudo sugerem que os estudantes que apresentaram maior espiritualidade provavelmente foram mais resilientes e capazes de lidar com os fatores estressores associados à saúde física/mental/social e à rotina do ensino remoto impostas pelo isolamento social, além de se adaptarem e manterem uma visão positiva em relação aos problemas vivenciados. Esses resultados podem embasar a reflexão de estratégias educacionais que visem ajudar no enfrentamento dos problemas surgidos em decorrência do isolamento social, além de outras adversidades comumente encontrada no curso médico.