INTRODUÇÃO
A linguagem, como produto condicionado pelo contexto social e pelas experiências do indivíduo, possui um valor inerente, que é permitir que dois falantes do mesmo código se entendam e que, assim, o processo comunicativo seja estabelecido e continuado. Além disso, a linguagem age como um instrumento de valorização social, já que ela exerce diferentes formas de poder durante o processo comunicativo, o que induz uma caracterização do indivíduo com base nas suas formas de expressão1.
No processo comunicativo, a compreensão e a não compreensão são inerentes à enunciação2. A primeira pressupõe um processo gradual de interação e diálogo entre os sujeitos enunciadores, que, pela ação da linguagem, no momento do diálogo recorrem às experiências vividas, criando e recriando possibilidades de atribuir significados e sentidos ao contexto comunicativo no qual estão inseridos.
Diante dessa perspectiva, a comunicação na relação médico-paciente, forma-se uma unidade na qual as características pessoais de ambos são muito importantes, uma vez que o encontro entre esses indivíduos é uma situação singular, pois decisões serão tomadas acerca da vida do atendido que, via de regra, encontra-se com algum desconforto físico ou psíquico3. A relação médico-paciente é marcada pela dissimilaridade entre as partes no tocante aos contextos social e psíquico. Dessa forma, a linguagem e a comunicação verticais e autoritárias criam uma relação de verticalidade entre as partes, o que possivelmente irá gerar um distanciamento entre eles4.
Analisando o contexto da consulta, compete ao clínico direcionar o encontro, pois ele dispõe de conhecimentos que o paciente geralmente não tem - e é tal característica que coloca o médico na condição de dirigente do encontro -, posição que deve assumir, compreendendo, encorajando e respeitando o paciente. Contudo, embora detentor dessas informações e instrumentalizado para dirigir o encontro, o médico não pode se furtar de compreender e respeitar aspectos culturais de seu paciente3. Já os pacientes podem se comportar de maneiras diversas, em função de seu temperamento, modo de viver, circunstâncias momentâneas e condições socioculturais, de modo que uma palavra pode deteriorar a relação entre o médico e o paciente e aumentar os padecimentos deste último3.
Quanto aos aspectos da relação médico-paciente que podem ser afetados negativamente pela comunicação não efetiva, destaca-se a autonomia, que consiste na participação e na decisão conjunta do plano terapêutico a ser adotado, o que, evidentemente, é um ponto prejudicado quando a comunicação não se estabelece de forma que as duas partes se entendam4. A beneficência também pode ser afetada nesse contexto, já que uma comunicação satisfatória proporciona um atendimento de maior qualidade e eficácia, uma vez que aumenta as chances de adesão ao plano terapêutico, o que facilita a reversão do quadro clínico inicial do paciente, reforçando o princípio da não maleficência5.
Em um estudo observacional transversal desenvolvido por Wu et al.6, a relação médico-paciente foi analisada sob aspectos de empatia e confiança. É destacado que uma relação médico-paciente positiva é caracterizada por comunicação efetiva, apoio emocional e envolvimento do paciente nas decisões de tratamento, bem como empatia por parte do médico. Esse cenário aumenta a confiança do paciente no médico e a satisfação geral, além de permitir que ambas as partes compreendam e compartilhem as dúvidas e inquietações do processo. Williamson et al.7 afirmam que é responsabilidade do médico e do paciente a construção e a manutenção da confiança por meio de uma comunicação aberta, empatia e respeito mútuo.
Por fim, cabe ressaltar o estudo de Ordóñez Plaja et al.8, que, além de concluir que a maioria dos pacientes participantes teve problemas de compreensão da fala do médico, atestou que as diferenças socioeconômicos entre o médico e paciente determinavam o grau de incompreensão, configurando diferentes ruídos comunicativos. É imprescindível analisar os possíveis impactos na relação médico-paciente, sob a perspectiva linguística, evidenciando as duas partes envolvidas nesse processo, para que haja uma maior compreensão acerca dessa temática.
Assim, entende-se que a linguagem, como um reflexo do somatório de experiências do indivíduo, pode ser um fator determinante na relação médico-paciente. O objetivo do estudo foi avaliar os impactos da comunicação inadequada na relação médico-paciente.
MÉTODO
A presente pesquisa é constituída por um estudo primário, acadêmico, descritivo, observacional, transversal, qualiquantitativo e de campo. Os locais de coleta de dados foram um centro de atendimento clínico e uma unidade de Estratégia Saúde da Família (ESF). A dinâmica de coleta de dados consistiu na aplicação de um questionário, com o objetivo de realizar o levantamento de dados socioeconômicos. Esse questionário (Figura 1) foi aplicado após a consulta médica agendada. Para os pacientes analfabetos, o preenchimento foi intermediado por um membro da equipe do estudo.
Após o questionário socioeconômico, realizou-se uma entrevista estruturada para a percepção mais detalhada acerca da linguagem do paciente. Essa entrevista (Figura 2) é formada por proposições direcionadas e objetivas para a coleta de dados linguísticos relevantes para os parâmetros de observação. A entrevista envolveu, entre outros aspectos, a caracterização de objetos semelhantes e a descrição de imagens.
Por fim, o paciente e o médico preencheram questionários específicos com o objetivo de coletar dados referentes à experiência do atendimento, sendo um formulário para o paciente (Figura 3) e outro para o médico (Figura 4).
População
Como critérios de inclusão, participaram pacientes de ambos os sexos, acima de 18 anos, não surdos, não mudos, não cegos, falantes da língua portuguesa, alfabetizados ou não e capazes de se comunicar sem auxílio de terceiros. Destaca-se, ainda, a aleatorização da amostra, uma vez que não houve seleção prévia dos participantes, já que, além dos parâmetros supracitados, foi necessário apenas que o indivíduo estivesse no local e no horário em que o estudo estava em andamento. Para os médicos participantes, o único critério de inclusão na pesquisa foi atender no local e no horário do estudo. Excluíram-se as pessoas que não atenderam aos critérios de inclusão e que não aceitaram participar da pesquisa.
Variáveis
Coletaram-se as seguintes variáveis dos pacientes: idade, gênero, escolaridade, condições da residência, ocupação, renda e posse de transporte individual. Também foram apurados dados referentes ao uso de adjetivos, à estruturação de frases e às concordâncias verbal e nominal. Por fim, obteve-se a informação a respeito da linguagem usada pelo médico e da facilidade de expressar os próprios sintomas.
Quanto aos médicos, coletaram-se as seguintes variáveis: se a linguagem usada pelo paciente foi clara e de fácil entendimento, e, a partir disso, se houve dificuldade para levantar a hipótese diagnóstica.
Processamento e análise estatística dos dados
Os questionários e a entrevista estruturada foram preenchidos diretamente no Google Forms. Organizaram-se os dados coletados em gráficos e tabelas para a análise estatística.
Aspectos éticos
Antes da aplicação dos questionários e da entrevista, solicitou-se o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, evidenciando o anonimato, uma vez que não foram coletados nem registrados os nomes dos pacientes. Cabe ressaltar que não se solicitou aos participantes nenhuma informação adicional, os quais foram identificados por números, apenas por questões organizacionais. Para garantir que não houvesse dano aos participantes voluntários do estudo, houve a submissão da pesquisa ao Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Universitário Redentor, com posterior aprovação: Parecer nº 5.972.057.
Proposta de extensão
Após análise dos problemas comunicativos e da mensuração do entendimento entre as partes, elaboraram-se dois vídeos de cunho educativo: um direcionado aos médicos e outro à população em geral. Essa estratégia de intervenção foi pensada com o intuito de sugerir a adoção de posturas e comportamentos que podem proporcionar uma comunicação mais efetiva na relação médico-paciente, elevando a satisfação e a resolutividade do encontro do paciente com o médico. O QR code do vídeo foi gerado e afixado nos locais de coleta de dados.
RESULTADOS
Houve a coleta de dados de 23 pacientes, sendo 13 de uma clínica de atendimento especializado e dez de uma unidade de ESF. Quanto ao perfil socioeconômico geral dos voluntários da pesquisa, destaca-se a faixa etária prevalente de 31 a 60 anos (Gráfico 1), sendo o ensino fundamental incompleto o grau de escolaridade mais frequente (Gráfico 2). Cerca de 50% dos participantes estavam em condição de desemprego ou empregados sem carteira de trabalho assinada, e aproximadamente 60% recebiam até dois salários mínimos (gráficos 3 e 4).
Na entrevista estruturada destinada aos pacientes, os dados evidenciaram que, para a diferenciação das bolas, 21% ressaltaram uma única divergência, sendo ela cor ou tamanho, já os demais abordaram as duas características. Além disso, um dos participantes usou caracterização de semelhança: “Parece um sol”.
Para avaliar a descrição, as respostas obtidas por meio da primeira imagem mostraram que nove pessoas não definiram o local em que a idosa apresentava dor (coluna/costas). Nas respostas da segunda imagem, 12 pessoas não definiram a região da dor (nuca/pescoço). Houve incidência de expressões populares para a caracterização da primeira imagem, como “dor nas cadeiras” (uma pessoa).
Quanto à atividade que solicitava que o paciente soletrasse a palavra “atendimento”, 12 soletraram corretamente, seis soletraram incorretamente, ou seja, sabiam o que era soletrar, porém cometeram erros, e cinco não soletraram. Em relação à resposta de qual era o semestre do ano, 91% responderam corretamente, e o restante ou não soube responder ou respondeu incorretamente.
Dentro do escopo da consulta médica, os resultados demonstram que os pacientes, em 13% das vezes, tiveram dificuldade de comunicar ao médico o que sentiam (Gráfico 5), e, de modo complementar, os médicos, em cerca de 21% dos casos, tiveram alguma dificuldade em chegar à hipótese diagnóstica a partir do relato do paciente (Gráfico 6).
DISCUSSÃO
Um dos fatores que determinam a habilidade de expressão é a capacidade linguística do falante, que abrange o conhecimento de substantivos, verbos, adjetivos9. Isso significa que uma análise linguística que avalie a capacidade do paciente de usar adjetivos pode ser útil para determinar se a descrição dos sintomas incluídos na queixa principal foi precisa.
Os dados de linguagem coletados mostram uma linguagem pouco descritiva, o que pode ter relação com os casos em que o paciente relatou apresentar dificuldade de expressar o que sentia para o médico, fazendo com que 21% das vezes os médicos sentissem algum grau de dificuldade de entendimento do paciente baseado no relato durante a consulta (Gráfico 6).
Observou-se que os pacientes que tiveram, de acordo com a avaliação dos questionários, reciprocidade quanto a entender e ser entendido possuíam bastante motivação em aderir à terapêutica apresentada pelo médico, além de estarem satisfeitos por terem sido tratados sob um olhar individualizado. Isso foi possível quando a linguagem usada pelo profissional era de claro entendimento, proporcionando um ambiente de acolhimento e compreensão.
A apresentação da terapêutica e a abordagem, quando realizadas de forma clara, colocam em evidência a autonomia do paciente que, de posse das informações passadas pelo médico, consegue decidir sobre sua própria condição de saúde e o seguimento do tratamento.
A fim de que o presente estudo gerasse um retorno para a sociedade, foi elaborado um projeto de extensão, o qual consistiu na produção de dois vídeos curtos e interativos10),(11. Os QR codes dos vídeos foram afixados nos locais de coleta de dados.
O conteúdo dos vídeos abrange sugestões práticas, tanto para o médico quanto para o paciente, que melhoram a eficiência da consulta médica. Para o médico, as orientações são: “Certifique-se de que o paciente entenda o plano terapêutico”, “Priorize a clareza na sua fala” e “Deixe claro o objetivo da terapia escolhida”.
Já para o paciente, as recomendações são: “Leve por escrito os nomes dos medicamentos de uso contínuo ou a caixa para que o médico possa ver”, “Leve por escrito as alergias medicamentosas”, “Detalhe a queixa para que facilite o médico a chegar ao diagnóstico”, “Aproveite para tirar todas as suas dúvidas” e “Seja sincero ao responder às perguntas do médico”.
A escolha dessa ferramenta se baseia no fato de esse meio audiovisual ser um recurso que possibilita a síntese entre imagem e som, gerando as mais diversas sensações. Além disso, é uma forma de expressão que pode gerar no espectador elementos de motivação para novas situações, como um espectador crítico12.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma comunicação satisfatória entre o médico e o paciente proporciona um atendimento de maior qualidade e eficácia por, principalmente, duas vias. A primeira é que as chances de adesão ao plano terapêutico aumentam quando ambas as partes se entendem, o que facilita a reversão do quadro clínico inicial do paciente, reforçando o princípio da não maleficência e o princípio da autonomia do paciente. A segunda via pela qual o atendimento ganha qualidade e eficácia é pela coleta adequada e relevante de informações, o que direciona a consulta para uma hipótese diagnóstica mais assertiva e uma conduta terapêutica mais adequada à queixa principal apresentada pelo paciente.
Assim, entende-se que a linguagem, como um reflexo do somatório de experiências do indivíduo, é um fator determinante na relação médico-paciente, influenciando de forma direta o entendimento entre as partes e de forma indireta a condição de saúde e a recuperação do paciente. Logo, a linguagem deve ser um instrumento de aproximação e não de afastamento entre o médico e o paciente no planejamento terapêutico. Entender os fatores que impactam a comunicação dentro da relação médico-paciente é adquirir ferramentas para agir no sentido de proporcionar uma assistência em saúde de qualidade não só técnica, mas, acima de tudo, humana.