INTRODUÇÃO
O surto da Covid-19, causado pelo novo coronavírus denominado Sars-CoV-2, iniciou-se no final do ano 2019 e teve disseminação global a partir do início do ano de 2020, caracterizando-se como uma pandemia e uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). A pandemia surpreendeu e abalou toda a humanidade e demandou medidas para seu controle, como a higienização das mãos, o uso de equipamento de proteção individual e o distanciamento social1. Pandemias anteriores mais recentes incluíram a “gripe suína”, causada por mutação do vírus influenza subtipo H1N1, iniciada em 2009 e disseminada em 20102),(3, e a gripe espanhola, causada pelo vírus influenza A, subtipo H1N1, iniciada em 19184.
O desconhecimento sobre vários aspectos relativos ao novo coronavírus gerou muitas incertezas, e os profissionais de saúde que estavam na linha de frente tiveram que buscar os conhecimentos constantemente atualizados para atuar com base em evidências e nas melhores práticas para que pudessem prestar atenção da melhor qualidade possível. Diante da gravidade e alta infectividade da doença, eles tiveram maior estresse emocional e ocupacional, enfrentaram tensão social, correram maior risco de se infectar e vivenciaram sobrecarga de trabalho, conflitos éticos, sofrimento moral, transtornos de ansiedade e depressão5)-(9.
A educação na área da saúde teve que se adaptar durante o distanciamento social, e os avanços tecnológicos possibilitaram sua continuidade por meio virtual. Geraram-se inúmeros estudos que possibilitaram a elaboração de diversas revisões sobre o ensino virtual durante a pandemia, além de abordagens pedagógicas, teóricas e práticas para a adequação ao aprendizado remoto10)-(16. Houve ainda muitos estudos sobre a saúde mental dos estudantes17, a telessaúde18)-(21 e a telemedicina22)-(28) na formação e na atuação profissional.
Menos estudos primários foram dedicados à identificação de outras lacunas nos currículos da área da saúde com o objetivo de preparar os profissionais para que pudessem atuar em pandemias29, apesar de vários manuscritos terem sido publicados para melhorar o currículo de profissionais de saúde para esse contexto30)-(37 e sobre aspectos da identidade profissional desafiados pela pandemia, especialmente os dilemas éticos38.
A afetividade é definida como o “conjunto de fenômenos psíquicos que se revelam na forma de emoções e de sentimentos; capacidade do ser humano de reagir prontamente às emoções e aos sentimentos”39. Segundo Ferreira et al.40, na perspectiva construtivista de Henry Wallon, a afetividade é entendida como o domínio funcional que demonstra diferentes manifestações que se complexificam ao longo do desenvolvimento humano e que se originam de uma base preponderantemente orgânica até alçarem relações dinâmicas com a cognição.
Levando em conta a necessidade de estudos primários sobre como a formação poderia preparar melhor os profissionais de saúde para lidarem com situações como a pandemia de Covid-19, o objetivo deste estudo foi conhecer as sugestões de profissionais que atuaram junto a pacientes com Covid-19 sobre como melhor prepará-los para lidar com esse contexto.
MÉTODO
Delineamento do estudo e preceitos éticos
Este estudo foi qualitativo do tipo exploratório, tendo como referencial a sociologia compreensiva41, a fim de direcionar o olhar para as perspectivas sociocultural e econômica que influenciaram os comportamentos dos indivíduos, como é o caso dos profissionais da saúde que atuaram no cenário pandêmico. Adotou-se o método quantitativo para caracterizar o perfil dos participantes.
Os dados apresentados neste estudo são parte de um projeto de pesquisa mais amplo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos a Faculdades Pequeno Príncipe (CEP/FPP) sob o nº 4.429.011, em que foram estudados os significados e os impactos da pandemia nos profissionais de saúde, além de suas sugestões para seu melhor preparo para lidar com ela. A pesquisa seguiu todos os preceitos éticos no que diz respeito à pesquisa com seres humanos.
Local e população do estudo
O estudo foi desenvolvido em um hospital-escola de grande porte e alta complexidade da cidade de Curitiba, referência em procedimentos clínicos e cirúrgicos, com nível terciário de assistência, que, durante a pandemia, foi adaptado para o atendimento de pacientes com Covid-19.
Os elegíveis foram profissionais que atuavam de forma direta atendendo pacientes com Covid-19 e também os que participavam de forma indireta, seja na recepção, na higienização ou no planejamento e na produção de alimentação. Optou-se pela inclusão dos atores indiretos porque a percepção deles também agregaria contribuições para alcançar os objetivos do estudo, já que todos esses profissionais passam por preparações básicas e treinamentos, como orientações em biossegurança, para que possam trabalhar em ambiente hospitalar. Além disso, como trabalham em contato direto com os profissionais que tiveram formação em saúde, podem trazer questões relevantes de suas observações na atuação prática destes. No momento da seleção dos participantes, o hospital contava com 312 técnicos de enfermagem, 64 enfermeiros, 17 recepcionistas, 34 cozinheiros/copeiros, 22 médicos assistenciais (entre hospitalistas, unidade de terapia intensiva (UTI) e emergência), 60 médicos residentes, 49 auxiliares de higienização, dez tecnólogos em radiologia, quatro nutricionistas, três psicólogos, 13 fisioterapeutas e quatro farmacêuticos.
Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: ter mais que 18 anos e ser profissional que atua no hospital. O critério de exclusão foi: estar emocionalmente abalado, sem condições de abordagem.
Participaram da amostra 20 profissionais cuja seleção foi por conveniência. Solicitou-se ao hospital a lista de todos os profissionais de saúde e também dos demais profissionais de cada categoria que atuavam nos diversos setores do hospital. Sortearam-se quatro médicos assistenciais (M), dois médicos residentes (MR), três enfermeiras (E) e três técnicas de enfermagem (TE) que atendiam diretamente pacientes com Covid-19 na emergência, nas UTI ou nas enfermarias, um(a) fisioterapeuta (F), um(a) nutricionista (N), um(a) farmacêutico(a) (Far), um(a) psicólogo(a) (P), um(a) auxiliar de higienização (AH), um(a) copeiro(a) (C), um(a) recepcionista (R) e um(a) tecnólogo(a) em radiologia (TR). Para garantir o anonimato, os profissionais foram designados pela primeira letra de sua área e numerados, dependendo da ordem em que aconteceu a entrevista; por exemplo, o primeiro médico entrevistado foi designado como M1.
O grupo foi composto com mais representantes de profissionais médicos, levando-se em conta que eles poderiam contribuir com sugestões mais específicas para a formação profissional em situações como a pandemia. Optou-se por selecionar mais profissionais de enfermagem, já que despendem maior parte do tempo ao cuidado direto ao doente e que mais sofrem os impactos emocionais de situações como a pandemia8. Para as demais categorias, selecionou-se um participante de cada. Foram convidados a participar do estudo 20 profissionais, não havendo nenhuma negativa. No momento da entrevista, o pesquisador, que é médico, avaliou a condição emocional dos participantes, e nenhum deles foi excluído do estudo por sinais de sofrimento extremo.
Coleta de dados
Para abordagem do profissional elegível, o pesquisador realizou contato telefônico ou presencial, apresentou-se e explicou os objetivos do estudo, sua justificativa, a forma de coleta de dados e seu registro em áudio, possíveis benefícios e riscos. Aplicou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados foram coletados após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdades Pequeno Príncipe (CEP/FPP) no período de 9 de dezembro de 2020 a 28 de abril de 2021.
Realizou-se a coleta de dados por meio de entrevista semiestruturada em profundidade: uma de forma virtual e as demais de modo presencial. As entrevistas presenciais foram realizadas no hospital, em sala fechada, silenciosa e com participação exclusivas do entrevistador e entrevistado, sendo observado total cuidado em manter o anonimato e a privacidade do entrevistado. Na entrevista virtual, solicitou-se ao participante que estivesse em ambiente privado e confortável, obedecendo aos mesmos cuidados de anonimato e privacidade. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para análise. Também se coletaram variáveis sociodemográficas. Para este manuscrito, analisaram-se as seguintes variáveis: idade, gênero, estado civil, cor autorreferida, religião e profissão. As seguintes questões nortearam este estudo:
Como você acha que poderíamos melhorar a sua formação para o enfrentamento de situações como essa?
Como você acha que poderíamos melhorar a formação dos profissionais de saúde para o enfrentamento de situações como essa?
Eu gostaria de saber se você tem outras reflexões a acrescentar.
Aprofundavam-se então as entrevistas a partir de suas reflexões e solicitando mais explicação, como: “Explique-me um pouco mais sobre isso”.
O entrevistador era um dos pesquisadores e médico residente de terapia intensiva do hospital no momento da coleta de dados.
Análise de dados
Realizou-se a análise dos dados quantitativos por meio de estatística descritiva.
No que concerne aos aspectos qualitativos, adotou-se a análise temática de conteúdo, com leitura inicial do material e sem marcação do texto. Após essa análise, houve a decomposição do conjunto das mensagens e a identificação das unidades de significado (palavras, frases, orações). Em seguida, identificaram-se as relações entre as unidades de significado, que foram agrupadas em unidades de contexto. Posteriormente, fez-se a identificação de temas (ou núcleos de sentido) abrangendo essas unidades39.
RESULTADOS
Participaram do estudo 20 profissionais, com idade entre 27 e 51 anos e média de 39,1 anos - desvio padrão (DP) = 7,5 e intervalo de confiança de 95% (IC95%) = 35,6 - 42,6. A mediana do número de seus filhos foi 1 (P25 - 75 = 0 - 2). O tempo de atuação profissional variou de 2 a 26 anos, com média de 16,3 anos (DP = 7,6 e IC95% = 9,2 - 16,3).
Outras características do perfil desses profissionais são apresentadas na Tabela 1, na qual se observa que a maioria era do sexo feminino, de cor branca e da área médica ou relacionada à enfermagem.
Características | n (%) |
---|---|
Profissão | |
Médico(a) da instituição | 4 (20) |
Médico(a) residente | 2 (10) |
Enfermeiro(a) | 3 (15) |
Técnico de enfermagem | 3 (15) |
Nutricionista | 1 (5) |
Psicólogo | 1 (5) |
Fisioterapeuta | 1 (5) |
Farmacêutico | 1 (5) |
Tecnólogo em radiologia | 1 (5) |
Auxiliar de higienização | 1 (5) |
Copeira | 1 (5) |
Recepcionista | 1 (5) |
Sexo | |
Feminino | 17 (85) |
Masculino | 3 (15) |
Estado civil | |
Solteiro(a) | 8 (40) |
Casado(a) ou em união estável | 9 (45) |
Divorciado(a) | 3 (15) |
Escolaridade | |
Segundo grau completo | 5 (25) |
Superior incompleto | 2 (10) |
Superior completo | 6 (30) |
Pós-graduação | 7 (35) |
Cor autorreferida | |
Branca | 10 (50) |
Negra | 4 (20) |
Parda | 6 (30) |
Religião | |
Católica | 8 (40) |
Evangélica | 6 (30) |
Espírita | 1 (5) |
Umbanda | 1 (5) |
Advaita vedanta | 1 (5) |
Ateísmo | 3 (15) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
As sugestões para melhor o preparo dos profissionais de saúde para lidar com a pandemia de Covid-19 foram agrupadas em: sugestões para as instituições de atenção à saúde e sugestões para as instituições de ensino na saúde.
Entre as sugestões para as instituições de atenção à saúde, uma delas foi a implementação de protocolos assistenciais e fluxogramas bem delineados para auxiliar no entendimento sobre como atuar, que resultasse em um atendimento mais homogêneo e na integração assistencial. Outra foi o investimento em programas de desenvolvimento profissional regulares e contínuos, não só para melhorar a qualidade da assistência, mas também para que os profissionais se sintam valorizados. No contexto de crises e da pandemia, o programa deveria prepará-los para atuar, com informações teóricas sobre a Covid-19 e com teoria e prática sobre biossegurança, cuidado com pacientes críticos, humanização e comunicação com os familiares. Adicionalmente, foi ressaltada a importância de os gestores valorizarem a dimensão psicológica dos funcionários e disponibilizarem apoio psicológico, devido à sobrecarga emocional gerada pela pandemia de Covid-19. O Quadro 1 exibe depoimentos que ilustram algumas dessas sugestões.
Unidades de contexto | Unidades de significado | Depoimentos ilustrativos |
---|---|---|
Aperfeiçoamento de seus profissionais com treinamento | regular e contínuo | • “A instituição teria que ofertar [...] capacitações [...] em todas as categorias, [...] porque ficamos muito tempo parados naquela mesmice [...] então, algumas coisas a gente teria que ter [...] uma capacitação anual [...]” (TE2). |
• “O hospital tem que apostar no profissional que está lá dentro [...]. Então, se você sempre for empregando e sempre estiver: ‘Vamos fazer treinamento disso, disso e daquilo’, a pessoa se sente valorizada e aumenta o conhecimento dela para se tornar um profissional mais adequado para trabalhar” (E3). | ||
em biossegurança | • “Treinamento para as paramentações [...], um rapaz chegou lá na copa explicando como a gente usar, só que eu acho que a gente não seguiu à risca, até porque usar aquele capacete, os óculos, ficava meio assim, sabe?” (C). | |
• “Talvez, algumas palestras [...], que poderia fixar um pouco mais os cuidados de higiene, porque temos aqui alguns folders como lavar as mãos, mas acaba sendo uma coisa rotineira que não é tão fixado [...]” (TR). | ||
• “[...] como é a paramentação, e tudo mais, e desparamentação [...]” (TE1). | ||
para atuar em emergências e crise | • “Que nem o ATLS [advanced trauma life support] e o ALS [advanced life support] [...], a gente só melhora com treinamento, não adianta querer fazer na hora, tipo: ‘A galera está aqui, vocês estão trabalhando e, de repente, a gente vai tentar fazer um treinamento!’. Tem que fazer uma coisa estruturada [...] preventiva [...]. De vez em quando, fazer treinamento tipo de brigadista. Não sabe o que vai acontecer ou o que pode acontecer, mas tem a possibilidade, mesmo que seja mínima, mas fazer o treinamento, algo periódico, chamar as equipes no geral e deixa sempre fresco na cabeça, pelo menos, as coisas básicas que precisam ser feitas. Aí, a gente consegue resolver isso com facilidade, é que nem na ressuscitação cardiopulmonar [...] se alguém souber pelo menos o básico se sai superbem” (MR1). | |
para a humanização | • “Acho que deveriam ser focados em treinamentos mais diários [...] sobre humanização, sobre cuidados focados [...] naquele problema do paciente [...]. Vejo que tem gente muito brutal, muito ruim, [...] e isso me abala bastante [...]. Então, eu sempre penso no lado mais humano, e do cuidado mais humano com o paciente” (TE2). | |
Implementação de protocolos | • “Dá para fazer um protocolo também [...]. Tudo bem que protocolos deixam as coisas meio robotizadas, mas, pelo menos, se você tiver alguma dúvida, você pode seguir aquilo lá” (MR2). | |
Apoio psicológico a seus funcionários | • “Na realidade, esse Covid pegou a gente de surpresa. Ninguém estava esperando que o mundo parasse. Acho que, se a gente soubesse antes, o hospital teria arrumado uma forma de tranquilizar um pouco mais a gente, porque teve gente que ficou muito desesperado, teve pessoas [...] que estão longe da família; então, ninguém estava preparado para isso, e eu acho que o hospital [...] devia ter preparado [...] a parte emocional [...]. Acho que a chefia, de modo geral, o pessoal da administração deveria ficar mais de olho, mais atento nos funcionários, médicos, técnicos, enfermeiros” (C). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
As sugestões dos participantes para as instituições de ensino na saúde estão ilustradas na Figura 1.
Como pode ser observado, elas incluíram inserção curricular ou aumento da carga horária de aspectos técnico-científicos para atuar em pandemia e aspectos para maior foco no ser humano e no cuidado integral, com teoria e prática sobre as relações/a comunicação do estudante consigo mesmo, com os pacientes e familiares, e com os membros da equipe da mesma área de saber e interdisciplinar como membro e em sua liderança e gestão.
Quanto ao maior foco na humanização e no cuidado integral, foi sugerida maior valorização dos aspectos psicológicos do ser humano, como demonstra o seguinte depoimento:
[...] como é que você ensina o ser humano a ser humano? É difícil, né? [...] A gente está todos os dias, todos ligados, interconectados. Então, se a gente aprender a olhar para o outro como equipe, como grupo, como comunidade, dizer em um modo amplo, sociedade [...] quando a gente olha para o paciente e fala “Tá, né?, o paciente morreu’’, e a gente consegue entender que ele é mais um de nós que partiu, eu acho que o resto entra nos eixos [...]. Estou olhando de um jeito mais sistêmico, mas acho que é isso, falta todo mundo se entender um pouquinho melhor, um pouquinho mais de empatia, compaixão (M4).
Nesse contexto, foram fornecidas diversas sugestões para melhorar as relações do futuro profissional consigo mesmo e com a gestão do autocuidado de forma geral, e para manter o equilíbrio emocional, gerir o estresse e reconhecer os seus próprios limites, como ilustrado a seguir:
As coisas da psicologia [...] ajudam a gente a ficar bem com você mesmo, a você não ser o seu estorvo. Você não ser o seu incômodo [...] deve-se falar mais nas faculdades da área da saúde sobre o seu autocuidado, sobre olhar para você. Então, a gente é treinado para olhar para fora, olhar para quem está precisando [...]. Mas e você? Como que faz? Quem cuida de ti? É uma pergunta que é até bem batida, né?: “Quem cuida de quem cuida?”. É você mesmo que cuida! [...]. Tu tens que ser a melhor companhia para você [...]. Tem dia que a gente está tão triste que não tem forças. Como que eu vou cuidar de alguém [...] com tanta tristeza aqui dentro? Então [...] essas coisas [...] devem ser valorizadas, isso é para melhorar a educação e para melhorar o mundo. As relações. Já pensou quanta empatia que ia despertar? (P).
Ressaltou-se também a importância de aprender a refletir sobre a realidade e buscar o conhecimento:
[...] debater os assuntos, principalmente o que está acontecendo ao nosso redor [...]. O que está em alta [...]. Tem muita coisa nova que sai. Então, botar a gente mesmo para debater mesmo, para ir buscar o conhecimento. Já une as duas coisas, você ensina o aluno a buscar o conhecimento, onde você vai fazer isso. E unir mesmo, trocar ideias, discutir (N).
Para melhorar as relações com pacientes e familiares, sugeriram-se humanização, acolhimento, conhecimento da perspectiva do paciente, gestão de emoções fortes e comunicação de más notícias:
Ah, melhora essa grade aí, por favor [...] porque [...] - “O que é mais difícil dentro do cuidado? A pessoa!”. O fígado, a gente tem remédio, coração também, acesso sabemos fazer, tem tecnologia [...]. Mas e a pessoa? Aquela alma, aquele ser que está ali? [...] Quando você olha no olho, a pessoa até acha estranho [...] o que deveria ser o cotidiano. Põe lá: “Como lidar com pessoas difíceis”, [...] “Como acolher, o que é acolhimento, o que é humanização?”. Isso tem que ir para dentro da universidade. [...] Precisa se ocupar daquela pessoa braba. [...] Fala: “Eu sei que está ruim, estou aqui, vamos te ajudar” [...]. Mas não, não fazem isso. Querem [...] fechar a boca das pessoas (P).
As sugestões para promover o trabalho colaborativo em equipe multi e interdisciplinar abrangeram: conhecimento da perspectiva de cada membro da equipe, desenvolvimento de empatia pelos membros da equipe, integração entre os profissionais do cuidado e habilidades de gestão e liderança.
O Quadro 2 exibe alguns depoimentos ilustrativos dos conteúdos ou maior carga sugeridos para melhorar o trabalho colaborativo em equipe multi e interdisciplinar.
Sugestões | Depoimentos ilustrativos |
---|---|
Conhecimento sobre a atuação e a perspectiva de cada membro | • “Trabalhar [...] mais a interdisciplinaridade, porque a gente trabalha multidisciplinaridade e não trabalha tanto a interdisciplinaridade [...]. Porque, se o profissional não está integrado à equipe, tem alguma coisa errada, no meu ponto de vista [...]. Tem que ter uma integração de trabalho, [...] é uma integralidade que a gente vai criando ao longo do tempo, você não precisa ser amigo daquelas pessoas, mas tem que saber trabalhar como equipe [...]” (M2). |
• “[...] falta muito da tal da interface [...], eu adoraria saber como é o dia da assistente social [..] da farmacêutica [...] do médico [...]. Se na nossa formação acadêmica tivesse mais destas costuras, no: “Eu sei o que você passa e você sabe o que eu passo”, num momento desse, a gente não teria certos distanciamentos [...]” (E1). | |
Desenvolvimento de empatia por membros da equipe | • “Se a gente desenvolver uma condição de empatia com a fisioterapeuta que está estressada, cansada, que toma uma decisão que você não concorda, uma técnica de enfermagem que está mais lábil emocionalmente... se a gente conseguir olhar para todo mundo, como uma essência exatamente igual a tua, só que com um monte de condicionantes diferentes, então, aquela pessoa é você que nasceu em outras condições e em outro teto, e sobre outros reflexos de vida. Quando você consegue olhar para isso tudo desse jeito, a gente se entende no resto. Acho que pelo menos essa pandemia ajudou a gente a quebrar um pouco dessa hierarquia, que a gente sempre, tradicionalmente viu no serviço médico, que o médico manda em alguma coisa, e, no final das contas, a gente estava toda junta, nós, os técnicos de enfermagem, os fisioterapeutas, era tudo um caos igual” (M4). |
Integração entre os profissionais do cuidado | • “Unir um pouco mais, a gente é uma classe muito desunida. Então, a gente não consegue procurar apoio em outros profissionais. Eu acho que isso seria uma coisa legal” (N). |
• “Somos todos iguais, porque, se eu cuido do pé, você cuida da mão, a outra cuida da cabeça, a outra cuida do pulmão, a outra cuida do... Somos todos iguais, com a mesma finalidade [...] tinha que ser mais próximo [...], as equipes tinham que estar bem unidas [...], um tinha que estar entrelaçado no serviço do outro para que o nosso maior e principal foco [...] realmente fosse bem atingido [...] que era o paciente ser bem atendido” (E1). | |
• “O trabalho em grupo, para se ajudar um ao outro, porque, talvez, a gente pense no nosso e esquece sempre do outro, isso seria um bom ponto. [...] Talvez eu consiga fazer uma tarefa melhor do que o meu colega, e meu colega é melhor do que eu em outra parte, acho que dá para se juntar e se ajudar em conjunto... então, um trabalho em equipe ajudaria muito” (R). | |
Sugestões | Depoimentos ilustrativos |
Integração entre os profissionais do cuidado | • “[...] algumas experiências com professor de ter aulas em grupos de alunos de diferentes disciplinas, como enfermagem, fisioterapia, nutrição, vendo o mesmo caso clínico, o mesmo paciente, e tendo esses múltiplos pontos de vista do paciente através de cada disciplina, de cada especialidade. [...] Eu tive muito pouco, de saber o que faz um enfermeiro, o que faz o fisioterapeuta, o que faz o nutricionista, o que faz o psicólogo dentro do ambiente e da visão do paciente. Eu acho que isso ajuda tanto numa situação de pandemia como em outras situações do dia a dia, ter uma ideia melhor de como cada um vê o paciente, isso agrega na formação do profissional” (M1). |
• “Colocar todo mundo na mesma sala para discutir, [...] com a fono, com a psicologia, com o profissional médico, todo mundo ali. Então discute o paciente de acordo com as visões de cada um. Acho que isso é importante, colocar um profissional de cada área para debater aquele paciente, entender aquela situação [...], assim cada um vai dar a sua visão até chegar em um consenso, porque cada um tem uma formação, cada um conhece daquilo um pouquinho e, quando se somam esses conhecimentos, quem ganha é o paciente” (F). | |
Desenvolvimento de habilidades de gestão e liderança | • “[...] gestão de pessoas é a que menos é abordada na faculdade, eu acho que essa parte, quando a gente sai da universidade, a gente sai com uma cobrança muito grande sobre isso [...]. Na universidade a gente só aprende na teoria mesmo. Então, essa questão de lidar com os auxiliares e ter ali uma orientação com relação à gestão [...]” (F). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Quanto aos componentes curriculares para melhor preparo técnico-científico na formação dos profissionais de saúde para que possam atuar nas pandemias, muitos entrevistados consideravam que sua formação havia sido predominantemente teórica e não os preparou para a vida profissional futura, o que dificultou a atuação imediatamente após se formar. Por isso, foi ressaltada a necessidade de mais aulas práticas com simulação, inicialmente, e estágios em cenários reais de atuação profissional com pacientes nos serviços na emergência e na UTI. Para suprir a lacuna teórica e prática, sugeriu-se uma disciplina interdisciplinar abordando medicina de crise, atenção à saúde, biossegurança e novas tecnologias, como no depoimento a seguir:
[...] uma disciplina em que você previsse [...] algum tipo de situação ou de doença altamente contagiosa e que pudesse sair do controle, como agora, e que pode e deve acontecer, dar alguns exemplos e tentar caracterizar um pouco e que você tivesse um leque de pacientes, um grande número, em um curto tempo, com comprometimento de suas funções orgânicas, de maneira bem variada, e ver o que você conseguiria fazer, qual é a sua conduta diante desses pacientes [...]. Principalmente na questão de biossegurança, por exemplo lavar as mãos e usar máscara [...] teria que ser debatido durante mais tempo, junto com essas novas tecnologias que apareceram no mercado, se são efetivas ou não, ver quais são os novos produtos que podem melhorar isso, se existe alguma barreira. [...] Então, discutir esse tipo de metodologia e abordagem com inovação tecnológica e lidar de maneira prática numa situação dessas para treinar as equipes (MR1).
Os conteúdos teóricos específicos sugeridos e alguns depoimentos que os ilustram são apresentados a seguir:
Medicina de crise é uma coisa muito discutida fora do Brasil, eu não sei se [...], a gente não trabalha, ou porque a gente não tem tantos desastres naturais, tantos terrorismos [...]. Deveria ser minimamente trabalhada [...] eu não sei se é possível você preparar alguém para passar pelo que a gente passou, eu acho até, de certo modo, praticamente impossível (M2).
Covid-19 e outras pandemias e epidemias: “assuntos novos, principalmente pandemia [...] uma aula de conteúdo bem avançado sobre a pandemia Covid, ou qualquer outra [...]” (TE2).
Atuação perante pacientes críticos:
Focar mais ainda na forma de tratamento com pacientes críticos [...] já no início da graduação [...]. Porque [...] o paciente estável, [...] de posto de atendimento, [...] de internamento eletivo, é [...] mais light. Não que não precise, mas, se você trabalha com paciente critico, você trabalha com qualquer paciente. [...] Pronto atendimento, tem que ter uma noção tremenda de pacientes críticos. Não somente UTI, acho que tem que graduar tudo baseado em pacientes críticos, porque você abre o leque e você trabalha com todo o tipo de pacientes (E3).
Conflitos éticos e respaldo jurídico em tomadas de decisão, especialmente quando os recursos são limitados:
O ensino de conteúdos éticos e jurídicos fez muita falta, [...] entender até que ponto que ia. A gente ficou no limite ético. Muitas vezes, até essas decisões cruciais, de quem vai pra UTI, quem vai ser intubado, quem não vai, [...] senti muita falta de entender o que que a gente tem de respaldo jurídico ou não para ser feito, o que os serviços podem te pressionar a fazer ou não, [...] a gente ficou muito perdido na parte ética (M4).
As sugestões para as aulas práticas e os estágios supervisionados em cenários reais são exibidas no Quadro 3.
Sugestões de práticas | Depoimentos ilustrativos |
---|---|
em estágios em cenários reais | • “[...] deviam focar em situações reais” (TE2). |
• “[...] é ter um foco prático também, da gente ter a parte teórica, ter a parte prática habitual da universidade, mas colocar mais o profissional pré-formação nos estágios finais da formação dele, em contato com o doente, [...] com os serviços, para experiência dele habilitar ele, para ele, terminando a sua formação, já conseguir trabalhar. E a gente vê pouco isso. A pessoa que recém sai da faculdade, ela precisa de muita ajuda. Às vezes, ela não está habilitada para assumir uma função de médico, ela vai aprendendo, precisa da ajuda dos colegas e tal, talvez a gente possa atuar nisso” (M3). | |
• “[...] parte prática faltou bastante [...]. Minha formação teve um foco bastante teórico [...]. A parte de cara a cara com o doente, eu acho que é mais deficitária mesmo, eu acho que a educação médica como um todo no Brasil tem esse problema, de preparar menos o profissional para estar atuando com o doente” (M3). | |
• “Eles falam sobre pandemia, endemia, essas coisas, o que é. Mas não falam como a gente vai agir [...]. O que eu aprendi mais foi: medicação e cuidados básicos com o paciente. Mas questões mais graves não [...]” (TE1). | |
de cuidado destinado a pacientes críticos em contextos de emergência e em UTI | • “Mais práticas mesmo em relação ao que a gente está vendo, porque [...] na faculdade que eu fiz, se tem pouca experiência dentro de uma UTI [...], o básico era: “Você aspirou o paciente? Mobilizou?”. Era só. Mas você mexer no respirador, entender o que você está fazendo, isso veio com a pós. Mas é importante que o profissional na formação tenha esse contato, [...] o preparo quando você chega em um hospital será melhor para você não vai ficar perdido dentro de uma UTI [...] porque tem a matéria, eu acho que falta a pratica em si” (F). |
• “Mais aula teórico-práticas [...], na faculdade, eu tive pouca aula sobre pacientes graves, era mais pacientes de ambulatório. Era muito dividido entre especialidades. A parte de medicina intensiva e medicina de emergência, a gente quase não teve, eu não lembro de ter tido isso aí. Eu acho que teve um estágio [...] que a gente só ficava olhando o preceptor fazendo a prescrição [...]. Na faculdade, eu peguei um acesso central só, nunca intubei [...]” (MR2). | |
• “Devia ter igual ao ACLS [advanced cardiovalcular life support] [...], que ensina um pouco e a gente treina no boneco em seguida. Uma coisa mais dinâmica [...] ter mais estágios, em vez de ficar dentro de sala de aula [...]. Quando eu fiz o ACLS, eu aprendi muita coisa. Então eu acho que todos os profissionais médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem deveriam fazer o ACLS. Dá pra fazer cursos de intubação e acesso central” (MR2). | |
em procedimentos | • “A gente sai muito cru da faculdade. Eu fui aprender mesmo, e pegar mão, aqui na residência. Porque, antes, eu não sabia nem prescrever medicamentos endovenosos, por exemplo. A gente sai sabendo só fazer diagnóstico, por exemplo, sem saber prescrever alguma coisa” (MR2). |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Outra área sugerida foi a competência científica para buscar, selecionar e ler criticamente os artigos e para realizar pesquisas:
A parte de leitura de artigos científicos, a pandemia escancarou como a gente não tem uma formação boa para entender o que quer dizer um artigo cientifico. Então: “Ah, hidroxicloroquina faz bem, não faz”, e até o meio médico, todo mundo meio perdido, sem saber, sai um estudo positivo, mas é só um estudo. [...] entender quando é que passa a usar uma medicação, ou um certo recurso na medicina, com base em estudos, quantos estudos precisam, quais estudos, que critério (M4).
DISCUSSÃO
Identificamos em nosso estudo muitos aspectos significativos que podem tornar os profissionais mais aptos a trabalhar em pandemias como a de Covid-19.
As contribuições para as instituições de atenção à saúde abrangeram a implementação de protocolos para o cuidado ao paciente, programas de aperfeiçoamento profissional regulares ou voltados à biossegurança e ao cuidado de pacientes críticos. Os programas de aperfeiçoamento seriam úteis não só para melhorar a qualidade da assistência, mas também para que os profissionais se sintam valorizados e promover neles maior reflexão crítica, o que evitaria uma atuação mecânica.
Um sistema abrangente e organizado de ações institucionais específicas, nos ambientes hospitalares públicos e privados, para aperfeiçoamento de seus funcionários (educação permanente)42) é imprescindível para minimizar danos evitáveis e erros, melhorar o desempenho da equipe e, consequentemente, promover a qualidade e a eficácia dos serviços ofertados pela instituição43. Nesse contexto, os gestores têm papel fundamental para identificação das demandas de seus funcionários. As ações devem incluir desenvolvimento e difusão de protocolos com as melhores práticas, oferta de reciclagens e atualizações técnicas e conscientização dos profissionais de sua responsabilidade social com a sociedade como cidadãos críticos, conscientes e participativos42)-(44. Um estudo sobre as 250 mil internações iniciais por Covid-19 no Brasil demonstrou que foi dada maior atenção à disponibilidade de recursos como leitos de UTI e ventiladores do que à oferta de treinamentos adequados aos profissionais de saúde que lidariam com os pacientes. Segundo os autores, se também tivesse sido dada atenção ao treinamento, o número de mortes evitáveis poderia ter sido menor45.
Quanto às contribuições para as instituições de ensino, um dos aspectos apontados foi o maior foco no ensino da psicologia, na comunicação e nas relações do estudante quanto ao autocuidado, incluindo o equilíbrio emocional e a gestão de estresse, no cultivo de valores humanísticos, como empatia e solidariedade, e na comunicação interpessoal com pacientes, familiares e membros da equipe, para desenvolvimento de outros aspectos do profissionalismo, como reconhecimento dos limites e reflexão sobre a realidade, busca de conhecimentos no cotidiano e atualização contínua. A comunicação interpessoal com o paciente e a família abrangeria a humanização do cuidado, o acolhimento do paciente, a consideração da perspectiva dele e da equipe de saúde, com demonstração de empatia e compaixão, e saber lidar com ele quando expressa emoções fortes.
Em estudo realizado na Espanha com enfermeiros sobre as necessidades educacionais deles para o enfrentamento de Covid-19, também foi sugerida a aprendizagem do autocuidado, de comunicação com pacientes e familiares, com demonstração de empatia, de maior conhecimento sobre estresse e estratégias para seu controle e do manejo das emoções. Além disso, os enfermeiros sugeriram o desenvolvimento de habilidades para falar e trabalhar com o público geral e com grupos vulneráveis, e a aprendizagem sobre como lidar com a morte e com pacientes morrendo29. Indo ao encontro deste estudo, Amin et al.30 sugerem que as escolas norte-americanas deem maior ênfase ao humanismo e ao cuidado humanístico nos currículos de todos os níveis de educação, nos diversos cenários de aprendizagem, fortaleçam o profissionalismo, melhorem a comunicação com o paciente e também promovam nos estudantes: maior autoconhecimento, aceitação, disponibilidade e expressividade na prática do cuidado, interesse e respeito à dignidade, a construção de vínculos e interpessoais e de relações de confiança, reconhecimento e legitimação dos valores sociais, culturais e espirituais do paciente e identificação de expressões emocionais. Na et al.36 recomendam ainda o ensino de estratégias como mindfulness para manter o bem-estar e o autocuidado, e Nadeem et al.37 ressaltam a importância do preparo do estudante e do profissional de saúde para prevenir o trauma psicológico ou lidar com ele.
Todos esses elementos fazem parte do profissionalismo em suas dimensões de comunicação (intrapessoal e interpessoal) e do compromisso com excelência profissional, e devem ser trabalhados ao longo de todo o currículo em todos os momentos da educação na saúde. A necessidade de sua aprendizagem fica ainda mais evidente quando o profissional enfrenta situações de crise como a de Covid-1946)-(49.
A comunicação no trabalho colaborativo em equipes multiprofissional e interprofissional, como membro e em sua liderança, por meio de discussão interdisciplinar de casos, para conhecimento da função de cada profissional, valorização de sua visão e integração do cuidado na saúde foi também sugerida em nosso estudo.
Esses achados se alinham ao estudo com enfermeiros na Espanha29 e com vários autores que ressaltam a extrema importância do desenvolvimento de competência para o trabalho colaborativo e a comunicação efetiva em equipe interprofissional para melhor enfrentamento da pandemia de Covid-1933),(50),(51. No estudo espanhol, adicionalmente, apontou-se a necessidade de organização, gestão de recursos e indução, além da socialização organizacional e de trabalho29.
Quanto às sugestões para o preparo técnico-científico, alguns participantes de nosso estudo afirmaram que a formação deles havia sido predominantemente teórica, com pouco preparo prático para atuar na realidade profissional, o que dificultou a atuação imediatamente após se formarem. Os participantes mencionaram também a importância de mais aulas sobre Covid-19 e de, além da teoria, maior carga horária de aulas práticas simuladas e em estágios em cenários reais de trabalho, em estágios em emergência e em UTI, para atuar em medicina de crise e com pacientes críticos, para melhor preparo para identificar sinais de gravidade nos pacientes e prestar cuidado a eles, incluindo a realização de procedimentos invasivos. Aulas com simulação realística, como o ATLS ou ACLS, foram ressaltadas como importantes oportunidades de aprendizagem para a prática profissional.
No estudo espanhol, citaram-se diversos conhecimentos e habilidades técnicos, científicos e profissionais para crises em massa, pandemias e catástrofes, abrangendo a biossegurança e a atuação com pacientes críticos. Em relação à biossegurança, apontaram-se a gestão de resíduos, a autoproteção (equipamentos e outras medidas necessárias, como higiene), a prevenção e a proteção de grupos vulneráveis. Aspectos relacionados aos aspectos clínicos e do tratamento dos pacientes citados abrangeram treinamento básico para atuar em unidades de tratamento intensivo, emergência, cirurgia, unidade de ressuscitação de cuidados intensivos e de cuidados paliativos, uso de tecnologia e técnicas em salas de cirurgia, e utilização de instrumentos cirúrgicos29. Outros artigos também apontam a importância dos conhecimentos e das práticas relacionados à Covid-1952),(53, e a necessidade de abordar desastres no currículo do curso de Enfermagem31.
A biossegurança, para uso apropriado de medidas e equipamentos de proteção individual e de prevenção de contaminação, também foi mencionada em nosso estudo como um conteúdo importante, bem como a bioética e de bases para o respaldo jurídico, especialmente para atuar em cenários com limitação de recursos, tendo em vista a dificuldade nas tomadas de decisão sobre os pacientes que poderiam ter acesso ao ventilador e à UTI.
No estudo na Espanha, além da bioética, foi citada a necessidade de conhecimentos e habilidades interpessoais tranversais abrangendo deontologia, direito e outras disciplinas29. Wald et al.38 enfatizam que a identidade profissional dos futuros profissionais de saúde inicia-se na formação e continua ao longo da carreira, sendo desenvolvida na educação médica por meio de reflexão crítica, das relações em uma comunidade de prática guiada por mentores e pela resiliência moral e emocional. Os autores refletem então sobre o quanto lidar com os dilemas éticos gerados pela pandemia pode desafiar, informar e potencialmente transformar o processo de identidade profissional de estudantes e profissionais de saúde, favorecendo uma identidade mais humanista e moralmente resiliente.
Outros autores chamam a atenção para a necessidade de incluir no currículo conteúdos para desenvolver a competência em saúde pública, como epidemiologia, doenças infecciosas e vigilância em saúde32),(54),(55), além de conhecimentos sobre os determinantes de saúde, como as condições sociais, econômicas e políticas, que configuram a saúde e o bem-estar individual. Mencionam ainda as comunidades, as causas estruturais, as raízes das iniquidades e a compreensão sobre questões relacionadas aos posicionamentos, ao privilégio e à marginalização, o pensamento criativo e crítico, a autorreflexão, o desenvolvimento de vínculos de confiança com as comunidades e a saúde mental33. Além disso, há autores que ressaltam a importância de uma pedagogia de aprendizagem crítica em serviços na comunidade e a necessidade de trabalhar com os diversos aspectos e atores sociais envolvidos nesse contexto, como os líderes e gestores políticos35.
Em nosso estudo, os profissionais não mencionaram esses aspectos provavelmente porque a saúde coletiva e pública já é abordada nos currículos das escolas da área da saúde, inclusive com práticas nas comunidades. Entretanto, mais reflexão sobre a responsabilidade social do profissional de saúde e mais práticas sobre a vigilância em saúde e biossegurança poderiam ser consideradas.
A importância do desenvolvimento de competência científica foi outro aspecto ressaltado pelos participantes de nosso estudo. Esse achado foi similar ao encontrado no estudo espanhol, no qual os participantes referiram a necessidade de adquirir conhecimentos e habilidades de pesquisa29.
Portanto, o nosso estudo mostra que cabe aos gestores de instituições prestadoras de atenção à saúde investir no desenvolvimento de seus funcionários para que estes possam aprimorar a sua atuação profissional durante pandemias como a de Covid-19. Por isso, é imprescindível desenvolver e disseminar protocolos, e ofertar trienamento para atualização técnica e aprimoramento humanístico, psicológico, social e moral.
Na percepção dos autores deste estudo, outro ponto de fundamental importância é a responsabilidade de os envolvidos no planejamento curricular das instituições de ensino na saúde incluírem diversos aspectos para melhor preparo de seus egressos para que possam atuar em pandemias. O currículo deve contemplar não só o cuidado integral do paciente, mas também do estudante, futuro egresso, em suas dimensões biopsicossocial, cultural e espiritual, e não apenas de sua doença, com uma visão ampliada sobre os determinantes sociais, econômicos e políticos do processo saúde-doença da população que levam à inequidade e maior mortalidade em determinados grupos sociais. Enfim, deve-se estimular a responsabilidade social de cada profissional em formação.
Além disso, são necessárias mais práticas em que atuem como vida profissional e na realidade do trabalho sob supervisão, mais oportunidades de reflexão sobre a realidade, de aprendizagem interprofissional, trabalho coletivo colaborativo e liderança compartilhada e gestão de pessoas, e maior conteúdo teórico-prático de diversos conteúdos relativos à medicina de crise.
A limitação de nosso estudo refere-se ao fato de ele ter sido realizado em apenas uma instituição. Entretanto, ele traz contribuições sobre vários aspectos que podem ser desenvolvidos no planejamento das instituições de atenção à saúde para preparar melhor seus profissionais e promover a qualidade da assistência prestada, e para que as insituições e de ensino na saúde preparem melhor os futuros profissionais a fim de possam lidar com a pandemia de Covid-19 e outras pandemias, de forma a atenuar seu impacto nos profissionais, no pacientes e na sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidenciamos que nosso estudo trouxe vários temas relevantes para a comunidade científica, com sugestões para a formação e o preparo profissional apontadas por profissionais que trabalharam em uma instituição de saúde durante a pandemia de Covid-19. Destacou-se a importância no desenvolvimento de educação permanente e da criação de protocolos assistenciais pelas instituições de atenção a saúde. Além disso, temas que que devem ser incorporados aos currículos para melhorar e atualizar o ensino nas ciências da saúde, que foram desde aspectos mais humanísticos, como a valorização do adoecimento psicológico, a comunicação e a empatia, até treinamentos tecnicos e práticos, com maior carga horarária dedicada a temas como medicina intensiva, emergência e medicina de crise, a serem enfatizados nas instituições formadoras em saúde. Os resultados encontrados buscam minimizar os impactos de situações de exceção, como a pandemia de Covid-19. Acreditamos que nossos resultados podem contribuir para o futuro planejamento do currículo dos cursos de saúde, de forma a minimizar o impacto sobre os profissionais, os pacientes e a sociedade.