Introdução
O embate entre o público e o privado na oferta da educação brasileira não é recente. Os desdobramentos dessa relação se tornam cada vez mais evidentes nas políticas educacionais atuais e demonstram objetivos que ora são convergentes ora divergentes, por expressarem os antagonismos no campo de disputas de projetos vinculados aos direitos sociais, principalmente naqueles relacionados à oferta educacional.
A defesa de educação pública que atenda às necessidades da maioria da população, ou seja, atenda a classe trabalhadora em sua integralidade, evidencia o compromisso com uma educação de qualidade socialmente referenciada. Por isso, a oferta de educação integral voltada para a classe trabalhadora pode se constituir em possiblidade real em busca de uma educação de qualidade social1.
Em que pese o termo “educação integral” ser utilizado como sinônimo para propostas com objetivos diferenciados, é preciso esclarecer que a ampliação do tempo diário de permanência do aluno em espaço escolar não diz respeito, necessariamente, a uma educação integral, pois este conceito, não sendo neutro, é permeado por visões de mundo historicamente construídas.
Atualmente no contexto brasileiro, o conceito de educação integral está diretamente atrelado à ideia de tempo escolar ampliado, tanto em relação à quantidade de dias letivos, quanto, e principalmente, em relação ao aumento do tempo de permanência diária do aluno a escola. Nessa perspectiva, Moll (2012, p. 129) afirma que educação integral é “compreendida como educação escolar de dia inteiro, constituída e enriquecida por significativas possibilidades formativas”. No entanto, cabe questionar os objetivos dessas possibilidades formativas, pois estão relacionadas a uma formação unilateral, comprometida com o setor empresarial, tanto no que se refere à formação de mão de obra qualificada, quanto na transmissão de valores que legitimam os interesses desse setor.
Na contramão dessa formação unilateral, reconhecemos como educação integral a defesa da omnilateralidade, conceito amplo e complexo na teoria marxista, que se refere ao desenvolvimento das potencialidades humanas ao associar tempo livre e tempo de trabalho, comportando “elementos de disponibilidade, variação e multilateralidade, como, também, a posse de capacidades teóricas e práticas” (FERREIRA JR; BITTAR, 2008, p. 644). Trata-se de uma educação humanista, comprometida com a transformação social e com o pleno desenvolvimento do homem, que congrega ensino intelectual, físico e tecnológico.
Distanciando-se desta perspectiva, o planejamento político-educacional em andamento tem demonstrado a fragilidade da gestão pública em propor os encaminhamentos necessários para a efetivação de uma educação integral e tem encontrado uma alternativa para a questão, substituindo-a pela oferta de educação de tempo integral.
A partir de parcerias público-privadas, a educação de tempo integral tem ocupado espaço significativo nas propostas governamentais e se efetivado em programas específicos. Nesse contexto, o governo federal instituiu a partir de 2007 o “Programa Mais Educação” como uma proposta abrangente de ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola e para tanto, organizou, em parceria com inúmeras instituições, um conjunto de Cadernos que orientam a implementação da proposta em todo o território nacional, conforme adesão de Estados e Municípios.
Apresentar a participação do setor privado na elaboração de alguns dos Cadernos orientadores para o “Programa Mais Educação” é o desafio posto no presente texto.
Para tanto, como procedimentos metodológicos este trabalho contou com pesquisa bibliográfica sob o aporte teórico de autores como Mészáros (2002; 2011; 2014), Marx (2010), Ferreira Jr. e Bittar (2008) e Peroni (2006; 2013) bem como uma análise documental da trilogia “Série Mais Educação”, por entender que esses Cadernos apresentam um panorama sobre a conceituação, a operacionalização e a implementação do “Programa Mais Educação”, além de indicar diversos atores sociais parceiros do referido “Programa”.
O artigo está organizado em três partes. Na primeira, apresentamos uma discussão a respeito das relações público-privadas na educação. Na segunda parte tratamos das influências do setor privado nas políticas para a educação em tempo integral e evidenciamos as parcerias público-privadas na elaboração dos Cadernos que orientam o “Programa Mais Educação”. Por fim, tecemos algumas considerações a respeito dessas parcerias para as políticas públicas de educação em tempo integral.
Relações público-privadas na educação
As parcerias público-privadas, recorrentes no cenário atual da educação brasileira, são temas de muitas pesquisas na área de políticas educacionais. Peroni (2006, 2013), Fernandes (1994), Guimarães Ferreira e Veloso (2006), Bresser-Pereira (2001), entre outros, apontam os desdobramentos desta parceria a partir de diferentes fundamentos teóricos.
Quando se trata de educação em tempo integral esta discussão ganha um enfoque ainda maior, visto que, com a ampliação do tempo também há a necessidade de ampliação do espaço físico, de material didático, de merenda escolar, de atividades diversificadas, de profissionais, de adequação curricular etc., ou seja, não é possível apenas ampliar o tempo de permanência do aluno na escola sem ampliar o projeto de escola.
Neste sentido, a sociedade civil organizada, em especial o setor privado, muitas vezes por meio de suas fundações, vem sendo chamada a atender estas demandas, desde a construção de um projeto político pedagógico que contemple esses novos tempos, espaços e vivências, até a avaliação dos programas implantados.
Essa tendência de relação entre o público e o privado nas políticas educacionais não é exclusividade da situação educacional no Brasil, mas está relacionada a um projeto global, em que os interesses de uma determinada classe prevalecem sobre outra. De acordo com Mota et al. (2012), a Conferência Mundial de Educação Para Todos, realizada na Tailândia no ano de 1990, o documento do Banco Mundial Prioridades e estratégias para a educação de 1995, e Cúpula Mundial de Educação para Todos no Senegal em 2000, se constituem como importantes elementos do cenário internacional que influenciaram e continuam influenciando as políticas educacionais, principalmente no que diz respeito a defesa de uma educação básica de qualidade, ao aumento do tempo escolar e a participação da sociedade civil.
Nos estudos de Guimarães Ferreira e Veloso (2006) podemos encontrar a defesa da aliança entre o público e o privado. Os autores apontam como positivas as experiências educacionais oriundas dessa relação, justificando que um maior investimento financeiro na educação pública estatal não garante acesso e qualidade no ensino. Segundo eles:
Uma forma de introduzir mecanismos de incentivos no sistema público de educação e, com isso, elevar sua eficiência, é através de parcerias público-privadas. A ideia básica é combinar a eficiência do setor privado com a característica do setor público de dar acesso a todos, particularmente aos mais pobres. Um outro aspecto muito importante dessas parcerias é que elas criam um mecanismo de competição por recursos públicos que, por sua vez, gera incentivos para um melhor desempenho das escolas públicas (GUIMARÃES FERREIRA; VELOSO, 2006, p. 1).
Os autores ainda sugerem a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para eliminar algumas restrições, principalmente no que diz respeito ao repasse de recursos financeiros às instituições e programas desta natureza, pois segundo eles, “a legislação brasileira deveria conferir flexibilidade suficiente para que programas educacionais que se encaixem nesses e em outros tipos de parcerias público-privadas sejam implementados” (GUIMARÃES FERREIRA; VELOSO, 2006, p. 2).
Pode-se perceber que uma das justificativas para a necessidade da parceria público-privada é a eficiência do setor privado e, por assim dizer, a ineficiência do Estado. Silva Jr. (1996) expõe que, para defender seus interesses por meio da vida pública, os privatistas utilizam o discurso da incompetência natural do Estado versus a eficácia natural do sistema de gestão empresarial. Outra questão a ser levada em consideração é que neste modelo o valor da meritocracia é exaltado, como se o bom desempenho de uma escola fosse unicamente resultado imediato de um esforço da comunidade escolar e este esforço seria estimulado pela competição, fazendo parecer que a escola que não atinge os resultados esperados não se esforça o suficiente, desconsiderando todo o contexto mais amplo dos problemas socioeconômicos.
Assim, entendemos que a defesa das parcerias público-privadas carrega consigo valores da gestão empresarial como a meritocracia, o individualismo e a competitividade, e vão ao encontro de uma política reformista que visa à manutenção e reprodução da atual forma de sociabilidade.
Nessa esteira de pensamento, Peroni (2006, p. 11) expõe que as parcerias público-privadas funcionam como tentativas de superação da crise do capital. A autora aponta que, para os neoliberais, não é o capital, mas o Estado que está em crise, pois para legitimar-se excede em gastos com políticas sociais, provocando uma crise fiscal e atrapalhando o livre mercado, uma vez que pela ótica do neoliberalismo o papel do Estado deveria ser mínimo - naquilo que lhe convém. Desse modo, na tentativa de contornar essa crise, entra em cena a chamada Terceira Via, um terceiro caminho que não o Estado mínimo neoliberal nem a antiga social democracia. Este terceiro caminho considera que “o privado mercantil é o parâmetro de qualidade para sanar as falhas do Estado” (PERONI, 2013, p. 4).
Em concordância com Mészáros (2002), entendemos que a crise atual não é fruto do Estado, mas trata-se de uma crise estrutural do capital. Desse modo, as manobras utilizadas para amenizar a crise jamais conseguirão cumprir o fim a que supostamente são destinadas, sendo assim, as parcerias público-privadas não elevarão a qualidade da educação como anunciado nos discursos de seus defensores, pois a crise no sistema educacional é oriunda de um contexto muito mais amplo: a crise estrutural do capital.
nenhum postulado fictício de “soberania empresarial”, nem mesmo a projeção idealizada da misteriosa mas, por definição, necessariamente e para sempre bem sucedida “mão invisível”, poderia efetivamente remediar a falha estrutural dos microcosmos produtivos do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 237).
Não convencidos dessa crise e na tentativa de manter o sistema econômico vigente, o poder público chama a Terceira Via para a implementação de políticas que deveriam estar sob sua responsabilidade tendo em vista perspectivas de sucesso. Uma das estratégias da Terceira Via é o Terceiro Setor, explicitado por Fernandes (1994, p. 127) como “um conjunto de iniciativas particulares com um sentido público”, seria assim, a parceria entre o Estado e o mercado, sem fins lucrativos, também chamada de iniciativa pública não-estatal.
Bresser-Pereira (2001, p. 25), defensor desse modelo, explica o significado da nomenclatura afirmando que “propriedade pública, no sentido de que se deve dedicar ao interesse público, que deve ser de todos e para todos, que não visa ao lucro; não-estatal porque não é parte do aparelho do Estado”. Assim, o autor também defende que estas organizações “podem ser em grande parte - e em certos casos, inteiramente - financiadas pelo Estado”. Para ele, os serviços sociais como saúde, educação e também a pesquisa científica são direitos humanos fundamentais e devem ser de propriedade das organizações de caráter público não-estatal.
São, portanto, atividades que o mercado não pode garantir de forma adequada através do preço e do lucro. Logo, não devem ser privadas. Por outro lado, uma vez que não implicam no exercício do poder de Estado, não há razão para que sejam controladas pelo Estado, e de se submeter aos controles inerentes à burocracia estatal, contrários à eficiência administrativa, que a Reforma Gerencial pode reduzir, mas não acabar. Logo, se não devem ser privados, nem estatais, a alternativa é adotar-se o regime da propriedade pública não-estatal, é utilizar organizações de direito privado mas com finalidades públicas, sem fins lucrativos (BRESSER-PEREIRA, 2001, p. 25).
Fica evidente que a pesquisa científica está entre as preocupações do autor, sendo colocada no mesmo patamar da saúde e da educação. Os benefícios ideológicos - em favor da Terceira Via e por assim dizer do capital - de pesquisas realizadas em uma instituição pública não-estatal, e por ela gerenciada e fiscalizada, não poderiam ficar em segundo plano, já que a disseminação de uma cultura em nível acadêmico é extremamente relevante para a legitimação deste modelo.
No entanto, essa discussão não trata apenas de algo idealizado ou restritamente acadêmico, mas de uma iniciativa real em andamento. Podemos perceber esta estratégia da Terceira Via em inúmeras parcerias concretizadas. No campo da educação é possível citar como exemplo as parcerias entre governos, municipais e estaduais, e o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Itaú Social. Também em documentos governamentais, como o Plano Diretor da Reforma no Aparelho do Estado, destacam estas iniciativas:
transfere-se para o setor público não-estatal a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle. Deste modo o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde, que são essenciais para o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a democracia, na medida em que promovem cidadãos; e para uma distribuição de renda mais justa, que o mercado é incapaz de garantir, dada a oferta muito superior à demanda de mão-de-obra não-especializada. Como promotor desses serviços o Estado continuará a subsidiá-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participação da sociedade (BRASIL, 1995).
À primeira vista, os planos da Terceira Via parecem ser uma solução, um meio termo entre a burocracia do Estado e o caráter lucrativo do setor privado. O Plano Diretor de Reforma do Estado de 1995, busca esclarecer que as organizações públicas não-estatais “não são propriedade de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público” (BRASIL, 1995).
Entretanto, a utilização da nomenclatura público não-estatal parece driblar a crítica sobre o termo parceria público-privada, pois em geral, quem gerencia essas organizações ditas públicas não-estatais são grandes corporações ou importantes empresários, e assim, as políticas públicas continuam nas mãos dos grandes proprietários que defendem seus interesses privados. O fato de não visar ao lucro, não quer dizer que se trata de uma instituição neutra, pois, além de recursos financeiros, o que está em disputa é o poder de transmitir uma ideologia que garanta a perpetuação de um sistema econômico que privilegia um determinado grupo. Portanto, as instituições públicas não-estatais não deixam de ser parcerias público-privadas, e não perdem o caráter de expressão da desigualdade de classes.
Influências do setor privado nas políticas para a educação em tempo integral e as parcerias público-privadas na elaboração dos cadernos que orientam o “Programa Mais Educação”
A interferência do setor privado no projeto de educação em tempo integral no Brasil é acentuada. Em pesquisa no Google, um dos sites de busca mais utilizados no país, a busca pelo termo “educação integral” indica primeiramente o site do Centro de Referências em Educação Integral. De acordo com as informações ofertadas pela página oficial do referido Centro:
O Centro de Referências em Educação Integral é uma iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz em parceria com outras organizações não governamentais e com o apoio do Ministério da Educação, da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para contribuir para a formulação, implementação e aprimoramento de políticas públicas de educação integral a partir de ações de mobilização, formação e articulação de agentes estratégicos para o tema (CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO INTEGRAL, 2016)
Esse Centro tem como proposta “pesquisar e sistematizar caminhos possíveis para fortalecer a educação integral como agenda prioritária no país”. Gerido e cofinanciado pelas organizações Fundação Itaú Social, Fundação SM, Instituto Inspirare e Instituto Natura, além de outras instituições que participam do processo de gestão, tem por objetivos: a) fortalecer a agenda pública pelo direito à educação integral de qualidade; b) apoiar o planejamento, implementação, monitoramento e avaliação de programas e políticas de educação integral; c) formar e instrumentalizar agentes para a educação integral (CENTRO DE REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO INTEGRAL..., 2016).
Os dados coletados em website do Centro de Referência em Educação Integral vinculam os objetivos da instituição à agenda pública de compromissos para a educação integral. Considerando que o Centro é mantido e gerido pelo setor privado, evidencia-se claramente que os interesses dessa instituição representam interesses do setor empresarial, que colidem diretamente com os interesses daqueles que são atendidos pelas políticas para a educação em tempo integral, os alunos da escola pública, pertencentes à classe trabalhadora.
A mesma situação pode ser evidenciada ao analisar os dados da Fundação Itaú Social, uma das financiadoras e gestoras deste Centro, que tem empenhado seus esforços em desenvolver propostas que contemplem educação integral, gestão educacional, avaliação de projetos e mobilização social. De acordo com as informações contidas na página eletrônica da Fundação Itaú Social2 sua atuação se dá “em todo o território brasileiro, em parceria com as três esferas de governo, com o setor privado e com organizações da sociedade civil”. Como um dos princípios que regem a Fundação, apresenta-se o reconhecimento da educação como primordial para o desenvolvimento do país, uma vez que “em um ambiente global no qual a competitividade é cada vez mais pautada pela capacidade de gerar conhecimento e inovação” deve-se primar pela excelência no sistema educacional. Visando reconhecer e dar visibilidade aos projetos de educação integral desenvolvidos por ONGs, a Fundação criou o Prêmio Itaú-Unicef, em 1995, e desde então vem ampliando suas ações nesta perspectiva.
Depreende-se desses dados, que a Fundação Itaú Social prima por uma formação pela e para a competitividade. Sendo assim, a perspectiva de qualidade defendida pela Fundação distancia-se da perspectiva de qualidade social em direção à qualidade total, de cunho empresarial, que valoriza a competitividade, a individualidade e a meritocracia.
Outra instituição bastante influente nas políticas públicas para a educação em tempo integral é o Movimento Todos pela Educação. Criado em 2006, tem por objetivo realizar ações no âmbito das condições de acesso, alfabetização, sucesso escolar e na ampliação e gestão de recursos. Está organizado em torno de cinco metas, cinco bandeiras e cinco atitudes com foco na Educação Básica. Segundo a página eletrônica da instituição, o Movimento é
Apartidário e plural congrega representantes de diferentes setores da sociedade, como gestores públicos, educadores, pais, alunos, pesquisadores, profissionais de imprensa, empresários e as pessoas ou organizações sociais que são comprometidas com a garantia do direito a uma Educação de qualidade (MOVIMENTO TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2016).
Como mantenedores dessa organização apresentam-se os Bancos Itaú, Santander, Bradesco e Unibanco - também por meio de suas Fundações; o Instituto Samuel Klein - vinculado à rede de lojas Casas Bahia; Instituto Natura, Vivo, entre outros. Como demais parceiros evidenciam-se a Rede Globo, Instituto Ayrton Senna, Patri Políticas Públicas, Fundação Vitor Civita, Microsoft, entre outros.
Mesmo afirmando-se como apartidário e plural, o Movimento é mais uma iniciativa do setor privado para defender seus interesses e disseminar uma educação que atenda aos princípios do mercado.
Na mesma perspectiva, o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária - CENPEC, também é um dos expressivos exemplos de parcerias entre o público e o privado na educação. Trabalhando nas áreas de assessoria em políticas educacionais, sociais e culturais, atua na formação de profissionais, implementação de programas e projetos, além de produção e disseminação de conhecimento. De acordo com site oficial3, o CENPEC tem parceria com organizações internacionais como a UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância, e OIT - Organização Internacional do Trabalho, além de organizações não governamentais, fundações empresariais, empresas privadas e órgãos governamentais como o MEC e diversas secretarias estaduais de educação (CENPEC, 2015). O CENPEC, juntamente com a Fundação Itaú Social e a UNICEF vêm despendendo grandes esforços na produção de diversos materiais que fundamentem as práticas de educação em tempo integral e as políticas públicas nesta perspectiva, incluindo o “Programa Mais Educação”.
O CENPEC, o Itaú Social, o Movimento Todos pela Educação e o Centro de Referências em Educação Integral são exemplos de organizações que podem ser identificadas como representantes da Terceira Via, atuantes no que diz respeito às políticas públicas para uma educação em tempo integral.
Vale ressaltar que o papel da Terceira Via é o de reformar o sistema capitalista, e mesmo que os defensores deste modelo afirmem que os mais beneficiados são os mais pobres, enquanto perdurar a forma de sociabilidade regida pelo capital sempre haverá desigualdades sociais e luta de classes que, como alerta Mészáros (2002, p. 100), podem caminhar para a “autodestruição, tanto para este sistema reprodutivo social excepcional, em si, como para a humanidade em geral”. Desse modo, a visão reformista é contrária ao interesse em romper com o sistema desumano do capital.
Considerando a influência do setor privado na implementação de políticas educacionais no país, procuramos identificar as instituições envolvidas na elaboração de Cadernos do “Programa Mais Educação”, pois entendemos que essa questão corrobora a influência desse setor na educação pública brasileira.
A elaboração de Cadernos orientadores para a implementação de um “Programa” político-educacional de abrangência nacional se constitui em alternativa para ampla defesa dos interesses privados, os quais serão defendidos na e pela educação pública. De acordo com Marx (2010, p. 151) “a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas” e a teoria expressa pelos Cadernos do “Programa Mais Educação” certamente penetra nas massas, uma vez que se trata de uma proposta de educação pública e gratuita, na qual o público alvo é majoritariamente os filhos da classe trabalhadora.
O “Programa Mais Educação”, diferentemente das demais tentativas4 de implementação da educação de tempo integral no Brasil, é uma abrangente alternativa de ampliação do tempo escolar, apresentando possibilidades de expansão em razão das previsões do Plano Nacional de Educação - Lei nº 13005/2014 e seus desdobramentos em Planos Estaduais e Municipais de Educação. O “Programa” representa parte importante da atual agenda da educação integral no Brasil e a influência do setor privado se evidencia fortemente nos documentos norteadores para sua implementação.
O “Mais Educação” visa estimular o desenvolvimento da educação integral no Brasil para crianças, adolescentes e jovens, por meio de atividades socioeducativas a serem realizadas no período de contraturno escolar. O “Programa” foi instituído pela Portaria Normativa Interministerial nº 17, de 24 de abril de 2007 e se caracteriza como uma proposta ampla, que abrange muitos projetos, constituindo-se na expressão do entendimento de educação integral no contexto nacional.
Ao analisar a elaboração da trilogia de Cadernos do “Programa Mais Educação” é possível identificar a participação de diversos agentes do setor privado. Assim, para evidenciar as parcerias entre setor privado e setor público na implementação de políticas voltadas para a oferta de educação de tempo integral, analisamos os seguintes Cadernos do referido “Programa”: a) Gestão intersetorial no território; b) Texto referência para o debate nacional; c) Rede de saberes; os quais apresentam tanto uma perspectiva teórica quanto possibilidades para a prática de sua implementação na realidade. Vale destacar que cada Caderno foi escrito por diferentes sujeitos e instituições.
O Caderno 1, GESTÃO INTERSETORIAL NO TERRITÓRIO, ocupa-se dos marcos legais do “Programa Mais Educação”, das temáticas Educação Integral e Gestão Intersetorial, da estrutura organizacional e operacional do “Programa Mais Educação”, dos projetos e programas ministeriais que o compõem e de sugestões para procedimentos de gestão nos territórios (BRASIL, 2009a, p. 6). Este Caderno foi organizado por Jaqueline Moll e elaborado pelo CENPEC. A autoria é de um grupo de pessoas vinculadas à Consultoria Socioeducacional - SMS, conforme observado na figura 1:
A figura 1 demonstra o envolvimento do CENPEC e da SMS Consultoria Sócio educacional, além do MEC, na produção deste Caderno. Convém esclarecer que, Maria do Carmo Brant de Carvalho era, na época em que o Caderno foi elaborado, coordenadora geral do CENPEC. Já Lúcia Helena Nilson, Maria Júlia Azevedo Gouveia, e Stela Ferreira são especialistas do Grupo de Consultoria Socioeducacional SMS. As informações disponíveis na internet sobre o Grupo SMS são escassas, no perfil virtual de Lúcia Helena Nilson na rede social LinkedIn, aponta que o Grupo existe desde 2009 - mesmo ano de elaboração dos Cadernos - e é composto por ela - Lúcia Helena - e “mais duas profissionais com larga experiência na área social”, as também autoras do Caderno 1.
A questão central aqui não é focar nos indivíduos que participaram da elaboração dos Cadernos, mas sim nas instituições que eles representam, uma vez que os Cadernos nem sempre apresentam o nome das organizações envolvidas, mas sim de sujeitos isolados que têm estreito vínculo com essas instituições.
O Caderno 2, TEXTO REFERÊNCIA PARA O DEBATE NACIONAL, tem como autora Ivany de Souza Ávila, na época integrante da equipe do “Programa Mais Educação” do MEC, com a colaboração de diversos agentes. Também foi realizado pela SECAD e organizado por Jaqueline Moll.
Evidencia-se que este Caderno teve a colaboração de diversos agentes, incluindo instituições do terceiro setor: a) Cidade Aprendiz - SP; b) Centro de Criação de Imagem Popular; c) Rede de Experiências em Comunicação, Educação e Participação; d) Casa das Artes; e) CENPEC. A Rede de Experiências em Comunicação, Educação e Participação é integrada por um conjunto de ONGs que têm como objetivo colocar a educomunicação na agenda da educação brasileira. Sobre as demais instituições as figuras a seguir demonstram seus parceiros.
Tanto o Caderno 1 quanto o 2 contam com a contribuição do CENPEC. A figura na sequência ajuda a visualizar melhor a relação dessa instituição com o setor privado e também com o setor público:
Fonte: Dados da pesquisa (2015). Organizados a partir de informações no site institucional no ano de 2014
O caderno 3, REDE DE SABERES, conta com a autoria de Sueli de Lima, fundadora da Casa Arte de Educar e teve a colaboração de Bené Fonteles6, Equipe Casa das Artes7, Equipe da Secretaria Municipal de Educação de Recife/PE, Luis Antonio Garcia8, Equipe técnica da Coordenação Geral de Ações Educacionais Complementares da Secad/MEC, e Fórum Mais Educação. Assim como os demais, o Caderno 3 foi organizado por Jaqueline Moll e realizado pela SECAD.
Segundo informações do site institucional, a Casa Arte de Educar existe desde 1999 e apresenta como missão “promover ações de educação e cultura capazes de contribuir para a qualificação das políticas públicas de educação, cultura e direitos humanos”, tem como parceiros o Criança Esperança - vinculado a Rede Globo, a Petrobrás, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e o Departamento de Psicologia da UFRJ, como evidencia a figura a seguir:
Fica evidente que a elaboração da trilogia de Cadernos da “Série Mais Educação” contou com a participação de diversas instituições do setor privado. Muitas dessas instituições são empresas de grande porte que detém elevado poder econômico e midiático, além de forte representação política. Os interesses dessas instituições representam interesses elitistas que não correspondem a uma educação verdadeiramente integral numa perspectiva de qualidade social.
Uma educação pública pensada pelo setor privado é certamente uma estratégia eficaz no que diz respeito à formação de mão de obra qualificada. Sendo assim, consideramos que uma educação neste modelo não vislumbra as múltiplas possibilidades de formação para a amplitude do mundo do trabalho, focando apenas nas necessidades imediatas do mercado de trabalho.
Outro problema de uma educação para as massas projetada por grupos dominantes é a viabilidade da disseminação de valores desses grupos, valores que são internalizados pela classe trabalhadora. A verdade torna-se assim a verdade da classe dominante, posta como conhecimento neutro e seguro. Nesse sentido, a escola contribui para legitimar determinada ideologia, desconsiderando a luta de classes e, assim, impedindo o desenvolvimento de uma consciência coletiva comprometida com o rompimento das desigualdades sociais.
As parcerias público-privadas têm, no máximo, o compromisso em amenizar os efeitos das desigualdades sociais e educacionais sem superá-los, pois a sua superação só seria possível com a transformação da realidade e a instauração de uma sociedade pautada na igualdade e justiça entre todos, sem qualquer distinção de classe.
A análise a respeito dos sujeitos envolvidos na elaboração dos Cadernos do “Programa Mais Educação” evidencia claramente a influência de instituições privadas na educação pública. Essa influência mostra o quão contraditório é o planejamento de políticas direcionadas para a classe trabalhadora, indicando como a educação cumpre um papel determinante para a formação de indivíduos conformados com a lógica capitalista.
Considerações finais
A análise realizada na trilogia de Cadernos da “Série Mais Educação”, os quais são considerados como documentos norteadores para a implementação do “Programa” em todo o país, evidencia que o poder público tem partilhado a responsabilidade do planejamento educacional com instituições que representam o setor privado, de forma a caracterizar esse planejamento como uma parceria público-privada.
Portanto, as orientações para a implementação da oferta de educação de tempo integral carregam em seu bojo interesses do setor privado, o que indica interferência desse setor na oferta da educação pública, responsabilidade dos entes públicos. É preciso compreender que o setor privado não é um mero colaborador sem interesses de determinada classe na elaboração de políticas públicas. Os interesses existem, mesmo que implícitos.
Nessa perspectiva, os resultados demonstrados a partir do envolvimento de diferentes instituições público-privadas na elaboração dos cadernos analisados, apontam para, assim como acontece no setor econômico, influências do pensamento hegemônico capitalista nas orientações para a implementação do “Programa Mais Educação”.
Os interesses em prol da manutenção do capital e consequente preparação de trabalhadores para serem explorados não é um delírio de analistas marxistas, mas uma realidade que precisa ser exposta e compreendida por todos. Mas essa é uma análise a ser explorada em outro momento, devido aos limites e objetivos deste texto. Aqui, coube a denúncia da expressão de interesses privados em materiais que orientam uma proposta para a escola pública. Esses interesses representam as intenções da classe dominante que colidem diretamente com as da classe trabalhadora, público alvo da proposta do “Programa Mais Educação”.