Introdução
No Brasil, país com histórico de graves expressões de violências, como a escravidão e a ditadura militar, tivemos um avanço imenso com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), esta que ficou conhecida como Constituição Cidadã por enfatizar questões relativas à democracia, à cidadania e aos direitos humanos. Uma lei que serve de parâmetro para todas as demais ordenações jurídicas do país e na qual se baseiam todas as políticas públicas nacionais. Uma Constituição que foi resultado de movimentos sociais organizados pela defesa das mais diversas causas e deu força ao processo de redemocratização que o país vivenciava desde o fim da ditadura, em 1985.
Como consequência da regulamentação dos direitos sociais pela Constituição, vimos nascer o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990a); o Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 1990b); a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 1993); o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003); além de atualizações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), dentre tantas outras políticas e legislações nacionais.
Por se basearem na Constituição Cidadã, todas essas normativas têm em comum os princípios de cidadania, de universalização dos direitos e de democracia. Além disso, outras capilarizações de nossa carta magna têm continuado o investimento na ampliação e na qualidade do acesso aos direitos garantidos por lei. Ainda assim, a todo momento e em qualquer lugar, podemos presenciar violações de direitos, falta de respeito às prescrições legais, distanciando, sobremaneira, a teoria da prática.
Uma das hipóteses que podem ser levantadas sobre esse distanciamento diz respeito à forte presença do ideário neoliberal na cultura da atualidade. A fim de discorrer sobre essa hipótese, este ensaio crítico procura apresentar um breve panorama histórico e político do Brasil desde a ditadura, alguns direitos previstos pela Constituição de 1988, alguns conceitos neoliberais e aproximar as duas temáticas numa problematização sobre as consequências do convívio e embates entre estas duas ideologias. Para tanto, foi utilizada, como estratégia, a revisão de literatura.
Breve contextualização histórica e política do Brasil da ditadura aos dias atuais
De acordo com Chaui (CHAUI; NOGUEIRA, 2007), os ideais do Golpe Militar de 1964, que balizavam a ditadura, eram: a ordem - contra a luta de classes e as esquerdas; o desenvolvimento - definição da economia pelos interesses do capital; o progresso - chamado “Brasil Grande”; e a democracia - esta compreendida como regime constitucional e representativo. Por este motivo, como salienta Pochmann (2017), durante o período em que o regime autoritário predominou no Brasil, as classes alta e média foram favorecidas pelo Estado, por meio de monopólios sociais que privilegiavam segmentos e setores no interior da economia e da sociedade brasileira.
Mas, na década de 1970, a ditadura começa a mostrar seus primeiros sinais de fraqueza. Chaui (CHAUI; NOGUEIRA, 2007) aponta alguns acontecimentos desta época, como a vitória do MDB1 sobre a ARENA2 nas eleições de 1974 e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI3, em 1975, que resultaram em reflexões sobre tais temas: a legitimidade daquele sistema, o autoritarismo na América Latina, a democracia, o socialismo, e a análise e a crítica da ideologia.
Seino, Algarve e Gobbo (2013) afirmam que, em 1979, a economia estava em crise, levando a população a um gradual descontentamento e vislumbrando como saída para ela o fim da ditadura militar.. Segundo os autores, foi sob esse contexto que as grandes massas ocuparam os lugares públicos nos anos 80. Movimentos sindicais e sociais reivindicavam diversas causas, como melhores condições de urbanização, abastecimento e atendimento médico. Dessa forma, o país testemunhou inúmeras greves de operários, médicos, motoristas e outros. Em 1983, houve grande mobilização popular “pró-diretas já” e em 1984 comícios com famosos reuniram multidões por todo o país em apoio ao movimento. Assim, José Sarney assume a presidência em 1985, após morte do eleito Tancredo Neves, e se torna o primeiro presidente civil depois de 21 anos de regime militar, iniciando o período conhecido como “Nova República”. Ainda de acordo com os autores, o ápice da transição para o modelo democrático foi a Constituinte, vista como um instrumento antiditadura, garantidor de direitos e de proteção ao povo. E foi essa Constituinte que desenvolveu e aprovou o texto da Consituição Cidadã.
Vários autores discorrem sobre a importância da Constituição de 1988 no processo de redemocratização do Brasil. Pochmann (2017) argumenta que ela foi o meio pelo qual a experiência democrática da Nova República possibilitou a implementação de um padrão de políticas públicas inédito no Brasil, à semelhança do que era observado em países onde imperava o Estado de bem-estar social. Romão (2003) afirma que tal legislação é um marco na mudança em direção ao social, uma vez que inclui exigências sobre políticas sociais, as quais têm papel relevante na correção das desigualdades. Além disso, aponta como características fundamentais da nova Constituição: a consolidação do regime democrático, o reconhecimento da dívida social, a descentralização, a redefinição do padrão regressivo de financiamento, a elevação do salário real, o crescimento econômico sustentado com mais empregos e a ampliação dos impactos redistributivos, tendo como eixo estruturante o avanço na seguridade social (saúde, previdência e assistência social).
Contudo, esses mesmos autores alertam para os seus limites. Pochmann (2017) afirma que nem a Constituição e nem os demais esforços do ciclo político da Nova República foram suficientes para sustentar o regime democrático diante de nossa formação social tradicional de base conservadora e autoritária. Já Romão (2003), relata que a carta magna sofreu retrocessos antes mesmo de sua regulamentação, ainda no governo Sarney e continuando no governo de Fernando Collor de Mello. Porém, sua análise e crítica mais profundas se dão aos impasses vivenciados pela normativa durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
De acordo com o autor, nos anos de 1990, o Brasil aderiu à globalização neoliberal e estabeleceu como prioridades o controle da inflação e a estabilidade fiscal. As políticas sociais sofreram instabilidade, pois dependiam das sobras de recursos da política de estabilidade fiscal. A centralidade estava na financeirização da economia, na privatização e na abertura indiscriminada do mercado interno. Segundo Romão (2003), essa política provocou o desadensamento industrial e isso, somado à desregulamentação do mercado de trabalho, o precarizou ainda mais.
Segundo Pochmann (2017), as reformas neoliberais perdem a força nos anos 2000 e, a reunião de uma base social formada majoritariamente por estratos da sociedade perdedores do neoliberalismo da década de 1990, garantiu que governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) chegassem ao poder e assumissem condução própria de políticas econômicas e sociais nacionais. Desta forma, o autor salienta que o Brasil passou a se posicionar de forma menos passiva e subordinada ao antigo centro dinâmico do capitalismo global representado pelos Estados Unidos. Além disso, investiu no processo de inclusão social, principalmente dos segmentaos mais vulneráveis da população.
Contudo, o autor acrescenta que, desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, surgem sinais de desvios em relação ao conjunto das políticas públicas. Em meio à mais grave crise econômica dos últimos 100 anos, uma série de reformas impostas reposiciona o Brasil junto ao centro dinâmico capitalista mundial, alterando o papel do Estado no capitalismo nacional e permitindo a atuação de uma nova maioria política interna mais favorável aos interesses dominantes. Assim, no governo de Michel Temer, as reformas neoliberais passaram a avançar rapidamente, retomando ao que não foi possível realizar nas décadas anteriores.
Os direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988
Antes de esclarecer quais são os direitos sociais defendidos pela Constituição, cabe definir os termos Estado, governo, políticas públicas e políticas sociais, uma vez que é deles a tarefa de materializar a garantia dos direitos, segundo a carta magna.
Tomando como base um artigo de Höfling (2001), políticas públicas podem ser entendidas como a implementação de um projeto de governo pelo Estado, por meio de programas e ações voltadas para setores específicos da sociedade. Já as políticas sociais são as ações voltadas à redistribuição dos benefícios sociais, com o objetivo de minimizar as desigualdades estruturais. Para tanto, a autora compreende o Estado como o conjunto de instituições permanentes (órgãos legislativos, tribunais, exército e outras) que possibilitam a ação do governo, este que se trata do conjunto de programas e projetos proposto por parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) para a sociedade como um todo. Höfling (2001) destaca, ainda, que as políticas públicas não podem ser reduzidas à burocracia pública, uma vez que o Estado tem responsabilidade por elas, mas sua implementação e manutenção dependem de órgãos públicos e de diferentes organismos e agentes da sociedade civil. Assim, a depender dos paradigmas teóricos nos quais se embasam o momento histórico e político vivenciado, teremos formas diferentes e até opostas de intervenção do Estado. Desta forma, como afirma Höfling (2001, p. 32), “ é impossível pensar o Estado fora de um projeto político e de uma teoria social para a sociedade como um todo”.
Os direitos sociais são definidos na Constituição em seu art. 6º: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados (BRASIL, 1988). Contudo, a fim de limitarmos nosso debate, nesse ensaio discutiremos apenas a respeito da educação, saúde, assistência e previdência social.
Um dos aspectos mais importantes trazidos pela lei, no que tange à garantia dos direitos sociais, foi a inserção do sistema de seguridade social, que compreende a assistência à saúde, a assistência social e a previdência social a todos que necessitarem e não mais apenas aos trabalhadores, como ocorria anteriormente (MEIRELLES, 2009). Tal sistema, organizado pelo Poder Público, é financiado por toda a sociedade de forma direta e indireta, através de recursos orçamentários das três esferas de governo, além das contribuições sociais de empregadores, trabalhadores, dentre outros (BRASIL, 1988).
Decorrente disso, como explicitado no art. 201 (BRASIL, 1988), temos uma política de caráter contributivo e de filiação obrigatória: a Previdência Social, que garante cobertura de doenças, invalidez, morte e idade avançada; proteção à maternidade; proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes de segurados de baixa renda. E temos duas políticas de caráter não contributivo e universal: a Saúde e a Assistência Social4.
A Saúde é descrita na lei, em seu art. 196, como direito de todos e dever do Estado, direito este que será “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988, online, n.p.). A Constituição especifica, ainda, a responsabilidade do Poder Público em regulamentar, fiscalizar e controlar as ações que podem ser efetivadas diretamente ou por terceiros, contanto que estes atuem apenas de maneira complementar e que não sejam destinados recursos públicos para auxílio ou subvenção a instituições privadas com fins lucrativos. Ali também é dado início à formulação do SUS, que abarca ações e serviços públicos integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, e tem por diretrizes a descentralização, o atendimento integral, com prioridade para a prevenção e a participação da comunidade.
Já sobre a Assistência Social, a Constituição (BRASIL, 1988) apresenta os objetivos e diretrizes da política, sendo os objetivos: proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e sua integração à vida comunitária; a garantia de salário mínimo mensal a pessoas com deficiência ou idosas que comprovem não ter meios de prover sua própria manutenção. E as diretrizes, muito próximas às da política de Saúde, são a descentralização e a participação da população.
Segundo o documento, a Educação, “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, online, n.p.). Sendo dever do Estado, o Poder Público deve garantir, gratuitamente, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, inclusive posterior à idade adequada; atendimento especializado aos alunos com deficiência; ensino noturno regular; atendimento ao aluno em programas suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. Salienta-se, ainda, que a educação básica dos 04 aos 17 anos é obrigatória, por isso, também é dever da família (BRASIL, 1988).
Para cumprir seu dever, o Estado destinará recursos públicos para a Educação. Além disso, uma contribuição social será recolhida pelas empresas e destinadas à educação básica como consta no art. 212 (BRASIL, 1988). Estes recursos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, desde que comprovada sua finalidade não lucrativa. Porém, a lei abre um precedente ao possibilitar que tais recursos sejam destinados a bolsas de estudo para os ensinos fundamental e médio, caso haja falta de vagas na rede pública. O recurso também pode ser aplicado em atividades de pesquisa, extensão, estímulo e fomento à inovação realizadas por universidades e instituições de educação profissional, como forma de apoio (BRASIL, 1988).
A Constituição (BRASIL, 1988), em seu art. 214, também determina a formulação de plano nacional de educação, de duração decenal, com objetivo de definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação do ensino, que conduzam à erradicação do analfabetismo; à universalização do ensino; à melhoria da qualidade; à formação para o trabalho; à promoção humanística, científica e tecnológica; e ao estabelecimento de meta de aplicação de recursos.
Os princípios estabelecidos para a Educação no art. 206 (BRASIL, 1988) são: igualdade de condições de acesso e permanência; liberdade de aprender, ensinar e pesquisar; pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; coexistência de instituições públicas e privadas; gratuidade do ensino público; valorização dos profissionais de educação; gestão democrática; garantia de qualidade; piso salarial nacional para os profissionais da educação.
Discutido sobre alguns direitos sociais e suas bases, garantidos pela lei maior de nosso país, segue-se a leitura das principais ideias de autores que defendem o liberalismo, para, posteriormente, serem analisadas as consequências do convívio de uma lei democrática e uma ideologia liberal.
Neoliberalismo: a atualização do liberalismo clássico?
Para este item de explanação sobre o neoliberalismo foram utilizados apenas textos de autores liberais: Eduardo Chaves (2007) e Milton Friedman (2014), recorrendo a um “crítico” - Moraes (1997; 2001) - exclusivamente para trazer algumas informações adicionais.
De acordo com Moraes (1997), o neoliberalismo teria se iniciado com Friedrich von Hayek, em 1944, com a publicação de O caminho da servidão, voltando-se contra o Estado keynesiano, os sindicatos e o welfare state, nos países desenvolvidos, e o Estado desenvolvimentista e a “democracia populista”, nos países subdesenvolvidos. Segundo o autor, o neoliberalismo representa um revisionismo dos ideais do liberalismo, este que nasceu em 1776 com a publicação de A riqueza das nações, de Adam Smith, e teve como inimigos a política mercantilista e as corporações.
Moraes (1997) destaca a relevância de A riqueza das nações, argumentando que a obra sintetiza ideias defendidas na ocasião, permitindo a transformação de meras intuições em um sistema de pensamento. No livro, Adam Smith defendia a livre iniciativa e a redução do controle do Estado sobre o mercado, o qual deveria ser regulado pela concorrência, introduzindo o termo “mão invisível” para explicar a ordem mantida na economia, resultante da interação dos indivíduos, mesmo na ausência de uma agência reguladora. Sustentava que o Estado deveria assumir funções bastante definidas, a fim de garantir a desregulamentação e privatização das atividades econômicas, o que transformaria o mundo num lugar mais justo, racional, eficiente e produtivo (MORAES, 1997).
Se Moraes (1997) apresenta distinções entre liberalismo e neoliberalismo, Chaves (2007), por sua vez, defende que neoliberalismo é um termo utilizado por oposicionistas, uma vez que não existe ortodoxia liberal, portanto, existem visões diferentes dentro do liberalismo, mas não um neoliberalismo. Assim, convém destacar que as ideias aqui expostas não representam um consenso, e sim as visões de Chaves (2007) e de Friedman (2014) sobre o liberalismo.
Para Chaves (2007), o liberalismo é uma filosofia política ou uma tendência na filosofia política, sustentada pelo princípio fundamental da liberdade individual, a qual caracteriza-se como um bem supremo do indivíduo e tem preponderância sobre qualquer outro. Mas, é necessária a compreensão de que essa liberdade é um conceito amplo, abrangendo as áreas econômica, política e social.
Segundo o autor, na área econômica, o liberalismo defende a abstenção do governo de atuar diretamente na economia, seja como Estado-empresário, como regulador, fiscalizador ou em qualquer outra forma de intervenção. O governo deveria, portanto, deixar a iniciativa privada agir, o que é resumido pela expressão francesa laissez-faire (que significa “deixa fazer”). Partindo para a área política, tem-se que o melhor Estado é o “Estado mínimo” e o melhor governo é aquele que permite ao indivíduo o máximo de liberdade compatível com a vida em sociedade. Já na área social, a tese do liberalismo, é a de que não cabe ao Estado “planejar, operar, regular ou fiscalizar atividades relacionadas à prestação de serviços de saúde, de educação, de seguridade etc. - as chamadas ‘políticas públicas’” (CHAVES, 2007, p. 10), estas também devem ficar a cargo, exclusivamente, da iniciativa privada. Para o autor, o liberalismo defende que, em todos estes casos, o Estado só tem o direito de intervir se houver violação de direito individual ou quebra de contrato.
Como o conceito de liberdade é primordial para o liberalismo, faz-se importante esclarecer o entendimento dos liberais sobre ele. Assim, para Chaves (2007, p. 11) “ser livre, no liberalismo, é não ser coagido a agir (a fazer ou a deixar de fazer) - é não ser obrigado a fazer, nem impedido de fazer, por terceiros”. Ele complementa que isso não significa ter condições de fazer qualquer coisa. Desta forma, o conceito é visto como negativo, por ser definido em termos negativos, como não-coação, e formal, porque a não-coação não garante, necessariamente, que a pessoa possa fazer o que deseja (CHAVES, 2007).
De acordo com Chaves (2007), os direitos individuais defendidos pelos liberais para que se conquiste a liberdade individual são: a) o direito à integridade da pessoa (ou direito à vida e à segurança); b) o direito à expressão do pensamento, do modo de ser e do estilo de vida; c) o direito à locomoção; d) o direito à associação; e) o direito à ação em busca da felicidade; f) o direito à propriedade (o que inclui o impedimento à desapropriação de bens e à privação de rendimentos por meio de impostos).
De acordo com este autor, o liberalismo não reconhece os direitos sociais, uma vez que eles impõem a terceiros, por meio de pagamento de impostos, deveres que eles não assumiriam livremente, o que viola seu direito de dispor como preferirem de seus bens. Ele ainda salienta, e de maneira persistente, que os serviços derivados dos impostos “confiscados” de nós e executados pelo governo são ineficazes, ineficientes, corruptos e incompetentes.
Chaves (2007) também aponta que isso não significa que os liberais não se preocupam com “os pobres e necessitados”, pois eles têm estado entre os “maiores filantropos que este mundo já conheceu” (CHAVES, 2007, p. 32), uma vez que os asilos, orfanatos, santas casas não eram gerenciadas pelo Estado e sim por liberais. Para o autor, a questão é que isso é tratado por eles como generosidade e não como direito, pois “temos o direito de escolher aqueles a quem damos o nosso dinheiro” (CHAVES, 2007, p. 33).
Outro autor apontado neste ensaio é Milton Friedman, considerado por Moraes (2001) um dos precursores do neoliberalismo e por Chaves (2007) um representante do “primeiro time do liberalismo”, o chamado liberalismo clássico ou laissez-faire.
Uma ideia inicial deste autor é a de que existem apenas duas maneiras de coordenar as atividades econômicas das multidões: a primeira seria a de direção central, envolvendo uso de coerção, e a segunda a de cooperação voluntária dos indivíduos. Acreditando que a segunda - técnica dos mercados - é mais adequada que a primeira - técnica das forças armadas e do Estado totalitário -, o liberalismo defende que há possibilidade de benefício para as duas partes envolvidas numa transação, contanto que esta seja voluntária e esclarecida para ambos os lados.
Sobre o papel do governo, Friedman (2014, p. 17) destaca que ele é “essencial não só como fórum para determinar as ‘regras do jogo’, mas também como árbitro para interpretar e aplicar as regras aprovadas”. O autor defende, porém, que o mercado reduza o poder que se concentra no governo quando lhe cabe a organização econômica, o que, segundo ele, é um poder de coagir e ameaça a liberdade tão defendida pelos liberais.
Friedman (2014) discorre sobre como deveria ser a Educação a partir da ideologia liberal. Ele defende que uma escolarização mínima, com conteúdo básico comum, seja obrigatória e financiada pelo governo (diferindo da opinião de Chaves (2007), que aposta na total privatização da Educação), sob justificativa de haver neste tipo de educação “efeitos de vizinhança”, ou seja, “os ganhos decorrentes da educação de uma criança beneficiam não só a criança e os pais, mas também os outros membros da sociedade” (FRIEDMAN, 2014, p. 91). O autor acrescenta, ainda, que o financiamento da educação mínima não implica, todavia, na administração das instituições pelo governo. Pelo contrário, o autor defende a desestatização das escolas, justificando que esta manobra ampliaria a variedade de escolhas dos pais e, por consequência, a competitividade. Segundo o autor, também benéfico seria “sujeitar os salários dos professores às forças do mercado” (FRIEDMAN, 2014, p. 97), uma vez que os salários uniformes e rígidos, comumente empregados, produzem maus professores bem pagos e bons professores mal pagos.
Em relação ao financiamento da educação básica, esta não deveria ser efetivada através de impostos, de acordo com o autor, porque isso duplica os custos de quem tem filhos em escolas particulares e impõem custos desnecessários a quem não tem filhos. Portanto, a sugestão de Friedman (2014) é que o governo ofereça vales resgatáveis aos pais, para que estes paguem pelos serviços educacionais dos filhos. Tais vales seriam calculados por filhos e por ano e possibilitaria que os pais escolhessem livremente dentre as instituições credenciadas, pagando os acréscimos por conta própria.
Salienta-se, porém, que a sugestão do uso dos vales (ou vouchers) trata-se de uma medida provisória, uma vez que Friedman (2014) aponta reconhecer que a ação ideal de que os próprios pais arcassem com os custos com a educação dos filhos é pouco viável devido às diferenças entre as famílias em relação a recursos e número de filhos. Porém, o autor afirma que, com o aumento da escolarização, portanto, dos níveis de renda, os subsídios para as despesas escolares tenderiam a se tornar menos necessários. E, passando a responsabilidade de arcar com os custos da educação dos filhos aos pais, a tendência seria uma melhor distribuição das famílias por tamanho, como já ocorre com as famílias de grupos socioeconômicos mais altos, segundo o autor.
Expostas algumas propostas de políticas democráticas atuais e alguns conceitos (neo)liberais, no próximo item busca-se aproximar as duas temáticas numa problematização sobre as consequências do convívio e embates entre essas duas ideologias.
A coexistência de dois ideários opostos
Não é comum ouvirmos alguém se declarar liberal ou neoliberal na atualidade. Contudo, se observarmos os pressupostos do liberalismo elencados anteriormente, facilmente nomearemos pensamentos produzidos e reproduzidos a todo momento. Nos jornais, nas novelas, no rádio, nas redes sociais, nas filas de supermercado, nos pontos de ônibus, nas manifestações públicas. Eles vêm por meio de queixas sobre os impostos, do descrédito nos serviços públicos, do incentivo à meritocracia, de discursos contrários “às injustas” políticas que beneficiam “vagabundos” e prejudicam trabalhadores. Se fizermos esta análise, constataremos que o ideário neoliberal não só está presente, como é hegemônico nos dias atuais.
Levando isso em consideração, e lembrando que nossa Constituição é democrática e defende direitos sociais e políticas públicas, como exposto anteriormente, fica claro o problema que enfrentamos: uma normativa e um discurso totalmente opostos. O que resulta disso? Quais as consequências do convívio de uma legislação e uma política que apostam no público e de um discurso hegemônico que defende a privatização?
Inicialmente, é preciso esclarecer que as políticas sociais são destinadas a todas as pessoas, mas seu maior alvo, obviamente, é a população mais pobre, uma vez que tais políticas visam minimizar as desigualdades estruturais, como já exposto anteriormente. Por outro lado, também óbvio é que o discurso hegemônico vem das camadas mais altas da sociedade (apesar de ser reproduzido pelas demais), já que apenas os ricos se beneficiam com as conquistas liberais. E isso mostra que tal questão trazida para discussão neste ensaio é apenas mais uma das inúmeras expressões da luta de classes tão bem apresentada por Karl Marx já no século XIX.
É importante salientar que o discurso hegemônico liberal é ideológico, no sentido marxista da palavra, ou seja, é um discurso que oculta a realidade, negando as contradições econômicas e políticas historicamente constituídas, ao passo que trata como naturais (e não históricas e sociais) as desigualdades e, dessa forma, assegura sua manutenção (CHAUI, 2012). Sobre a ideologia, é possível afirmar que ela
não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com sua classe é a de submissão a condições de vida e de trabalho prefixadas, essa submissão faz com que cada indivíduo não possa se reconhecer como fazedor de sua própria classe. Pelo contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo se converte numa parte, quer queira, quer não (CHAUI, 2012, p. 86).
Essa citação nos mostra que a ideologia só é possível por causa da alienação vivenciada pelo trabalhador. Neste sentido, a autora acrescenta que
A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir ideias que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem, e os preguiçosos empobrecem. Ou então faz com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar - ocultando, assim, que os que trabalham não são os senhores de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os meios e as condições de trabalho (CHAUI, 2012, p. 87).
Dessa maneira, podemos observar o poder persuasivo da ideologia. A partir da constatação de que o discurso hegemônico neoliberal é ideológico, e da compreensão de Moraes (2002) de que a produção e difusão de ideias, imagens e valores são instrumentos para exercer a ação política, torna-se mais fácil entender a afirmação do autor de que uma das armas mais efetivas do neoliberalismo foi “a capacidade de gerar e difundir narrativas que prometiam explicar o mundo em crise dos anos 70” (MORAES, 2002, p. 14). E esta parece ser a realidade que revisitamos com bastante fervor na atualidade.
Os escândalos envolvendo estatais, a corrupção, a violência, a crise econômica, a falência dos sistemas públicos de saúde e de educação que são recorrentes na mídia, têm como respostas as privatizações, a militarização das escolas públicas, a troca de governo, a bonificação para professores de escolas com boa pontuação nas avaliações, escolas sem partido (e sem gênero), o bloqueio dos programas habitacionais e de transferência de renda5.
Longe de tentar apresentar as políticas e legislações como ideais, já que elas deveriam, sim, ser problematizadas e aprimoradas, o que se pretende aqui é, como Moraes (2002), demonstrar como a ideologia neoliberal impede que tais políticas avancem para que possam demonizá-las e, assim, sugerir a privatização como resposta.
Talvez o exemplo mais concreto disso seja o sucateamento dos serviços públicos pela falta de investimento financeiro. O que fazer? Investir recurso público em escolas privadas para suprir falta de vagas na rede pública, aumentar o número de alunos por sala, investir nos planos privados de saúde, pagar subvenção a instituições de acolhimento. Privatizar. Porém, privatizar não se resume a passar a propriedade e a gestão dos serviços ao setor privado. Como bem aponta Moraes (2002), é possível privatizar delegando apenas a gestão a empresas, sem transferir a propriedade e, ainda, não alterando gestão e propriedade, providenciar mudanças no funcionamento que modelem o espaço público pelos padrões do privado, ou seja, pela lógica de mercado.
Como apontado no início deste ensaio, o ideário neoliberal já reinou fortemente no nosso país em outros momentos, porém, como afirma Pochmann (2017), apesar das diferenças entre os seis governos que comandaram o Brasil depois da ditadura militar até o ano de 2016, todos se pautaram pela legitimidade democrática e pelo cumprimento da Constituição Federal, o que não tem ocorrido nos anos mais recentes em que um conjunto de reformas institucionais derrubou o padrão de políticas públicas vigente até então. Pode-se dizer que a maior confirmação disso foi a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que instituiu um novo Regime Fiscal e congelou os gastos públicos por 20 anos (BRASIL, 2016). De acordo com Pochmann (2017), com esta medida, o governo diminui o investimento público na área social e amplia as receitas com privatizações e concessões, se distanciando do projeto de uma sociedade includente, beneficiando, com suas políticas, o topo e não mais a base da sociedade, ou seja, aproximadamente um terço dos brasileiros.
Pensando nas consequências dessas mudanças, ou seja, na lógica de mercado governando o espaço público, é bem provável que o ideal neoliberal seja alcançado: liberdade individual e competitividade. Mas o que resulta disso? Para Moraes (2001, p. 81), o resultado é “a insegurança, o risco, a precariedade da vida e a ameaça de morte para amplos segmentos da raça humana”. Isso porque, como afirma Höfling (2001), em Estados de inspiração neoliberal, as ações e estratégias sociais governamentais tendem a se resumir a políticas compensatórias e programas focalizados, os quais não conseguem, nem objetivam alterar as relações estabelecidas na sociedade.
E, para quem teme esses resultados, existe esperança? Pode-se dizer que, se o neoliberalismo não dominou totalmente nosso país até o momento, provavelmente, é porque as forças de resistência são grandes, apesar de não serem hegemônicas. Assim, enquanto houver resistência, haverá esperança. Porém, como afirmam Ferreira Neto e Araújo (2014), para reverter a situação em que nos encontramos, é necessário mais do que arranjos macropolíticos e institucionais: é preciso enfrentar o “modo de subjetivação neoliberal” (FERREIRA NETO; ARAÚJO, 2014, p. 683) que afeta a todos os cidadãos (até mesmo os que criticam o neoliberalismo como projeto político), o que só seria possível com uma reforma social, cultural e política mais ampla. Apesar de os autores utilizarem o termo “reforma”, podemos relacionar a afirmação ao termo “mudança estrutural”, que melhor reflete a ideia de uma mudança fundamental, profunda e de longo prazo na estrutura do Estado, ao contrário das “reformas” que podem ser compreendidas como medidas pontuais ou de curto prazo, que não geram grandes rupturas, mas continuísmos com a ordem anterior. Por isso, para quem tem esperança, é essa mudança estrutural que deve ser perseguida.
Considerações finais
Como todo ensaio crítico, este artigo não pretendeu responder a questões objetivamente, nem trazer verdades absolutas e sim problematizar o tema das políticas públicas sociais.
Se tais políticas são garantidas pela Constituição Federal de 1988 e por suas capilarizações, na prática o que vivenciamos é o desrespeito às prerrogativas legais e o descrédito de sua execução. O discurso hegemônico e ideológico neoliberal pode estar relacionado ao insucesso de tais políticas devido ao seu poder de persuasão e a única alternativa para superar este problema seriam mudanças macro e micropolíticas, ou seja, uma alteração na organização da política a partir de mudanças culturais, o que só poderá vir a acontecer por meio das forças de resistência.