1 Introdução
Ao analisarmos o contexto histórico-político do Brasil percebemos que os movimentos sociais vêm sendo tema de muita discussão e apontamentos, seja de forma positiva ou negativa. Os movimentos sociais estão cada vez mais inseridos no processo de (des)construção das estruturas sociais, agindo em prol de objetivos comuns, seja por uma transformação social radical ou simplesmente por uma ideologia/luta temporária, pois tais ações dependem da característica de cada movimento social. As novas configurações adquiridas pelos movimentos são parte das mudanças históricas que provocaram reconfigurações sociais, que culminaram nas novas roupagens e na formação dos novos movimentos sociais, que são caracterizados por um jeito diferente de fazer reinvindicações, com objetivos diferenciados, também.
Conforme são apresentados por Gohn (2013), os movimentos sociais foram se constituindo a partir das necessidades geradas em cada contexto histórico, no campo ou na cidade. Há movimentos oriundos das mais remotas origens: no campo, com o sentido específico da luta pela terra; movimentos em torno de questões de gênero; étnicos raciais; dos imigrantes; portadores de necessidades especiais; geracionais; direitos humanos; contra violência; movimentos urbanos por bens e equipamentos; acesso ao trabalho; movimento antiglobalização, entre outros.
Gohn (2013) caracteriza os movimentos sociais como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural, que viabilizam distintas formas de a população se organizar e expressar suas demandas. Há movimentos sociais que lutam por transformações estruturais da sociedade e, há também, os ‘novos movimentos sociais’, de caráter identitário, que se constituem por sujeitos que se identificam e se juntam em torno de algumas ações mais pontuais e específicas.
Sendo assim, podemos perceber a amplitude que vem tomando a categoria movimentos sociais, formados por homens e mulheres, do campo e da cidade, que perceberam a importância da formação de um coletivo em prol do bem comum de determinado grupo social. São movimentos de luta, que buscam a valorização dos sujeitos, em suas especificidades socioculturais e econômicas.
Os movimentos sociais classistas, como é o caso do MST, intensificam a luta por uma transformação social, pela superação das classes sociais e pelo fim da exploração entre os homens, por um novo projeto de sociedade.
Vivemos em um tempo de novas sensibilidades para questões que se referem aos processos de formação humana e à relação entre a pedagogia e o cultivo de valores, entre educação e humanização. Exatamente porque estamos em um momento da história em que o ser humano aparece em perigo, e então estamos sendo convocados a fazer algumas escolhas decisivas sobre como será o futuro da humanidade, de todos nós. O capitalismo, sistema social ainda hegemônico no mundo, vem se mostrando cada vez mais desumanizador e cruel em sua lógica. Por isto estão de volta as grandes questões sobre o nosso destino enquanto seres humanos, enquanto modelo de sociedade, enquanto projeto de país, de pessoas concretas (CALDART, 2000, p. 15).
Ao nos depararmos com esta realidade, buscamos compreender o que vem a ser esse imenso campo de movimentação que vem tomando força na sociedade, uma configuração social construída por sujeitos sócio-históricos, que estão na luta por uma autonomia como estratégia de mudança. Uma mudança que se fundamenta na projeção de um futuro melhor, com intuito de atender às demandas dos grupos sociais, fatores estes que se relacionam à subjetividade, à utopia, à angústia, aos anseios sociais e à participação dos novos atores sociais que configuram o respeito às diferenças. As lutas empreendidas pelos movimentos sociais que constroem e reconstroem propostas, que viabilizem a vida dos seres humanos como um todo, remetem a algum tipo de mudança social.
Os movimentos sociais classistas, de modo mais intenso e direto, veem na luta coletiva uma possibilidade de organização de uma nova sociedade, em contraposição à sociedade capitalista. Portanto, há um rompimento com aquilo que podemos denominar de sociedade estática; com a atuação dos movimentos sociais começa a haver uma ruptura nos campos sociais, políticos, culturais e econômicos. Nessa reconfiguração social queremos, aqui, chamar atenção para Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST.
Neste trabalho trataremos sobre a constituição do Assentamento Roseli Nunes no município de Mirassol D´Oeste-MT, buscando evidenciar o caráter educativo que caracterizou esse processo. Utilizamos a metodologia de pesquisa participante, tendo como principal instrumento a observação in loco. Os dados foram coletados durante as atividades formativas e de organização socioprodutiva da juventude camponesa constantes de um projeto de pesquisa-extensão, financiado pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária -Pronera, e pelo Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq.
2 MST: Sujeito Educativo?
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST advém das camadas populares na luta pela terra. A princípio essa questão representava toda a mobilização, porém a partir dos anos 1990 essa luta passou a agregar outros valores, como o direito a ter uma educação no/do campo. Como Machado enfatiza em seus escritos, a luta por uma educação do campo ocorreu nesse período, quando “os trabalhadores rurais intensificaram a luta pela reforma agrária, exigindo ao mesmo tempo mais atenção aos sujeitos do campo que, mais do que a terra, queriam educação e saúde de qualidade, energia elétrica e boas estradas” (MACHADO, 2011, p. 32).
O MST surge em meio às problemáticas sociais brasileiras, buscando pensar e organizar uma sociedade com uma perspectiva diferente da sociedade capitalista. E, assim, propõe outras formas de educar que vão além do espaço escolar, com intuito de romper com a estrutura posta por esse atual sistema controlador, hierarquizado e excludente, o que requer mudanças radicais no modo de pensar e agir das pessoas, individual e coletivamente. Nesse processo vale a pena refletir sobre duas categorias fundamentais para se pensar em uma organização social diferente da que estamos vivendo: o trabalho como princípio educativo (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005) e a noção sociocultural de cultura (CALDART, 2000) como referencial identitário de um movimento social ou de uma luta social, pelas quais se concebe o papel dos movimentos sociais no enfrentamento das desigualdades socioeconômicas e no reconhecimento dos grupos étnicos como formadores das relações humanas. Cabe pensar em uma estrutura social que valorize o homem em sua totalidade e conceba o trabalho com valor social e de uso, e não como mecanismo de exploração da força de trabalho. Nessa perspectiva, lembramos do pensamento de Freire (1981) que diz que é preciso buscar a essência humana dos sujeitos.
Freire (1981) chama atenção para o sentido do que vem a ser humanizar-se, criar uma identidade, ter uma autoafirmação, ser escritor da sua própria história, rasgando os scripts escritos por outros, ou seja, não ter um roteiro determinado por alguém que controla o seu modo de viver ou sua força de trabalho. Mas que seja uma história construída no dia-a-dia, que lhe possibilite ter erros e acertos, vitórias e derrotas, e principalmente que tenha a oportunidade de pensar em um bem viver para si e sua família, ou seja, ser protagonista da sua própria história. De acordo com Freire humanizar-se significa conceber-se como sujeito da própria história e superar a “contradição opressores-oprimidos, que é viável na e pela libertação de todos” (FREIRE, 1981, p. 36).
Esses são elementos essenciais na mudança de concepção e prática do trabalho e na construção de outra lógica de sociedade, pautada na constituição de um mundo melhor. Uma sociedade em que homens e mulheres possam trabalhar sob condições adequadas que lhes proporcionem satisfação em apropriar-se da realização/produto da sua atividade. Tais princípios são motivadores para os movimentos sociais que acreditam que é possível mudar a estrutura social.
Há muitas pessoas que, diante das ações do Movimento, passam a se perguntar: mas então ainda existe quem acredite que é possível mudar o seu próprio destino?; de onde vêm tanta energia e disciplina para se organizar, para fazer ocupações, para caminhar tantos quilômetros a pé, para lutar sem desistir?; e ainda cantam, empunham bandeiras, fazem festas, levam suas crianças, dão cor e graça às cidades por onde andam [...] (CALDART, 2000, p. 21).
Quando o MST projeta mudanças para o contexto do campo, contradições afloram e acarretam lutas e disputas dentro de contextos diversos e complexos: educacionais, econômicos e políticos. Deste modo, é preciso ressaltar que “uma das lutas dos movimentos sociais do campo tem sido por políticas públicas que garantam o direito da população do campo à educação, e a educação que seja no e do campo” (ZART, 2011, p. 34).
Uma análise mais atenta nos permite compreender que esta luta travada pelos movimentos sociais cria a possibilidades de que homens e mulheres possam conduzir suas histórias, e criar meios para transformá-las. Há também a probabilidade de que neste percurso possam escrever uma história diferente para esse país chamado Brasil, tornando-o humano, solidário, igualitário, e um lugar em que as pessoas possam ter o direito de sonhar e ter a oportunidade de concretizar seus sonhos.
O MST é um movimento que está na mídia, caracterizado pelos mais variáveis estereótipos negativos, pois há uma distorção na forma de mostrar sua atuação perante a sociedade, considerando que a mídia é parcial e, na maior parte das vezes, faz uma abordagem distorcidas dos fatos, conforme lhe interessa. Portanto, não há o desejo que a população conheça de fato o MST, a forma como ele se articula, mobiliza, se organiza e movimenta, e que é composto por pessoas que são formadas politicamente para conhecer a realidade social em que vivem e posicionarem-se criticamente diante dela.
Nesse sentido, Caldart (2000), no livro a Pedagogia/Educação do Movimento, ao apresentar o contexto-histórico, chama atenção para o papel formativo dos processos sociais, destacando o Movimento como sujeito, resgatando a história e o processo de formação deste novo sujeito educativo. Em uma posição semelhante colocam-se, também, autores como Arroyo (1998), Ribeiro (2010) e Vendramini (s/d.).
O MST está provocando experiências de organização massiva e combativa dos trabalhadores, de articulação nacional e internacional entre movimentos e organizações sociais, está construindo práticas politizadoras e necessariamente educativas, propõe uma luta radical que se manifesta no questionamento fundamental da ordem existente, além da construção de grupos coletivos como superação da forma de trabalho individual na agricultura (VENDRAMINI, s/d., 2-3).
A luta pela terra é caracterizada pela resistência e persistência daqueles que acreditam em uma possibilidade de mudança. Um coletivo ligado por uma esperança que faz brotar novas expectativas, traçadas com base em muita luta. Uma esperança que nasce no coração daqueles que acreditam em um projeto popular, que traga perspectivas para as camadas populares ou menos favorecidas neste país chamado Brasil. Pensar em um projeto popular que possibilite uma transformação social requer pensar em um projeto caracterizado pela participação da população - crianças, jovens, adultos e idosos, na construção de propostas e ações de contraposição à estrutura excludente do sistema capitalista. É na disposição de contrapor a lógica capitalista que surge a fortaleza de um movimento como o MST, que, no processo de luta, percebeu que não há outra forma de mudança que não seja no confronto, nos embates, nas explicitações da resistência, pois construir uma sociedade em que as camadas populares tenham direitos requer romper com a estrutura social constituída pelo capitalismo.
Ao ter presente essa lógica, o MST notou a importância de se preparar para contrapor esse sistema, por isso, está em sua essência a preocupação com a formação dos trabalhadores/as que compõem esse movimento, uma formação pautada na conscientização de que a luta não é apenas por terra, vai além de um pedaço de chão - o que provoca diversas reações na sociedade. A esse respeito, no final dos anos de 1990, Caldart, assim se manifestou:
[...] é possível constatar que o MST se torna uma referência entre movimentos sociais do Brasil e, em certa medida também fora dele, sendo identificado como um exemplo de luta e de organização a seguir, sempre que estiver em questão a conquista de direitos e a busca de mais dignidade para todos. Já para outros grupos, o MST aparece como uma verdadeira ´praga` a ser exterminada, um incômodo para os governos e para as elites em geral, tenham elas ou não vínculo direto com o latifúndio. Há também aquelas pessoas para as quais o MST é uma referência que mistura sentimentos, causando sobretudo espanto, uma sensação de estranhamento e de que algo não está bem explicado: afinal, o que querem eles?; lutam pela terra mas também estão se manifestando contra as privatizações ou outras práticas realizadas pelo governo FHC: serão mesmo trabalhadores da terra?; fazem ações consideradas radicais, mas ao mesmo tempo parecem tão pacíficos quando marcham e entoam seus cânticos pelas cidades [...] (CALDART, 2000, p. 20-21).
O que dizer então deste movimento que em sua relação social demonstra tanta disciplina e energia para planejar, organizar as lutas, as ocupações, os acampamentos, os assentamentos? Como compreender de onde vem esse entusiasmo que causa espanto quando caminham quilômetros a pé e ainda cantam e empunham sua bandeira, como um símbolo de luta, fazem festa, demonstram em seus rostos uma expressão de cansaço, mas que ao mesmo tempo há uma modificação em sua feição, que se transforma em um belo sorriso e realçam a beleza dos lugares por onde passam?
Há que se considerar que para chegar nesse nível de atuação, houve todo um processo de formação, comprometimento por parte de todos os integrantes do movimento, que tomaram como ponto de partida sua própria humanização. Caldart evidencia isso em seu livro “Pedagogia do Movimento Sem Terra”:
[...] olhemos para a história da formação deste novo sujeito social chamado Sem Terra buscando enxergar nela uma pedagogia, ou seja, um modo de produzir gente, seres humanos que assumem coletivamente a condição de sujeitos de seu próprio destino, social e humano. Trata-se de uma pedagogia que tem como sujeito educador principal o MST, que educa os sem-terra enraizando-os em uma coletividade forte, e pondo-os em movimento na luta pela sua própria humanidade. Nesta dialética entre raiz, movimento e projeto, é possível ler algumas importantes lições de pedagogia. E penso que elas nos ajudam a refletir sobre as grandes questões pedagógicas do nosso tempo (2000, p. 16).
Caldart (2000) consegue sistematizar o contexto histórico de formação desse movimento, trazendo e analisando as falas dos sujeitos que compõem essa história, possibilitando, assim, uma reflexão pedagógica mais ampla que destaca o movimento como sujeito educativo.
Os princípios políticos e educacionais do MST se espalham pelos acampamentos e assentamentos organizados em diversos cantos do Brasil, a exemplo do Assentamento Roseli Nunes, no estado de Mato Grosso.
3 Assentamento Roseli Nunes: luta por terra, educação e transformação social.
O Assentamento Roseli Nunes está localizado no município de Mirassol D’Oeste - MT e surgiu a partir do MST. Em 17 de março de 1997 ocorreu a ocupação da Fazenda Facão, a doze quilômetros da cidade de Cáceres- MT, onde cerca de 200 famílias ficaram acampados durante seis anos. Posteriormente, houve mudança para o pré-assentamento “Botinha”, que vigorou de 1998 a 2002. Conforme Ribeiro (2014), ali os trabalhadores se organizavam coletivamente para fazer funcionar a escola e para o plantio de roça, etc.
Em meio aos acampamentos, despejos e pré-assentamentos é que se deu a constituição da escola itinerante. O movimento tinha consciência de que as crianças precisavam estudar e que se não houvesse um espaço adequado, o acampamento se tornaria um espaço só de homens, pois as mulheres iriam para a cidade levar seus filhos para estudar. Sendo assim, as mulheres que tinham estudo um pouco mais avançado, passaram a ensinar as crianças durante as mobilizações, reuniões de planejamento e organização do movimento.
O processo de acampamento proporcionou um grande aprendizado para aqueles que participavam desse procedimento, promovendo entre eles reciprocidade, companheirismo, e, ao mesmo tempo, despertando para uma identidade com os trabalhadores rurais, por se fazer parte de um movimento que luta para conquistar um objetivo comum, o que faz brotar um coletivo. É perceptível nas falas e gestos dos sujeitos do Assentamento Roseli Nunes que aqueles que passaram por essa experiência valorizam muito mais as suas conquistas, pois sabem o quanto sofreram para terem seus direitos garantidos e o quanto a resistência coletiva foi fundamental para isso. Portanto, conforme diz Cadart o acampamento tem um sentido pedagógico, que marca o cotidiano das famílias nos barracos de lona “em situação de extrema precariedade material e, ao mesmo tempo, de muita riqueza humana” (CALDART, 2000, p. 114).
[...] Um sentido que nos remete ao processo através do qual um conjunto de famílias que mal se conhece, e que, na maioria das vezes, porta costumes e heranças culturais tão diversas entre si, acaba por reconhecer-se em uma história de vida comum, e em sentimentos compartilhados de medo, de dor, de fome, de frio, mas também de convívios fraternos e de pequenas alegrias nascidas na esperança de uma vida melhor, que aos poucos lhe identifica como grupo: o acampamento como espaço social de formação identitária de uma coletividade em luta [...], e que se descobre com uma nova perspectiva de futuro (CALDART, 2000, p. 114).
A convivência com os camponeses e camponesas do Assentamento Roseli Nunes nos proporcionou a chance de conversar, ouvir histórias, relatos de vidas, experiências sobre a vivência daqueles e daquelas que passaram por todo o processo até chegar à conquista do assentamento. Histórias de muitas lutas, travadas em meio aos despejos, barreiras humanas, crianças chorando de fome, tristezas pelas perdas do pouco que possuíam; famílias que desistiram, pessoas que morreram sem conseguir conquistar a terra. O que chama mais a atenção e motiva a caminhada vem a ser a expressão do orgulho que sentem de todo percurso que fizeram e da conquista que obtiveram com o direito de ter um pedaço de terra. Nesse processo, fortifica-se um sentimento e um valor primordial para a existência humana: a solidariedade.
[...] um dos primeiros valores que se cultiva na situação de acampamento é o da solidariedade, exatamente o valor que é fundamental a ética comunitária. Solidarizar-se com o outro não é, nesta circunstância, uma intenção, mas uma necessidade prática: o alimento não é suficiente para todos, a repressão pode vir contra todos, o vento pode destruir o barraco de muitos, a dúvida e a vontade de desistir de tudo pode chegar a uns quantos, ou a cada pessoa em algum momento; e o principal argumento da necessidade talvez seja o de que a vitória virá para todos, ou não virá para ninguém. Ou seja, a condição gera a necessidade de aprender de ser solidário e a olhar para a realidade desde a ótica do coletivo e não de cada indivíduo ou de cada família isoladamente. Uma inversão que não se aprende fácil e nem sem conflitos, derrotas, brigas, expulsões, mortes [...] (CALDART, 2000, p. 116).
Estes valores que foram sendo apreendidos possibilitaram a organização para a busca dos direitos, e esses foram conquistados com muita luta, resistência, persistência. Tais valores possibilitaram, portanto, a sustentação de um Movimento e da luta dos trabalhadores do campo, que conseguiram apropriar-se da tão sonhada terra (utopia para muitos), à qual denominaram de Assentamento Roseli Nunes, em homenagem a Roseli Nunes, a Rosi, uma grande lutadora que sonhava com a Reforma Agrária, e que morreu atropelada em 31 de março de 1987, durante protesto em Sarandi (RS).
No Assentamento Roseli Nunes, os trabalhadores sem terra encontram-se, hoje, organizados em associações e cooperativas, como Associação Regional de Produtores Agroecológicos (ARPA), a Cooperativa de Produção Agropecuária da Região Sudoeste do Estado de Mato Grosso (COOPARAS), além do grupo da juventude camponesa e das mulheres; outro importante espaço conquistado e organizado pelos assentados é a Escola Estadual Madre Cristina.
A escola Madre Cristina surgiu com o início acampamento e carrega em sua história toda uma trajetória de luta. O processo educativo da Escola Estadual Madre Cristina sustenta-se nas matrizes pedagógicas enfatizadas pelo MST, constituindo-se em educação do campo e para o campo. O nome da escola é uma homenagem à “educadora, psicóloga e estudiosa, Célia Sodré Dória, ou melhor, Madre Cristina[...], uma mulher valorosa, com uma visão de sociedade voltada para os mais pobres, sofridos e oprimidos e que foi perseguida por querer uma vida melhor para todos” (RIBEIRO, 2014, p. 12).
A escola atende estudantes da Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e EJA. Realiza um trabalho democrático e participativo, pois toda a comunidade escolar faz parte do funcionamento da escola, desde o planejamento até a organização das atividades, proporcionando aos educandos e educandas a aprendizagem do conhecimento científico, a construção de valores como a solidariedade, a sustentabilidade e a compreensão do cooperativismo, realizam um trabalho diferenciado, gerando conhecimentos e relações comprometidas com a própria realidade. Pensar em um processo formativo desse tipo pressupõe uma nova perspectiva de campo, que busca uma educação voltada para os camponeses e que atenda às suas especificidades (CALDART, 2010). O que se propõe enquanto espaço de aprendizagem é a interação dos seus saberes diversos e a busca de novos saberes, dos que vivem no campo, com discussões voltadas para melhoria e permanência neste campo, com qualidade de vida, estudo e renda. Busca-se através da formação escolar a construção constante de alternativas para melhorar a situação de quem está na terra, de valorizar a escola, os educadores, educandos e comunidade camponesa.
Neste sentido, a Escola Estadual Madre Cristina, na condição de escola do campo, vem buscando alternativas para melhoramento do campo. No ano letivo de 2012 iniciou o curso de ensino médio diversificado, conquistando em sua matriz curricular quatro disciplinas voltadas para realidade de quem vive no campo. O currículo do ensino médio diversificado propõe a integração teoria e prática, na perspectiva da práxis pedagógica, com base nas disciplinas de economia solidária, agricultura familiar, agroecologia e olericultura orgânica. No ano de 2014 inicia-se o primeiro ano do Ensino Médio Integrado ao Profissionalizante (EMIEP) em Agroecologia, tendo como uma das disciplinas a Economia Solidária. Este curso representa mais um passo para a consolidação de proposições e atividades organizativas, como forma de pensar o desenvolvimento do território camponês, um assentamento conquistado pelo MST.
Diante do exposto, é necessária uma profunda análise sobre o papel dos sujeitos em todo esse contexto, segundo os princípios que regem e contemplam o campo, sobre a forma como as pessoas se relacionam na troca de experiências e saberes culturais que ressignificam a formação humana e cidadã dos sujeitos, reafirmando a valorização dos saberes de cada um e cada uma, assim como a apropriação do conhecimento científico.
Ao analisar a história e a dinâmica do MST, percebemos, em sua essência, que este movimento é capaz de produzir sujeitos que podem pensar sobre sua atuação, suas relações sociais, seus vínculos com a sociedade maior, para além do assentamento. E, ao fazer isso, como diz Caldart, acabam questionando “o modo de ser da sociedade atual” (CALDART, 2000, p. 256) e as possibilidades e estratégias de construção de uma nova sociedade.
4 Considerações finais
Esta pesquisa possibilitou compreender melhor o contexto social de luta e de conquistas do MST. No ato de interpretar esse complexo contexto, deparamo-nos com uma realidade ampla de histórias construídas em um movimento contínuo que valoriza a formação e a identidade social dos trabalhadores rurais sem terra.
Pensar os movimentos sociais na conjuntura política que estamos vivendo hoje no Brasil é imensamente desafiador! Constatamos, com profunda tristeza e indignação, o quanto os integrantes desses movimentos, especialmente do MST, vêm sendo perseguidos e criminalizados. A política do Governo Federal, pós-golpe de 2016, vem sendo conduzida no sentido de aumentar a concentração de terras e renda, de proteger o latifundiário e de expropriar e massacrar cada vez mais o agricultor familiar e camponês. Os movimentos sociais do campo resistem bravamente, porque entendem que travam uma luta por justiça social, que extrapola a dimensão da terra e da reforma agrária, abarcando a luta pela constituição de uma nova forma de sociedade.
A atuação junto aos movimentos sociais, com destaque para o MST, nos faz perceber o enriquecimento que tais experiências proporcionaram no sentido de gerar condições para que o movimento seja fortalecido com a participação ativa dos jovens do campo e de entidades que fazem a luta no campo popular. Essa construção possibilita um pensar coletivo que expressa a compreensão e o desejo de pessoas que aprendem e sonham juntos, com a possibilidade de ter uma vida digna no campo, pautada no trabalho coletivo/associado e na produção agroecológica. Tais fatores trazem perspectivas de uma vida digna para as trabalhadoras e trabalhadores que apreenderam, no caminhar da vida, a importância de lutar e cultivar a solidariedade, gerando assim uma cultura solidária e de humanização.
Essa é a expressão da luta camponesa, e é na luta que podemos propor e sonhar com outras possibilidades de formação humana. Esta formação que nasceu junto com o MST, destacando, aqui, o Assentamento Roseli Nunes, nas rodas de conversa, no planejamento dos encontros, nos mutirões sociais que gera uma ambiência favorável ao fortalecimento da vida no campo. E isso implica na formação da criança e do jovem para permanecerem e se desenvolverem no campo. Exige, também, políticas públicas que possam dotar o campo das condições estruturais que permitam ao jovem ficar no campo.
Pensar no campo como espaço de vida significa tentar romper com as barreiras do capital, propondo a superação das desigualdades sociais, e romper com o sistema capitalista que prega o individualismo e a competitividade entre os sujeitos. Isso significa pensar em outra forma de organização social, pautada na dimensão do trabalho coletivo, na auto-organização, no comércio justo e solidário, enfim, na valorização dos sujeitos camponeses e dos demais sujeitos pertencentes à classe trabalhadora, do campo e da cidade.