1 Introdução
Acompanhando Foucault (2000), para quem discurso é uma prática que forja os objetos sobre os quais fala, entendemos que a “língua” das finanças tem atravessado a produção de subjetividade no contemporâneo. Remonta à Antiguidade o uso de moeda metálica, com valor padronizado pelo estado, como dinheiro na troca de mercadorias. Diferentes suportes e operações envolvendo dinheiro foram tecendo-se desde então. Em face de mutações recentes do capitalismo, mormente “a hipertrofia da esfera financeira [...]” (CHESNAIS, 1995, p. 18), tais ações revestem-se de novas significações. Importa-nos aqui assinalar que hoje, não só para quem transita no mundo dos negócios, mas para todos nós, a proposição de bem gerir - incrementando - as chamadas finanças pessoais1 está na ordem do dia, espaço aberto para diferentes pedagogias, que cabe problematizar.
Em uma sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 2010) ou de consumidores (BAUMAN, 2008), somos constantemente estimulados a fazer escolhas e aquisições; por isso, para integrá-la, há que se desenvolver a competência básica de lidar com transações comerciais - e, cada vez mais, com produtos e operações financeiras. Mas, afinal, quando ingressamos como atores ativos no mercado de consumo e na esfera financeira? Como inicia tal aprendizado, o que se aprende e o que fica “de fora”? Através de que elementos e estratégias estamos sendo inseridos nesse universo?
Durante a infância já nos vemos às voltas com questões econômicas e financeiras, mais ou menos diretas e complexas, nas atividades cotidianas e conversas com familiares ou amigos; na televisão, filmes, internet e via aplicativos de celular, e em função dos apelos da publicidade. Arreguy e Loyola (2011) apontam três facetas do consumo do segmento infantil: o consumo direto de produtos, o poder de influenciar o consumo familiar, e o esforço das marcas em captar consumidores futuros. Dantas, Jaeger, Cruz, Silva e Bergami (2013) assinalam que hoje as crianças têm uma postura bem mais ativa, decidindo cada vez mais cedo o que querem consumir. A criança, que tem seus anseios criados e explorados pela publicidade e marketing (MALTA; REIS, 2016), ingressa no mercado como consumidora “independente” quando já tem seu dinheiro. Dantas et al (2013), que entrevistam crianças entre sete e onze anos quanto a preferências para o Dia das Crianças, encontram algumas que dizem preferir ganhar dinheiro, pois assim conseguem comprar o que desejam.
Pode-se conjecturar que essas crianças, quando atendidas, recebem dinheiro em notas. Mas pode ser também que recebam a transferência de algum valor em seus cartões. Vivemos em um tempo de crescente circulação virtual do dinheiro (e estímulo do desuso de sua representação material mais comum, o papel-moeda), e as crianças não estão apartadas dessa tendência. Em 2010, a Estrela, que produz o jogo Banco Imobiliário, fechou uma parceria com a Mastercard, para substituir “[...] suas notas coloridas de papel pelo cartão de crédito” (OLIVON, 2010), colocando à disposição das crianças jogadoras uma máquina semelhante àquela utilizada no comércio.
Poderíamos trazer estatísticas sobre o quão significativo o uso de cartões em transações comerciais se tornou para a experiência de vida hodierna. Em vez disso, convidamos o leitor a pensar quantos cartões ele possui e dar-se conta que, como milhões de outras pessoas, passa boa parte de seus dias tomando decisões de compra (maiores ou menores) e/ou absorvendo mensagens de consumo, tendo no cartão um “recurso” sempre à mão. Cabe pontuar que utilizamos aqui a expressão cartão para referir ao meio de pagamento eletrônico, independentemente se na função débito ou crédito. Não desconhecemos as diferenças cruciais entre elas, mas nos interessa tomar o cartão como espécie de dispositivo financeiro e pedagógico, o que buscamos discutir neste texto.
Estas premissas facilitam compreender o recorte de nossa pesquisa: uma análise da oferta do produto cartão mesada direcionado ao público infantojuvenil. Em uma abordagem crítica, objetivamos traçar uma compreensão acerca dos modos como certos elementos que atravessam e compõem a racionalidade e as redes do sistema financeiro estão se estruturando para a infância na direção de certo tipo de educação quanto ao dinheiro e ao consumo.
2 Abordagem metodológica
Este estudo faz parte de um projeto de pesquisa maior intitulado Consumos no contemporâneo: tecnologias, políticas e subjetividade, que tem como norte produzir conhecimentos no que tange às vicissitudes e aos efeitos subjetivos do atravessamento da questão do consumo no presente. No seu âmbito, em pesquisa anterior sobre crédito, nos deparamos com a oferta de cartão mesada para crianças a partir de seis anos, o que nos surpreendeu. Instigados, na presente pesquisa exploratória, buscamos rastrear materiais que, de uma forma ou outra, aproximavam as crianças do universo financeiro. Encontramos outras ofertas de cartão mesada, reportagens que discutiam tal produto, teses e dissertações que focavam sua compreensão acerca de noções da esfera financeira, ou que discutiam aspectos da educação matemática, entre outros.
Neste artigo, analisamos a oferta de cartões mesada direcionados ao público infantojuvenil por parte de três instituições financeiras, tomando como material de análise a publicidade desse produto feita em página específica nos respectivos sites: a Mesada Eletrônica, do Banco do Estado do Rio Grande do Sul - Banrisul (2016); o Adicional Mesada Caixa, da Caixa Econômica Federal - CEF (2016); e o Cartão Mesada Turma da Mônica, da Visa Incorporated (VISA, 2016a, 2016b). A fim de saber se cartões se faziam presentes no cotidiano de crianças e jovens, realizamos visita informal a quatro escolas públicas e quatro privadas (escolhidas intencionalmente) com o objetivo de constatar se eram utilizados e como isso acontecia nos espaços de venda de lanches.
Esta pesquisa - que se propõe a traçar uma compreensão sobre como os cartões mesada, enquanto espécie de dispositivo financeiro e pedagógico composto de linhas de diversos discursos, vem atravessando a infância contemporânea - inspira-se na produção conceitual de Michel Foucault (1997, 2000, 2008, 2014) e toma como elementos norteadoras para a análise dos materiais suas concepções de discurso, relações de poder e governamentalidade neoliberal. Em função disso, cabe uma breve retomada de certos aspectos chave dessas ferramentas conceituais.
Com o autor, entendemos que as práticas discursivas “[...] tomam corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e difusão, em formas pedagógicas que, ao mesmo tempo, as impõe e as mantêm” (FOUCAULT, 2014, p. 82). Assim, discursos posicionam sujeitos, instituem verdades, em meio a complexos jogos de poder-saber. Nesse sentido, uma direção metodológica: ao trabalhar com Foucault não se buscam origens ou revelar a verdade, mas “[...] compreender de que maneira, por quais caminhos, tudo aquilo que se considera verdade tornou-se um dia verdadeiro” (VEIGA-NETO, 2006, p. 87). E, também, uma precisão conceitual, lembrando que o autor produz um significativo deslocamento na concepção de poder, desenvolvendo suas análises não a partir de um poder instituído e estruturado, mas das periferias, focalizando a microfísica do poder, que perpassa todas as relações, permeia o tecido social (FOUCAULT, 1997). Assim, quando se debruça sobre as artes de governar, ele caracteriza governamentalidade como
[...] o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análise e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem como alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 1997, p. 291).
Entendemos que este artigo se insere no campo de articulação entre educação e psicologia social, o qual se beneficia com o desenvolvimento de um olhar crítico sobre os processos de subjetivação relacionados às práticas de consumo, exercício pelo qual também se torna possível expandir a compreensão quanto aos efeitos subjetivos das ações econômicas e políticas. Quando se abdica da postura passiva de mero usuário de cartão, para assumir um papel ativo na análise do discurso que lhe constitui e naturaliza, obtém-se um novo nível de percepção acerca das políticas que nos buscam governar.
Se a sociedade contemporânea e seus sujeitos constituem uma cultura de consumo, e se os mecanismos políticos e econômico-financeiros são relevantes nesse contexto, então é legítimo reconhecer que as instituições e especialistas que trabalharam no desenvolvimento de produtos financeiros endereçados ao público infantojuvenil estão urdindo e atualizando modos de educar e de subjetivar com efeitos ainda a conhecer.
3 Formando novos atores financeiros: análise da oferta de cartões para crianças e jovens
Consolidada a relevância e popularidade do uso de cartões pelos adultos, instituições financeiras investem, há algum tempo, no desuso do dinheiro físico também pelas crianças e jovens, desenvolvendo produtos e serviços específicos para tal público sob a forma de cartões mesada. Esses, cuja oferta e publicidade são ancoradas principalmente nas ideias de segurança e comodidade do uso - valores tidos como importantes para os adultos - são concebidos e promovidos para cativar e ser adotados pelos pais, chegando assim aos seus filhos, o público de destino. Importante pontuar que já na apresentação inicial dos diferentes cartões que analisamos se enuncia a associação direta entre o (uso do) cartão e a (suposta efetivação de uma) educação financeira dos filhos. Senão vejamos.
O Banrisul oferece a Mesada Eletrônica com o seguinte slogan: “Educação financeira para seu filho. Tranquilidade para você”. Trata-se de uma conta adicional destinada a quem tem idade entre seis e treze anos, vinculada à conta corrente de um titular responsável, que solicita a emissão de um cartão de débito para seu dependente, com quatro saques gratuitos que, se excedidos, têm o custo de R$ 1,70 por operação (BANRISUL, 2016). Após essa idade, o Banrisul oferece a Conta Jovem, cujo slogan é: “Você... independente.” Assinale-se que na divulgação desse último slogan não há mais referência à educação financeira, o que nos leva a questionar: estaria dada? Afinal, lê-se: “Independência Financeira: você administra a sua grana, com um cartão só para você” -, o que poderia acontecer a partir dos 14 anos.
A CEF oferece o Adicional Mesada Caixa: cartão para quem tem, no mínimo, 12 anos, e que deve ser solicitado por um correntista; o plástico da CEF tem o limite de quatro saques livre de custos (se excedido, há a despesa de R$ 1,95 por operação). Na sua web página, o banco divulga o produto com a seguinte frase: “O jeito prático e seguro de ensinar seu filho a cuidar das finanças dele”. E diz garantir controle e segurança, respectivamente, pela listagem das despesas por usuário e por uma determinação de limite de gasto (CEF, 2016).
Já a Visa oferece várias segmentações dos cartões mesada que teriam como alvo o público jovem: os Visa Mesada Turma da Mônica e Capricho; os Flamengo e Furacão Mesada; e também os PlayStation Card e #TeenCard (VISA, 2016b). São cartões pré-pagos, sem necessidade de vínculo bancário, carregáveis, e que possibilitam aos pais acompanhar/controlar os gastos dos filhos por um aplicativo de celular. Para integrar algum desses seguimentos de pertencimento, o custo de aquisição é R$ 24,90, a mensalidade, R$ 4,90, e os valores de recarga e saque, respectivamente, são R$ 3,00 e R$ 9,80. Não há discriminação de faixa etária, só é necessário ter um CPF próprio. Segurança e responsabilidade também são dois pilares levantados pela empresa. Na apresentação do Cartão Turma da Mônica, por exemplo, a Visa incita pais e filhos a pensarem que “educação financeira começa desde cedo”, o que corresponderia à “liberdade financeira com responsabilidade”. Como seu uso é feito através de senha pessoal, e cada gasto pode ser conferido em detalhe, no extrato, por pais e jovens, a Visa afirma: “Mais seguro e prático que dinheiro ou cartão de crédito” (VISA, 2016a).
Os cartões da Visa abrem espaço para diferentes jogos de identificação, mas nos ateremos ao Cartão Mesada Turma da Mônica, pois não nos parece que seriam os jovens o seu público-alvo. No link específico para esse cartão, há um vídeo de apresentação que diz “lidar com dinheiro é uma grande responsabilidade que surge na vida da criança e que é muito importante para o seu futuro. Por isso, o cartão mesada Turma da Mônica traz a solução para ajudar pais e filhos nesta missão” (VISA, 2016a, grifos nossos). Além disso, as imagens que estampam os cartões desse seguimento remetem aos personagens infantis criados por Maurício de Souza (os dentões da Mônica, uma enorme melancia da Magali, etc.) e não àqueles da Turma da Mônica Jovem. Quem produziu tal estética conjecturou plausível que jovens aderissem a referências desse universo infantil? Mais pertinente pensar que a Visa buscava conquistar (os pais e suas) crianças como um novo público.
Empreendimento que passa, evidentemente, por captar a atenção e adesão dos pais. Acenar com a ideia de incremento para a educação tem sido bandeira estratégica utilizada em diferentes âmbitos, pois consegue mobilizar pais. Entendemos que, nessa direção, se constrói o slogan do banco Banrisul: “Mesada Eletrônica - Educação financeira para o seu filho. Tranquilidade para você”. Há a afirmação do discurso de que dar uma mesada - através do cartão - corresponde (diretamente) a uma educação financeira, o que traz, de quebra, tranquilidade, a legitimar os fatores segurança e facilidade que o cartão diz proporcionar. Tudo isso viável para crianças a partir dos seis anos - talvez explicitado, para fazer os pais olharem seus filhos ainda pequenos sob certa perspectiva, como futuros atores financeiros.
O quão cedo os pais devem lançar mão da “solução” cartão mesada para fazerem frente à “missão” de ensinar/fazer aprender a lidar com dinheiro? O Cartão Mesada Turma da Mônica, que ambiguamente se coloca entre jovens e crianças, explicitamente diz que não há idade mínima, basta ter um CPF ativo. O que imprime uma dimensão fluida à headline “Educação financeira começa desde cedo”. O ingresso da criança no mundo das operações financeiras através do cartão se dará, portanto, no tempo que sua família achar adequado.
Na divulgação desse produto, pode-se notar a estruturação para uma posição mais ativa e diversificada, no que tange ao manejo virtual do dinheiro. É dito que seu usuário tem a opção de transferir parte do valor recebido para uma poupança, que fica assim separada do que pode ser gasto, mas que pode ser resgatada a qualquer momento. Também que é possível efetuar saques em caixas eletrônicos - a um custo de R$ 9,80 por operação, que existiria justamente para desestimulá-la, conforme o presidente da empresa que emite o cartão (ALMEIDA, 2015), ponto a que retornaremos mais adiante.
Entendemos que a existência de cartões direcionados ao público infantojuvenil, atravessados pelos motes da segurança, comodidade e liberdade, configura-se como elemento pedagógico que educa adultos, jovens e crianças. Retomando alguns pontos já discutidos: o que o Banrisul está a indicar, ao colocar a idade de seis anos para a posse possível de um cartão mesada? Ou o que a bandeira global Visa e a CEF sinalizam ao dizer, respectivamente, que “educação financeira começa desce cedo”, e que há “um jeito prático e seguro de ensinar seu filho a cuidar das finanças dele” (CEF, 2016, grifo nosso)?
Primeiro, verifica-se a naturalização da forma mesada - o que viabilizaria a criança ou o jovem a terem “finanças próprias” -, e se introduz a alternativa de disponibilizá-la através do cartão mesada, que figura como espécie de dispositivo educativo. Desse modo, uma verdade quer se estabelecer: indiferentemente dos valores e modos de educar exercidos pelo núcleo familiar, a educação financeira passaria pela adoção e uso de cartões mesada. Quando os pais aderem a essa verdade, estão concordando com a inserção de seus filhos, a despeito da idade que tenham, na prática do uso virtual do dinheiro, o que implica lidar com elementos da linguagem e do sistema financeiro, como senha, limite, custo por operação, etc.
Pode-se conjecturar que tal opção seja atraente aos pais, por talvez ser percebida como representação de um “diferencial” para seus filhos: quem possuir e utilizar cartão mesada pertencerá ao (seleto, inicialmente) grupo dos que primeiro entenderão a manipulação virtual do dinheiro e, portanto, estarão “adiantados” dentro do nosso sistema socioeconômico.
Pensamos que o número efetivo de usuários dos cartões entre o público infantojuvenil (algo a que não tivemos acesso) não é o mais relevante, mas, sim, o fato de se fazer circular discursivamente que o uso de cartões e as operações virtuais com dinheiro são possíveis já às crianças2. Algumas terão tal acesso, outras não. Caberá às famílias decidir quando investir nesse tipo de educação, tendo como norte incrementar - quanto antes? - suas competências em meio ao capitalismo conduzido pelas finanças. Afinal, se se encampa a ideia de que a competição é fato social indelével (uma verdade que se propaga) e só reserva espaço a alguns, é preciso antecipar-se.
Trata-se de um modo de educar e subjetivar que pensamos sintonizar e remeter às discussões foucaultianas acerca da lógica e governamentalidade neoliberal. Nessa, o trabalhador, concebido como portador de um capital-competência, “é uma máquina que vai produzir fluxos de renda” (FOUCAULT, 2008 p. 309) a partir de certas condições; então, ele próprio “aparece como uma espécie de empresa para si mesmo” (p. 310), sendo fundamentais os investimentos no que tange ao incremento do chamado capital humano. Assim, por mais que Foucault não tenha priorizado o tema da pedagogia em suas análises, sua reflexão sobre tal governamentalidade não pode ser pensada sem a utilização de elementos estratégicos que, por meio dela, se fazem agir.
Formar capital humano, formar, portanto, essas espécies de competência-máquina que vão produzir renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos educacionais. [...] muito mais amplos, muito mais numerosos do que o simples aprendizado escolar ou que o simples aprendizado profissional. [...] constituído, por exemplo, pelo tempo que os pais consagram aos seus filhos fora das simples atividades educacionais propriamente ditas. (FOUCAULT, 2008, p. 315)
Como já aventamos, um importante efeito da oferta de cartões mesada direcionados ao público infantojuvenil talvez seja justamente o de fazer entrar, no circuito de atenção e ação dos pais, inclusive de crianças pequenas, a ideia da necessidade de certo tipo de educação financeira - que passaria não mais pela manipulação de notas ou moedas, mas pela inserção no universo da virtualidade das finanças.
Cabe repassar o importante papel que a família desempenha no que concerne à governamentalidade: não mais modelo de governo, a família torna-se instrumento privilegiado para o governo da população, pois “[...] quando se quiser obter alguma coisa da população - quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. - é pela família que se deverá passar” (FOUCAULT, 1997, p. 289), lembrando que gerir a população não quer dizer geri-la “[...] somente ao nível de seus resultados globais. Gerir a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe” (p. 291).
Se, como assinalou Foucault (2008, p. 316), “[...] o conjunto dos estímulos culturais recebidos por uma criança: tudo isso vai constituir elementos capazes de formar um capital humano”, é pertinente pensar que hoje, em tempos de capitalismo financeiro, conhecimentos e experiências viabilizadas pela utilização do cartão sejam vistos como um “diferencial” no que tange ao incremento do capital humano daqueles que virão a serem os novos atores financeiros.
Nesse sentido, o espaço da escola parece se oferecer também como lugar de experiências de consumo com o uso de cartão. Nas visitas informais que realizamos, constatamos isso nas escolas particulares, pois nas públicas em que fomos não havia lancherias; nas primeiras, na área de venda de lanches, eram bem visíveis tanto as máquinas para pagamento eletrônico quanto os adesivos publicitários “Aceitamos X” (bandeira); nessas, fomos informados que algumas crianças e jovens frequentemente ou predominantemente usam o cartão, outras compram com dinheiro em notas/moedas, e há também aqueles que têm contas de consumo (pagas pelos pais).
É interessante pensar nesses espaços como introdutórios na rotina de escolha do que comprar e dos meios de pagamento, mesmo que sejam só lanches. São áreas que as crianças e os jovens frequentam, potencialmente, todos os dias letivos, passando por processos de subjetivação de consumo; a rotina e sua ligação com as bandeiras podem ser vistas como formas de desestímulo ao uso do dinheiro em espécie. Por conviver, todos acabam conhecendo um modo de consumir e um produto financeiro a possuir, muitos possivelmente a desejarem inserir-se nesse universo. Bandeiras a incentivar e cativar futuros clientes, que se sentem pertencendo ao local onde podem pagar com o cartão X ou Y, cumplicidade a ser passada adiante. Crianças e jovens lidando com o que há pouco tempo era restrito a adultos: experiência de comprar sem precisar de dinheiro em espécie, (sigilo da) senha de segurança, (controle de) limite disponível, (atenção aos eventuais) custos por operação, etc. Aspectos que merecem estudos posteriores, pois só podemos aqui tecer especulações.
4 Pedagogia do cartão, teatro negro e outros focos de luz
Nada impõe a pais ou às crianças e jovens a adesão e uso de cartões mesada. Muito convida, incita: poder microfísico, capilarmente atravessando instituições, produtor de verdades. Poder não é mera força de injunção ou repressão, ressalta Foucault (1997); o que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é o fato que “[...] ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social [...]” (p. 8).
Como coloca Aranha (2006), pedagogia é palavra que tem origem no grego clássico, derivando de paidos (da criança) e agein (conduzir): conduzir crianças. Basicamente, quando se conduz (algo ou alguém), tem-se uma direção, usa-se um caminho e visa-se a algo. Assim, acaba-se educando em certos sentidos, e não em outros. Na educação formal, o que se visa ensinar está, pelo menos em parte, explicitado3. No caso da ação das chamadas pedagogias culturais, “[...] quando artefatos culturais estão implicados tanto nas formas pelas quais as pessoas passam a entender a si e ao mundo que as cerca quanto nas escolhas que fazem e nas maneiras que organizam suas vidas [...]” (COSTA, 2009, p. 20), o que se tem são focos de luz direcionados sobre determinados pontos.
Entendemos que o cartão mesada é um desses artefatos; ao se proclamar aspectos como praticidade, segurança, liberdade, independência, responsabilidade, iluminam-se certas facetas, ao ensinar e engajar em um modo de perceber, consumir e ser ator financeiro. Nesse sentido, traçamos um paralelo entre o que seria a sua pedagogia e a forma de representação cênica nomeada Teatro Negro. Essa se caracteriza pela composição do cenário na escuridão com uma iluminação estratégica, a produzir um jogo de luz e sombras, em que atores, que ficam “invisíveis” por estarem de preto, performatizam um roteiro para a plateia (HEIN, 1993).
Não sugerimos, com isso, a existência de uma manipulação “ideológica” que engana, encobre, mas de regimes de visibilidade e dizibilidade a nos governar, que necessitam ser problematizados. Ressaltamos que a crítica traçada aqui não denota um saudosismo, a taxar problemas e reverenciar “outros tempos”; nossas reflexões buscam colocar em questão determinados aspectos, a fim de iluminar algumas outras facetas do que estamos chamando dispositivo financeiro e pedagógico, cartão mesada, que busca educar crianças e jovens em um tempo de incremento da circulação virtual do dinheiro.
Como vimos, em sua publicidade, os cartões mesada acenam com a ideia de uma educação financeira. Qual, como ela seria? Um ponto básico a considerar é que usar um artefato não necessariamente corresponde a conhecer e se apropriar de sua dinâmica e implicações. Em reportagem (ALMEIDA, 2015) sobre cartões mesada, Cássia D’Aquino, especialista em educação financeira infantil entrevistada, tece críticas quanto à possibilidade de controle/vigilância por parte dos pais - propagada como uma das suas vantagens -, pois a entende como nociva: para ela, importante seria que os filhos pudessem fazer suas escolhas, e os pais mostrassem confiança. Para tanto, seria mais educativo, entende D’Aquino, em vez de monitorar cada despesa, dar explicações sobre o porquê de a criança estar recebendo a mesada, que gastos não seriam tolerados, ensinar como fazer um orçamento, a anotar gastos, a ter uma poupança.
Cabe pontuar também a necessidade da construção, pela criança pequena, das noções econômicas de troca comercial, de dinheiro, como meio neutro de troca, entre outras (GRANJA, 2012); nas compras com dinheiro em notas ou moedas, há uma permuta (se entrega certa quantia de dinheiro em troca do que se deseja obter), já, nas compras com cartão, é diferente, pois não há permuta, uma vez que tanto o cartão quanto o produto adquirido ficam com quem compra. Teria como a criança desenvolver tais noções a partir do “acompanhamento” do fluxo de créditos/despesas em um extrato/aplicativo? Cassia D’Aquino (ALMEIDA, 2015) pensa que crianças entre nove e treze anos (supostamente a faixa do público-alvo do Cartão Mesada Turma da Mônica) ainda não estão preparadas para gerenciar despesas em um cartão, opinando que seria preferível que elas manuseassem notas e moedas.
Nesse sentido, enquanto os cartões do Banrisul e CEF possibilitam até quatro saques gratuitos (o que daria acesso ao dinheiro em espécie), seu custo no Cartão Mesada Turma de Mônica é alto, justamente para desestimular a operação. Coerente, se a “lógica” da educação financeira se alicerça no controle de gastos pelos pais: o saque o burlaria, pois faz desaparecer o registro do que, quando, onde a compra aconteceu. Ao mesmo tempo, não há como desconhecer que a circulação virtual do dinheiro é geradora de valor (aluguel da máquina, percentual sobre operações, etc.): o desuso do dinheiro em espécie alavanca um negócio muito rentável. Assim, é possível, mas ganha ares “surreais”, imaginar uma criança de seis ou sete anos se dirigir a um caixa eletrônico - e ter condições - para sacar (parte de) sua mesada. Trata-se então, nos parece, de estratégia de uma gigante no ramo dos cartões para formar crianças e jovens de modo que eles habitem, como “nativos”, o mundo financeiro digital.
Outra questão a discutir é a ideia de “finanças” próprias da criança/jovem. Oliveira (2009) aponta a existência do que nomeia de uma “elegância cultural”, que dissuade a interrogação e a informação sobre as origens da renda pessoal. Para ela, a invisibilização das formas de obter recursos financeiros acarreta uma naturalização da posse do dinheiro e um apagamento das desigualdades sociais. Naturalização que a pesquisadora mostra ser reforçada em livros de educação matemática que, preponderantemente, trazem problemas e exercícios que tratam de compras, mas sem mencionar recursos para seu pagamento. Pontue-se que tal silenciamento se dobra sobre as crianças: registros de seus Diários de pesquisa mostram que elas invisibilizam como conseguiram o dinheiro com que lidam.
Entendemos que, para ensinar crianças ou jovens a lidarem com dinheiro, importa menos focalizar e apostar em alguma forma específica através da qual eles terão acesso a esse (mesada, cartão mesada, notas ou moedas eventualmente disponibilizadas, etc.); o essencial, no nosso ponto de vista, é falar sobre os percursos e vicissitudes, pessoais e socialmente diferenciadas, para se obter dinheiro. Não há nada de “deselegante” nisso, ao contrário, lhes possibilitará entender os jogos socioculturais em que estamos inseridos. Valor, periodicidade, destinação, motivos da disponibilização de dinheiro são aspectos que, quando são tópicos de diálogo, talvez possam imprimir uma complexidade ética ao dito “liberdade financeira com responsabilidade” (VISA, 2016a), educando no que tange a finanças e ao ser social.
Por fim, cabe pontuar, com Granja (2012), que adultos e crianças diferem quantitativa e qualitativamente quanto ao conhecimento econômico: essas “[...] possuem, de fato, ideias notadamente distintas, resultantes de um processo de construção pessoal e ativa” (p. 123). A pesquisadora, que entrevistou crianças entre cinco e nove anos, aponta que: a concepção de dinheiro, até nove anos, está ligada à materialidade (é igual às suas representações materiais); somente algumas crianças mais velhas traçam certa relação da origem do dinheiro com atividades humanas; e o uso do cartão de crédito é entendido como uma alternativa (quando a pessoa não tem dinheiro em espécie consigo), sendo sua procedência algo sobre o que, mesmo as crianças mais velhas, não sabiam responder.
O cartão, produto financeiro criado para ser usado por adultos, nos últimos anos passou também a poder circular em mãos de crianças e jovens, com muitas das suas características e funcionalidades conservadas: o Cartão Mesada Turma da Mônica, por exemplo, pode ser utilizado em compras na internet, inclusive em sites do exterior (ALMEIDA, 2015). A criação e publicidade dos cartões mesada, ao focar aspectos como comodidade e praticidade, segurança e controle (vigilância), liberdade e responsabilidade, acenando com o mote da educação financeira, a conquistar a adesão de pais e uso por seus filhos, deixa com pouca luz o fato de que, no caso, o público-alvo, o novo usuário visado, é bem novo, logo, bem diferente.
Enfim, sempre é bom lembrar que os dentões da Mônica são de leite. E que educar - no sentido de abrir campos de possibilidades aos educandos, e não (somente) no de formar instrumentalmente - é processo que não se resume a disponibilizar meios. Então, fica o desafio para todos nós: como educar quanto ao consumo e às finanças de modo a colocar em questão a governamentalidade neoliberal que vem nos subjetivando?