1 Introdução
Apesar de já estar presente nos estatutos da Universidade Portuguesa, em 1772 (cf. FERREIRA, RICH, 2001), a proposta de inserção da história na formação de professores de matemática passou a ser reiteradamente feita desde finais do século XIX, conforme apontam Dejić e Mihajlović (2014). No entanto, não há um consenso sobre como se daria tal inserção. Em sua tese de doutorado, Antonio Miguel, a partir de um levantamento de propostas contidas em textos de diferentes autores, fez uma categorização de diversos modos, de como a história poderia ser utilizada nas aulas de matemática. Conforme Miguel (1993), ela poderia ser:
fonte de métodos adequados de ensino de matemática: os autores que defendem esse ponto de vista acreditam que, por meio da história, seja possível ao professor escolher métodos adequados e instigantes para a abordagem de conteúdos matemáticos;
instrumento de conscientização epistemológica: defende-se que a história possa ter um papel conscientizador sobre as dificuldades que antigos pensadores tiveram na construção de determinado conceito matemático;
instrumento unificador e ético-axiológico: a história seria capaz de mostrar o processo de transformação pelo qual passaram os conceitos da matemática. Assim, a história teria uma função desmistificadora, pois a forma lógica – pretensamente harmoniosa e linear, como essa disciplina é geralmente vista nos cursos regulares de matemática -, não condiz como a forma que o conteúdo foi historicamente produzido;
fonte de motivação: a história despertaria o interesse no aluno para as aulas de matemática. Miguel (1993) critica tal modo de entender a história no ensino, pois, segundo o autor, a motivação é algo que não se impõe a partir de situações externas às pessoas;
guia para a discussão filosófica sobre o conhecimento matemático: a história poderia mostrar qual epistemologia unificaria um método de ensino e uma matemática de natureza mais profunda;
instrumento de explicação dos porquês e como fonte de objetivos de ensino: a história poderia ser utilizada como instrumento de explicação dos porquês de conceitos e procedimentos. Poderiam ser questionados temas naturalizados no ensino de matemática, buscando-se compreender o porquê daquele tema ser da forma como é ensinado e não de outra maneira;
instrumento de formalização de conceitos: a história seria um meio para o conhecimento de diferentes modos de formalização de um mesmo conceito, e eles serviriam como objeto de ensino e aprendizagem;
instrumento de resgate cultural: a história serviria para a superação dos conhecimentos matemáticos dos colonizados que foram submersos pela cultura imposta pelos colonizadores. Os trabalhos de Paulus Guerdes, de resgate do conhecimento matemático utilizado para a confecção de utensílios, em Moçambique, é um exemplo dessa categoria encontrada na tese de Miguel (1993).
Mais atualmente, Jankvist, Mosvold e Clark (2016) e Lawrence (2009) analisam a inserção da História na formação de professores de Matemática a partir do referencial do conhecimento especializado do professor. Lawrence (2009) concluiu que, no contexto de sua pesquisa com grupo de professores, a história contribuiu para criar a colaboração entre eles e um panorama conceitual criativo para suas aulas. Jankvist, Mosvold e Clark (2016) relatam terem solicitado a seus alunos, futuros professores, que realizassem uma seleção a partir de temas sobre História da Matemática e elaborassem planos de aula de matemática para a escola básica. Tais autores concluem que tal procedimento colabora para a construção de conhecimentos profissionais, por parte dos futuros docentes.
Em nosso entender, a história pode colaborar para que o professor aprofunde seus conhecimentos sobre a matemática e sobre o ensino dessa disciplina escolar. Concordamos com Brito e Carvalho (2009), quando afirmam que os professores, além de conhecer regras e saber demonstrar teoremas e algoritmos matemáticos, deveriam também
...conseguir relacionar diferentes campos desse conhecimento, refletir sobre os fundamentos da Matemática, perceber seu dinamismo interno e suas relações com outros campos do saber, transitar pelos diferentes sistemas de registro de representação e, principalmente, entender o conhecimento matemático como um saber que coloca problemas e não apenas soluções.
(BRITO, CARVALHO, 2009, p. 16).
Em nossa prática de formadoras de professores, temos elaborado sequências didáticas, com o intuito de atingir as metas apresentadas pelas autoras acima citadas. Uma sequência didática
é composta por várias atividades encadeadas de questionamentos, atitudes, procedimentos e ações que os alunos executam com a mediação do professor. As atividades que fazem parte da sequência são ordenadas de maneira a aprofundar o tema que está sendo estudado e são variadas em termos de estratégia: leituras, aula dialogada, simulações computacionais, experimentos, etc.
(MANTOVANI, 2015, p. 17).
Nossa sequência didática se compôs do seguinte modo: resolução e análise de atividades de ensino que utilizam a história para desenvolver conceitos matemáticos; análise de conteúdos de história presentes em livro didático de matemática do ensino médio; produção de um seminário para apresentar os resultados obtidos e, ainda, produção de um vídeo.
Na elaboração das atividades de ensino, consideramos, primeiramente, quais conhecimentos prévios os alunos possuem sobre o tema a ser abordado e quais dificuldades têm se colocado, historicamente, na sua aprendizagem. A seguir, realizamos uma pesquisa histórica, tanto em documentos primários quanto secundários, sobre como aquele tema se desenvolveu no decorrer dos tempos; que problemas da matemática e de outros contextos levaram a seu surgimento; que formas de registro foram utilizadas para representá-lo; que aplicações sociais ele teve; que relações tem com outros ramos da matemática; como foi ensinado em diferentes épocas. A partir desses dados, criamos situações que não envolvem necessariamente os mesmos problemas encontrados na história da matemática e a de seu ensino, mas, que permitem levar os alunos a questionar os conhecimentos que já possuem sobre o tema, a explicitarem para si próprios suas dúvidas e a construir novos conhecimentos, na interação com o professor e/ou com demais colegas. Queremos ressaltar que nesse processo abordamos não apenas aspectos conceituais e procedimentais da matemática, mas também questões axiológicas e relativas a seu ensino. Nesse sentido, buscamos colaborar para uma construção significativa, com os futuros professores, de conhecimentos matemáticos e também do ensino escolar de tal disciplina.
Nunes, Almouloud e Guerra (2010) defendem, para construção significativa de conceitos matemáticos, a elaboração de atividades que considerem o contexto histórico. Esses autores propõem
...uma conjunção entre a aprendizagem significativa dos conceitos matemáticos e sua trajetória histórica, evidenciando a necessidade de se trabalhar com os alunos, primeiramente, atividades que os coloquem em contato com a construção das ideias matemáticas. Postulamos que uma das formas são as investigações históricas que visam à construção epistemológica dos conceitos.
(NUNES, ALMOULOUD, GUERRA, 2010, p. 538).
Neste artigo, relataremos a experiência, conduzida por nós, de inserção da história na formação de professores de Matemática. Trata-se de um estudo de caso realizado na disciplina de Prática de Ensino de Matemática do 7º semestre do curso Matemática-Licenciatura da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA). Tal disciplina possui 68 horas no semestre e é trabalhada em forma de Seminários. Localizada na cidade de Foz do Iguaçu, Paraná, a UNILA oferece o curso de Matemática-Licenciatura, período noturno, na unidade Parque Tecnológico Itaipu.
A UNILA foi criada pela Lei nº 12189/2010, que estabelece, no art. 2º § 1º, sua "[...] atuação nas regiões de fronteira, com vocação para o intercâmbio acadêmico e a cooperação solidária com países integrantes do Mercosul e com os demais países da América Latina”. Tal atuação constitui a UNILA em uma instituição diferenciada de ensino superior, com vocação internacional, por viabilizar condições de participação de latino-americanos e caribenhos para a formação acadêmica visando à integração dos países da América Latina e Caribe.
A expressão “Integração latino-americana” recorrente em documentos da UNILA, de acordo com o seu Projeto Pedagógico, compreende todos os países do continente americano que falam espanhol, português ou francês, bem como outros idiomas derivados do latim. Destaca-se, dessa forma, o princípio do bilinguismo na Universidade: português e espanhol.
Sediada no município de Foz do Iguaçu, a UNILA está estrategicamente localizada em uma região trinacional limítrofe com o Paraguai e a Argentina, diversidade geográfica de característica multiculturais, multilinguísticas e econômicas. Alguns aspectos que favorecem a promoção dos princípios da Universidade são a interdisciplinaridade, a interculturalidade, o bilinguismo e o multilinguismo, a integração solidária e a gestão democrática, previstos no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI).
Assim, os cursos ofertados pela UNILA devem ser:
[...] em áreas de interesse mútuo dos países da América Latina, sobretudo dos membros do Mercosul, com ênfase em temas envolvendo exploração de recursos naturais e biodiversidades transfronteiriças, estudos sociais e linguísticos regionais, relações internacionais e demais áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento e a integração regionais. (BRASIL, 2010, art. 2º, § 2º)
Há um Ciclo Comum de Estudos, nos cursos, com aulas sobre História da América Latina; Metodologia e Línguas – Português para hispanofalantes e espanhol para brasileiros. Ele dura três semestres e é ofertado em paralelo às disciplinas específicas de cada curso.
No ano de 2014, foi criado o curso de Licenciatura em Matemática, no período noturno, com duração de cinco anos e disciplinas semestrais. A inserção desse curso em uma universidade interdisciplinar, intercultural e bilíngue, localizada em uma região trinacional multilíngue - de idiomas autóctones, alóctones e de fronteira-, proporciona, na formação inicial de professores de matemática, um acesso a uma vivência multicultural. Nesse sentido, a formação do docente articula-se com o conhecimento multidisciplinar, alicerçada na capacidade de análise de problemas sob as perspectivas das diversas culturas envolvidas.
O curso de Matemática da UNILA ofereceu, pela primeira vez, no primeiro semestre de 2018, a disciplina de Prática de Ensino de Matemática IV, que possui como pré-requisitos um conjunto de três outras práticas de ensino de matemática. Houve a matrícula de apenas um aluno, na disciplina. O aluno, em questão, ingressou na primeira turma e foi o único que permaneceu de uma turma que evadiu quase por completo. Portanto, fomos desafiadas a lecionar para um único aluno, em, pelo menos, duas disciplinas: Práticas de Ensino e Estágio Supervisionado.
Solicitamos ao aluno que pudéssemos conduzir uma pesquisa acerca de que conhecimentos matemáticos e do seu ensino e que se constituíssem no processo de desenvolvimento das disciplinas já referidas. O aluno concordou com nossa proposta e, assim, tal pesquisa configurou-se como um estudo de caso.
Segundo Ponte (1994), um estudo de caso é uma investigação empírica com forte cunho descritivo, mas que não precisa se ater à descrição, pois pode ter alcance analítico ao interrogar a situação e confrontá-la com outras já conhecidas. Nele, o investigador não tem controle sobre os acontecimentos e, portanto, precisa estar aberto às possíveis surpresas que possam emergir. Tal estudo pode ter uma abordagem qualitativa ou ser de cunho misto quali-quanti. Segundo Ponte (1994),
Deve ainda notar-se que os estudos de caso podem ser usados com outros propósitos que não os de investigação. Eles usam-se, por exemplo, para ensino, prática muito comum em Direito e Medicina e que começa igualmente a ser aplicada na formação de professores (Shulman, 1992). Usados com esse objectivo não precisam de ser muito detalhados nos seus procedimentos metodológicos – devem é ser ilustrativos e fortemente evocativos junto do público a que se destinam. (PONTE, 1994, p. 6).
Aqui, optamos por uma abordagem qualitativa. Os dados foram constituídos pelos seguintes instrumentos: respostas a um questionário proposto no primeiro dia de aula; registros do aluno, na resolução de atividades com problemas histórico-matemáticos; gravações em áudio de diálogos sobre as atividades; o caderno do aluno; relatório do estudante sobre a análise que realizou acerca da inserção da história no livro didático; áudio do seminário final do curso; um videoaula produzido por ele, ao final do processo; e as anotações da professora da disciplina, em diário de campo. O questionário era composto pelas seguintes perguntas: 1) O que você entende por História da Matemática e por História da Educação Matemática? 2) Você considera que a História da Educação Matemática é relevante para o ensino de Matemática? Por quê? 3) Quais experiências escolares você teve com a História da Matemática, em sala de aula? Descreva-as. 4) Em que momentos de sua formação de professor de Matemática, você teve discussões sobre História da Educação Matemática? 5) O que gostaria de aprender, no curso de Matemática, na disciplina de História da Matemática? 6) Está satisfeito como essa disciplina aparece no currículo de licenciatura em Matemática?
2 Era uma vez um aluno, uma história e uma matemática
Havíamos, no segundo semestre de 2017, concordado em atuar como um dos polos do grupo de pesquisa interinstitucional de História, Filosofia e Educação Matemática (HIFEM), a realizar investigação acerca dos potenciais da história na formação de professores de matemática. Portanto, naquele início do primeiro semestre de 2018, ficamos surpresas e desapontadas por só haver um aluno1 matriculado na disciplina. Que fazer? Em conversa, as duas autoras deste artigo concordaram que uma pesquisa nessa situação específica poderia acrescentar algo significativo à investigação que já estava em curso, em locais de trabalho de outros membros do grupo.
No entanto, percebemos que, devido a sua especificidade, a proposta a ser feita ao aluno precisaria ter algumas variantes em relação às que vinham sendo feitas com grupos de professores, em outros locais. Nestas, os professores escolhiam conjuntamente o tema histórico a ser estudado, dividiam tarefas de estudos propostas por eles mesmos e produziam textos a partir desses estudos coletivos. O tema escolhido não precisava ter relação com ensino, mas notamos que questionamentos acerca da educação em geral e do ensino de matemática, em particular, sempre se faziam presentes.
Na situação com o único aluno, por se tratar de uma disciplina de Prática de Ensino, entendemos que as atividades deveriam ter como princípio o ensino de matemática. Pressupúnhamos que o contato anterior que ele havia tido com História da Matemática teria sido por intermédio de livros didáticos, em que pequenos fatos históricos são contados no início ou fim de uma unidade, sem qualquer conexão com a construção dos conceitos. Tal hipótese se confirmou nas respostas do questionário inicial, em que o licenciando afirmou:
Na escola, tive pouco contato com história da matemática, em sua grande maioria foram citações históricas de quem foi Pitágoras, Descartes. As poucas experiências históricas em sala de aula foram quando o professor introduziu o descobrimento da contagem, os números naturais, primeiras representações de números, etc. Assim como uma atividade de copiar o conhecimento histórico dos poliedros de Platão, juntamente com uma breve explicação de quem foi Platão, colhida do livro didático
(Resposta a questionário, 03/05/2018).
A resposta do licenciando vai ao encontro do que apontam Dejić e Mihajlović (2014). Em pesquisa realizada entre os anos de 2012 e 2013, com 112 professores de matemática, na Sérvia, os autores indicam que 80% desses docentes utilizam alguma história da matemática, em suas aulas e, destes, metade tem como fonte apenas livros didáticos.
Portanto, consideramos que o aluno deveria ter contato com atividades de ensino em que história e matemática estão indissociavelmente vinculadas, diferentemente do que se encontra em livros didáticos. Como não é simples elaborar atividades com essa perspectiva, optamos, em um primeiro momento, por levar atividades que havíamos elaborado e solicitar ao aluno que escolhesse algumas para analisar.
No primeiro dia de aula, conversamos com o estudante e apresentamos a proposta, que foi aceita por ele. Naquele primeiro contato, o aluno se mostrou introspectivo, tímido e com dificuldades de se expressar oralmente. Talvez, pelo fato de ser o único matriculado, com contato próximo e direto com a professora, não era, para ele, uma situação confortável. Durante o semestre, ele se mostrou responsável com relação à própria aprendizagem e empenhado em seus estudos.
Sugerimos-lhe que escolhesse algumas atividades dentre as preparadas por nós, a partir da História da Matemática e a de seu ensino, que as realizasse e as analisasse do ponto de vista pedagógico. Elas abordavam os seguintes temas de ensino: logaritmos, história da geometria, sistemas de numeração, tangente, seno e cônicas. Suas escolhas recaíram sobre as atividades de logaritmos e de tangente, pois, segundo o estudante, elas “aparentemente, necessitam de um pensamento mais elaborado ou mesmo mais abstrato. Em si, o fato maior é porque não os aprendi na escola” (Resposta a questionário, 03/05/2018).
A atividade de tangente buscava enfocar tanto suas representações geométricas e algébricas, quanto conceituais, a partir dos aspectos geométrico, algébrico e trigonométrico, além de ressaltar o conceito de tangente envolvido na noção de derivada. Iniciava com um problema de traçado de tangente a uma espiral, pelo método de Arquimedes, e seguia com estudos de Descartes sobre tangentes a uma curva. Em seu final, a atividade abordava aspectos do conceito de tangente, envolvidos em cálculos de derivadas. O estudante afirmou que seu gosto por espirais teria sido um dos motivos de ter optado por essa atividade (Resposta a questionário, 03/05/2018). Além disso, no dia da apresentação de seu seminário, o aluno relatou também que sua escolha recaiu sobre esse tema, pois o conceito de tangente não tinha “muita importância na escola. Não conheci nada da mesma maneira que a atividade oferece” (Seminário, 08/06/2018).
Em seu seminário, o licenciando asseverou que
a maioria das coisas [de tangente] eu já sabia fazer. Já tinha visto em cálculo para fazer derivadas por conta de algumas definições, a gente usa isso muito. Bom, [a atividade] contemplou [a expectativa] na perspectiva histórica, porque fazer e dizer que é, é fácil, mas, agora, fazer e dizer porquê é assim é totalmente distinto
(Seminário, 08/06/2018).
Aqui observamos uma crítica do aluno em relação ao ensino de matemática escolar que, na maior parte das vezes, apresenta definições e regras e não explicita o porquê delas. Além disso, esse trecho do seminário nos remete a uma das funções que podem ser desempenhadas pela história, nas aulas de matemática, qual seja, a de desnaturalizar o conhecimento matemático e explicitar o porquê de conceitos e regras serem do modo como estão, no currículo escolar atualmente (MIGUEL, 1993; NOBRE, 1996).
A percepção da necessidade de explicitar o porquê de definições, regras e conceitos a seus futuros alunos fez com que o licenciando, em seu videoaula, não abordasse a questão da tangente à espiral de Arquimedes, como observamos no trecho abaixo:
Aluno: A partir da tangente da espiral de [Arquimedes] - estou até agora tentando entender como ele [Arquimedes] conseguiu transportar o comprimento do arco para o comprimento de um segmento2. Tipo... eu consegui calcular isso, mas, pô! Como que ele conseguiu fazer isso? Eu entendo porque, mas eu não entendo como que na época dele conseguiu transportar aquilo. Até agora fico pensando [...] Tanto que, na parte de fazer um vídeo, eu só fiz a questão da reta normal com a reta tangente. Porque realmente, se eu for fazer vai ser da maneira mais fácil, vou pegar como calcular o comprimento do arco, aliás, o próprio Geogebra me dá isso, eu transporto. Mas, por quê? como vou explicar aquilo? Eu não vou fazer um vídeo em que eu não vou conseguir explicar o que eu fiz.
Professora: você acha que a história ajuda a justificar?
Aluno: Ajuda. Mas, não consigo entender o contexto
(Seminário, 08/06/2018).
Esse trecho explicita que o aluno não se satisfaz mais apenas com uma explicação lógico-matemática, mas que percebe a necessidade da explicação histórica e a de estudar mais profundamente o contexto, para compreender como Arquimedes teria feito a transferência da medida de um arco para um segmento para, assim, poder explicar esse processo a seus prováveis alunos. A história desempenharia aqui uma função de instrumento de conscientização epistemológica (MIGUEL, 1993), uma vez que o estudante colocou o questionamento sobre dificuldades que possivelmente Arquimedes teria enfrentado, para traçar a tangente à espiral, sem os recursos conceituais e tecnológicos atuais.
A atividade de logaritmos iniciava-se com a sua definição, a partir de progressões algébricas e geométricas (PA e PG), encontrada em um livro didático do início do século XX. Em seguida, apresentava uma tabela que deveria ser preenchida a partir do modo como, segundo o livro História da Matemática de Carl Boyer, Napier (1550-1617), teria desenvolvido sua ideia inicial de logaritmos. Depois, propunha a construção de uma tábua de logaritmos na base 10.
Conforme o aluno, sua opção pelo estudo de logaritmos ocorreu, porque “esse foi o único tema que não tive nenhum contato na escola e também por não ter visto esse tema estruturado dessa maneira” (resposta a questionário, 03/05/2018). Além disso, em sua apresentação do seminário, ele afirmou que havia aprendido logaritmos na universidade, apenas para fazer cálculos.
O aluno relatou que “ao ter o primeiro contato com a atividade, tive a impressão de que não seria um conteúdo que iria exigir tanto para se compreender o que pedia, pois mesmo não tendo tido contato com logaritmos na escola, frequentemente os utilizo em cálculos” (Resolução das atividades, 24/05/2018). Aqui, o estudante relata sua crença em que seus conhecimentos de regras de cálculo com logaritmos lhes seriam suficientes para resolver as questões propostas. No entanto, conforme anotações em seu caderno, mesmo sabendo parte dos conceitos envolvidos, como as questões não exigiam apenas um saber sobre regras, o licenciando teve dificuldades em resolvê-las, além de perceber que seu conhecimento sobre a linguagem matemática não lhe foi suficiente para transcrever a definição de logaritmo encontrada em livros antigos para a notação e rigor atuais. No processo de formação de professores, é importante que eles vivenciem e analisem as dificuldades que podem se apresentar na transformação de uma forma de representação em outra, por exemplo, da língua materna para a algébrica ou da algébrica para a geométrica, pois essas transformações ocorrem com grande frequência, nas aulas da escola básica, e, por vezes, dificultam, ou mesmo impedem, o acesso de alunos ao conhecimento matemático. Tais transformações eram exigidas nessa atividade.
Em seu seminário, o estudante afirmou que
Primeira parte [da atividade] a que seria um pouco óbvia, é fazer a correspondência entre logaritmos e logaritmandos. Praticamente mais simples, mais compreensível, não fica, tipo: definição de logaritmo é essa, mas se esse número elevado a alguma coisa resulta nisso. A atividade possibilitou fazer as relações das propriedades dos logaritmos de maneira mais ampla do que uma definição que a gente vê hoje
(Seminário, 08/06/2018).
Tzanais e Thomaidis (2000) afirmam que o significado de um conceito, teorema ou método, não é completamente determinado por sua definição moderna, e a história da matemática pode sugerir tanto caminhos alternativos para abordá-los, quanto uma variedade de condições, a partir das quais podem ser compreendidos.
Nossos dados indicam que foi possível ao aluno compreender o contexto histórico de criação dos logaritmos, pois
você conhece de onde surgiu a ideia, como foi desenvolvida, para que serviu naquele contexto histórico de Napier [e para] os outros matemáticos contemporâneos a eles. Interessante!! Na verdade, a ideia dele é uma coisa que para época era “fora da casinha”, mistura geometria outras áreas [...] para encontrar uma ferramenta
(Seminário, 08/06/2018).
Esse trecho explicita a história desempenhando um papel de instrumentalizar o professor para responder à questão “para que serve isso?”, frequentemente feita por alunos em aulas, pois, de acordo com Brito (2007), a história pode colaborar para que o professor analise quais problemas levaram ao desenvolvimento de teorias matemáticas, sejam eles advindos desse próprio campo do saber ou de outros, ou de necessidades práticas.
Como conclusão dessa parte da sequência didática, o aluno revela que percebeu que a história pode ser uma fonte de métodos de ensino (MIGUEL, 1993), porém levanta algumas dificuldades para tal:
O professor deve saber mais do que aquilo que ensina. Provavelmente ensinará da maneira usual, mas se der tempo ele pode escolher e dar aula com uso da história como metodologia de ensino. No estágio, percebi que todos os professores seguiam o livro, mas é uma necessidade. Vejo que é pela falta de tempo
(Seminário, 08/06/2018).
A primeira dificuldade, como mostra o trecho acima, é o conhecimento do professor acerca da história e de como integrá-la às aulas de matemática. Tal dificuldade é apontada também por vários autores, cujas pesquisas abordam esse assunto. Assim, conforme Ferreira e Rich (2001), professores falam sobre os benefícios de tal integração, mas destacam o pouco conhecimento de como fazê-la. Brito, Santos e Teixeira (2009) realizaram uma pesquisa sobre a visão de licenciandos acerca do uso da história como recurso metodológico, e eles, de acordo com essas autoras, apontam como alguns entraves para tal uso: a falta de conhecimento de história da matemática por parte dos futuros professores; a dificuldade de acesso a fontes históricas; a pouca existência de atividades com essa abordagem metodológica; além do tempo escasso para preparação de aulas e para desenvolvimento do currículo em aula.
O tempo tem se mostrado um obstáculo, para que professores inovem em suas aulas, pois, segundo Tardif et al (2001),
a estrutura temporal da organização escolar é extremamente constrangedora para os docentes, porque de alguma maneira, ela empurra constantemente para frente, obrigando-os a repetir esse ciclo colectivo e abstrato que não depende da lentidão ou rapidez de aprendizagem dos alunos. O tempo escolar é um tempo social e administrativo imposto aos indivíduos, é um tempo forçado
(TARDIF et al, 2001, p. 42).
A adoção de livros didáticos também não tem colaborado para que a história possa fazer parte das aulas de matemática, conforme observou o aluno, tanto em seu Seminário, no trecho anteriormente citado, como na atividade de análise de elementos históricos em livro didático de matemática do segundo ano do ensino médio. Em seu relatório, o estudante apontou algumas situações encontradas no livro, como o processo de Arquimedes para a determinação do comprimento da circunferência, que é utilizado posteriormente em um exercício; o contexto de uso das matrizes na China da Antiguidade; além de várias biografias. Ele concluiu que a história era mobilizada no livro,
na introdução ou final de um conceito ou conteúdo, e no final do capítulo como outros contextos, sendo aqui descrito a origem de um tema ou de um conceito específico. Aparece também no meio dos capítulos como leitura (breve em geral, biográfica) e como curiosidade (também biográfica)
(Relatório, 01/06/2018).
Além disso, na discussão com a professora sobre essa atividade, o aluno afirmou que os aspectos históricos evidenciados pelo livro didático seriam superficiais e não acrescentariam à aprendizagem dos alunos. Tais observações desencadeadas por essa atividade vão ao encontro do que afirmam Ferreira e Rich (2001):
Still another reason why history has not been integrated into school mathematics concerns the ways, if any, in which textbooks typically address the history of mathematics, mostly limited to an inclusion of a few historical notes (generally, biographies and curiosities) at the end of each chapter
(FERREIRA, RICH, 2001, p. 71).
A aula em forma de vídeo foi uma opção do estudante, que fez uma exposição sobre tangente mobilizando história e a tecnologia – vídeo e o Geogebra -, como recursos didáticos. A aula seguiu um modelo expositivo, mas indicou a preocupação do aluno em explicitar detalhadamente os conhecimentos envolvidos no traçado de uma tangente a uma curva.
Queremos ressaltar que a integração da história em aulas de matemática não prescinde do recurso tecnológico, pois, para lidar com a complexidade matemática e histórica da sequencia didática proposta por nós, o aluno recorreu a livros na internet e, entre eles, encontrou o livro didático do início do século XX, que servira de inspiração para a primeira atividade de logaritmos; assistiu a videoaulas do professor João Bosco Pitombeira, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RJ), no YouTube, sobre o contexto de criação de logaritmos e de como eles foram utilizados por diferentes matemáticos, em diferentes épocas; pesquisou artigos em inglês e até em italiano, para tentar compreender o processo de traçado à tangente de Arquimedes. Tais ações indicam o envolvimento do licenciando com as atividades propostas. Após todo esse processo, os conhecimentos do licenciando se ampliaram, não apenas em relação aos conceitos matemáticos envolvidos e às questões sobre o ensino escolar dessa disciplina, mas também no que se refere a possíveis fontes de estudo que também poderão ser utilizadas, futuramente, em suas aulas. Segundo o aluno, “em si, a atividade foi extremamente importante, pois mostrou como a história da matemática pode desenvolver conhecimentos matemáticos e sua importância para o ensino e compreensão dos mesmos” (Depoimento em áudio, 07/06/2018, grifo nosso).
3 Considerações
As investigações desenvolvidas pelo HIFEM têm apontado os potenciais da história para a formação de docentes de matemática. No entanto, as pesquisas anteriores desse grupo de pesquisa haviam sido feitas em grupos colaborativos de professores, o que acarretou uma dúvida com relação aos resultados positivos obtidos por essas investigações: teriam sido eles acarretados pela problematização histórica, ou pela dinâmica do grupo colaborativo? Sem negar esta última hipótese, o estudo de caso aqui relatado trouxe um novo elemento à discussão sobre o tema, ao indicar que, mesmo não sendo realizada em um grupo colaborativo, a história pode colaborar com a ampliação tanto de conhecimentos matemáticos de professores, quanto de seus questionamentos acerca do ensino escolar da matemática.
Observamos que a sequência didática para análise da inserção da história na formação do professor de matemática, realizada por nós, veio ao encontro dos pressupostos apresentados no PDI da UNILA, pois foram ressaltados aspectos de interdisciplinaridade do conhecimento; mobilizou-se a interculturalidade, por levar o aluno a refletir sobre o como e o porquê de pessoas, em outros momentos históricos e culturas, terem produzido e ensinado matemática, conforme vimos nos questionamentos do estudante sobre Arquimedes, Napier, e sobre o modo como logaritmos eram ensinados no começo do século XX; além de favorecer o multilinguismo, uma vez que o aluno enveredou por vários idiomas em suas investigações na internet sobre os temas tratados.
Esperamos poder, com esse modo de trabalho, colaborar também para a integração solidária de alunos advindos dos países da tríplice fronteira e de outros.