1 Introdução
O grande problema do educador não é discutir se a educação pode ou não pode, mas é discutir onde pode, como pode, com quem pode, quando pode; é reconhecer os limites que sua prática impõe. É perceber que o seu trabalho não é individual, é social e se dá na prática de que ele faz parte. É reconhecer que a educação, não sendo a chave, a alavanca da transformação social, como tanto se vem afirmando, é, porém, indispensável à transformação social.
(FREIRE, 2001, p. 98)
As discussões que trazem à tona o direito das pessoas com deficiência em ambientes escolares cada vez mais acessíveis e o respeito à diversidade e à inclusão da pessoa humana têm se tornado, nos últimos tempos, um loco de reflexão opimo. Mittler (2003), Motta (2016), Nóbrega (2016), Sassaki (2010), Stainback e Stainback (1999) são contributos que fomentam e desafiam educadores a (re)pensar o seu labor pedagógico e, para mais que isso, promover condições equânimes de acesso a uma educação inclusiva, democrática e de qualidade.
É mister, todavia, sublinhar que a educação inclusiva, mesmo preconizada e amparada em acordos internacionais, como a Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, Jomtien (1990), e a Declaração de Salamanca (1994), mostra-se em um longo processo de construção que envolve a transformação do sistema educacional, a reformulação de projetos políticos pedagógicos, a sensibilização de gestores, docentes e discentes, além da erradicação das barreiras, sobretudo as de atitude e de comunicação.
Em vista disso, corroboramos o asserto de Freire (2001, epígrafe), em que o trabalho docente se dá no afã educativo, compreendendo que a educação está relacionada com a garantia de permanência, progressão com qualidade e equidade nas oportunidades que respeitem a individualidade de cada sujeito como parte do compromisso com a inclusão educacional das pessoas com deficiência, mormente a de estudantes com deficiência visual. Este ensaio teórico, cujo objetivo é apresentar a audiodescrição de imagens estáticas enquanto ferramenta de adequação pedagógica contributiva para o acesso às significações das imagens por meio da palavra (linguagem) pelos estudantes com deficiência visual, apresenta-se, assim, como elemento que coopera para que docentes, em sala de aula, eliminem a inacessibilidade às imagens presentes nos exercícios com vista à autonomia e ao empoderamento dos estudantes.
Ensaio teórico, de acordo com as discussões de Nascimento (2010), pode ser compreendido como um estudo discursivo e formal que consiste em uma exposição lógica e reflexiva. De acordo com Meneghetti (2011, p. 323), o ensaio pode ser considerado um “meio de análise e elucubrações em relação ao objeto, independentemente de sua natureza ou característica”.
Mesmo prevista nos dispositivos legais, como o Decreto nº 5.296/04, que vem sendo instituído aos poucos, a audiodescrição, como ferramenta que colabora para a eliminação da barreira comunicacional, ainda não está presente nas salas de aula brasileiras, tampouco no material didático.
Nos estudos de Nóbrega (2016, p. 91), a audiodescrição é definida como sendo um dispositivo “[...] para acessar uma dada realidade. É pintar o vazio por meio das palavras, suscitando a construção da imagem. O ‘como é’ uma pessoa, os aspectos físicos, os ambientes, os objetos, as ações e as expressões. É transformar imagens em palavras [...]”.
De acordo com Lima, Lima e Vieira (2009):
A áudio-descrição implica em oferecer aos usuários desse serviço as condições de igualdade e oportunidade de acesso ao mundo das imagens, garantindo-lhes o direito de concluírem por si mesmos o que tais imagens significam, a partir de suas experiências, de seu conhecimento de mundo e de sua cognição
(LIMA, LIMA, VIEIRA, 2009, p. 3).
Partindo dessa premissa e assegurando que, em sala de aula, incontáveis são os recursos e as estratégias que favorecem a inclusão de estudantes com deficiência visual, como áudio-livros, pautas ampliadas, softwares, sintetizadores de voz, livros em Braille e demais ferramentas que podem ser ajustadas, a audiodescrição mostra-se como um expoente recurso de tecnologia assistiva1 na inclusão educacional.
O presente ensaio teórico tem como objetivo apresentar a audiodescrição de imagens estática de um livro didático enquanto ferramenta de adequação pedagógica contributiva para o acesso às imagens por estudantes com deficiência visual sem a pretensão, no momento, de uma aplicação empírica com o público-alvo.
Assim, ao final do texto, apresentaremos exemplos de audiodescrição de atividades de livros didáticos, a fim de que possamos refletir sobre a possibilidade de realizarmos as adequações e garantirmos a acessibilidade visual dos estudantes da educação básica.
2 Desenvolvimento
A visão, como bem sabemos, é um dos cinco sentidos cruciais da vida humana. É ela que integra as demais capacidades e permite, dessa forma, associar o som e a imagem. É por meio dela, desde os primeiros momentos da nossa existência, que é possível diferir cores, captar os estímulos luminosos, identificar pessoas e objetos, perceber formas, tamanhos, distâncias. De acordo com Farrell (2008, p. 15): “a visão indica cor, tom, contraste, perspectiva, profundidade, tamanho, forma, opacidade ou transparência, reflexão, intensidade e duração da luz e possibilidade do uso da televisão, impressão visual, fotografias, e assim por diante”.
A visão é o sentido responsável por até 80% das nossas impressões com o meio que nos cerca; os olhos são as extensões e o cérebro, o órgão responsável, fisiologicamente, pelo processo de enxergar uma imagem (NÓBREGA, 2016). É de suma importância ponderarmos a respeito do comprometimento ocasionado em alguma das partes que compõem o sistema visual, tendo em vista que, na escola, muitas vezes, pessoas com algum tipo de incapacidade são tachadas com outras deficiências que não fazem parte de suas características.
Entendemos que a deficiência visual é a diminuição parcial ou total da visão. Ela pode ser caracterizada como sendo de origem congênita (quando ocorre desde o nascimento) ou adventícia, a usualmente conhecida como “adquirida” (quando acontece posteriormente, por motivos orgânicos ou acidentais).
Cabe salientar que a deficiência visual engloba dois grupos de condições dissemelhantes: a cegueira e a baixa visão. Avultamos, aqui, os pontos de vista clínico e educacional.
De acordo com o artigo 5, alínea ., do Decreto Federal nº. 5.296, de 2 de dezembro de 2004, podemos compreender a deficiência visual como cegueira, com acuidade visual igual ou menor que 0,05 no melhor olho. Já na baixa visão, a acuidade é entre 0,3 e 0,05 no melhor olho (BRASIL, 2004).
Dessa maneira, na visão clínica, a cegueira pode ser entendida como a perda total da visão. Assim, a pessoa com deficiência visual adota recursos para ter acesso a determinadas situações que teria com o uso da visão propriamente dita. A acuidade visual, nesse sentido, é a capacidade de identificarmos o objeto, bem como sua forma, contorno, posição, movimento etc. A baixa visão, conforme o decreto supramencionado, pode ser entendida como menor perda visual e, dessa forma, a pessoa pode usar recursos para o melhor aproveitamento da visão.
Quanto às causas da cegueira e baixa visão, o Conselho Brasileiro de Oftalmologia (2015) destaca a catarata, o glaucoma, a retinopatia diabética, a retinose pigmentar, entre outras. No que tange às causas da deficiência na criança, há destaque para o albinismo, a deficiência de vitamina A, a rubéola, a toxoplasmose, a meningite, entre outras.
Na visão educacional, a cegueira e a baixa visão são concebidas em termos da funcionalidade, da qualidade e do aproveitamento visual, de acordo com a estimulação apresentada por cada estudante. Nessa perspectiva, Bruno e Mota (2001) consideram:
Pessoas com baixa visão – aquelas que apresentam “desde condições de indicar projeção de luz até o grau em que a redução da acuidade visual interfere ou limita seu desempenho”. Seu processo educativo se desenvolverá, principalmente, por meios visuais, ainda que com a utilização de recursos específicos. Cegas – pessoas que apresentam “desde ausência total de visão até a perda da projeção de luz”. O processo de aprendizagem se fará através dos sentidos remanescentes (tato, audição, olfato, paladar), utilizando o Sistema Braille como principal meio de comunicação escrita.
(BRUNO; MOTA, 2001, p. 34-35).
Corroborando essa definição, cabe destacar as contribuições de Lázaro e Maia (2009, p. 21) no que tange à cegueira e à baixa visão:
A deficiência visual é uma categoria que inclui pessoas cegas e pessoas com baixa visão. Educacionalmente, a pessoa cega utiliza o sistema Braille para leitura e escrita. A pessoa com baixa visão pode ler tipos impressos ampliados.
(LÁZARO; MAIA, 2009, p. 21).
No que concerne à baixa visão, Carvalho et al. (1994 apudGASPARETO, 2007) destacam que visão reduzida ou visão subnormal pode ser definida como:
“uma perda grave da visão que não pode ser corrigida por tratamento clínico ou cirúrgico, nem com óculos convencionais ou também pode ser descrita como qualquer grau de dificuldade visual que cause incapacidade funcional e diminua o desempenho visual” (p. 36).
Nessa perspectiva, a audiodescrição é uma tecnologia assistiva fulcral que fornece subsídios para que professores enfrentem as dificuldades de aprendizagens dos estudantes com deficiência visual “maquiadas” pela ausência de uma acessibilidade.
2.1 Audiodescrição: tecnologia assistiva para a inclusão escolar de estudantes com deficiência visual
Como compreendida a partir de profusos documentos legais, nacionais e internacionais, a educação das pessoas com deficiência demanda assistência de acordo com as necessidades de cada indivíduo. Refletir acerca de contributos que são pertinentes à aprendizagem de estudantes com deficiência é corroborar as discussões de Vygotski (1997), as quais nos rememoram que os elementos que impedem o desenvolvimento desses estudantes não são os orgânicos, mas os que a sociedade impõe.
Vygotski (1997), que aprofundou os estudos no plano da defectologia (termo utilizado em suas obras para definir defeito), propõe que a deficiência seja vista por um viés sociopsicológico em que as possibilidades possam contribuir, significativamente, para que haja a superação das dificuldades. Desse modo, para o teórico, a deficiência na pedagogia e na psicologia deve ser estabelecida como um fato social, pois, “se, no aspecto psicológico, a deficiência corporal significa um desvio social, então, no aspecto pedagógico, educar essa criança significa incorporá-la à vida, como se cura o órgão enfermo afetado [...]”. (VYGOTSKI, 1997, p. 54).
Pensar na inclusão plena dos estudantes com deficiência visual é acreditar na remoção das barreiras, sobretudo as pedagógicas, metodológicas e de aprendizagem, para incorporá-los.
Para isso, um fator primordial no processo de ensino-aprendizagem a fim de que as pessoas com deficiência tenham garantia, com qualidade, nos mais diversos ambientes educacionais é a acessibilidade. Nos termos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), a acessibilidade pode ser definida como:
Possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida.
De acordo com Sassaki (2010), renomado consultor de inclusão social, o termo “acessibilidade” começou a ser usado com mais frequência nos segmentos da reabilitação, da saúde, da educação e em outros ambientes físicos. Com as mudanças sociais, entretanto, a acessibilidade passou a não mais fazer parte, apenas, do aspecto arquitetônico, mas de todo e qualquer espaço, tendo em vista as mais diversas formas que as barreiras se manifestam e os locais em que estão presentes. Para o autor, a acessibilidade está dividida em seis dimensões que devem ser aplicadas em todos os ambientes: arquitetônica, comunicacional, metodológica, instrumental, programática e atitudinal.
Cabe, para este momento, destacarmos a acessibilidade comunicacional, na qual Sassaki prevê uma comunicação sem barreiras no contato interpessoal (face a face, língua de sinais etc.), na comunicação escrita, em que os textos sejam acessíveis em Braille, ampliados e que haja outras tecnologias para a comunicação virtual; e a acessibilidade instrumental, que destaca um ambiente de trabalho livre de barreiras nos objetos de produção, como ferramentas, máquinas, e nas ferramentas escolares, como lápis, caneta, computador, entre outros.
Estendendo o conceito de acessibilidade no cerne escolar, partilhamos dos apontamentos de Melo (2011) quando denota a acessibilidade como:
[...] preocupação da escola em todo o contexto da vida profissional, educacional, psicoemocional, política, sociocultural, buscando alternativas para apontar soluções na derrubada de barreiras dentro e fora do espaço físico da escola.
(MELO, 2011, p. 125)
Na sala de aula, todas as formas manifestadas de acessibilidade são cruciais para o estudante com deficiência visual. Em posse do que lhe é de direito, ele pode cessar as dificuldades, sanar as barreiras e exigir mudanças.
Uma das ferramentas de acessibilidade, portanto, que abre caminhos para as demais é a comunicacional, que favorece práticas includentes e que, ainda por cima, é prevista em lei. Como um dos recursos indisponíveis e importantes para os fins didáticos existentes, destaca-se a tecnologia assistiva da audiodescrição, quanto à qual concordamos com as discussões trazidas por Bersch (2008) quando ressalta que deve ser compreendida como um recurso que promove a ampliação de uma habilidade funcional que provê maior qualidade de vida, inclusão e independência à pessoa com deficiência em sua comunicação, mobilidade e no seu aprendizado.
Por esse prisma, a audiodescrição pode contribuir para que estudantes com deficiência visual ampliem o diálogo, as informações, a comunicação e o vocabulário imagético, pois, como afirma Reily (2011, p. 26), “partimos do princípio democrático de que, se a palavra é para todos, a imagem também tem de ser”. A autora reforça a importância da acessibilidade comunicacional na sala de aula quando atesta que:
Há maneiras de tornar a imagem acessível ao cego, que tem, como todos nós, o direito de ser público (e também produtor, por que não?) da cultura imagética. É preciso realizar uma conversão semiótica [...]. A palavra do outro descreve e significa, e a pessoa com cegueira então se apropria do sentido, trazendo suas experiências pessoais de vida para a situação.
(REILY, 2011, p. 39).
A convenção semiótica destacada pela autora supramencionada é a audiodescrição, recurso da tecnologia assistiva que surgiu nos Estados Unidos, em 1974, com a tese de mestrado de Gregory Frazier, na Universidade de São Francisco. Nessa pesquisa, Frazier tratou do cinema para pessoas cegas.
No Brasil, os dados que apresentam o uso da audiodescrição são recentes. Foi em 2003, durante um Festival Internacional de Filmes sobre Deficiência, o Festival Assim Vivemos, que a audiodescrição foi apresentada. Em 2005 foi lançado em DVD o primeiro filme áudio-descrito: Irmãos de Fé; em seguida, em 2008, Ensaio sobre a Cegueira. Naquele ano também foi veiculada, na televisão, a primeira propaganda acessível, realizada pela Natura. Ainda em 2008, de acordo com Nóbrega (2016), em Pernambuco, foi formada a primeira turma de audiodescritores.
A audiodescrição é um recurso que visa à descrição essencial do que está sendo observado para que as pessoas com deficiência visual possam ter acesso às imagens por meio da fala. Cabe reforçar, no entanto, que não se trata de uma descrição qualquer, mas de um elemento contributivo e previsto em lei que visa a apreender toda e qualquer informação. De acordo com Lima, Lima e Vieira (2009):
A áudio-descrição implica em oferecer aos usuários desse serviço as condições de igualdade e oportunidade de acesso ao mundo das imagens, garantindo-lhes o direito de concluírem por si mesmos o que tais imagens significam, a partir de suas experiências, de seu conhecimento de mundo e de sua cognição.
(LIMA; LIMA; VIEIRA, 2009, p. 3).
Segundo as autoras Franco e Silva (2010, p. 23), audiodescrição consiste na “transformação de imagens em palavras para que informações-chave transmitidas visualmente não passem despercebidas e possam também ser acessadas por pessoas cegas ou com baixa visão”. Trata-se de um recurso, pois, de tecnologia assistiva que aponta para a autonomia das pessoas com deficiência visual e as alerta de que é possível, com mais essa ferramenta, ter acesso, assim como as pessoas videntes, a qualquer evento visual.
Nessa perspectiva, para que a tecnologia assistiva, em sala de aula, seja efetivada como garantia de direitos, mudanças são necessárias, bem como estratégias e recursos pedagógicos que reforcem a inclusão e a participação de todo estudante com deficiência visual.
Sendo assim, o que estamos esperando para que o recurso da audiodescrição esteja disponível para as pessoas com deficiência? As atividades escolares são repletas de cores, ilustrações, desenhos, entre outras formas que gritam aos nossos olhos, e não podem nem devem limitar e impedir o acesso dos estudantes com deficiência visual. Para que a educação respeite as diferenças, precisamos romper o remanso e contemplar todas as pessoas com um serviço essencial, de qualidade e digno por direito. Precisamos, iminentemente, ofertar uma tecnologia assistiva que proporcione tomadas de decisão e independência. Mais que isso, que professores incluam, definitivamente, a audiodescrição em suas adaptações.
2.2 Imagens estáticas: a audiodescrição como ferramenta contributiva de adequação pedagógica
Se a proposta da educação é, também, a educação pela cidadania, precisamos, imediatamente, nos esforçar para uma transformação com a intenção de respondermos às necessidades de cada estudante com deficiência, pois, como enfatiza Costa (2012), a educação pode ocupar lugar estratégico para o desenvolvimento das pessoas. O que queremos, portanto, é a eliminação das barreiras para a aprendizagem que são impostas no material didático escolar do estudante com deficiência visual.
Mesmo antes do processo de alfabetização, o estudante vidente (que vê) tem muitas noções do que é escrever. Estamos, cotidianamente, rodeados de informações visuais. Ele vê cartazes na rua, outdoors, propagandas de televisão, acessa sites e estabelece pessoas que leem e escrevem como “modelos”. Nesse aspecto, o estudante com deficiência visual não tem a mesma oportunidade, uma vez que não lhe é oferecida a acessibilidade, que é a condição para que as pessoas utilizem com autonomia qualquer espaço ou serviço.
Para que a acessibilidade se concretize, comungamos das ideias de Carvalho (2003), quando destaca que precisamos pensar acerca dos estudantes em processo de desenvolvimento que vivenciam o ensino-aprendizagem segundo suas diferenças individuais.
Como bem sabemos, a inclusão pressupõe mudanças nas estratégias de ensino, nas metodologias e na prática pedagógica, pois, como afirma Carvalho (2014, p. 115), “pensar sobre educação inclusiva significa refletir sobre a remoção das barreiras para aprendizagem e para a participação de todos em escolas de boa qualidade”.
De acordo com Carvalho (2003, p. 77), as barreiras precisam ser removidas “no currículo e nas adaptações curriculares; na avaliação contínua do trabalho; na intervenção psicopedagógica; na qualificação de equipe de educadores; em recursos materiais [...]”.
Entendemos como adequações2 curriculares as estratégias e/ou as alterações que flexibilizam o acesso e a efetivação do estudante com deficiência visual, nesse caso, aos fins didáticos.
De acordo com o Ministério da Educação (MEC, 2001), as adequações curriculares estão categorizadas em três níveis: no projeto pedagógico (currículo escolar), cujo objetivo é proporcionar condições necessárias para o estudante com deficiência no nível da sala de aula e no nível individual; no currículo da classe, que diz respeito às atividades de sala de aula, de modo que favoreça a participação e aprendizagem do estudante; e nas adaptações individualizadas do currículo, cujo foco é a atuação do professor na avaliação e no atendimento do estudante.
Sabemos que há, ainda, muito por fazer para que as instituições, de um modo geral, adotem as devidas mudanças e passem a adequar-se aos documentos legais. Carvalho (2003) proclama que:
Não se trata, portanto, de modificações na metodologia do ensino, na arrumação das salas de aula, no “clima” escolar, apenas. Trata-se da possibilidade de se modificarem objetivos, os conteúdos em sua essência e em sua sequência de apresentação [...] as adaptações curriculares de acesso ao currículo são referentes à previsão e provisão de recursos técnicos e materiais e à remoção de barreiras arquitetônicas e atitudinais que impedem ou dificultam a alguns alunos (como os surdos, os cegos e os deficientes motores e os deficientes físicos) o acesso às experiências bem-sucedidas de ensino-aprendizagem. Tais alunos, e segundo suas necessidades especiais, requerem adaptações em sua sala de aula, no mobiliário, nos equipamentos, nos recursos instrucionais e nas formas de comunicação.
(CARVALHO, 2003, p. 84)
Apresentamos a audiodescrição para que professores erradiquem as barreiras na escola, sobretudo nas imagens estáticas presentes no livro didático, fazendo que este se torne um recurso mais atraente, acessível e disponível.
Diante disso, para que o recurso da audiodescrição esteja presente nas imagens dos livros, exercícios e atividades afins como adequação pedagógica, os professores necessitam estudar sobre como realizar a tradução por meio de cursos de formação continuada nos mais diversos níveis. Aqui, como um dos caminhos a serem percorridos, realizamos a análise de duas imagens estáticas, bem como a construção do roteiro de audiodescrição para torná-las acessíveis. Seguimos alguns dos parâmetros das Diretrizes 3 para Audiodescrição e do Código de Conduta Profissional para Audiodescritores com base no treinamento e na formação de audiodescritores e formadores dos Estados Unidos, 2007-2009, traduzidos por Vieira (2009), pois “as diretrizes para a audiodescrição refletem a origem desta como um meio de tornar acessíveis as apresentações de teatro ao vivo; contudo, o espírito desses princípios aplica-se a quase todas as situações de audiodescrição” (VIEIRA, 2009, p. 5).
Para a produção dos roteiros de audiodescrição que serão apresentados aqui a título de ilustração e reflexão, adaptamos e nos baseamos nas categorias para elaboração do roteiro de audiodescrição de imagens estáticas criadas por Ribeiro (2011): 1. categoria tema no livro didático: contexto geográfico (onde?), contexto histórico (quando?), entre outros; 2. categoria tipo da imagem no livro didático: iluminura, pintura plástica, entre outros; 3. categoria coloração: vívido, opaco, brilho etc.; 4. dimensão: retrato, paisagem, entre outros. 5. categoria elementos constituintes da imagem: elementos arquitetônicos e de ambiente, como casa, favelas (palafitas), quarto, entre outros; 6. iluminação: ensolarado, nublado, escuro, noite, entardecer, amanhecer; 7. elemento humano: etnicidade, gênero, características fenotípicas, estatura, vestimenta.
As diretrizes e as categorias mencionadas foram fundamentais na construção do roteiro das imagens selecionadas. Em sala de aula, o professor pode realizar, previamente, as adequações das imagens que deseja trabalhar com seus estudantes com deficiência visual.
A título de ilustração, as imagens, bem como as audiodescrições, serão apresentadas a seguir. É mister frisar que as imagens estáticas são do livro Singular & Plural: leitura, produção e estudos de linguagem, 1ª edição, 2012, 7º ano, Editora Moderna, da autoria de Laura de Figueiredo, Marisa Balthasar e Shirley Goulart.
Fonte: elaborado pelos autores.
No quadro acima, a proposta solicita ao estudante a leitura e a observação dos quadrinhos para que sejam respondidas questões como: por que a personagem parece irritada? Desse feito, questionamos: de que maneira estudantes com deficiência visual podem ter autonomia e empoderamento para responder às suas atividades?
É importante lembrar que não é o objetivo da audiodescrição negar as limitações que a deficiência visual carrega, todavia reafirmar, assim como Vygotsky (1997), que o estudante cego, por meio das palavras e na relação com a sociedade, pode se comunicar e apreender os mais diversos significados sociais.
Fonte: elaborado pelos autores.
No quadro em questão, a atividade requer do estudante que ele perceba o sentido da palavra “água nas” duas ilustrações. É essencial reforçar que as palavras, mesmo que inseridas no texto, são imagens que contextualizam a atividade e exigem leitura, compreensão e interpretação.
O direito fundamental à educação pode ser compreendido como direito que deve ser respeitado impreterivelmente; é um direito líquido, certo e imediato, que não pode ser violado: a audiodescrição, que equipara oportunidades, desarraiga as barreiras no material didático e torna-se ponte para o acesso às imagens, quando utilizada como ferramenta adjunta ao fazer pedagógico.
Vygotsky (1997) afirma que a deficiência visual, da mesma forma como as demais deficiências, pode reorganizar o funcionamento psíquico por meio de compensações sociais, ou seja, a partir de outros caminhos que não seja o visual, já que esse está impedido. Assim, a pessoa com deficiência visual poderá, com suporte de outras vias, aprender, desenvolver-se e construir sentidos.
Na perspectiva histórico-cultural, a construção de sentidos ocorre por intermédio da mediação, sendo a palavra o principal instrumento de mediação do ser humano; é pela palavra que adquirimos os significados do mundo, acessamos os conhecimentos acumulados e interagimos com os outros indivíduos. Conforme Luria (1987), a palavra é o instrumento regular das funções psicológicas superiores, o que nos faz construir sentido por meio do processo de internalização.
Passerino e Bez (2015) mencionam que a palavra é um ato real e complexo do pensamento. A aquisição da palavra (símbolo) se dá por uma constante negociação entre os participantes em uma mediação triádica, em que vão construindo o significado de forma intersubjetiva. No caso da deficiência visual, já que há impedimentos na visão, o percurso para a acessibilidade à comunicação das imagens acontece por meio do recurso da audiodescrição enquanto artefato cultural.
3 Considerações finais
A inclusão educacional de estudantes com deficiência, como é sabido, respalda-se no direito de todos aprenderem, participarem e se desenvolverem sem que barreiras dificultem o ingresso, o acesso e a permanência com qualidade. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 9394/96), em seu artigo 59, assegura que currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos devem atender às demandas e necessidades pertinentes na escola. Diante disso, a audiodescrição apresenta-se como recurso de acessibilidade inclusiva capaz de corroborar o trabalho docente na perspectiva da adequação pedagógica e do combate à exclusão, à discriminação e ao preconceito.
É indispensável que, hoje, professores transformem suas salas de aula em espaços prazerosos, busquem tecnologias para brandir o arcabouço tradicional escolar e criem possibilidades para que os estudantes, principalmente os com deficiência visual, aniquilem a inacessibilidade às imagens presentes nas atividades de classe e nos mais diversos eventos visuais que ocorrem no espaço de formação. Conscientes da importância das imagens estáticas e da audiodescrição como instrumento pedagógico, de acordo com Motta (2016), os professores podem contribuir para que estudantes cegos e com baixa visão tenham acesso a informações descritivas, realizem leitura crítica de elementos imagéticos e ampliem o entendimento, a motivação, a participação e a repercussão positiva no processo de aprendizagem.
A audiodescrição é uma nova ferramenta de adequação pedagógica que pode debelar as barreiras contidas nas imagens e substituí-las por ações que permitam a todos o exercício pleno da democracia. Além disso, esse recurso permite que os estudantes com deficiência visual eliminem dúvidas, aprendam, apreendam, empoderem-se e, acima de tudo, equiparem as oportunidades.