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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.30 no.63 Rio Claro  2020

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v30.n.63.s13680 

Artigos

DIFICULDADES DA OPERACIONALIZAÇÃO DO ECA: AS LEIS PODEM SER ESTIGMATIZADAS?

DIFFICULTIES OF THE OPERATION OF THE ECA: CAN THE LAWS BE STIGMATIZED?

DIFICULTADES DE LA OPERACIONALIZACIÓN DEL ECA: ¿PUEDEN LAS LEYES SER ESTIGMATIZADAS?

Amanda Bersacula Azevedo1 
http://orcid.org/0000-0002-7107-7756

1Instituto federal Fluminense, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil


Resumo

Esse artigo aborda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no espaço escolar. Elabora um esboço sobre a trajetória histórica pretérita ao ECA (Lei 8.069/90), sobre os movimentos sociais que deram origem a essa Lei e como o Estatuto se tornou um instrumento legal de proteção integral, diferente do Código de Menores de 1979. Expõe sobre o conceito de Estigma de Erving Goffman, e traz uma proposta para além de Goffman: como a sociedade pode estigmatizar para além de indivíduos, tentando fazer uma unidade dialética entre a teoria de Goffman e a experiência de estágio que culminou em uma pesquisa de campo em um Colégio Estadual no noroeste do Estado do Rio de Janeiro. Como metodologia, foi aplicado um questionário com perguntas objetivas e qualitativas aos docentes que atuam na escola. Identificou-se que há um desconhecimento da Lei, assim como uma percepção “estigmatizante” que dificulta uma maior proximidade com o ECA. Discute, numa proposta provisória, as possibilidades de intervenções de Assistentes Sociais no âmbito escolar como via de enfrentamento da estigmatização do ECA.

Palavra-chave Estatuto da Criança e do Adolescente; Estigma; Serviço Social na Educação

Abstract

This article discusses the Statute of the child and adolescent (ECA) in the school space. Draws up an outline of the past historical trajectory of the ECA (Law 8.069/90) and the social movements that gave rise to this law and how the Statute has become a legal instrument of full protection, different from the 1979 Code of Minor. Exposes the concept of stigma of Erving Goffman, and brings a proposal in addition to Goffman: how society may stigmatize beyond individuals, trying to do a dialectic unity between the theory of Goffman and the stage experience that culminated in a field research in a State College in the Northwest of Rio de Janeiro. As a methodology, a questionnaire was applied with objective and qualitative questions to teachers working in the school. It was identified that there is an ignorance about the law, as well as a perception "stigmatizing" which makes difficult a greater proximity to the ECA. Discusses, in a provisional proposal, the possibilities of interventions of Social Workers in the school environment as a way to face the stigmatization of ECA.

Keywords Children and Adolescents Statute; Stigma; Social Service in Education

Resumen

Este artículo aborda el Estatuto del Niño y del Adolescente (ECA) en el ámbito escolar. Prepara un esbozo de la trayectoria histórica pasada del ECA (Ley 8.069/90), de los movimientos sociales que dieron origen a esta Ley, y de cómo el Estatuto se convirtió en un instrumento legal de protección integral, diferente del Código del Menor de 1979. Expone el concepto de Estigma de Erving Goffman y trae una propuesta más allá de Goffman: cómo la sociedad puede estigmatizar más allá de los individuos, tratando de hacer una unidad dialéctica entre la teoría de Goffman y la experiencia de prácticas que culminó en una investigación de campo en un Colegio Estatal en el noroeste del estado del Río de Janeiro. Como metodología, se aplicó un cuestionario con preguntas objetivas y cualitativas a los profesores que trabajan en la escuela. Se identificó que hay una falta de conocimiento de la Ley, así como una percepción que la "estigmatiza" y que dificulta el acercamiento al ECA. Discute, en una propuesta provisional, las posibilidades de intervención de los Asistentes Sociales en el entorno escolar como forma de hacer frente a la estigmatización del ECA.

Palabras clave Estatuto del Niño y del Adolescente; El estigma; Servicio Social en la educación

1 Introdução

Esse artigo é fruto de uma pesquisa realizada em um Colégio Estadual no noroeste do Estado do Rio de Janeiro e provém de uma inquietação em relação às falas do diretor quanto aos direitos, segundo ele, excessivos, dados aos adolescentes por meio da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Foram observadas diversas demandas que poderiam ser direcionadas ao Serviço Social, entre elas o fato de que os docentes demonstram certa resistência quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Através de um Projeto de Pesquisa pretendíamos investigar se havia, por parte dos professores, desconhecimento do ECA (Lei nº 8.069/90) e se ocorria resistência quanto a sua aplicação por entender, entre outros motivos, que o documento, de certa forma, ameaça sua “autoridade”.

Segundo Santana (2008, p. 26), o Estatuto não pode ser desconhecido por profissionais que trabalham com crianças e adolescentes por ser este um dispositivo legal que não pode ser ignorado e, portanto, demanda conhecimento. Entender o Estatuto, sua lógica e sua concepção são imprescindíveis. O Estatuto, enquanto instrumento de garantia dos direitos da criança e do adolescente, é uma lei de proteção integral diferente dos Códigos de Menores de 1927 e 1979 que dispunham sobre a situação irregular, ou seja, a criminalização da infância pobre enquanto objeto de medidas judiciais. Desta forma, o Estatuto rompe, segundo Rizzini, com o paradigma secularizado da tradição que separava “criança” do “menor” (1993, p. 147).

Podemos nos questionar se estes direitos estão sendo (de fato) garantidos e se os profissionais da educação são multiplicadores e defensores desses direitos. Sendo assim, Bazílio (2008) considera que o Estatuto significou uma grande conquista, porém, questiona se esta conquista chegou às escolas, às creches, às pré-escolas.

O trabalho com os professores, funcionários, crianças e adolescentes, famílias, visa à conscientização em torno da Lei 8.069/90 para que se possa criar uma rede de proteção dentro do espaço escolar. Falar sobre criança e adolescente, requer um amplo conhecimento de como, no Brasil, as políticas públicas foram direcionadas para a infância. Segundo Rizzini (1993),

No passado, como no presente, a trajetória da legislação relativa à infância tem sido caracterizada pela expressão de uma dualidade, que, ao defender a sociedade, ataca e aniquila a criança. E, ao defender a criança, teme estar expondo a sociedade à sua pretensa periculosidade

(RIZZINI, 1993, p. 167).

É preciso, pois, estar atento nos tempos atuais, tanto à direção das políticas sociais, quanto às atitudes tomadas dentro das Instituições, principalmente no espaço escolar, para que não se reproduza a lógica da situação irregular dos Códigos de Menores de 1927 e 1979. Criar um ambiente em que as crianças se sintam realmente protegidas integralmente de acordo com o ECA é essencial, além de responsabilizar atitudes de jovens que possam vir a cometer atos infracionais previstos em lei.

2 Breve histórico da relação entre Estado/educação/infância

No Brasil Colônia e Imperial a questão da criança e do adolescente era tratada caritativamente através da Igreja. Os primeiros jesuítas tinham a difícil missão da “conversão” dos pequenos curumins. O tráfico negreiro, intenso no Brasil, influenciou a mistura de raças e a cultura desse povo, como também trouxe lucro através do trabalho escravo e da venda de crianças negras filhos dos escravos. “A criança negra entrava para o mundo do trabalho a partir dos sete anos na condição de “aprendiz” ou “moleque” e com 12 anos, já era tida como força plena de trabalho escravo” (ARANTES, 1993, p. 178).

Segundo Arantes (1993), com a investida médico-higienista a partir de meados do século XIX, com a extinção das Rodas e o início de uma legislação específica sobre a criança nas primeiras décadas do século XX, a criança pobre deixa de ser objeto apenas da caridade e passa a ser objeto do Estado brasileiro, ainda que de forma incipiente e notavelmente pertencente a uma criminalização deste estrato da população.

Devido ao alto índice de mortalidade infantil, a necessidade de punir o que se considerava serem os delinquentes e prevenir as “faltas” (entendida como falhas), dois movimentos começaram a ser articulados, segundo Faleiros (1993) e Rizzini (1993), em torno das políticas da infância. O movimento higienista pela organização das corporações médicas e o jurídico com juízes e advogados à frente. Assim, para Rizzini (Ibid, p. 121) o movimento higienista não teve expressão muito significativa neste período – final do século XIX e início do século XX – mas abriu caminhos para o movimento jurídico, fundando-se aí as bases da Puericultura no Brasil como a “ciência que trata da higiene física e social da criança” (GESTEIRA, 1957 apud RIZZINI, 1993, p. 123).

Faleiros (1993, p. 67), ao realizar uma análise entre as ações direcionadas às crianças brasileiras e seus problemas, mostra que as obras filantrópicas foram as mais ativas desde 1908, como o Patronato de Menores, que manteve seis estabelecimentos, sendo quatro dirigidos por religiosos, fundados por juristas, advogados e desembargadores.

O primeiro Código de Menores de 1927 para Faleiros (1993, p. 63) “incorpora tanto a visão higienista de proteção do meio e do indivíduo como a visão jurídica repressiva e moralista”.

Segundo Rizzini,

(...) O que impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo todos os possíveis detalhes e exercendo firme controle sobre os menores, através de mecanismos de “tutela”, “guarda”, “vigilância”, “educação”, “preservação” e “reforma” (1993, p. 130).

Assim, segundo a autora, a legislação reflete um protecionismo, que “ao acrescentar na categoria de menor abandonado ou pervertido a frase ‘... ou em perigo de o ser’, abria-se a possibilidade de enquadrar qualquer um no raio de ação de competência da lei” (RIZZINI, 1993, p. 131).

Como área de competência jurídica, o Código de Menores de 1927 marca uma nítida diferenciação da infância, separando “crianças” de “menores” delinquentes, abandonados e ociosos, legitimando uma prática social reprodutora de desigualdades, definindo os papeis sociais (RIZZINI, 1993, p. 133).

Se nos períodos anteriores à década de 40 a questão da infância era tratada pela esfera jurídica, a partir de então, no Governo de Vargas em pleno Estado Novo, começará a direcioná-la para esfera da Assistência Social tendo em sua primeira e grande iniciativa a instituição do Conselho Nacional de Serviço Social e logo após, o Departamento Nacional da Criança - DNCr, sendo ambos subordinados ao Ministério da Educação e Saúde (FALEIROS, 1993, p. 71).

Em 1953 é desmembrado o Ministério da Saúde do Ministério da Educação. Em 1954, segundo Faleiros (1993, p. 72), a porcentagem da população matriculada no ensino primário é de 7,9% e, durante toda a década de 50 a matrícula no curso primário era de apenas 64%. Em 1950, o percentual de analfabetos entre a população acima de 15 anos era de 49,4%.

Poucos anos depois é aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959 a Declaração dos Direitos da Criança.

Uma carta de direitos sem precedentes para os cidadãos, desde a sua infância, justamente numa época que poderia ser caracterizada como a aurora de uma era de violação extrema de direitos humanos. Estávamos no limiar dos regimes ditatoriais violentos que se desenhariam em muitos países no cenário mundial, sobretudo na América Latina

(RIZZINI, 1993, p. 149).

Surgem nos anos 70 novos debates em torno de um Novo Código de Menores. Assim, em 10 de outubro de 1979 com a Lei nº 6.697/79 é aprovado o Novo Código de Menores que “adota expressamente a doutrina da situação irregular e refletia a fidelidade dos Juízes de Menores à velha lei de 1927, com adaptação aos novos tempos” (RIZZINI, 1993, p. 154).

A crise econômica agrava a situação de miséria e aumenta a população infanto-juvenil de rua, destacando a figura do menino e menina de rua, principalmente nas grandes metrópoles, desencadeando o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Os direitos da criança são colocados em evidência tendo apoio da Pastoral do Menor, CNBB, ONGs, movimentos dos direitos humanos, da UNICEF, e de alguns outros representantes da sociedade civil. Questionavam “a ‘doutrina da situação irregular’ e a prática de internar crianças pelo simples fato de pertencerem às famílias pobres” (FALEIROS, 1993, p. 89).

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA é aprovado pela lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 e passa a vigorar a partir de 14 de outubro do mesmo ano. Regulamenta os artigos 227, 228 e 229 da Constituição de 1988 estando de acordo com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, “articulando o paradigma da proteção integral considerando a criança e o adolescente como seres em desenvolvimento e sujeitos de direitos” (FALEIROS, 1993, p. 89).

O termo “menor” é descartado por entender que este diminui e alude à criança pobre e em situação irregular do antigo Código de Menores. “A lógica que se faz presente no ECA é a da ‘desjudicialização’ das questões relativas à infância” (RIZZINI, 1993, p. 163).

Rizzini (1993) aponta o ECA como uma lei que rompe com paradigmas secularizados pela tradição, sinalizando a responsabilidade e o desafio que o Brasil tem frente ao mundo, em relação ao processo iniciado.

3 O processo de estigmatização: as leis podem ser estigmatizadas?

3.1 Goffman e o conceito de estigma

Erving Goffman insere-se num grupo de autores da Escola de Chicago que escrevem compartilhando da vertente teórica do “Interacionismo Simbólico”, corrente que se opõe ao funcionalismo proposto pelo sociólogo igualmente americano Talcott Parsons que propunha uma via de análise macrossocial. O Interacionismo Simbólico centra o seu estudo nos contextos face a face da vida social, constitui uma perspectiva teórica que possibilita a compreensão do modo como os indivíduos interpretam os objetos e as outras pessoas com as quais interagem. Dentro desse processo há, segundo os autores da corrente do Interacionismo Simbólico, a condução de comportamentos individuais em situações específicas (CARVALHO et al., 2010).

Estigma é precisamente um conjunto de notas que Goffman mantinha para as suas aulas de Sociologia do Desvio. Goffman (1988) explora os detalhes da “identidade individual e social” e das relações em grupo a um nível micro sociológico observando a interação social nas ações de todos os dias e foca a sua atenção na forma como cada um desempenha o seu papel e gera a impressão que causa nos outros em diferentes contextos.

Em sua obra clássica, Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada,Goffman (1988) analisa o conceito de estigma e os sentimentos da pessoa estigmatizada sobre si própria e a sua situação perante os outros e a sociedade. Porém, cabe-nos dentro do contexto proposto analisar como se insere o processo de estigmatização e a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social, e como este processo se faz tornando o estigmatizado marcado, diferente, interpretado socialmente como um ser inferior.

Segundo Goffman (1988), a sociedade estabelece meios para categorizar os indivíduos e classificar atributos tidos como “naturais” ou “desviantes”. Assim, no primeiro momento, quando conhecemos uma pessoa, a sua aparência nos permite reconhecer alguns atributos e categorizá-los segundo sua “identidade social”, baseando-nos nas preconcepções (1988, p. 5).

As exigências que fazemos poderiam ser mais adequadamente denominadas de demandas feitas "efetivamente", e o caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em potencial - uma caracterização "efetiva", uma identidade social virtual (GOFFMAN, 1988).

Para Goffman (1988) construímos um discurso que justifique e legitime o estigma, uma ideologia, para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.

Note-se que estes tipos de estigma de caráter social são os mais amplamente “relativizáveis” em uma leitura histórica de longo prazo. Essa lista de estigmas sociais, tal qual apresentada, representa, evidentemente, o que pode ser considerado como comportamento desviante na sociedade norte-americana de onde Goffman escrevia. Aqui é possível debater quais poderiam ser estes comportamentos e por que não outros, sendo caracterizações eminentemente contingentes e não absolutas, portanto.

3.2 Para além de Goffman: as leis podem ser estigmatizadas?

Segundo as análises contidas sobre estigma, é necessário considerar uma unidade dialética entre teoria e prática que, segundo Vasconcelos (1998, p. 116) “não é obtida apenas a partir das referências teórico-metodológicas, mas tendo como base a qualidade das conexões que os profissionais estabelecem com a realidade, objeto da ação profissional”.

Assim, para Vasconcelos (1998), o objeto de ação dos Assistentes Sociais é a realidade social, sendo a pesquisa uma das estratégias que envolvem academia e meio profissional. Portanto, a Pesquisa é o caminho necessário para a compreensão dos fenômenos sociais particulares com os quais o Assistente Social lida no seu cotidiano, “alimentando a elaboração de propostas de trabalho fincadas na realidade e capazes de acionar as possibilidades de mudança nela existentes” (IAMAMOTO, 2007, p. 262).

3.3 Metodologia e dados da Pesquisa

Através do Projeto de Pesquisa foi aplicado, num determinado Colégio Estadual, 22 (vinte e dois) questionários direcionados somente aos professores deste Colégio – professores do Ensino Fundamental e Ensino Médio. Assim, pretendíamos com essa pesquisa buscar dados sobre a realidade vivenciada pelos professores, seus receios em relação ao Estatuto (Lei 8.069/90) e suas dificuldades para entender e aplicar a Lei e qual o nível de conhecimento que detinham sobre o documento, mas também, se ocorria alguma resistência à sua aplicação gerada, entre outros motivos, pelo entendimento de que o ECA ameaça, de certa forma, a sua “autoridade”.

As entrevistas semiestruturadas foram aplicadas por meio de um questionário formulado previamente e as repostas dos docentes foram marcadas e escritas no questionário pelo entrevistador de acordo com as respostas do entrevistado. As respostas abertas foram categorizadas e analisadas por grupos sendo mensuradas em porcentagens. Contudo, em detrimento das limitações de um artigo, serão apresentadas somente as respostas em quantidade numérica para as questões objetivas e algumas respostas que mais apareceram nas perguntas abertas.

Em uma das questões objetivas perguntamos se o professor tinha algum conhecimento acerca do ECA (Lei nº 8.069/90), sendo que das 22 respostas, 12 disseram conhecer e 10 conheciam vagamente.

Perguntamos se acreditava que o Estatuto influencia e/ou interfere em sua atuação enquanto professor, obtendo 10 respostas SIM, nove respostas NÃO e três que responderam não ter uma opinião formada sobre esta pergunta. Nessa questão perguntamos aos 10 que responderam SIM, o porquê da sua resposta. Nas justificativas, obtivemos, grupos de apontamentos que podemos identificar como uma visão negativa quanto ao Estatuto como: “afeta negativamente”, “esqueceram dos deveres”, “os alunos ameaçam os professores”, “os professores perderam a autoridade”, “não entendem para que serve o ECA”, “uma pessoa disse que o ECA obriga os alunos a irem à escola”.

Perguntamos aos professores entrevistados o que pensam sobre a existência de uma dificuldade por parte do corpo docente em compreender o ECA e aceitá-lo como um facilitador do processo educacional. No grupo de respostas, 13 disseram que existem dificuldades de os professores compreenderem a lei, seis acham que não existem dificuldades e três não têm opinião sobre o assunto. Algumas respostas apareceram de forma mais qualitativa na mesma pergunta, por essa ter sido aberta, assim, apresentaremos algumas dessas respostas, como: “os professores não querem, não entendem ou não conhecem a lei”; “não têm tempo para entender a lei”; “não têm dificuldade de entender”; “o ECA é bem-vindo no Colégio”; “o ECA representa uma ameaça”.

Finalmente perguntamos como esses professores avaliam os preceitos do ECA de acordo com a realidade vivenciada com os alunos em sua escola. Essa pergunta foi objetiva, sendo que 16 professores disseram que a Lei está distante da realidade vivenciada na escola e para seis docentes o ECA está de acordo com a realidade. Nessa questão, solicitamos que os docentes justificassem suas respostas. Assim, a maioria (14), não quiseram justificar sua resposta. No grupo dos que justificaram, três disseram que auxilia na proteção dos alunos; dois acham que as crianças se sentem mais protegidas; um disse que não tem incentivo do Colégio quanto ao ECA; um acha que as crianças ficaram mais rebeldes e, para um docente, ninguém conhece o ECA no Colégio.

3.4 Análise dos dados à luz da teoria

Em seu livro, Erving Goofman (1988, p. 20) cita vários exemplos de estigma. O preconceito é um conceito prematuro, sem conhecimento prévio e que pode produzir o estigma, tornando o outro como desonroso ou em descrédito. Nesse contexto, cabe relativizar o estigma de Goofman que se faz entre pessoas com o que sugere uma visão, possível, de estigma de pessoas em relação a uma Lei.

Ao trazer pontos de análises de Goofman sobre o significado empírico de estigma (entre pessoas), há a existência inicial de uma discrepância entre a “identidade virtual” e a “identidade real”. A identidade virtual são as impressões que um sujeito faz em relação ao outro e que tem por base aquilo que esse sujeito espera do outro, significada e idealizada por ele em relação ao outro. Um sujeito, ao idealizar uma Lei sem, contudo, ter um conhecimento aprofundado dela, interpreta esse objeto prematuramente, podendo colocá-lo ao nível do descrédito com uma visão estigmatizante.

A pesquisa aponta uma visão distorcida pela maioria dos docentes pesquisados em relação ao ECA. Mesmo a maioria dizendo conhecer – 12 e 10 dizendo conhecer vagamente, as repostas sugerem um senso comum e não técnico por parte dos professores. Todos os entrevistados tinham cursos de nível superior o que sugere uma qualificação e conhecimento aprofundado da Lei.

Não conhecer o ECA de forma adequada e não aplicar sua lógica faz com que as regras contidas no direito não sejam aplicadas adequadamente, tornando-se assim, muitas vezes, ineficaz na sua realidade, com efeito de afastamento da realidade vivenciada na escola, e para citar Goffman, o ECA “acaba por ser desacreditado frente a um mundo não receptivo” (1988, p. 20). É essa discrepância que podemos perceber entre o virtual e o real.

Estamos imersos num modelo capitalista com grandes desigualdades sociais que geram várias expressões da questão social como: violência, drogadição, prostituição, abandono de crianças e adolescentes por parte de seus responsáveis, trabalho precoce, entre outras. Assim, estas questões são manifestadas também dentro do espaço escolar.

O ECA, por ser um mecanismo de proteção a crianças e adolescentes garantido pelo Estado brasileiro, por si só não imputa proteção, sem que tenham pessoas que o tornem possível. Por outro lado, também não faz com que os professores percam sua “autoridade”, ou que os alunos possam “ameaçar os professores com esta lei” se não houver, por parte do professor uma dicotomia entre sua atuação e a proteção que garante o Estatuto. Em outras palavras, só haverá ameaça se, por parte dos professores estiver havendo agressão, seja verbal, física ou institucional aos alunos. Isso se referindo a ameaça mediante ao chamamento da lei, ou seja, quando a criança ou adolescente refere-se ao ECA como forma de responsabilização e proteção.

Destarte, é preciso que os professores façam uma reflexão sobre sua prática profissional. Concebe-se então, que o problema da falta de respeito ou “que tira sua autoridade”, não está no Estatuto, mas podem ser diversas questões como: falta de limites em sua formação familiar, desinteresse escolar por parte do aluno, falta de uma didática adequada aplicada pelo professor, violações sofridas pelo estudante em outros ambientes e reproduzidas na escola, entre outras possibilidades. Lembrando que o próprio ECA prevê punições com medidas socioeducativas aos adolescentes e penas aos adultos violadores de direitos. Assim, retira o foco das possibilidades em torno da falta de respeito citadas e transfere para o ECA, surgindo aí uma “identidade virtual” sobre a lei.

Ao construir um discurso que justifique e legitime o estigma, como: “Coloca muitos direitos e esquecem-se dos deveres”, “Os alunos ameaçam o professor com essa lei”, “Perdemos a autoridade”, “o ECA representa uma ameaça”, ou “o ECA é uma “eca”, percebemos falas por parte dos docentes que inferiorizam e que se utilizam de termos específicos, estigmatizantes. Essa situação pode criar problemas no processo de formação de uma cultura societária que interprete positivamente um projeto social de garantia e promoção de direitos, permanecendo, assim, uma concepção, ao cabo, punitiva do aparato jurídico e estatal.

Assim, ao abordar a questão de que o Estatuto da Criança e do Adolescente está em risco, Bazílio (2008) parte da premissa de que o Estatuto está em risco, não por ser frágil ou equivocado nas suas proposições ou lógica interna, mas pelo fato de seu texto não estar sendo compreendido e as práticas não se encontrarem à altura de sua utopia. “Seja por ignorância do texto legal por parte da população ou autoridades, seja por descaso, o Estatuto da Criança e do Adolescente consegue ser ao mesmo tempo desconhecido e criticado” (BAZÍLIO, 2008, p. 40).

Diante do exposto, nos deparamos com a outra face do estigma, que no nosso caso se transfere aos sujeitos que do Estatuto dependem: as Crianças e os Adolescentes. Ao desconhecer o Estatuto, criticá-lo, estigmatizá-lo, corre-se o risco de não o aplicar. É como discute Goffman (1988), guardadas as devidas proporções contextuais, que ao citar o estigma tribal, por pertencerem a uma determinada família, seus descendentes sofrem esta estigmatização.

É pertinente trazer aqui as reflexões que Bazílio (2008) coloca,

Ao abordar as interações das crianças nas creches e pré-escolas, nos deixamos inquietar pelas práticas e interações estabelecidas com essas mesmas crianças fora do contexto institucional? É verdade que tivemos conquistas significativas com o Estatuto da Criança e do Adolescente; mas essas conquistas chegaram às escolas, às creches, às pré-escolas? Quantas crianças e jovens vítimas de maus tratos e abusos sexuais contam com suas professoras para falar do que sofrem, procurar ajuda e obter encaminhamento?

(BAZÍLIO, 2008, p. 15).

Ao dizer que o ECA “não pode mudar nada dentro do colégio” ou que “o Estatuto não faz diferença na realidade vivenciada na escola”, esses professores demonstram desconhecimento técnico e um exercício profissional não condizente com sua formação. Desconsideram todo o processo dos movimentos sociais que levaram à criação da Lei e à decisão política da maioria dos legisladores que o aprovaram e da Presidência da República que a homologou. A omissão estatal das instituições de ensino na formação continuada desses profissionais também contribui para que possíveis violações dos direitos previstos, em especial nos artigos 18-A e 18-B do ECA, possam acontecer no ambiente escolar pelos docentes que podem ser punidos conforme prevê o Art. 245 do ECA. E mais, ao colocá-lo como uma ameaça à sua autoridade, o docente esvazia o que preconiza o Estatuto sobre a proteção integral. Assim, não se cria uma rede de proteção onde todos os atores deveriam estar envolvidos – professores, funcionários, pais e/ou responsáveis, Conselho Tutelar, dentre outros.

Dentro dessa lógica, segundo Santana (2008, p. 27), quem trabalha com criança e adolescente não pode desconhecer o Estatuto, sendo este um elemento importante enquanto demanda de trabalho, portanto, as instituições devem trabalhar com o Estatuto, com sua lógica e concepção, caso, de fato, estejam comprometidos com uma das finalidades da educação, conforme a LDBEN Art. 2º, que consiste no “preparo para o exercício da cidadania” (BRASIL, 1996).

Sendo uma demanda a necessidade de se trabalhar com o ECA e sua lógica na garantia de direitos de crianças e adolescentes no ambiente escolar, abordaremos sobre o trabalho dos Assistentes Sociais dentro do espaço educacional e como este trabalho pode se tornar uma via de enfrentamento da estigmatização do ECA.

4 A interdisciplinaridade e a atuação do serviço social no espaço educacional

O trabalho interdisciplinar no ambiente escolar, onde o Assistente Social possa estar inserido, sugere diferentes metodologias de trabalho por profissionais com formações específicas. Segundo Melo e Almeida (2000), o uso do termo da interdisciplinaridade agrega diferentes objetivos colocados em três tendências: os pioneiros (interdisciplinaridade para um conhecimento mais completo); os críticos da primeira tendência (fetiche da pan-interdisciplinaridade) e os teóricos da complexidade (interdisciplinaridade como resposta aos objetos complexos).

Será usada a terceira tendência, pois trata-se de reconhecer que a interdisciplinaridade se torna uma necessidade na produção de conhecimento quando se considera o caráter dialético da realidade social de acordo com a leitura crítica do conceito, que busca superar a alienação e exclusão social a partir dos debates plurais com os diferentes, instrumentalizando a atividade técnico-profissional em face da realidade sobre a qual se propõe atuar.

Na sociedade a produção e reprodução dos meios de vida estabelecem determinados vínculos e relações sociais que se expressam por dentro do processo capitalista de produção. Sendo assim, “a produção social não trata somente de produção de objetos materiais, mas das relações sociais existentes entre pessoas que determinam sua classe social e personificam categorias econômicas” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2007, p. 25)

Ao ser considerado como uma especialização do trabalho, o Serviço Social é inscrito no âmbito da produção e reprodução da vida social, tendo na questão social, nas suas mais variadas expressões cotidianas, a base de sua fundação como especialização do trabalho.

O trabalho do Serviço Social, segundo Iamamoto (2007, p. 126) interfere na reprodução da força de trabalho por meio dos serviços sociais previstos em programas, a partir dos quais se trabalha nas áreas de saúde, educação, condições habitacionais entre outras, não podendo ser confundido com a política pública de Assistência Social. Portanto, o profissional Assistente Social exerce uma profissão técnica que atua na e com as políticas públicas, em especial, as de garantia de direitos, sendo socialmente necessária atua sobre questões que dizem respeito à sobrevivência social e material da classe proletária, público presente nas instituições educacionais.

A escola vem se tornando cada dia mais um espaço institucionalizado de formação humana sendo fruto das relações sociais e de produção. Tais relações sociais também determinam a forma, conteúdo, pedagogia, que serão direcionadas dentro deste espaço assim como sua funcionalidade de produção e reprodução do sistema econômico, político, cultural de uma determinada sociedade. Segundo Santana, “é preciso conceber a educação enquanto um espaço de construção do conhecimento, de socialização de um saber historicamente construído” (2008, p. 24).

No ano de 2007, mais um parágrafo foi acrescido na Lei 9.394/06 (LDBEN), de acordo com a Lei nº 11.525, de 25 de setembro de 2007. Assim, fica a redação do Artigo 32 § 5º:

O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático adequado

(BRASIL, 2007).

Ao pontuar as várias expressões da questão social no âmbito escolar Santana (2008, p. 28) coloca o desconhecimento do Estatuto como uma dessas expressões a serem enfrentadas pelos assistentes sociais. Assim, para Iamamoto (2007, p. 114), o desafio posto aos assistentes sociais nos novos tempos é “redescobrir alternativas e possibilidades para o trabalho profissional no cenário atual, traçando horizontes para a formulação de propostas que façam frente à questão social”.

O ECA é um instrumento imprescindível no espaço escolar e a sua efetivação é uma das atribuições profissionais do magistério, necessário à efetivação dos direitos da criança e do adolescente, sendo a escola um lócus privilegiado. Os profissionais que aí atuam como professores, funcionários e diretores devem tomar posse desse conhecimento se tornando protetores e promotores desses direitos. Partindo do ponto do conhecimento ínfimo do Estatuto e sua lógica apontados pelos docentes na pesquisa e colocando a concepção negativa e estigmatizada da Lei, sugere-se que os assistentes sociais, no espaço escolar, possam trabalhar propositalmente com conhecimento teórico-metodológico e técnico-operativo, a fim de garantir espaços de discussão e atuação no que tange aos direitos e deveres impostos no ECA. Nos termos de Iamamoto, um “profissional propositivo não só executivo” (2007, p. 20).

Elaborar projetos que visem encontros das famílias nas escolas, propor ações de combate à violência doméstica, identificar a evasão escolar e suas causas, assim como, prevenir o corte das famílias assistidas pelo programa Bolsa Família, contribuindo para que essas famílias não percam o benefício são, entre outras, possibilidades de atuações no espaço escolar do assistente social. Porém, deve-se trabalhar com a lógica do ECA, pois ele será um importante instrumento, visto ser uma lei direcionada ao público-alvo da educação obrigatória.

5 Considerações

Esse trabalho teve a intenção de propor uma reflexão em torno da educação de crianças e adolescentes, não no sentido de esgotar as possibilidades que o tema requer, mas de especificar e direcionar a reflexão. Expôs parte de uma pesquisa aplicada numa escola Estadual do Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de entender os receios e dificuldades na operacionalização da Lei 8.069/90 (ECA) na perspectiva dos docentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA representa uma conquista brasileira, sua elaboração e aprovação foi o resultado de lutas da sociedade civil que se refletiu na Constituição de 1988. O ECA é reconhecido como uma das leis mais progressistas do mundo no campo dos direitos humanos, porém, existe uma lacuna entre o que a Lei propõe e o que de fato é executado.

Acredito ser a educação e o espaço escolar um lócus privilegiado para que essa perspectiva de totalidade e trabalho interdisciplinar entre escola e assistência social se desenvolva. Não no sentido de ensinar alguém como atuar na sua profissão e na relação professor/aluno, mas de construir juntos propostas efetivamente eficazes em consonância com o ECA, para que este não seja visto como uma lei fora da realidade vivida no espaço escolar.

Cabe aos assistentes sociais fazer análises institucionais, pesquisas, relatórios encaminhamentos, laudos e perícias, visitas domiciliares, entre outros instrumentos utilizados (Lei 8.662/93) mas o principal é realizar um trabalho essencialmente socioeducativo no intuito de emancipar através do conhecimento.

Finalizando, impõe-nos a cada dia refletirmos sobre as ações cotidianas em nossa prática profissional, assim como fez Paulo Freire em toda sua obra, com destaque, em seu livro Pedagogia do Oprimido:

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em ‘seres para outro’. Sua solução, pois, não está em ‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se ‘seres para si’

(FREIRE, 1987, p. 61).

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Recebido: 25 de Outubro de 2018; Revisado: 09 de Abril de 2019; Aceito: 29 de Abril de 2019; Aceito: 28 de Agosto de 2020

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