1 Introdução
Este trabalho deriva de inquietações dos autores ao longo de leituras que envolvem os estudos de gênero e os de Educação Profissional e Tecnológica. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, na qual se objetiva problematizar alguns argumentos teóricos sobre a relação entre gênero e educação profissional. A tese aqui sustentada é a de que as relações de gênero, aprendidas no espaço escolar podem limitar ou influenciar o gosto por determinadas disciplinas escolares e, até mesmo, as escolhas profissionais e/ou os cursos superiores. Essa afirmação se baseia no fato de que o processo de reestruturação que opera na divisão do trabalho entre os gêneros reforça as antigas formas de segregação e exclusão das mulheres.
O debate sobre as relações entre gênero e educação profissional tem sido profícuo para a interpretação da divisão sexual do trabalho contemporânea, assim como para a determinação de mecanismos de desenvolvimento no campo educacional. No Brasil e no mundo, é crescente a participação feminina na educação e no mundo do trabalho, porém esse fenômeno não tem eliminado o problema da concentração das mulheres em grupos específicos de profissões, atribuídas culturalmente como femininas.
De acordo com a pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2015), em todas as faixas etárias há predominância feminina nos cursos de formação inicial, continuada e qualificação profissional; todavia, estão concentradas em áreas de conhecimento distintas dos homens: elas em cursos das Ciências Humanas, Sociais, Educação e Saúde, eles em cursos das Ciências Exatas e Tecnologias.
Para Bourdieu (2014), são as antigas estruturas da divisão sexual do trabalho que determinam tanto as mudanças (aumento do número de mulheres no ingresso nas carreiras) como as permanências (conservação de carreiras como redutos masculinos), e atuam por meio de três princípios: o primeiro seria que a função das mulheres é um prolongamento das atividades domésticas “ensino, cuidado e serviços”; a segunda, que as mulheres não podem assumir posições de comando, sendo relegadas à função de ajudantes (subordinadas), e o último que concede aos homens “[...] o monopólio da manutenção dos objetos técnicos e das máquinas” (BOURDIEU, 2014, p. 131-132).
Com base nessas considerações, o artigo apresenta-se organizado em quatro seções além desta introdução: Educação Profissional e Tecnológica (EPT) em que há um breve histórico da educação profissional e tecnológica no Brasil; num segundo momento, EPT e Gênero, em que são discutidas as relações estabelecidas entre a educação profissional e as construções sociais que atravessam as relações de gênero; mulher e trabalho, para que se possa melhor visualizar estas mudanças de papéis das mulheres, dentro da divisão sexual do trabalho; por último, as considerações finais.
2 Processo Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil
Historicamente, a Educação Profissional e Tecnológica (EPT) brasileira passou por uma série de mudanças desenvolvidas durante os mais de 100 anos de formação na qual foi considerada inicialmente como instrumento de política voltado para atender crianças, jovens e adultos que viviam à margem da sociedade. Considerada um elemento estratégico para a construção da cidadania e para uma melhor inserção de jovens na sociedade contemporânea, a educação profissional reveste-se cada vez mais de importância fundamental, não só pelo desenvolvimento da conjuntura socioeconômica, mas, sobretudo porque representa uma associação entre trabalho e vida (MANFREDI, 2002).
A educação profissional no Brasil teve início oficial em 1909, através do Decreto-Lei nº 7.556, de 23 de setembro de 1909, sancionado pelo Presidente da República Nilo Peçanha. Consoante a essa criação, o termo educação profissional tem uma história recente na educação brasileira. O termo foi inserido com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) - Lei nº 9.394/96, em que no Cap. III, Art. 39 expõe que: “[...] a educação profissional, integrada às diferentes formas de educação, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva” (BRASIL, 1996, p. 67).
A inserção da Educação Profissional na LDB pode ser considerada significativa, pois correlacionou a formação profissional à educação básica, mas ainda não foi dessa vez que velhas dualidades – formação básica versus formação técnica – se desfizeram. Um exemplo disso é a existência de disciplinas teóricas não articuladas às práticas. Essa divisão se acentuou no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, com o Decreto nº 2.208/1997, o qual institucionalizou mais uma vez a separação na educação profissional: o “Decreto n. 2.208/97 restabeleceu o dualismo entre educação geral e específica, humanista e técnica, destroçando, de forma autoritária, o pouco ensino médio integrado existente, mormente da rede CEFET” (FRIGOTTO, 2007, p. 1139).
Somente em 2004, a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) lançou o documento “Proposta de Política Pública para a Educação Profissional e Tecnológica”, visando contextualizar a EPT, para adequá-la ao desenvolvimento econômico do país; articulá-la com o ensino médio; integrá-la ao mundo do trabalho e à Educação de Jovens e adultos (EJA). Ainda nesse mesmo ano, foi publicado o Decreto nº 5.154/2004, que possibilitou a reintegração entre as disciplinas básicas e as técnicas.
No ano de 2008, durante o segundo mandato do governo Lula publicou a Lei nº 11.892 de 29 de dezembro de 2008, na qual instituiu a Rede Federal de Educação, Científica e Tecnológica e criou os Institutos Federais (IFs). A criação desses Institutos implicou na construção de um novo modelo para a educação profissional. Na atualidade são 38 Institutos Federais presentes em todos estados brasileiros oferecendo cursos de qualificação, ensino médio integrado, licenciaturas, cursos superiores em tecnologia e pós-graduação.
No caso de Sergipe, inaugurou-se em Aracaju, no dia primeiro de maio de 1911, a Escola de Aprendizes Artífices de Sergipe (EAA-SE). Não houve mulheres matriculadas como alunas. Somente em 1944, na ocasião a EAA-SE denominada Escola Industrial de Aracaju (EIA), criou os cursos de Corte e Costura e o de Chapéus, Flores e Ornatos. Para estes cursos, as mulheres prestaram exame para seleção discente. Apesar de cursos com turmas específicas para o público feminino, isso não assegurou a presença de alunas na escola, pois apenas quatro alunas se formaram, nesses cursos, em 1947 (PATRÍCIO, 2003). Logo, foram extintas as vagas para as meninas e quinze anos depois, com a criação do curso técnico de Estradas, é que as alunas voltariam à Escola.
A EIA passou por diversas mudanças tanto na estrutura física quanto na organização pedagógica e administrativa. A mudança mais recente ocorreu em 29 dezembro de 2008, através da Lei nº 11.892, quando esta se transformou em Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe – IFS. Atualmente, constitui-se de dez campi: Aracaju, São Cristóvão, Lagarto, Estância, Nossa Senhora da Glória, Itabaiana, Tobias Barreto, Nossa Senhora do Socorro, Propriá e Poço Redondo. Na atual configuração, há bastantes alunas, mas sua maior matrícula ocorre em cursos considerados próximos de atribuições – paciência, organização, atenção aos detalhes – definidas culturalmente até hoje como femininas (HIRATA, 2002). Assim, no IFS, estão matriculadas, predominantemente, em Guia de Turismo, Alimentos, Segurança do Trabalho e Agroecologia.
3 Educação Profissional e Tecnológica e Gênero
Em 20 de setembro de 2012, foi aprovada pelo Ministério da Educação a Resolução CNE/CEB nº 6, que define as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (BRASIL, 2012). Trata-se de uma referência de conjuntos e orientações a serem observados pelo sistema de ensino da EPT de nível médio, na qual se nota uma preocupação em discutir e integrar no projeto político pedagógico das unidades educacionais temas diversos relacionados à diversidade, incluindo as relações de gênero. Nessa resolução, no parágrafo XI, que trata do “reconhecimento das identidades de gênero e étnico-raciais, assim como dos povos indígenas, quilombolas e populações do campo”, é possível constatar que se evidencia a exigência da reflexão sobre essa temática no campo da educação profissional.
Haja vista a legislação referida, os estudiosos da EPT (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005; KUENZER, 2006; MANFREDI, 2002) trazem um debate sobre a formação humana integral, como uma ideia que pretende superar a divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar, ou seja, construir um currículo que integre disciplinas básicas e técnicas. Tal discussão tem como base a integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, visa à formação que possa garantir ao jovem/adulto o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão, integrado, dignamente, à sociedade política - aquela que supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005).
Dessa maneira, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) partem do pressuposto de que, primeiramente, é preciso compreender que homens e mulheres são seres histórico-sociais que atuam no mundo concreto para satisfazerem suas necessidades subjetivas e sociais e, nessa ação, produzem conhecimentos. Nessa perspectiva, a categoria gênero aponta para a noção de que “ao longo da vida, através das mais diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, num processo que não é linear, progressivo ou harmônico” (MEYER, 2005, p. 16).
Cabe destacar que a escola desempenha um papel importante na construção das identidades de gênero e das identidades sexuais, pois, como parte de uma sociedade que discrimina, ela produz e reproduz desigualdades de gênero, raça, etnia, bem como se constitui em um espaço generificado (LOURO, 1997). A escola é instituição-parte da sociedade e, por isso, não poderia se isentar dos benefícios ou das mazelas produzidos por ela. A escola é, portanto, influenciada pelos modos de pensar e de se relacionar da/na sociedade, ao mesmo tempo em que os influencia, contribuindo para suas transformações.
Para Louro (1997), a educação estabelece-se como mais um mecanismo de classificação, ordenamento e hierarquização social, determinando e naturalizando espaços e papéis diferenciados. Ao focalizar as questões de gênero nos espaços educativos, é indispensável que os sentidos estejam educados para que,
sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as múltiplas formas de contribuição dos sujeitos implicadas na concepção, na organização e no fazer do cotidiano escolar. [...] Atentas aos pequenos indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são distribuídos e usados – portanto não são concebidos – do mesmo modo por todas as pessoas
(LOURO, 1997, p. 59).
Sendo a escola uma importante instituição onde acontece a socialização de meninos e meninas, é necessário refletir sobre até que ponto a educação fornecida pelo sistema escolar contribui para o quadro de assimetria entre homens e mulheres nas diversas instâncias da vida social.
Hodiernamente, no Brasil, a presença das mulheres é significativa entre os estudantes da educação superior, fato que deriva da maior escolarização feminina em geral, haja vista elas somarem 52% das matrículas no ensino médio no ano de 2015 (CAPES, 2016). Há menos reprovações entre as mulheres estudantes, bem como elas evadem menos e concluem a educação básica em maior proporção. Em 2014, elas representavam 53,8% das matrículas de graduação nas instituições de ensino superior públicas e 58,6% nas instituições de ensino particulares, além de serem maioria, entre o número total de concluintes (cerca de 60% tanto na rede pública quanto na rede particular).
No que diz respeito à inserção da mulher na educação profissional, lócus desta pesquisa, Santos (2012) revela que no Brasil, atualmente, é modesta a presença de mulheres naqueles cursos da Rede Federal de Educação cujas profissões são associadas aos trabalhos atribuídos como masculinos, todavia, “[...] a presença delas não passa despercebida e paulatinamente o cenário, tanto das escolas como das fábricas, vai ganhando contornos femininos” (SANTOS, 2012, p. 2).
A preferência dos homens por cursos das Ciências Exatas, Naturais e Tecnológicas, e das mulheres por cursos das Ciências da Saúde, não é novidade, como demonstram Carvalho e Rabay (2013) acerca do gendramento por área do conhecimento, realizadas no nordeste brasileiro.
As mulheres têm se encaminhado preferencialmente para áreas de Ciências Humanas e Saúde, enquanto os homens escolhem carreiras científicas e tecnológicas (INEP, 2015). A separação entre homens e mulheres no ambiente escolar pode ser reflexo de escolhas individuais para determinados cursos, entretanto, deve-se levar em consideração que essas escolhas podem ser influenciadas ou mesmo condicionadas (STANCKI, 2003).
As pessoas ao se inserirem em áreas "masculinas" ou "femininas" permanecem sendo vistas através das suas características sociais de gênero, o que acarreta a divisão sexual do trabalho também no interior das áreas, pois homens e mulheres acabam sendo levados, por opção, condicionamento ou mesmo falta de opção a desempenharem atividades "próprias" de seu sexo.
(STANCKI, 2003, p. 10).
A exemplo disto, pesquisas como as de Lombardi (2006) e Santos (2009) mostram que o magistério é uma profissão na qual as mulheres predominam, mas quando se constata o pequeno número de professoras na engenharia, pode-se interpretar que nesta área há complexidades nas relações das divisões sexuadas (HIRATA, 2002). Há na Engenharia uma divisão interna: as mulheres estão maciçamente na Engenharia Ambiental e Química. O meio na engenharia mecânica ou civil, onde estão predominantemente os homens, é tão hostil às mulheres que, não raro, elas abandonam e partem para o magistério (HIRATA, 2007).
Cursos como Pedagogia, Psicologia e Enfermagem que representam a ação de “cuidar” a qual tem sido tarefa de mães e esposas, dentro do modelo dominante de família, continua a perpetuar os papéis femininos que atribuem à mulher a responsabilidade pelo espaço doméstico. Diferentemente, a Engenharia, associada ao raciocínio lógico e à matemática, apesar de contar com um número crescente de alunas em alguns de seus cursos, ainda possui poucas mulheres na docência (CARVALHO, 2008). De fato, na Engenharia, o magistério é exercido majoritariamente pelos homens, apesar do processo histórico de feminização da docência (TAMANINI, 2008).
Sendo assim, não se ignora que a construção da ciência na contemporaneidade e da tecnologia como guetos masculinos acarreta consequentemente, numa educação técnico-profissional, também concebida como um espaço de formação masculina. É fato, que as questões de gênero são determinantes nas escolhas profissionais de homens e mulheres; e a educação, enquanto um processo de socialização dos indivíduos, constitui-se num elemento que pode contribuir na reprodução dessa divisão.
4 Mulher e Trabalho
As questões relacionadas a gênero e educação estão diretamente relacionadas à divisão sexual do trabalho. Os estudos de Antunes (2000) demonstram que as transformações que atingem o mundo do trabalho se refletem em toda a sociedade, pois se criam estratégias de produção e de organização do trabalho, acirrando ainda mais as disparidades entre países e regiões. Antunes (2000) oferece um cabedal de análises advindas de um processo dialético, sobre os novos determinantes do mundo do trabalho, decorrentes da condição de centralidade do mundo do trabalho na sociedade atual.
As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que no universo do mundo produtivo e reprodutivo vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os homens e as mulheres que trabalham são, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho
(ANTUNES, 2000, p. 109).
Embora as questões sobre a divisão sexual sejam estudadas há muito tempo, dentre os estudos está o de Engels (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado), é a partir dos anos setenta (SOUZA-LOBO, 1991), principalmente, que se desencadeou uma série de transformações nas formas de produção do trabalho, dentre estas o trabalho feminino com novas formas de legitimação na centralidade do trabalho. É neste contexto de significativas mudanças no mundo do trabalho que Antunes (2000) e Castels (2018) retomam, a partir das questões de classe, o gênero para se referir à divisão sexual do trabalho e, consequente, acentuada precarização para as mulheres (HIRATA, 2002, 2004; ABRAMO, 2000).
Nesta dinâmica, desde a infância, as meninas são conduzidas para habilidades e comportamentos que remetem ao cuidado do outro e da casa, ao passo que os meninos são encorajados a empreender atividades que envolvem operações lógicas, competitivas, técnicas, esportistas e públicas (BORDIEU, 2005; KISHIMOTO, ONO, 2008; PINTO et al, 2017), o que pode levar a diferentes interesses e desigual inserção no mercado de trabalho. Sendo assim, “A divisão sexual e de gênero se expressa dentro de cada campo do conhecimento em subdivisões que mantêm a dicotomia e segregam as mulheres em atividades mal remuneradas e desprestigiadas no mercado de trabalho.” (PINTO et al, 2017, p. 54).
A partir dos anos 1970, ao mesmo tempo em que se iniciou o processo de reestruturação produtiva, se atingiu um avanço proporcionado pelo movimento feminista, no sentido de conscientização da luta pela autonomia da mulher, sendo questionada entre outros pontos, a inserção da mulher na produção capitalista. “Ao romper os padrões sociais que imputavam à mulher o casamento e a maternidade como alternativa primeira para a trajetória de vida, as jovens dos anos 1970, passaram a colocar entre suas prioridades o estudo e a carreira profissional” (BRUSCHINI e LOMBARDI, 1999, p. 22). À medida que essas atribuições deixaram de ser uma escolha privilegiada na trajetória de vida para as mulheres – seja através de maior inserção produtiva para auxiliar no sustento da casa, como apontam Bruschini (1994) e Matos e Borelli (2012), seja pela própria necessidade dinâmica do sistema (AGÉNOR; CANUTO, 2015), ou por meio de movimentos políticos como o feminista – as trajetórias profissionais passaram a sofrer alterações.
Para Antunes (2000, p. 109), “é evidente que a ampliação do trabalho feminino no mundo produtivo das últimas décadas é parte do processo de emancipação parcial das mulheres, tanto em relação à sociedade de classe quanto às inúmeras formas de opressão masculina, que se fundamentaram na tradicional divisão sexual do trabalho”. Essa emancipação supera as formas históricas, que tiveram no patriarcado a opressão da mulher pelo homem entendida com fenômeno necessário e natural.
A inserção da mulher no mercado de trabalho é marcada, no que diz respeito à jornada de trabalho, níveis salariais e condições de trabalho, por precarização: dupla ou tripla jornada de trabalho, salários menores que o dos homens em mesmas ocupações e condições insalubres diversas. Assim, veem-se duas situações distintas: muitos trabalhos evidenciam a continuidade do emprego feminino – o trabalho doméstico – e outros mostram mudanças, mulheres ocupando espaços majoritariamente masculinos (PINTO et al, 2017, p. 54).
5 Relações de Gênero e IFS
Em 2017, quando se iniciou a pesquisa foram consultados os dados de matrícula dos estudantes nos cursos integrados. Para esse artigo foi selecionado o Campus Aracaju, precisamente os/as discentes que estavam devidamente inscritos em 2018.
O Campus Aracaju oferta cursos na modalidade de Ensino Médio Integrado (EMI) e Subsequente além dos Superiores como tecnólogo, licenciatura e engenharia e Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu. Aqui, o foco dessa reflexão foi o Ensino Médio Integrado. São seis os cursos – Eletrotécnica, Eletrônica, Informática, Edificações, Química e Alimentos –. Os três primeiros registram matrícula predominantemente do sexo masculino, os dois últimos possuem matrícula notadamente feminina. Edificações tem número de homens e mulheres de modo equilibrado, sendo que em 2018 houve maior número de matrícula de alunas:
Tabela 1 Estudantes inscritos nos cursos Integrados por gênero:
Cursos TI | Estudantes | Masculino | Feminino |
---|---|---|---|
Total | 412 | 218 | 194 |
Informática | 74 | 42 | 32 |
Edificações | 72 | 32 | 40 |
Eletrônica | 65 | 57 | 8 |
Eletrotécnica | 48 | 44 | 4 |
Alimentos | 78 | 13 | 65 |
Química | 75 | 30 | 45 |
Fonte: Organizada a partir dos dados fornecidos pela Coordenadoria de Registro Escolar - CRE
As mulheres majoritariamente estão em cursos de Edificações, Química e de Alimentos e homens nos cursos Eletrotécnica, de Eletrônica e de Informática. É uma construção histórica, marcada por preconceitos e normas sociais que ditavam (ou ditam) o que as pessoas deviam fazer de acordo com o sexo ou com as interpretações decorrentes da biologia ou de uma formação social regida pelos ditames culturais. Observe que o curso de Alimentos denota uma aproximação com “coisas de mulher”, pois no imaginário cultural alimentos sugerem preparar algo, cuidar de, zelar, assuntos próximos do cotidiano feminino. Além disso, as atividades voltadas para o fazer a alimentação pelas quais as mulheres se responsabilizam costumam ser do lar e não remuneradas (BARBOSA, 2018; LOMBARDI, 2006; BRUSCHINI, 1994).
No caso do curso de Química, a atração se dá, entre outras coisas, devido à possibilidade de trabalho na indústria de fabricação de remédios e de cosméticos. Em 2008, conforme dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS, 2008 - Ministério do Trabalho e Emprego), as mulheres representavam 24,3% da força de trabalho do ramo químico, sendo que, em alguns segmentos, esse percentual é bastante elevado: na indústria farmacêutica as mulheres respondem por 46%. Além disso, têm uma presença significativa na indústria de produtos cosméticos (39,3%) e na indústria de transformados plásticos (28,9%) (DIREÇÃO DA CNQ/CUT GESTÃO 2007-2010, 2010).
Quanto ao crescimento do índice de mulheres que se interessam pela Construção Civil, são diversos os fatores:
[...] a falta de mão de obra masculina qualificada, o aumento da demanda na área, a oportunidade de melhorar a renda e a qualidade de execução da mão de obra feminina, como capricho, zelo com os equipamento e nível de atenção aos detalhes em atividades de acabamento”
(SINDUSCON SP E REVISTA GEOGRAFIA apud SEBRAE CONSTRUÇÃO CIVIL, 2014, p. 1).
Atributos construídos historicamente como femininos – zelo, cuidado e atenção – passam a servir de requisitos para a contratação de mulheres nos serviços de acabamento ou de embelezamento de ambientes (JORGE, 2019; CIVIL SEBRAE CONSTRUÇÃO, 2014).
Os dois cursos da área de indústria – Eletrônica e Eletrotécnica – e o da área de Informática associam-se comumente a saberes matemáticos, cálculo e raciocínio lógico. Esses cursos costumam ter carga horária intensa de Matemática, Física e Lógica, por exemplo. E tais matrizes curriculares ainda não têm sido prioritárias na vida estudantil de mulheres.
A abertura do mercado para as mulheres desde a segunda metade do século XX (SOUZA-LOBO, 1991; CASTELLS, 2018) e aqui, no Brasil, a expansão da rede de educação profissional dos últimos anos proporcionou mais acesso às mulheres para que estas se tornassem, mais facilmente, alunas de quaisquer cursos e profissionais de quaisquer áreas. Contudo, a ampliação de acesso não garantiu que as mulheres estivessem matriculadas na mesma proporção que os homens estão nos cursos das áreas de Indústria ou de Informática, por exemplo. No IFS, as jovens se fazem presentes na área de Informática e de Indústria conforme se pode ver na matrícula de 2018 do IFS (ver tabela 1), mas se comparada à matrícula de anos anteriores (SANTOS, 2013) constata-se que não houve significativo crescimento.
Entre as razões para a pequena participação das mulheres nas carreiras voltadas às Ciências Exatas, Informática e Engenharia estão a falta de incentivo de familiares, o pouco esclarecimento que as escolas do Ensino Fundamental fornecem sobre as carreiras tecnológicas, as insuficientes representações de mulheres nas áreas de Ciências Exatas, Engenharia e Informática nos livros didáticos (BURGER et al., 2007).
Todos esses fatores continuam impedindo ou, no mínimo, tornando hercúleo o esforço para mulheres entrarem em determinadas profissões (OIT, 2018; CARVALHO, 2008) e isto repercute nas mais jovens na hora de escolherem o curso para prestar seleção numa instituição profissionalizante (SANTOS, 2013; STANCKI, 2003; BURGER et al., 2007).
A escola, por um lado, é reflexo das dificuldades supracitadas, mas, por outro lado, pode contribuir para minimizá-las. No IFS, nesta última década, começam a surgir discussões em torno dos estudos de gênero: debates sobre violência contra a mulher, assédio moral e sexual e sobre mulheres na ciência e no mundo do trabalho. Houve projetos de pesquisa e de extensão financiados pela Pró-Reitoria de Pesquisa e de Extensão (Propex/IFS) que se inseriram na perspectiva de reunir os estudos de gênero e mercado de trabalho do qual resultou essa pesquisa.
6 Considerações Finais
Mediante o contexto acima citado, é importante discutir acerca dessa desigualdade na escolha que mulheres fazem por cursos. A escola não é responsável pela cultura machista que direciona meninas a escolherem carreiras vinculadas ao cuidado, lazer etc. Mas a escola é responsável por questionar tais valores que, inclusive, persistem na Educação Profissional e Tecnológica, bem como no mercado de trabalho. Entende-se que a diferença presente no número de matrículas que se refere à escolha de cursos e ao futuro exercício profissional feito pelos/as estudantes é fruto de uma sociedade ainda marcada fortemente pelos preconceitos sexistas. Mas, não se pode negar que a presença das mulheres nos Institutos vem, paulatinamente, minimizando a desigualdade, o que favorecerá para que as mulheres passem a ocupar cada vez mais as funções ditas masculinas no mercado de trabalho e na vida pública.
Vale salientar que a concentração de mulheres nos espaços atribuídos socialmente à atuação predominantemente masculina tem contribuído para se repensar as relações de trabalho e alterar a significativa divisão social do trabalho ainda existente, pois ainda há hierarquização do trabalho masculino como de maior valor do que o trabalho feminino (HIRATA, 2002, 2007).
Nesse cenário, a educação é importante para a promoção de ações de igualdade entre os sexos. No aspecto geral, pode-se dizer que a escola ainda possui mecanismos sutis que constroem e mantêm as diferenças entre os sexos (LOURO, 1997). Porém, a noção de igualdade de gênero tem sido fundamental para desnaturalizar práticas que eram tidas como naturais. Os estudos em educação passaram a mostrar que “a escola é atravessada pelos gêneros, [que] é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino” (LOURO, 1997, p. 89). Assim, a escola, pensada com base nessa perspectiva, deve ser considerada não apenas como um espaço, no qual os diferentes gêneros circulam, mas, sobretudo, como um local em que as diferenças, distinções e desigualdades entre eles são produzidas.
Entretanto, também é na escola que se pode contar com transformações. Em seu currículo podem estar medidas, desejos e expectativas em prol de combater a desigualdade de gênero na escolha e no mercado de trabalho.
A escola não será o único sistema e a única saída para a efetiva mudança, as ações educativas nesse ambiente, são imprescindíveis como intervenções que promovam justiça e igualdade entre homens e mulheres. No mínimo, a escola deve promover discussões acerca dos preconceitos e os estereótipos de gênero, promover ações que estimulem o ingresso de mulheres em Eletrônica, Eletrotécnica ou Informática, por exemplo, e garantam a permanência delas com êxito. A EPT deve assegurar que não ocorra discriminação de alunas. Para isso pode incentivar a participação delas em projetos que envolvam robótica, olimpíadas de Física, Matemática, Astronomia etc. Deve continuar a promover eventos e incentivar projetos que discutam as relações de gênero e mercado de trabalho. Deve, por fim, inserir em seu currículo saberes e experiências que impulsionem a igualdade de gênero na Educação e no mercado de trabalho.