1 Introdução
A questão do intersexo é um fenômeno complexo, contemporâneo e atual que envolve diferentes contextos sociais, entre os quais se destacam os movimentos sociais de luta por políticas públicas protetivas. Nosso objetivo, aqui, é apresentar a trajetória geral da militância intersexo por sua existência natural e o papel da educação nesse contexto. Nos últimos anos, adentramos no tema, pesquisando-o não apenas teoricamente, mas também em investigações de campo, ora com distanciamento do objeto de pesquisa, ora como sujeitos de pesquisa e como pesquisadores em ação. Nesse contexto, o presente artigo adota um método participativo e etnográfico de investigação.
Foram utilizados diversos instrumentos de coleta de dados, como entrevistas com pessoas intersexo, pais, professores, psicólogos e médicos, além de pesquisa bibliográfica, análise de cartilhas/guias de orientação sobre intersexo e distúrbio da diferenciação sexual (DDS). Também foram realizados levantamentos de dados em congressos, conferências, eventos, assim como de documentos oficiais e reportagens. Por ser um fenômeno contemporâneo e atual, o delineamento desta pesquisa configura-se num estudo de caso, tendo como abordagem a análise qualiquantitativa. Precisamos utilizar diversas formas de coleta de dados por se tratar de um tema tão contemporâneo e dinâmico, porém os dados obtidos são analisados de forma qualitativa (GIL, 2009).
As pesquisas de campo se deram no Brasil, porém foram analisados documentos oficiais brasileiros, da América Latina e de outras nacionalidades. Também utilizamos a rede mundial de computadores (Internet) para localização e contato com os participantes das entrevistas, localização de grupos e conferências. Foram feitas visitas a ambulatórios de apoio a pessoas intersexo e a órgãos oficiais do governo que fazem a notificação dos sexos por ocasião do nascimento. Um dos entrevistados é um sujeito intersexo que mora no Paquistão, no entanto a entrevista foi realizada no Brasil durante a gravação de um documentário internacional via Skype. Outra entrevista e uma participação em evento foram realizadas fora do Brasil, em Buenos Aires, Argentina, mas tratava-se de entrevista e evento específicos.
Para levarmos a cabo essa proposta, este trabalho está organizado em três seções. A primeira apresenta um recorte da história intersexo a partir da denominada Era do Consenso, do fim do século XX até o início do século XXI. Na segunda, discutimos a luta política por direitos das pessoas intersexo no Brasil. Na terceira e última seção, estendemos a discussão para a luta política no mundo. Em seguida, à guisa de conclusão, nossas considerações acerca da educação e as referências utilizadas.
2 O consenso médico
A partir da década de 1990, pessoas intersexo passaram a militar em todo o mundo contra as chamadas “adequações cirúrgicas”, organizando-se, internacionalmente, pelo direito de autodeterminarem seus corpos com base nos princípios da autonomia e da beneficência estabelecidos na bioética (FERRER, ALVAREZ, 2005). Essas ações resultaram na criação de associações de proteção às pessoas intersexo, dando início à Era do Consenso, por causa do marco do Consenso de Chicago (LEE et al., 2006).
Durante o Consenso de Chicago, sugeriu-se a alteração do termo “anomalia de diferenciação sexual” (ADS) para “distúrbio do desenvolvimento sexual” (DDS), o que foi encabeçado por médicos, não por ativistas intersexo. No consenso, ressaltou-se, ainda, a importância da equipe multidisciplinar e da inclusão das famílias nos processos de diagnóstico e intervenção (MARTINS, SANTOS-CAMPOS, 2018), os quais não incluem o sujeito intersexo, o maior interessado nessas decisões, por ainda ser bebê. Advém dessa impossibilidade de expressão do desejo do bebê a luta para que essa escolha seja postergada à puberdade, possibilitando à criança vivenciar essa fase sem um gênero binário atribuído. As respostas para esse dilema talvez estejam nos estudos Queer, que ultrapassam a norma cis-hetero (BUTLER, 2010).
O termo intersexo está em constante construção, ganhando visibilidade com a inserção da letra “I” à sigla LGBTQI. Dadas a dinamicidade e a complexidade dos movimentos sociais, o vocábulo intersexo, para além de um simples conceito de variações das características corporais, passa a referir-se a uma questão de luta por conquista e implementação de direitos no que tange ao padrão esperado para os espectros dos sexos macho e fêmea.
Para Silva (2018), diversos pesquisadores têm enfrentado o desafio de definir o intersexo há décadas. Questionar se é possível definir uma variação sexual, além da binária, sem adoecer ou patologizar a pessoa intersexo é um desafio ainda maior, uma vez que a exposição do conceito é complexa por ainda estar em construção e, também, pela invisibilidade dos intersexos.
Geralmente, a definição de intersexo refere-se a uma categoria socialmente construída em função das variações biológicas reais, categoria essa que é compreendida como uma diversidade de condições a partir das quais o ser humano apresenta ambiguidade sexual biológica nos aspectos biológico, sexual, reprodutivo, genital, genético ou andrógino. Trata-se de pessoas que, antigamente conhecidas como hermafroditas, não se encaixam na concepção conservadora de sexo binário masculino ou feminino. A prevalência de pessoas intersexo é de 1,7% da população (DAMIANI et al., 2001; FRASER, 2012).
Com o advento da Medicina moderna e a disponibilização de diagnóstico da base genética da pessoa, associada à utilização de técnicas não invasivas, foi possível classificar uma série de situações consolidadas no Consenso de Chicago (HUGHES et al., 2006). O consenso propôs padronizações na nomenclatura utilizada nos procedimentos de diagnóstico e de tratamento, ilustrando os resultados obtidos. Em relação ao primeiro ponto, propõe-se o termo transtorno do desenvolvimento sexual (TDS), do inglês disorders of sex development (DSD), por considerarem que os palavras “intersexo”, “pseudo-hermafroditismo”, “hermafroditismo” e outras variações “[...] são percebidas como potencialmente pejorativas pelos pacientes e podem levar confusão aos médicos e pais” (HUGHES et al., 2006, p. e488, tradução nossa do original). Quanto ao segundo ponto, a forma de abordagem dos casos
[…] deve incluir o seguinte: (1) a atribuição de gênero deve ser evitada antes da avaliação de especialistas em recém-nascidos; (2) avaliação e gerenciamento a longo prazo devem ser realizados em um centro com uma equipe multidisciplinar experiente; (3) todos os indivíduos devem receber uma atribuição de gênero; (4) a comunicação aberta com pacientes e famílias é essencial e a participação na tomada de decisões é encorajada; e (5) as preocupações com pacientes e familiares devem ser respeitadas e abordadas em rigorosa confiança.
(HUGHES et al., 2006, p. e490, tradução nossa do original)
No consenso, o ponto mais conflitante é a indicação de que “[...] todos os indivíduos devem receber uma atribuição de gênero” (HUGHES et al., 2006, p. e491, tradução nossa do original). Esse princípio é tomado por estudos, apontando que “[...] mais de 90% dos pacientes com 46, XX CAH e todos os pacientes com 46, XY CAIS que foram designados como femininos se identificaram como femininos” (HUGHES et al., 2006, p. e491, tradução nossa do original). A partir desse apontamento, questionamos: como ficou a vida dos 10% dos indivíduos que foram designados como femininos e, posteriormente, não se identificaram como tais?
O consenso foi revisto em 2016, estabelecendo 10 novos princípios, os quais pautam-se no bem-estar e na autonomia do indivíduo, pensando na vida futura que ele terá. Viau-Colindres, Axelrad e Karaviti (2017), ao escutarem os movimentos sociais, propõem a volta do termo “intersexo”. Os autores consideram que essas pessoas querem ser, simplesmente, reconhecidas como “intersexo” e que a busca por esse status, tanto pessoal como legal, avançou a partir de decisão do estado de Nova York (EUA), de 2016, quando foi emitido o primeiro certificado de nascimento com a classificação “intersexo” (MARIE CLAIRE, 2017).
As terminologias DDS e ADS foram consideradas patologizantes, no Consenso de Chicago (2005) por levarem os estados intersexo à invisibilidade. Consideramos o termo intersexo o mais adequado e ético (OLIVEIRA, 2015), visto que a intersexualidade rompe com o binarismo do sexo e com muitos outros conceitos que diferenciam sexo e gênero, desconstruindo-os não apenas social, como também biologicamente. formado mesmo modo, as concepções de sexo/gênero como produções culturais e como construção educacional por meio da tecnologia de controle social heteronormativo.
Para Sterling (1993), o sexo não é algo somente biológico, posto que envolve toda uma construção psicossocial, uma vez que, em dado momento histórico, foi estipulado que um conjunto de determinados órgãos, com determinada anatomia, fosse nomeado de sexo masculino ou feminino, descartando as variações e associando esses sexos a certos comportamentos, resultando em gêneros também binários: masculino ou feminino e culminando na inseparabilidade de sexo e gênero.
A questão da intersexualidade, para Sterling (1993), é negligenciada em relação à percepção do verdadeiro significado do sexo. Decorre essa negligência da caracterização da intersexualidade, que pode abarcar questões físicas e psíquicas dos sexos masculinos e femininos em decorrência de sua formação congênita, expressa tanto nos gametas sexuais como nas questões genéticas, representadas nas combinações X0, XXY ou XYY (STERLING, 1993).
[...] o sexo designado ao nascimento será validado (ou não) por um conjunto de características orgânicas e psicológicas (sexo de criação, identidade e papel de gênero), resultante da organização dos diferentes níveis de distinção sexual: genética, nuclear, gonodal, fenotípica e psicossocial, sendo que, inicialmente, o embrião possui capacidade de evoluir tanto para o sexo masculino quanto para o feminino
O Conselho Federal de Medicina (CFM), ao regulamentar o tratamento para o intersexo, por meio da Resolução nº 1.664/2003 (CFM, 2003) catalogou-o como “anomalia de diferenciação sexual”, com subclassificações como “genitália ambígua”, “ambiguidade genital”, “intersexual”, “pseudo-hermafroditismo masculino ou feminino”, “hermafroditismo verdadeiro”, “disgenesia gonodal”, “sexo reverso”, entre outros.
Machado (2005) cita, ainda, que, na Biomedicina, a intersexualidade é conhecida como “sexo ambíguo”, “sexualidade incompleta” e “estados intersexuais”. As pessoas intersexo eram popularmente conhecidas como hermafroditas. Pela Biologia, são reduzidas a aberrações cromossômicas ou a malformações congênitas. Quando nascem, são logo submetidas a cirurgias “corretoras” de adequação genital para, geralmente, o sexo feminino (CARVALHO et al., 2016).
Para Machado (2005), é preciso questionar o poder médico na escolha do sexo adequado ao intersexo logo após seu nascimento, advertindo quanto à tentativa de tornar a questão da intersexualidade invisível. Definir o sexo nos primeiros meses de vida é não respeitar o tempo de desenvolvimento do bebê, como aponta Sterling (1993). Essa adequação imediata mantém a reprodução do gênero binário, construído educacionalmente como não sendo algo natural, porém discursado como natural, sendo que, nesses casos, o natural e o real são a intersexualidade (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Em relação à prevalência de pessoas intersexo, a ocorrência pode chegar a 1,7% da população mundial (DE SOUZA, CANGUÇU-CAMPINHO, DA SILVA, 2021). Dada essa variação, os médicos realizam a cirurgia para afirmação de gênero (SANTOS, ARAUJO, 1999; STERLING, 2000). Acreditamos que muitos mais casos não sejam notificados devido às questões culturais da invisibilidade. Outros estudos de prevalência de diferenciação genital apresentam resultados variáveis que vão desde 1:20.000 até 1:4.500 recém-nascidos (CASTILLA et al., 1987; HUGHES et al., 2006).
No Brasil, o registro populacional de nascimento com “defeitos” congênitos teve início em 1999 mediante a introdução de um campo na Declaração de Nascido Vivo (DNV), que deve ser preenchido completa e obrigatoriamente para que a certidão de nascimento possa ser emitida. Os registros das malformações congênitas possibilitam o fornecimento de informações sobre prevalência e sobre fatores de risco para defeitos congênitos. Com essas informações é possível não só planejar políticas de prevenção e de atenção à saúde, como também avaliar a efetividade das ações implementadas.
Só a partir de 1999 foi possível fazer algum levantamento estatístico dos nascimentos de indivíduos intersexo, embora com alguma dificuldade, já que nem sempre as equipes médicas têm capacidade técnica para tal diagnóstico ou não sabem como proceder quanto às notificações estatísticas (MONLLEÓ et al., 2012).
Monlleó et al. (2012) identificaram, em Maceió (AL), o registro de 2.916 crianças que nasceram no período entre 19/04/2010 e 18/04/2011, das quais 29 apresentam alguma diferenciação genital detectada no exame físico, representando, praticamente, 1% das nascidas no período. Esse percentual é muito acima do registro na categoria “ignorado” para sexo no Brasil em 2017, que alcançou 0,018%, o que corresponde a 528 pessoas em um ano (DATASUS, 2020).
3 Ativismo no Brasil e a criação da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI)
A partir de 2020, o ativismo intersexo no Brasil ganhou um novo marco: a fundação da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI). A partir do momento em que a associação foi oficializada, ela passou a ter força de representatividade no legislativo em prol de políticas públicas. A ABRAI surgiu da iniciativa de diversos ativistas intersexo e de aliados da causa.
Inicialmente, foi construída uma página chamada Visibilidade Intersexo, que envolveu ativistas como Eris Haru, Olivia Denardi e Dionne Freitas, responsáveis por integrar mais pessoas intersexo e outros ativistas espalhados pelo Brasil, formando um grupo no Facebook nomeado Intersexos Brasil. Desse grupo, expandiu-se a discussão e ampliou-se o projeto. Em um segundo momento, Dionne Freitas, Shay Bittencourt, Amiel Vieira, Alex Bonatto, Eris Haru, Olivia Dernardi, Jéssica Tenório e Yume Lee discutiram a necessidade de uma representatividade formal, inicialmente chamada União Brasileira Intersexo (UBI). Nesse contexto, Thais Emilia, mãe de bebê intersexo, que recebeu o nome de Jacob, procurou uma associação que a pudesse apoiar. Em um grupo de ativismo LGBTQIAP+, encontrou Olivia, que a encaminhou para ser acolhida pelos ativistas da Visibilidade Intersexo (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Como mãe, Thais sentiu a necessidade de uma associação. A ABRAI iniciou sua regulamentação em 2018, tendo como primeira presidenta Olivia Denardi, vice-presidente Shay Bittencourt e secretária Thais Emilia. Em 2019, após o pedido de afastamento de Olivia Denardi, a ABRAI foi regulamentada, assumindo Thais Emilia como presidenta, Shay Bittencourt como vice-presidente (SANTOS-CAMPOS, 2020; ABRAI, 2021).
As primeiras pautas foram a defesa da integridade física e psíquica de bebês intersexo, além da luta pela autonomia e pela autodeterminação nos procedimentos médicos. Após seu nascimento, Jacob teve sua DNV retida pela maternidade por não ter um sexo nem masculino nem feminino. A discussão foi incorporada à pauta do ativismo brasileiro, uma vez que o registro de bebês intersexo, na sua real condição biológica, reduzirá danos físicos e psíquicos (COSTA, 2018; SANTOS-CAMPOS, 2020).
A partir de 2018, as emergências levantadas por ativistas intersexo brasileiros, que surgiram no cenário social como novos sujeitos de direitos, a ABRAI, enquanto única sociedade de representação da sociedade civil intersexo, passou a ser cada vez mais requisitada por instituições, conselhos e pelo poder público para a elaboração e a implementação de políticas públicas voltadas para essa população, principalmente em relação ao registro civil de bebês intersexo e a emissão da certidão de nascimento (DIÁRIO DA REGIÃO, 2017; G1, 2019; HCPA, 2019; STF, 2020; TJRS, 2019).
No Brasil, as pessoas intersexo têm tido seus direitos violados. O legado da Biomedicina atua diretamente na construção de significados sobre o corpo e sobre o gênero (CANGUÇU-CAMPINHO, BASTOS, LIMA, 2009). A proibição de cirurgias em bebês intersexo, caso não haja risco de morte, e a aprovação do Projeto de Lei nº 5.002/2013 (CARNEIRO, 2016), conhecido como a Lei de Identidade de Gênero, ajudariam a população intersexo no reconhecimento de sua condição natural.
Costa (2018) compila a história do ativismo intersexo no Brasil, trazendo um panorama da regulação de corpos e de identidades não conformes com o regime binário sexual e de gênero. Assim, a população intersexo vive um ativismo marcado pela mudança da história e da qualidade de vida dos bebês que nascerão e das vidas que virão, e não apenas a melhoria da qualidade de vida de seus ativistas. Em 2006, no dia 26 de outubro, começou a ser comemorado o Dia da Visibilidade Intersexo, marcando a luta entre Medicina e sujeitos intersexo, com o
[...] protesto ocorrido sete anos antes, em 1996, em Boston, nos Estados Unidos, quando Morgan Holmes e Max Beck, ambos ativistas intersexo filiados a antiga ISNA, tiveram a participação barrada na conferência anual da Associação Americana de Pediatria. Com base no ativismo estadunidense, esse episódio é tomado como marco da luta pelos direitos das pessoas intersexo por ter sido uma das primeiras manifestações públicas ao redor dessas reivindicações. Outra data relevante para o ativismo intersexo internacional refere-se ao dia 8 de novembro, chamado de “Dia da Memória Intersexo”. Neste dia comemora-se o aniversário de Herculine/Abel Barbin, que nasceu em 1838 na França. Como já discutido no segundo capítulo, Herculine tornou-se um ícone para o movimento intersexo devido ao diário escrito com as memórias de sua vida, desde sua infância como “menina” até o momento em que foi legalmente obrigada/o a mudar seu sexo/gênero para “masculino”, após a “descoberta” do seu “verdadeiro” sexo (Foucault, 1984; Butler, 1993). São duas datas em que se renova a inscrição da intersexualidade em uma memória coletiva. Articulações políticas intersexo de vários países, inclusive no Brasil.
(COSTA, 2018, p. 204)
Costa (2018) aponta que o caso de Jacob e o ativismo de sua mãe foram ações potencializadoras da militância intersexo no Brasil. Por se tratar de uma mãe discursando pela mesma causa que os sujeitos intersexo, as mídias divulgaram o caso fora do patamar “sensacionalista” e “fatalista” dos bebês intersexo, atrelando essa mudança do discurso ao fato de ser uma mãe estudiosa da área de gênero e que não aceitou as pressões médicas e sociais em relação às adequações sexo/gênero binário, trazendo um enfoque de afetividade à causa e “[...] novas possibilidades de mudança de parâmetro da atenção médica” (COSTA, 2016, p. 235).
A dualidade entre Medicina e sujeitos intersexo e os lugares de escuta são trazidos na análise de Costa (2018). A mãe de Jacob ocupa espaços sociais, com especial destaque para as Ciências Jurídicas, uma vez que o caso Jacob acarretou diversas ações da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em suas Comissões de Diversidade de Sexo e Gênero. Essa dualidade começou a mudar o paradigma quando o serviço de Endocrinologia, na área de disgnesia gonadal, convidou essa mãe a desenvolver um trabalho voluntário com famílias e pessoas intersexo, aproximando os movimentos sociais das instâncias médicas (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Essas ações trouxeram mais visibilidade e credibilidade à luta pela autodeterminação e pela autonomia das pessoas intersexo sobre seus corpos e suas identidades de gênero (DIAS, 2018), resultando em diversas matérias, documentários, artigos, entrevistas, pesquisas de mestrado e doutorado, projeto de lei, livros, eventos, entidades representativas e ações no Conselho Nacional de Justiça (ANA, 2017; CAMPOS-SANTOS, 2019; 2020; COLAFEMINA, 2020; COSTA, 2018; CREMEPE, 2018; DELAS, 2020; DIÁRIO DA REGIÃO, 2017; 2018; DIAS, 2018; DOCUMENTO VERDADE, 2017; DRAUZIO, 2019; EROSDITA, 2017; GIRARDI, 2020; GLOBOSAT, 2019; IBDFAM, 2021; MODESTO, 2019; MORAIS, 2019; NEXO, 2018; PREFEITURA DE SANTOS, 2018; SILVA; JAQUES, 2017; UNIVERSA, 2019).
A Conferência I-DSD é uma conexão entre centros médicos e de pesquisa do mundo todo que permite a inserção de informações padronizadas, a fim de melhorar a prática clínica, a pesquisa e a compreensão, principalmente sobre a hiperplasia adrenal congênita. Em 2019, ocorreu o 7th I-DSD Symposium, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), no qual estiveram presentes, além de profissionais da saúde e pesquisadores da área, também ativistas intersexo de diferentes países e continentes. Do Brasil, estavam presentes Thais Emilia e Amiel Vieira.
Entre outras questões, discutiu-se a necessidade de mudança da terminologia distúrbio do desenvolvimento sexual para diferenças do desenvolvimento do sexo. O termo “intersexo” foi utilizado por alguns congressistas e em alguns painéis. Ao final do simpósio foi realizada uma votação, sem valor oficial, na qual a expressão diferenças do desenvolvimento do sexo foi considerada mais adequada pela maioria dos presentes, visto que despatologiza as pessoas intersexo e abarca a variedade de características do sexo como diversidade, e não como doença (SANTOS-CAMPOS. 2020).
A nomenclatura intersexo tem sido uma das pautas recentes do ativismo intersexo brasileiro por se referir a uma identidade não de gênero, mas, sim, a uma identidade que marca uma luta por políticas de proteção aos corpos intersexo. Cada vez mais novas identidades sociais tornaram-se visíveis, novas formas de viver a sexualidade surgiram e diferentes arranjos familiares emergiram e se multiplicaram. Nesse contexto, os processos de marcação de identidade, conhecidos como “política de identidades”, afirmam-se no diferenciar-se (HALL, 1997). Santos-Campos (2020), em sua tese de doutoramento, entrevistou ativistas intersexo, levantando as seguintes conceituações:
O termo Intersexo é referido como uma condição biológica e é apontado como o mais adequado para referir-se à pessoa Intersexo. Já o termo intersexual não deve ser utilizado para referir-se à pessoa Intersexo, pois pode dar indícios de questões de orientação do desejo sexual ou também de identidade de gênero. Alguns Intersexos entrevistados consideram-se Intersexual, a identidade de gênero da pessoa Intersexo que não transicionou. Porém, em todos os outros países da América Latina usa-se o termo Intersexual para referir-se à pessoa Intersexo, devido a tradução. Também se enfatiza a diferenciação entre os conceitos de Intersexo e Intersexualidade: Intersexo refere-se à pessoa e intersexualidade às vivências da pessoa Intersexo. Também, há grupos de pessoas que têm corpos Intersexo, mas que não gostam de se denominarem Intersexo. Preferem o termo Meninas XY ou ser referido pelo nome da Síndrome como Klinefelter, homem XXY, ou sou mulher com Tunner, ou Insensibilidade Androgênica. Diferencia-se, assim, grupos de pessoas que se sentem identificadas com o termo Intersexo e outro grupo que se sente mais confortável com o conceito de carregar uma Síndrome ou DDS, porém se fixando nos gêneros homem ou mulher com DSD e não pessoa Intersexo.
(SANTOS-CAMPOS, T.E. 2020, p. 79)
Annukaim e Mauro Cabral iniciaram postagens em suas redes sociais em 2021 ressignificando a palavra “hermafrodita”. Em seguida, ativistas intersexo brasileiros que têm o estado intersexo de hermafroditismo verdadeiro também iniciaram esse movimento de ressignificação do termo (GRINSPAN, 2021).
Outras questões discutidas no I-DSD 2019 foram a importância do trabalho interdisciplinar e a participação de familiares e dos próprios sujeitos intersexo nas decisões sobre as condutas médicas, principalmente no que se refere ao dueto sexo e gênero. Apenas uma equipe da América do Norte, com serviços de DSD, tem como coordenador da equipe um psicólogo, trazendo um enfoque sob uma perspectiva mais humana, diferente dos outros países, que são coordenados por médicos (SANTOS-CAMPOS. 2020).
Um marco no movimento intersexo no Brasil e no mundo é o nascimento do bebê Jacob, que impactou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), iniciando debates no FONINJI de 2018 sobre o registro civil de bebês intersexo no Brasil. Esse debate chegou ao CNJ a partir do relato da mãe de Jacob na “Semana da Mulher da Unesp de Marilia” (2017). Thais e Beto foram apontados, em 2017, pelo diretor do documentário Intersex Arms (Tomás Auksas) como os primeiros pais no mundo a assumirem publicamente terem um filho intersexo e a lutarem pelos mesmos ideais dos ativistas intersexo adultos: fim de cirurgias precoces e direito a registro de nascimento. Assim, o lançamento do livro Jacob (y), “entre os sexos” e cardiopatias, o que o fez anjo? É, atualmente, um marco na visibilidade da existência de bebês intersexo no mundo (CAMPOS-SANTOS, 2020).
Em janeiro de 2020, nasceu, no Recife, um bebê intersexo que, ainda no início de março, estava sem a DNV, pois o hospital se recusava a emiti-la por se tratar de um bebê DDS. A mãe buscou o apoio da ABRAI, que redigiu uma carta e a encaminhou à presidência da maternidade de Recife. Em uma semana a lei foi cumprida. A maternidade entregou a DNV e o cartório registrou o bebê com nome, mas sem designar um sexo, utilizando o campo “ignorado”. Com o cumprimento da lei, o bebê obteve seu registro sem a imposição de sexo/gênero masculino ou feminino. O hospital desculpou-se com a família, alegando que, realmente, desconhecia a lei por completo. O cartório também teve de consultar a lei por ser a primeira vez que realizou o registro de um intersexo. Em outros casos, as DNVs eram sempre retidas até que, depois de meses, quando concluíam-se os exames de cariótipos, o registro era realizado. Repórteres da Folha de São Paulo e do O Globo procuraram a ABRAI para obter esclarecimentos sobre o caso. Esse nascimento com a emissão da certidão sem indicação do sexo foi noticiado no site Prensa de Babel (VIANA, YORK, 2020).
Nesse contexto, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) peticionou ao CNJ e ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma normativa do CNJ que buscava definir o sexo dos bebês intersexo até os 4 anos de idade e os nomearam “sexo a determinar”. Para a ABRAI, a definição do sexo aos 4 anos e a expressão “a determinar” poderão elevar o número de cirurgias estéticas sem o respeito à identidade de gênero dos sujeitos intersexo, já que, nessa idade, a criança não tem, ainda, autonomia para tal decisão. A normativa viola as integridades física e psíquica dessas crianças, pois cada corpo intersexo é único e não é possível prever como se desenvolverá na puberdade, acarretando, quando feitas essas cirurgias precoces, danos irreparáveis e problemas de metabolismo.
A ABRAI teve suas demandas acolhidas tanto pelo CNJ como pelo STF e esse debate resultou no Provimento nº 122/2021 da Corregedoria Nacional de Justiça, que passou a valer a partir do dia 12 de setembro de 2021, garantindo o direito de registro civil ignorando o sexo para crianças intersexo. A medida padroniza o procedimento em todo o Brasil e prevê, ainda, a possibilidade de realizar, a qualquer tempo, a opção de designação de sexo em qualquer Cartório de Registro Civil sem a necessidade de autorização judicial, de comprovação de cirurgia sexual e tratamento hormonal ou apresentação de laudo médico ou psicológico (IBDFAM, 2021).
Em relação aos cuidados com a saúde, o Comitê de Saúde LGBTI do município de São Paulo, em parceria com a ABRAI, elaborou um material informativo para mães de bebês intersexo (SANTOS-CAMPOS; NONATO, 2020). Assim, nota-se um fortalecimento do ativismo intersexo no Brasil após a formalização da ABRAI, que passou a ser requisitada enquanto representante da sociedade civil em diversas instâncias.
Em 12 de janeiro de 2021, a Defensoria Pública da União (DPU) realizou a Audiência Pública “Urgência, necessidades de cirurgia e cuidados com a saúde de crianças intersexo” (DPU, 2022), abordando e acolhendo os relatos de pessoas intersexo, pais e mães de intersexo, profissionais da saúde e do direito acerca da complexidade de decisões sobre corpos de sujeitos que ainda não são capazes se expressar quanto à decisão de procedimentos médicos irreversíveis.
Em agosto de 2022 foi lançada, pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), em parceria com a ABRAI, a Nota Técnica e Orientativa do CRP-SP: A Atuação Profissional de Psicólogas/os no Atendimento às Pessoas Intersexo. Novamente a ABRAI foi pioneira em suas ações mundialmente na elaboração de um documento orientador para profissionais da saúde (CRPSP, 2022).
4 Ativismo no mundo
Entre 29 e 30 janeiro de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Programa Conjunto da ONU sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e o Ministério da Saúde realizaram a reunião técnica sobre “Saúde, Trabalho, Direitos e Inclusão Social para a População Trans”, com uma mesa de debate sobre Saúde e Integridade da Pessoa Intersexo. Como representantes das pessoas intersexo compareceram Dionne Freitas, mulher trans e intersexo, Carolina Iara, intersexo, travesti e negra, além de Thais Emilia, presidenta da ABRAI e mãe de intersexo.
Enquanto autoras e sujeitas de suas vidas e de seus corpos, todas defenderam a pessoa intersexo, bem como o reconhecimento da categoria associado ao fim das cirurgias sem consentimento e ao direito ao registro civil de bebês intersexo. Carolina Iara comoveu e emocionou o público ao descrever as diversas cirurgias que lhe foram impostas na adolescência (SANTOS-CAMPOS, 2020).
A “2ª Conferência Intersexo Latino-americana e do Caribe”, realizada em fevereiro de 2020, em Buenos Aires, e coordenada por Mauro Cabral (Argentina) e Natasha Jimenez Mata (Costa Rica), pessoas intersexo e ativistas, trouxe contribuições muito relevantes para compreendermos a pauta intersexo e como a Educação deve atuar perante a diversidade dos corpos. Da conferência, participaram apenas ativistas intersexo, cada um representando seu país. O Brasil foi representado por Thais Emilia (presidenta da ABRAI e mãe de criança intersexo) e por Elisberto (conselheiro da ABRAI e pai de crianças intersexo).
As principais pautas do movimento intersexo levantadas coletivamente na conferência foram: (i) a proibição de intervenções não consentidas e (ii) o levantamento de informações da população intersexo para produzir materiais informativos e capacitações (dados demográficos e estatísticos, demandas, levando o lema “Nada de nós sem nós” para hospitais e pesquisadores nas capacitações).
Coletivamente e em total concordância, foram expostos os seguintes tópicos: (i) o acesso aos prontuários e à história de vida da pessoa intersexo; (ii) o poder da medicina sobre os corpos intersexo; (iii) exceto no Brasil, nenhum país tem um serviço médico especializado em DDS ou intersexo com a presença de algum representante do movimento intersexo; (iv) o incômodo das pessoas ao serem confundida com bi ou trans endossexo; (v) a falta de políticas públicas e leis; (vi) a capacitação e a educação que abordem a intersexualidade; (vii) a educação sexual que abranja os corpos intersexo e aulas de Biologia que abarquem seus corpos diversos; (viii) a ausência de informações e de dados sobre a população intersexo; (ix) a falta de tolerância e de compreensão com os corpos intersexo; (x) a inexistência redes de apoio permanentes; (xi) a ausência de um espaço em que as pessoas intersexo e seus familiares sintam-se seguros perante as informações recebidas e, também, para poderem assumir publicamente que são intersexo; (xii) banheiros adequados para pessoas intersexo; (xiii) a falta de respeito à diversidade de corpos e despatologização; (xiv) a carência de material (impresso, digital e audiovisual) sobre intersexo e de recursos financeiros para a atuação do ativismo intersexo. O único país do mundo com legislação que protege a pessoa intersexo de intervenções não consentidas é Malta (MALTA, 2015).
No que diz respeito à inserção da população intersexo na sigla LGBTI, a maioria das pessoas intersexo presentes ressaltou concordar que a letra “I” – de intersexo – não deveria pertencer à sigla LGBTI, pois consideram a causa diferente, uma vez que envolve questões médicas e bioéticas, enquanto, muitas vezes, a sigla LGBT é associada a questões “ideológicas”. Por mais que tenha havido mais visibilidade do conceito de intersexo dentro do movimento LGBTI, a sociedade intersexo considera que, de modo geral, perdeu espaço (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Devido à falta de notificação nos países sobre o número de nascimento de bebês intersexo, à omissão de acesso aos prontuários e à ausência de dados da população intersexo, os conferencistas enfatizaram a necessidade de as pessoas intersexo levantarem informações e pesquisas para poderem mobilizar políticas públicas em prol da proteção da pessoa intersexo. O acesso à saúde sem violações dos direitos humanos, uma pauta muito discutida, constitui a estratégia para modificar a forma como a Medicina atua em relação às pessoas intersexo, discutindo-se os procedimentos de “adequação sexual” ou de “imposição de gênero”, considerados tortura pelas pessoas intersexo (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Os temas prioritários no planejamento da conferência foram: (i) o financiamento do ativismo intersexo; (ii) a família; (iii) as mídias; e (iv) a sexualidade. O financiamento envolveu ações feitas para tramitar em políticas públicas favoráveis às pessoas intersexo. No tema família, coordenado por Hana Oi (México) e Thais Emilia (Brasil), abordaram-se os sentimentos que envolvem o nascimento e a educação de uma criança intersexo e as “pressões” médicas exercidas sobre os pais. O tema de mídias, coordenado por Natasha Jimenez Mata (Costa Rica), abordou o modo como as pessoas intersexo são procuradas por programas de TV, revistas, jornais e sites para falarem sobre como é ser intersexo.
Discutiu-se, ainda, como preparar as pessoas intersexo para as “armadilhas das mídias”. Muitas vezes, as mídias apresentam a proposta da entrevista de uma forma e, ao vivo, modificam a pauta para uma exposição sensacionalista, como, por exemplo, os corpos intersexos vistos como atrações circenses, como “a mulher barbada” ou “a hermafrodita”. Ainda hoje, intersexos correm o risco de terem seus corpos usados para visualizações em reportagens sensacionalistas. O momento, além de terapêutico, foi empoderador. O tema sexualidade foi deixado para outra ocasião, pois alguns ativistas presentes consideraram algo muito íntimo para ser conversado coletivamente; contudo todos afirmaram já terem sido abandonados por terem revelado ser intersexo a pessoas antes interessadas. Além disso, foram relatadas as dificuldades decorrentes das cirurgias (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Mauro Cabral, um argentino de 48 anos, pessoa intersexo e ativista, é diretor executivo de uma ONG que organizou a 1ª e a 2ª Conferências Intersexo Latino-americanas e do Caribe em 2018 e 2020, respectivamente. Ele é considerado, pela comunidade intersexo, um dos principais ativistas do mundo, sendo um dos mais antigos a lutar pela dignidade da pessoa intersexo. Em entrevista realizada na conferência em Buenos Aires, relatou:
[...] nasci com um corpo interno feminino e fui submetido a intervenções normalizadoras na adolescência, impostas para feminino, mas me identifico como homem. Comecei meu ativismo intersexo na década de 1990. Sempre me identifiquei como homem, porque não tinha uma vagina
(SANTOS-CAMPOS, T. E. 2020, p. 63).
Sobre seu sexo, seu gênero e sua orientação sexual, ele explica que não crê na existência de “um sexo”, como é pensado nas sociedades atuais. Diz que existem apenas corpos e esses corpos têm órgãos. Vê a constituição orgânica como um conjunto de órgãos nomeado culturalmente por tal ou tal sexo: isso é gênero. Sexo não existe. O que chamam de sexo seria gênero. Assim, considera-se do gênero masculino e orientação sexual pan.
Mauro Cabral define intersexo como uma categoria que serve para nomear as pessoas que nasceram com características anatômicas que variam entre os aspectos e as características consensuais mais comuns. Sobre momentos que considera históricos em relação à sua militância, ele apontou sua participação na OMS, denunciando os procedimentos de “adequação sexual” como tortura.
Para mim, um momento muito importante foi em 2004, quando fui pela primeira vez às Nações Unidas. Lá, fiz uma apresentação sobre intersexo. Foi um dos momentos mais importantes. Lá aponto os procedimentos de imposição de gênero como tortura. Outro momento foi a possibilidade de fazer uma apresentação no Congresso de bioética em Córdoba. E, tanto a 1ª Conferência intersexo Latino Americana e a 2ª têm sido um momento histórico, pela união de ativistas de vários países da América Latina. (SANTOS-CAMPOS, T. E. 2020, p. 63)
Destacou, também, sua participação no lançamento do documento The Yogakarta Principles 2006-2007, que trata de princípios da categoria sexual e do direito à verdade e à personalidade intersexo. Considera, contudo, as conferências latino-americanas importantíssimas para nos encontrar e fortalecer nossas lutas.
[...] quando comecei o ativismo pensava em tocar o mundo, terminar as cirurgias sem consentimento, e no momento sigo trabalhando no mesmo objetivo, e espero apoiar os ativistas que trabalham nesse campo. Essa conferência está fortemente orientada a ajudar o ativista intersexo a fazer o seu trabalho. Não é apenas uma conferência de debate político, pois cremos que todos que estão aqui, compartilhamos dos mesmos objetivos e temos as mesmas necessidades, e não estamos perdendo tempo com as coisas que já sabemos, apontando o que necessitamos, onde estamos como movimento, orientada a fortalecer o movimento, cremos que falta pouco para um avanço importante para que cheguemos a nossos objetivos e termos um movimento mais forte. Tem efeito multiplicador.
(SANTOS-CAMPOS, T. E. 2020, p. 63-64).
Sobre registro civil de bebês intersexo, Mauro considera que não deveria haver o item sexo nos documentos.
Todos temos distintas características, sexuais, corporais, umas são mais visíveis que outras. Não seria necessário determinar sexo no nascimento. É uma decisão que se toma sem consultar a pessoa, impõem um gênero, não registram o sexo de fato, e isso se dá sem consultar qualquer pessoa. Teve uma época na Argentina que na identidade colocavam raça e religião, hoje não se coloca mais. Então, por que colocar sexo até hoje? Sexo não deveria ter. Na Argentina, pode cambiar o sexo a partir do nascimento. Meu irmão é um homem com pênis e testículo; eu sou um homem sem pênis e sem testículo. Por que eu não poderia ser um homem? Na Argentina, poderia cambiar. Então me pergunto: o que decide o sexo? São os cromossomos? O genital? E quem possui cromossomo XXY? Nessa Conferência temos homens que não tinham pênis e mulheres que não tinham vagina. Chega um momento que sexo não diz nada. Isso é uma categoria que não quer dizer nada.
(SANTOS-CAMPOS, T. E., 2020, p. 64)
No encerramento da conferência, foi lida a carta de São José da Costa Rica, um manifesto escrito por ativistas intersexo para primeira conferência, em 2018. Os ativistas da segunda conferência acrescentaram algumas demandas e assinaram o documento, fortalecendo o manifesto. Foram lidos trechos na cerimônia de encerramento da conferência ocorrida em Buenos Aires, na Casa Brandon. Como representante do Brasil, Thais Emilia leu o trecho referente à saúde. A leitura da carta está disponível na plataforma YouTube1 e ilustra a emoção por parte dos ativistas intersexo e do público geral.
A declaração é dividida por tópicos que convocam diferentes esferas da sociedade. Em relação aos sujeitos intersexo, são eles: (i) estados; (ii) instituições nacionais e regionais de direitos humanos; (iii) financiadoras; (iv) movimentos aliados; (v) meios de comunicação; (vi) instituições de saúde; (vii) nossas famílias; e (viii) outras pessoas intersexo. Sintetizando a carta, o reconhecimento do corpo intersexo como natural, com suas características diversas. Um corpo que deve ser aceito, e não negado ou moldado; aceito nos documentos e pela Medicina. Têm-se como princípios a autodeterminação dos corpos pelo sujeito intersexo e o princípio da autonomia. Ao serem divulgadas informações corretas sobre os corpos intersexo, vemos, nas entrelinhas, a educação, responsável pela capacitação das equipes de saúde dentro dos princípios apontados pelos sujeitos intersexo, contribuindo para o reconhecimento da existência de pessoas intersexo. A educação e a escola contribuirão, excepcionalmente, ao ensinarem a diversidade da biologia humana como algo natural, e não patológico.
A luta pela integridade física e psíquica da pessoa intersexo vem tomando um espaço de mais visibilidade, causando, com isso, impacto tanto em pessoas endossexo quanto nas intersexo, que vêm debatendo o tema. Temos notado esse impacto por meio da inclusão de pessoas intersexo no debate sobre seus direitos em diferentes campos sociais, nos conselhos de saúde, na OAB, nos Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), nas instituições escolares e, até, religiosas.
A European Society for Paediatric Urology (ESPU), nesse contexto, emite uma nota sobre as cirurgias e os demais procedimentos em bebês intersexo, explanando o conceito de intersexo e as diferenças de desenvolvimento sexual, apresentando o intersexo como um grupo muito diversificado e amplo. A Declaração de Consenso de Chicago (2006) e a opção pelo termo DSD, mais abrangente, resultaram em um grande número de publicações, destacando a falta de consenso no uso da terminologia, uma vez que pacientes e famílias preferem termos como intersexo, enquanto outros preferem DSD, além dos que preferem ser identificados pela condição individual.
Assim, situar todos sob um único termo abrangente é arriscado e, por sua amplitude, não ajuda nos cuidados clínicos, minimizando suas singularidades. Ressalta-se, ainda, o apoio ao atendimento individualizado e multidisciplinar centrado no paciente e na família de pacientes com condições DSD. Apoiar o empoderamento do paciente e da família com a divulgação completa os ajudará na tomada das decisões de tratamento. A real busca é pelo bem-estar físico, psicológico e social desses pacientes. Sobre as cirurgias em pessoas intersexo, a ESPU (2020) assume que a proposta para restringir intervenções cirúrgicas contraria a definição de saúde da OMS.
O tratamento de crianças com condições DSD é mais bem realizado em um ambiente multidisciplinar, centrado no paciente e na família, baseado na abertura, no comprometimento e na confiança. Médicos comprometidos com os cuidados de crianças com uma variedade de condições congênitas, juntamente com seus pais, atentos ao futuro da saúde de seus filhos, promovem o bem-estar atual dessas crianças. Sobre o poder de decisão dos pais, a ESPU (2020) declara compreender que eles agem, implicitamente, no melhor interesse de seus filhos e devem ser respeitados como seus representantes. Os pais não devem ser afastados pelos regulamentos de proibição relativos às decisões bem-informadas que tomam em nome de seus filhos.
Para a ESPU (2020), os pais têm direito na tomada de decisões médicas por seus filhos com base na análise de todas as opções de gerenciamento disponíveis, incluindo observação, farmacoterapia ou cirurgia, com a exposição completa dos riscos potenciais e benefícios dessas opções. Pacientes e famílias beneficiam-se de uma abordagem holística que apresenta os prós e os contras de várias opções, incluindo cirurgia, capacitando as famílias para a tomada de decisões no melhor interesse de seus filhos (ESPU, 2020).
A ESPU (2020) não se coloca favorável ou contrária às cirurgias em bebês intersexo, mas apoia a atenção e as alternativas individualizadas, defendendo uma conduta abrangente e equilibrada com as necessidades de cada paciente em particular. É preciso levar em conta todas as considerações médicas, psicológicas, sociais e culturais do paciente e dos pais ou responsáveis. Recomenda-se, por isso, que todos os pacientes busquem informações de grupos de defesa, uma vez que eles podem oferecer informações importantes.
Ainda sobre as Ciências Médicas e a militância intersexo, em agosto de 2019, foi publicado o artigo “The Natural History of a Man With Ovotesticular 46XX DSD Caused by a Novel 3-Mb 15q26.2 Deletion Containing NR2F2 Gene” (CAVALHEIRA et al., 2019), no qual, após a insistência dos autores no título, tem-se a referência ao termo homem 46XX. Isso provocou um rompimento do termo DSD, realocando uma concepção patológica das pessoas intersexo para um posicionamento enquanto sujeitos. Segundo relatos dos autores, para conseguirem inserir no título o termo “homem XX”, tiveram que seguir a seguinte tramitação: inicialmente, submeteram o artigo com a expressão “homem intersexo” (intersex man), mas não foi aceito com argumento de que o Consenso de Chicago não a recomenda mais. Assim, os autores o reenviaram, alegando que era assim que a pessoa a si se referia e designava. Houve nova recusa. Dessa forma, o termo man 46XX foi o mais próximo de “homem intersexo” por fazer referência à pessoa com DDS, e não, ao contrário, a um doente-DDS. Com isso, o artigo foi aprovado para publicação. Esse artigo comprova ser possível que as demandas da militância intersexo sejam acolhidas pelas ciências médicas. Podemos perceber que há espaço para esse diálogo, em que a Medicina é um suporte à pessoa intersexo, e não uma ameaça à sua integridade.
Em outubro de 2020, em apoio ao Mês da Visibilidade Intersexo, a ONU, por iniciativa do governo da Áustria e com a cooperação do governo francês, elaborou um documento visando à proteção de bebês e adultos intersexo. Em entrevista à Rede Brasil Atual (2020), os representantes da Áustria afirmaram que os países devem investigar violações dos direitos humanos e abusos contra pessoas intersexo, além de reverter leis discriminatórias e proporcionar às vítimas desses procedimentos médicos o acesso a recursos de cuidado. Intervenções estéticas em corpos intersexo sem consentimento, ou seja, na infância, são consideradas procedimentos de tortura pela OMS e pela ONU.
A apelação foi realizada por 34 países na ONU, solicitando ao Conselho de Direitos Humanos a garantia da autonomia corporal e do direito à saúde da pessoa intersexo. Na América Latina, Argentina, Uruguai, Panamá, Chile, Costa Rica e México apoiaram a medida na ONU. O Brasil foi procurado, mas não respondeu aos austríacos (REDE BRASIL ATUAL, 2020). As associações latino-americanas fizeram uma nota nas redes sociais, solidarizando-se com a ABRAI por não ter o apoio do governo brasileiro na proteção da saúde das pessoas intersexo. Em decorrência disso, a ONU realizou uma reunião com médicos brasileiros com o objetivo de sensibilizá-los para a pauta (ONU, 2020).
5 Considerações finais
Ao tentar situar e contextualizar o conceito de intersexo no Brasil, percebemos um espaço de pleno debate, o dificulta afirmar que “intersexo” é um conceito fechado e, ainda, que ser pessoa intersexo não é o mesmo que “portar” uma DDS. Cada vez mais, fica claro que intersexo se refere à pessoa com variadas características do sexo – e não exatamente diagnosticada com uma DDS –, assim como fatores hormonais congênitos, cromossômicos e, principalmente, fenótipos, o que não a fixa no conceito de macho/masculino ou de fêmea/feminina.
Devido a essas variações, a pessoa vivencia procedimentos médicos e psíquicos por ter de lidar com um corpo que a faz se sentir não pertencente a um desses dois sexos binários construídos socialmente. Desse modo, acaba por ser submetida a procedimentos médicos e psíquicos de afirmação a um sexo/gênero. Ser intersexo não envolve apenas as DDSs, mas, também, casos de ovários policísticos que causam a virilização em uma mulher fêmea cis, levando a procedimentos médicos para não desenvolver caracteres masculinos/macho, como o aumento de pelos no corpo e da testosterona, a calvície e, inclusive, a infertilidade. Aparências andróginas, sem causas biológicas explicadas, também remetem à pessoa intersexo.
Desde a vida fetal atribuem-nos gêneros, e, apesar das inúmeras constituições de identidades, as instituições sociais insistem em apenas duas: masculino ou feminino. Por intermédio de recursos de controle social somos moldados por diversos processos de subjetivação e, outros, objetivados. Nessa regra heterônoma, atribui-se um gênero de acordo com a genitália que exibimos ao nascermos. Somos educados para viver de acordo com essa norma de gênero binária, hétero cis normativa e monogâmica. Raramente essas instituições de controle propiciam reflexões sobre ser a norma binária ser adequada ou não (SANTOS-CAMPOS, 2020).
Para Butler (2010), gênero teria como função a produção de uma falsa noção de estabilidade, em que a matriz heterossexual binária, fixa e coerente, opositora da marcação da diferença por meio de seu discurso binário e dicotômico, levaria à manutenção da ordem compulsória. Assim, “normatizar” corpos intersexo estabilizaria o que esses corpos desestabilizam: a ordem compulsória binária. Por esse motivo, corpos intersexo são negados, mutilados, invisibilizados, abafados e denegridos com o intuito de não romperem a crença de que só existem “o homem e a mulher”. A aceitação da existência da pessoa intersexo como algo natural, nascido, não patológico nega toda a estrutura à qual estamos domesticados. Por mais que as ciências já reconheçam as variantes de características sexuais tanto no reino vegetal como no animal, quando levada para a Medicina, essa prática se concretiza mais no senso comum do que com base nas Ciências. Por mais que tenhamos, no Brasil, uma legislação que aceite a existência e permita o registro sem sexo definido de bebês intersexo, também vemos, na prática, o senso comum agir, valer mais que a legislação, como na fala do S7:
[...] assegurar que o futuro profissional não repita em seus respectivos campos discursos preconceituosos, higienistas ou falsos como, por exemplo, afirmar que seres humanos têm 46 cromossomos e que, se não tiverem, não são humanos. Se o Ensino Fundamental brasileiro não tiver grande atenção e investimento, por parte do governo e da sociedade, continuará a se perpetuar a violência de gênero, contra minorias e o racismo.
(S7)
Para Santos-Campos (2020), sobre os impactos do conservadorismo na educação escolar e nas práticas médicas, surgem o sexista que se utiliza de técnicas ideológicas com base numa moral religiosa que forma alunos heterônomos, que não refletem e se constituem em opressores, agem de forma articulada no enfrentamento do que eles chamam de “ideologia de gênero”, sem perceberem que quem serve a alguma ideologia são esses sujeitos heterônomos. Um estudo realizado sobre o conceito de conservadorismo em uma escola pública do estado do Rio de Janeiro demonstra como se dá esse processo do uso da educação religiosa como instrumento de uma formação heterônoma que ataca as demais constituições de identidades de gênero, concluindo que atualmente temos um ataque do conservadorismo às instituições de ensino e que uma educação laica e com base nas ciências é essencial para a garantia de uma sociedade democrática e soberana (SEPUVELDA, SEPUVELDA, 2019). Mesmo com esses ataques à educação e às ciências, principalmente às Ciências Humanas e, especificamente, aos estudos de gênero e à educação sexual, temos tido a garantia de exercer a atividade docente e refletir para além dos gêneros binários, podendo acolher os alunos LGBTQIAP+ mesmo que sempre tenhamos que recorrer ao STF (NBO, 2020).
Pessoas que se identificam como intersexo passaram por reflexões, desconstrução e ruptura do que lhes foi imposto em sua infância/adolescência, assim como os pais que designam seus filhos como intersexo também não se submetem aos padrões impostos de gênero binário. Profissionais da saúde, ao compreenderem seus pacientes como pessoas intersexo, suscitam um debate sobre o respeito devido a elas enquanto sujeitos de sua existência. Diríamos que o termo intersexo carrega, além das variações das características corporais, um posicionamento de marcação do direito de não ter seu corpo violado, uma recusa a se submeter, visto se tratar de pessoas autônomas, e não heterônomas.
Sobre a sociedade e a pessoa intersexo, percebemos que, desde 2015, sua visibilidade tem aumentado muito no Brasil, resultando na representação de pessoas intersexo em diversos campos sociais, conselhos, comitês, entre outros. Isso tudo tem viabilizado a tramitação de políticas de acolhimento das pessoas intersexo, fazendo-nos acreditar que as escolas devem, também, trazer essa pauta formalmente, e não apenas por iniciativas pessoais de alguns professores.
Intersexo refere-se também às variações de características do sexo. As nomenclaturas associadas às DDSs ou ao DSD referem-se a diagnósticos do corpo utilizados pela Medicina, e não à própria designação do indivíduo, uma vez que há pessoas que se consideram intersexo ou que apresentam variantes corporais cujos diagnósticos de DDS não contemplam. Sobre educação de gênero (LOURO, 2008), para além dos binários, sabemos que há muitas formas de fazer-se “mulher” ou “homem”. Sobre sexualidade, sabemos que há várias possibilidades de sentir prazer e de desejar, sendo renovadas, reguladas, condenadas ou negadas pela sociedade em diferentes épocas da História. Embora as políticas conservadoras e com bases religiosas sugiram o contrário, as identidades e as práticas sexuais e de gênero, desde os anos 1960, estão cada vez mais presentes. As provocações ao movimento feminista e, depois, aos movimentos de gays e de lésbicas vêm sendo sustentadas por aqueles que se sentem intimidados por eles. Desse modo, novas identidades sociais tornaram-se visíveis, novas formas de viver a sexualidade surgiram, diferentes arranjos familiares emergiram e se multiplicaram, e os processos de marcação de identidade, conhecidos como “política de identidades”, afirmaram-se no diferenciar-se (HALL, 1997), sendo a intersexualidade uma dessas políticas. Por outro lado, há pessoas com diagnósticos de DDS que não se sentem intersexo. Para a inserção da letra “I” na sigla LGBTI ser oficializada no Brasil, foi necessária a criação e a atuação da ABRAI.
A partir desses aspectos e de diversos debates conduzidos por grupos de estudos e de militância intersexo, percebemos que algumas pessoas com diagnóstico de DDS não se consideram intersexo, enquanto outras sem o diagnóstico consideram-se, alegando terem corpos incongruentes e vivenciarem a intersexualidade. Dessa forma, pensamos se o intersexo seria uma identidade. Em o sendo, seria uma identidade de gênero? Ao se referir, contudo, ao sexo biológico, e não ao gênero, seria uma identidade biológica? Ainda, quando debatemos essas questões, pensamos, conforme apontado pela ativista e coparlamentar Carolina Iara, que o intersexo seria uma identidade biopolítica (SANTOS, 2020).